O presente estudo analisa brevemente o procedimento de julgamento dos recursos especiais repetitivos, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça. Como é sabido, em 8 de agosto de 2008, entrou em vigor a Lei 11.672, acrescendo o art. 543-C ao Código de Processo Civil, para regulamentar o tema, fato que vem gerando intenso debate no mundo acadêmico.
A iniciativa partiu de uma realidade insustentável: a situação de cada Turma do Superior Tribunal de Justiça apreciar, anualmente, número próximo a 50.000 recursos, em sua maioria sobre questões idênticas. Um dos Tribunais de Cúpula, que deveria proferir decisões paradigmáticas (“nomofilachia”), encontra-se abarrotado por recursos que travam a efetividade da jurisdição. O debate sereno e tranqüilo, próprio dos órgãos colegiados, não encontra terreno fértil para florescer. E os provimentos, raramente analisados nos cursos de graduação, ainda mais distante se encontram da sociedade civil.
Provavelmente, em algum momento, mediante outra Emenda Constitucional, será limitada a atuação do Superior Tribunal de Justiça aos julgamentos que atinjam mais intensamente a sociedade, com a exigência de novo requisito de admissibilidade, nos moldes da repercussão geral do recurso extraordinário. Mas nenhuma garantia há que tal modificação ocorrerá em futuro próximo.
No art. 543-C, CPC, é idealizado um procedimento padrão para julgamento de recursos repetitivos. Em linhas gerais, o dispositivo legal preconiza que “quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica questão de direito”, caberá ao presidente do tribunal de origem “admitir um ou mais recursos representativos da controvérsia, os quais serão encaminhados ao Superior Tribunal de Justiça, ficando suspensos os demais recursos especiais até o pronunciamento definitivo do Superior Tribunal de Justiça” (art. 543-C, §1°). Presente, portanto, a idéia de se restringir a subida de recursos análogos, que aguardam os paradigmas traçados pelo Superior Tribunal de Justiça.
O desafio central deste procedimento é viabilizar a uniformização dos entendimentos divergentes sobre a mesma questão de direito, sem ferir o norte constitucional do contraditório. Permitir a participação dos cidadãos na construção do paradigma é a grande missão que o operador hoje encontra para permitir a consagração do princípio democrático também nos julgamentos repetitivos.
A lei preconiza que, uma vez “publicado o acórdão do Superior Tribunal de Justiça, os recursos especiais sobrestados na origem: I – terão seguimento denegado na hipótese de o acórdão recorrido coincidir com a orientação do Superior Tribunal de Justiça”; ou “II – serão novamente examinados pelo tribunal de origem na hipótese de o acórdão recorrido divergir da orientação do Superior Tribunal de Justiça”, segundo § 7°, do mesmo artigo.
A rebeldia do Tribunal inferior, na adoção da tese sufragada pelo Superior Tribunal de Justiça, determina o processamento do recurso especial, com o seu exame delegado de admissibilidade e a conseqüente remessa para provimento.
Duas dificuldades práticas merecem especial atenção em nosso sentir. Inicialmente, será importantíssimo destacar a forma pela qual serão selecionados os recursos representativos da controvérsia, pois eventual incorreção nesta tarefa inibirá já no início o sucesso do procedimento. Ato contínuo, preocupa a forma pela qual a sociedade participará do debate acerca da melhor orientação pretoriana. Se, por um lado, é realmente impossível imaginar o direito de todos indivíduos interessados peticionarem nos autos do julgamento paradigma, por outro, a vedação não poderá ser absoluta, sob pena de se ofuscar a aplicação democrática do direito. Daí a necessidade de harmonizar as duas exigências.
Na interpretação dessas duas imposições (participação política e racionalidade no procedimento), certamente devem ser levados em consideração os princípios constitucionais aplicáveis ao direito processual, especialmente o acesso à justiça, o contraditório, a duração razoável, a fim de resguardar o devido processo constitucional. Dentro dessa premissa, algumas considerações merecem ser traçadas.
Quanto ao primeiro aspecto, é imperioso que a sociedade civil participe da eleição dos recursos representativos da controvérsia. Não apenas o Poder Judiciário, como à primeira vista a lei determina, deve participar desse processo, mas também os cidadãos interessados. Uma sugestão será prestigiar o trabalho a ser realizado pela Ordem dos Advogados, que poderá, em cada região onde se visualize matéria repetitiva, constituir grupos de trabalho. Após ampla discussão, inclusive com audiências públicas, poder-se-á a apontar determinados recursos que, na visão da classe, melhor trabalham os argumentos.
Em relação ao segundo tópico, acerca da forma de exercício da cidadania no seio do Superior Tribunal de Justiça, a figura do amicus curiae parece ser adequada. Compete à sociedade civil organizar-se, para, a partir de associações, sindicatos, federações, postular seu ingresso nos procedimentos em tramitação. O Relator, tal como a lei determina, admitirá a participação dessas instituições, desde que sérias e respeitadas pelo corpo social. Novos pontos de vista, inéditos nos autos, muitas vezes antagônicos, serão trazidos para consideração, permitindo a compreensão globalizada da controvérsia.
De toda sorte, estes são apenas dois aspectos suscitados pelo procedimento para julgamento de recursos especiais repetitivos. Restam em aberto outros pontos, como, por ilustração, as Resoluções editadas pelos Tribunais para regular a matéria e a relativa complexidade do procedimento idealizado, que podem afastar o ideal de acesso efetivo à justiça. Daí a redobrada cautela que exige de todos os operadores nesses primeiros dias de vigência da nova lei.
Informações Sobre o Autor
Daniel Ustárroz
Professor convidado nos cursos de especialização da Academia Brasileira de Direito Processual Civil (ABDPC), UFRGS, ULBRA/RS e URCAMP, dentre outras instituições.
Mestre em Direito Processual pela UFRGS
Autor das seguintes obras:
Manual dos Recursos Cíveis. Livraria do Advogado: 2007.
Responsabilidade Contratual. 2. ed. Revista dos Tribunais: 2007.
Intervenção de Terceiros no Processo Civil. Livraria do Advogado: 2004.