Resumo: Este artigo tem por escopo realizar uma análise acerca da subsistência do regime jurídico administrativo pautado no mencionado princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado, tendo em conta a mudança de paradigmas ocorridas no direito brasileiro com o advento da Constituição de 1988 e o princípio da dignidade da pessoa humana.
Palavras chave: Princípios. Supremacia. Interesse publico. Ponderação.
Abstract:This article has the purpose to carry out an analysis about the livelihood of the administrative legal system guided the mentioned principle of the supremacy of the public interest over private interest, taking into account the paradigm shift that occurred in Brazilian law with the advent of the 1988 Constitution and the principle of human dignity
Keyword: Principles. Supremacy. Public interest. weighing
Sumário: 1.O paradigma clássico do direito administrativo 2.O advento do constitucionalismo e a crise do direito administrativo 3.Releitura do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado 4.Desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público 5.Conclusão 6. Referências bibliográficas.
1.O paradigma clássico do direito administrativo
Os manuais de direito administrativo costumam narrar em uníssono que o surgimento do direito administrativo se deu com a lei 28 de pluvioso, no ano de 1800, e que serviu para limitar e organizar a administração pública. Ao poder legislativo, na visão de John Locke, caberia a edição de leis, normas gerais, abstratas e impessoais, restando ao poder executivo a atribuição de executar essas leis. O ilustre administrativista Caio Tácito assim sintetiza o surgimento do direito administrativo:
“O episódio central da história administrativa do século XIX é a subordinação do Estado ao regime de legalidade. A lei, como expressão da vontade coletiva, incide tanto sobre indivíduos como sobre as autoridades públicas. A liberdade administrativa cessa onde principia a vedação legal.[1]”
Inobstante isso, ao averiguarmos nas fontes as origens do direito administrativo, chegamos à conclusão que diversas são as motivações para o surgimento do direito administrativo, senão vejamos. O surgimento do direito administrativo e de suas categorias jurídicas principais, tais quais o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, as prerrogativas da administração pública, discricionariedade, insindicabilidade do mérito administrativo, representou em verdade uma forma de reprodução de práticas autoritárias no bojo do Antigo Regime. Tais categorias jurídicas se amoldam com maior facilidade a tais práticas, ao contrário do que sobejamente apregoado, de que elas teriam surgido justamente da necessidade de salvaguardar os direitos dos cidadãos frente ao Estado opressor.
Daí podemos de igual modo extrair que a invocação da separação dos poderes, de Montesquieu, foi mero pretexto, figura retórica, visando atingir o objetivo de aumentar a esfera de atuação do poder executivo e torná-lo imune a qualquer controle judicial.[2]
A separação de poderes, serviu, na verdade, como espécie de imunização decisória dos órgãos do poder executivo, e as mencionadas categorias jurídicas acima delineadas em verdade surgiram para que houvesse uma verdadeira imunização dos atos do poder executivo frente às diversas formas de controle, inclusive a judicial.
No Brasil, aonde o processo histórico ocorreu sob a batuta do domínio e colonização portuguesa, tal manancial teórico do direito administrativo caiu como uma luva e serviu para justificar e legitimar o regime.
2.O advento do constitucionalismo e a crise do direito administrativo
Com efeito, o Estado moderno passou por diversas alterações, em especial após a crise do Estado Providência verificada nas últimas décadas do século XX. Parcela da doutrina passou a criticar alguns pontos até então inatacáveis do edifício teórico do direito administrativo, destacando-se os seguintes: a) a continuidade da existência do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, que serviria para legitimar todo o direito administrativo, diante do fortalecimento do princípio da dignidade da pessoa humana e as premissas teóricas surgidas com o novo constitucionalismo b) a existência da legalidade administrativa como vinculação positiva à lei, somente. C) a impossibilidade de controle do mérito administrativo.
O surgimento do constitucionalismo moderno veio trazer significativas alterações nos mais diversos ramos do direito, em especial no direito administrativo, que passou a sofrer as injunções deste novo ramo de modo mais enfático. Eis as novas premissas, com as quais o direito administrativo deveria conviver : a) avulta em importância o principio da dignidade da pessoa humana como pilar de todo o sistema jurídico, e tal princípio vincularia toda a administração pública b) a Constituição, e não mais a lei, passa a se situar no cerne da vinculação administrativa á juridicidade, C) a definição do que seja interesse público, deixa de estar ao arbítrio do administrador, e passa a depender do juízo de ponderação proporcional entre os direitos fundamentais d) a discricionariedade passa a ser controlada, devendo ser uma discricionariedade legitimada.
Daí que passou-se a defender uma desconstrução dos antigos paradigmas, para uma adequação do direito administrativo aos novos tempos,e tal objetivo seria alcançado através do ataque ao princípio da supremacia do interesse público sobre o privado.
3.Releitura do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado
O princípio da supremacia do interesse público sobre o particular é admitido pela doutrina brasileira, e estaria implícito na constituição federal. Dentre os administrativistas brasileiros, o mais ferrenho defensor de tal princípio é Celso Antônio Bandeira de Mello, que nos traz uma construção teórica calcada na noção de interesse público, tal e qual elaborada por Alessi, e nos apresenta a noção de interesse público como projeção dos interesses privados.
Todavia, o erro em que incorre Celso Antônio Bandeira de Mello, consiste em tratar o interesse público ainda nos moldes do conceito trazido por Alessi, da doutrina italiana, sem levar em conta o novo constitucionalismo e a projeção do princípio da dignidade da pessoa humana. Não existiria, assim, essa dicotomia entre o público e o privado, como se fossem interesses contrapostos entre si.
Para a doutrina em geral, assim, tal princípio serviria de base para a construção de todo o arcabouço teórico do regime jurídico administrativo, tendo como premissa a superioridade do interesse público.
4.Desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público
Os princípios jurídicos adquiriram status de normas, com o surgimento da moderna teoria dos princípios. Na hipótese de existência de antinomia entre princípios, como consagrado na doutrina, deve prevalecer o método da ponderação dos interesses. Na doutrina nacional, Humberto Ávila tem trabalho interessante a respeito da incompatibilidade deste princípio da supremacia do interesse público sobre o privado[3]. A contradição maior apontada por este renomado autor é a de que o mencionado princípio, conceitualmente, não poderia ser considerado princípio, tendo em vista que a sua premissa é de que ele seja superior aos demais interesses e princípios, o que confronta o método da ponderação dos interesses.
De igual modo, além da incompatibilidade conceitual, tal princípio também não tem respaldo normativo, em virtude de três argumentos principais, a saber, a uma, por não decorrer da análise sistemática do ordenamento jurídico, a duas, por não admitir a dissociação do interesse privado, colocando-se em xeque o conflito pelo princípio, e a três, por demonstrar-se incompatível com os postulados normativos erigidos pela ordem constitucional.
Assim que, de acordo com o autor, posicionamento com o qual concordamos, não há fundamento de validade do indigitado princípio, principalmente em virtude de a constituição brasileira trabalhar sob o influxo do princípio da dignidade da pessoa humana.
Doutro prumo, interesse público e interesse privado estariam tão umbilicalmente ligados no contexto da Carta Magna que simplesmente não há essa dicotomia absoluta entre interesse público e interesse privado. A esse respeito, inclusive, disserta Humberto Ávila[4]
“O interesse público e o interesse privado estão de tal forma instituídos pela Constituição brasileira que não podem ser separadamente descritos na análise da atividade estatale de seus fins. Elementos privados estão incluídos nos próprios fins do Estado (p. ex., preâmbulo dos direitos fundamentais)”.
Podemos assim concluir que a proteção de um interesse privado não necessariamente destoa da proteção de um interesse público, desde que estejam constitucionalmente assegurados. Impossível admitir no ordenamento jurídico um princípio que, ignorando as nuances do caso concreto, preestabeleça qual a solução a ser dada.
5.Conclusão
O direito administrativo teve o seu edifício teórico construído sobre a premissa da existência de um interesse público superior aos demais direitos ou interesses. Para tanto, criou diversas categorias jurídicas , (desapropriação, poder de polícia, dentre outros) que embasaram este agir da administração, legitimando-se a sua atuação calcado no mencionado princípio.
Com o advento do neoconstitucionalismo, e o prestígio que angaria o princípio da dignidade da pessoa humana, toda a premissa do agir Estatal se modifica e passa a girar em torno deste princípio.
Daí que é posto em cheque a existência de um “princípio da supremacia do interesse público sobre o particular”, tendo em vista que o conceito de interesse público não é dissociado da tutela e proteção de interesses privados e do princípio da dignidade da pessoa humana.
Também se torna indefensável a existência de um princípio que seja apriorísticamente considerado superior aos demais, sem considerar as nuances do caso concreto. Com o advento da Constituição de 1988 , o fundamento do Estado Democrático de Direito consiste na concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, de modo que o Estado existe para o indivíduo, e não o contrário.
O arcabouço teórico do direito administrativo, portanto, deve ser revisto, para que o mesmo seja adequado aos novos tempos, à nova doutrina neoconstitucional, desapegando-se portanto do ranço autoritário de sua origem, que se deu para legitimar a atuação da administração livre de qualquer tipo de controle.
Informações Sobre o Autor
Guilherme Silva Bastos Malheiro
Graduado pela Universidade Federal da Bahia. Advogado em Salvador/BA