Resumo: De acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entabulada no verbete de súmula nº 691, não compete a este o conhecimento de habeas corpus impetrado contra denegação de pedido liminar em Tribunal Superior. Contudo, em excepcionais casos, o próprio STF tem abrandado o ordenamento de sua própria súmula, desde que se constante flagrante constrangimento ilegal no direito de locomoção da pessoa ou quando essa técnica for necessária a reverter situação manifestamente contrária à jurisprudência do Pretório Excelso. De mais a mais, é importante frisar que nos dias hodiernos a competência do Supremo Tribunal Federal é totalmente diversa daquela que confeccionou o verbete em comento, o que, sem dúvida, põe em cheque o entendimento nele esposado.
Palavras-chave: Constituição da República de 1988. Direitos e garantias fundamentais. Liberdade de locomoção. Habeas corpus. Per saltum. Competência. Pedido liminar. Supremo Tribunal Federal. Súmula nº 691. Relativização. Excepcionalidade.
Abstract: According to the jurisprudence of the Supremo Tribunal Federal in the entry of summary nº. 691, not entitled to this knowledge of habeas corpus filed against denial of requested injunction in Superior Court. However, in exceptional cases, the Supremo Tribunal Federal it self has slowed down the ordering of its own precedent, provided that constant flagrant illegal constraint of movement of the right person or when this technique is needed to reverse the situation clearly contrary to the jurisprudence of the Praetorium Exalted. And what's more, it is important to note that today's day in the jurisdiction of the Supremo Tribunal Federal is totally different from that concocted the entry under discussion, which undoubtedly him in check understanding espoused.
Keywords: Constitution of 1988. Fundamental rights and guarantees. Freedom of Movement. Habeas corpus. Per saltum. Competence. Application for injunction. Supremo Tribunal Federal. Precedent nº. 691. Relativization. Exceptionality.
Sumário: Introdução; 1. Considerações iniciais; 1.1. Conceito; 1.2. Origem jurídica do remédio heróico; 1.3. Natureza jurídica; 2. Habeas corpus no direito brasileiro; 2.1. Base histórico-constitucional; 2.2. Disposição infraconstitucional atual; 2.3. Espécies; 2.3.1. Preventivo; 2.3.2. Repressivo; 2.3.3. Suspensivo; 2.3.4. Profilático; 2.4. Legitimidade; 2.4.1. Ativa; 2.4.2. Passiva; 2.5. Processamento; 2.5.1. Competência; 2.5.2. Condições de procedibilidade no habeas corpus; 2.5.3. Rito processual; 2.5.4. Julgamento; 3. Habeas corpus per saltum e a súmula nº 691 do stf; 3.1. Noções gerais; 3.2. Súmula 691; 3.3. Leading case; 3.4. Entendimento predominante; Referências bibliográficas.
Há tempos a doutrina do wirt of habeas corpus vem sendo disseminada e consolidada mundo a fora. Em nosso ordenamento jurídico, por exemplo, já se encontra concretizada e é de grande valia à garantia de subsistência dos princípios que sustentam o estado democrático de direito a que adotamos.
A doutrina especializada aponta o direito inglês como sendo o precursor desse remédio constitucional, tal qual como conhecemos nos dias de hoje.
Outros, porém, apontam que o direito romano já dava sinais de que a liberdade do homem, quando atacada ou ameaçada por manifestas ilegalidades, deveria ser tutelada de forma célere e inequívoca.
Não importa a forma como se apresente às portas do Poder Judiciário, isto é, que seja reconhecida como ação autônoma, ação de impugnação, recurso constitucional, ação processual penal não condenatória etc, o habeas corpus se presta a atacar as eventuais ilegalidades que avançam sobre os direitos individuais de liberdade do cidadão.
Diante desse panorama, a presente pesquisa abordará as principais nuances que permeiam o remédio constitucional heróico[1], notadamente no que pertine à sua aplicabilidade aos casos em que se não se esgotou a prestação jurisdicional, isto é, ainda pende a análise do meritum causae, especificamente nos casos aludidos pelo verbete de Súmula nº 691 do Pretório Excelso (STF).
É escopo, ainda, consignar a possibilidade (ou não) de relativização das disposições capituladas no enunciado de jurisprudência supra citado.
Demais disso, necessário se faz percorrer por algumas classificações doutrinárias do habeas corpus a fim de facilitar o estudo mais adiante do tema proposto em linhas volvidas anteriormente.
Não obstante a isso, imperioso é destacar e repisar que o remédio heróico possui hodiernamente estatura constitucional e musculatura considerável, vez que integra o rol de direitos e garantias fundamentais vigentes, os quais, como se sabe, não passíveis de serem suprimidos e/ou reduzidos, mas tão somente ampliados, consoante expressa previsão constante na Carta Fundamental de 1988.
Noutra banda, o habeas corpus pode atacar violência consumada à liberdade de locomoção, ou a sua ameaça, desde que manifesta a presença de ilegalidade no ato que, de qualquer forma, limite esse direito do homem.
É fato que o homem pode ter sua liberdade restringida, desde que essa reserva seja calcada na ordem jurídica e com ela guarde estrita simetria e adequação.
Quando ao revés, houver manifesta desconformidade fática com os pressupostos que autorizam a privação da liberdade de locomoção, surge para o prejudicado o direito subjetivo de buscar junto ao poder judiciário a tutela necessária a se fazer cessar toda e qualquer violação ou ameaça a esse direito.
Conforme se verá mais adiante e com as minudências necessárias, o habeas tem sido utilizado cada vez mais pelo cidadão brasileiro. E isso se dá por sua forma célere e simplória, já que prescinde, e nem poderia fazê-lo, da produção de produção de provas, as quais, se existentes, devem ser pré constituídas e integrar a peça inicial do remédio heróico.
A singeleza e simplicidade se apresentam no habeas de tal forma que este antídoto constitucional pode ser impetrado por terceiro em favor daquele que tem a liberdade violada.
Outra das várias facetas do HC é evidenciada quando o vemos sendo utilizado como sucedâneo recursal, isto é, em substituição a determinados recursos. Mais adiante será feita uma abordagem singela nesse ponto, vez que o viés principal da pesquisa reside na verificação da (im)possibilidade de abrandamento das disposições constantes no verbete de súmula da jurisprudência nº 691 do Supremo Tribunal Federal.
Por fim, e não mais importante, será buscada uma resposta satisfatória ao questionamento anteriormente delineado.
É sabido e consabido que há muito tempo a liberdade do homem é alvo de limitações. Para se ter uma ideia, desde os primórdios nações européias consideravam-se superiores às demais sociedades. Nessa época, “não se indagava um eventual direito individual contra o Estado, que era soberano diante do indivíduo, e este a ele se submetia indefectivelmente.[2]”
Demais disso, com o passar dos tempos verificou-se que “ao longo da história, inconcussamente, foi o cristianismo quem mais valorizou os seres humanos, por concebê-los como criação de Deus[3]”.
No direito romano, por exemplo, de cuja influência na cultura ocidental é evidente, havia um instituto que se aproximava em muito do que hoje conhecemos por habeas corpus, tratava-se do Interdicto de Libero Homine Exhibendo, o qual era considerado “como a ordem que o pretor dava a trazer o cidadão ao seu julgamento, apreciando a legalidade da prisão efetuada.[4]”
Com o evoluir da história, chegou-se, pois, ao habeas corpus, tal como formatado hodiernamente, o qual será minudenciado em linhas subsequentes.
Exiba o corpo. Essa é a fiel tradução do termo habeas corpus.
Originário do latim, precisamente “do verbo habeo, habes, habitum, habere, que significa ter, possuir, apresentar, e corpus (corpus, oris), que se traduz por corpo ou pessoa. A expressão é ‘writ of habeas corpus’: ordem para apresentar a pessoa.[5]”.
No lúcido magistério de José Frederico Marques, “o habeas corpus que o Código de Processo Penal inclui entre os recursos, é, antes de qualquer coisa, remédio de Direito Processual Constitucional.[6]”
Modernamente, Alexandre de Moraes conceitua o Habeas Corpus como sendo “uma garantia individual ao direito de locomoção, consubstanciada em uma ordem dada pelo Juiz ou Tribunal ao coator, fazendo cessar a ameça ou coação à liberdade de locomoção em sentido amplo – o direito do indivíduo de ir, vir e ficar.[7]”
Quer pela tradução exata do termo, quer pela essência que lhe move, a verdade é que o remédio heróico se presta a tutelar o indivíduo de eventual lesão, ou a ameaça de lesão, a seu direito fundamental de liberdade, evidenciado por seu livre-arbítrio de ir, vir ou permanecer, desde que não existente causa legítima a tolhê-la.
1.2. Origem jurídica do remédio heróico
Quase que a totalidade da doutrina remonta o período da Magna Carta de 1215, outorgada pelo Rei João Sem Terra nos campos de Runnymed, na Inglaterra, como sendo o primeiro ordenamento que contemplou a figura do habeas corpus, precisamente em seu capítulo XXIV.
Dos ensinamentos de Pontes de Miranda, extrai-se que o writ of habeas corpus e as demais garantias ali expostas
“se calcaram, através das idades, as demais conquistas do povo inglês para a garantia imediata e utilitária da liberdade física. A moral individualista, que caracteriza, flagrantemente, o grande povo (cuja psicologia tanto se enquadra nas idéias gerais de suas instituições) soube tirar do velho e bárbaro latim daquele trecho o germe de várias leis inestimáveis que os tempos e as lutas aprimoraram.”[8]
Ademais, “há quem indique outras fontes, em especial ‘no Direito Romano’, que autorizava ao cidadão ‘reclamar a exibição do homem livre detido ilegalmente por meio de uma ação privilegiada[9]”. Essa ação, conforme dito alhures, era denominada de interdictum libero homine exhibendo.
De mais a mais, quer seja oriundo da doutrina inglesa, quer da doutrina romana, fato é que o remédio heróico nasceu para tutelar os direitos inerentes à personalidade do homem, especificamente os relacionados à liberdade de locomoção, evidenciados pelo direito de ir, vir e permanecer.
Por fim, é de se destacar que a origem do habeas corpus apresenta considerável importância, na medida em que o direito começa a apresentar ferramentas aptas a ancorar a máxima de que o direito foi concebido em razão do homem, e, não o homem em razão do direito.
À primeira vista, seria possível atribuir à natureza jurídica do habeas corpus uma série de classificações, como por exemplo, uma ação penal autônoma, um recurso, já que inserido no capítulo de recursos criminais do Código de Processo Penal, ação constitucional, por ter sua base fincada na Carta Magna de 1988, e por aí a fora.
Na visão de Pacelli, “não há mais, nos dias atuais, discussão relevante sobre o papel desempenhado pelo habeas corpus no processo brasileiro. Cuida-se de instrumento destinado a proteger a liberdade de locomoção […][10].”
Inserido no rol de direitos e garantias constitucionais, não há como não atribuir natureza e relevância constitucionais ao remédio heróico, pois, como se saber, aprouve ao legislador constituinte originário mantê-lo na Carta Política em vigência e fortalecê-lo como instrumento de defesa dos direitos de 1ª dimensão.
Nos ensinamentos de Carvalho Filho, o remédio heróico “é ação de fundamento constitucional que protege o direito líquido e certo de locomoção contra tos inquinados de vício de legalidade.[11]”
É consabido que o habeas pode ser aplicado em diversos ramos do direito, como de exemplo no direito administrativo quando se estivesse diante de uma ilegalidade manifesta durante eventual prisão administrativa, a qual não mais subsiste em nosso ordenamento.
Outro exemplo se dá no ramo do direito laboral, no qual é possível que ocorra a impetração de habeas, desde que a violação ao direito de liberdade guarde relação com o as relações de trabalho, ex vi de uma “prisão” do empregado no local de trabalho pelo empregador.
Tourinho Filho, em lúcidas e sábias palavras, giza que
“O habeas corpus é, pois, uma garantia constitucional que se obtém por meio do processo. É remedium júris destinado a tutelar, de maneira eficaz e imediata, a liberdade de locomoção, o direito de ir e vir. The Power of locomotion. O direito de ficar, de ir e vir de um para outro lugar. Tutela o direito de não ser preso, a não ser em flagrante ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente; o direito de não ser preso por dívida, salvo nos casos […] do alimentante inadimplente; o direito de não ser recolhido à prisão nos casos em que se permite fiança ou liberdade provisória; o direito de não ser extraditado, a não ser nas hipóteses previstas na Magna Carta; o direito de freqüentar todo e qualquer lugar, ressalvadas aquelas restrições que podem ser impostas quando da concessão de sursis ou suspensão condicional do processo; o direito de viajar, ausentando-se de sua residência, ressalvadas as restrições de que tratam os arts. 328 e 367 do CPP”[12].
Embora constante no capítulo referente aos recursos inerentes ao processo penal, o hábeas não se confunde com estes. Com efeito, pode-se afirmar que não se trata de recurso criminal.
Conquanto os recursos são aptos a desafiar decisões prolatadas, o remédio heróico se presta a atacar a ameaça ou a violação efetiva do direito de locomoção, independente de haver ou não decisão nesse sentido. Ademais, ação de habeas corpus não conta os mesmos requisitos de admissibilidade dos recursos.
Assim, é remansosa a doutrina em reconhecer que o habeas corpus possui natureza jurídica de ação constitucional autônoma, a qual foi concebida com o fito de proteger a liberdade individual e coletiva em face de coação ou abuso de autoridade evidenciada na restrição ilegal desse direito constitucional de ir, vir e permanecer.
Por fim, é interessante colacionar a lição esposada por Paulo Rangel, para o qual o remédio heróico
“é instaurado pelo processo de conhecimento e poderá ter um provimento meramente declaratório, como, por exemplo, quando se declara extinta a punibilidade nos termos do artigo 648, VII; ou constitutivo, quando rescinde sentença transitada em julgado, nos termos do art. 648, VI. Nesse último caso, será constitutivo negativo. Assim, tendo o habeas corpus uma pretensão de liberdade, não pode haver um provimento condenatório. A possibilidade de a autoridade coatora ser condenada nas custas por ter agido de má-fé ou evidente abuso de poder não deve autorizar o operador do direito a identificar um provimento condenatório (cf. art. 653 e seu parágrafo único do CPP), pois, o pedido é de liberdade e não de condenação em custas. A condenação em custas é ex officio e não através de pedido do impetrante, até porque, como se demonstra o parágrafo único do artigo 653 do CPP, o Ministério Público, ao receber as peças que demonstram o abuso de poder ou a má-fé, promoverá a responsabilidade criminal da autoridade coatora. Neste caso, sim, haverá um pedido condenatório, através da regular ação penal.
Destarte, no habeas corpus, somente poderá haver um provimento declaratório ou constitutivo.”[13]
Daí a conclusão de que o remédio heróico se constitui em verdadeira ação de “resistência do indivíduo contra restrição injustificada da livre locomoção. Sua característica processual é a carga de eficácia mandamental. A decisão que defere habeas corpus constitui uma ordem, ao contrário da maioria das sentenças.”[14]
2. HABEAS CORPUS NO DIREITO BRASILEIRO
2.1. Base histórico-constitucional
É sabido e consabido que a gênese do remédio heróico ocorreu, ao que tudo indica, no ano de 1215 na Inglaterra, precisamente no dia 15 de junho[15], quando os barões ingleses impuseram a Magna Carta Libertatum ao, então, rei João Sem Terra, como meio de assegurar a liberdade individual e frear a medida cautelar da prisão sem que houvesse um controle prévio de legalidade.
Os princípios inerentes ao writ of habeas corpus restaram consignados no capitulo XXIX da referida Carta Política.
No Brasil, por sua vez, o habeas corpus ingressou no ordenamento, primeiramente, no Código de Processo Penal de 1832, o qual prescrevia em seu artigo 340 que “todo o cidadão que entender que ele ou outrem sofre uma prisão ou constrangimento ilegal em sua liberdade tem direito de pedir uma ordem de habeas corpus em seu favor.”
Nessa época, não havia previsão do writ na Constituição do Império que vigorava no Estado brasileiro.
José Frederico Marques destaca ainda que
“em 1871, com a promulgação da Lei nº 2.033, estatuído ficou, no art. 18, § 1º, o seguinte: Tem lugar o pedido e concessão da ordem de habeas corpus, ainda quando o impetrante não tenha chegado a sofrer constrangimento corporal, mas se veja dele ameaçado”[16].
Surgia, antes mesmo de alcançar estatura constitucional, o habeas corpus preventivo, no qual se antevia a violação à liberdade de locomoção e, se antecipava a lei, em expurgar eventual ilegalidade que pudesse se consumar.
Em seguida, na Constituição de 1891, precisamente em seu artigo 72, § 22, o remédio heróico ganhava musculatura e dimensão constitucional.
O mencionado artigo preconizava que: “dar-se-á habeas corpus sempre que o indivíduo sofrer violência, ou coação, por ilegalidade, ou abuso de poder.”
O professor e ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, traz um interessante histórico acerca da evolução histórica do habeas corpus nas últimas constituições, senão vejamos:
“Em 1926, o habeas corpus teve seu âmbito de proteção reduzido, ficando vedada a sua aplicação para proteção de outros direitos que não a liberdade de ir e vir (“Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofre violência por meio de prisão ou constrangimento ilegal em sua liberdade de locomoção”).
Todas as demais Constituições brasileiras, sem qualquer exceção, incorporaram a garantia do habeas corpus (Constituição de 1934, art. 113, n. 23; Constituição de 1937, art. 122, n. 16; Constituição de 1946, art. 141, § 23; Constituição de 1967/69, art. 150, § 20). Durante todo esse tempo, essa garantia somente foi suspensa pelo Ato Institucional n. 5, de 1968, no que concerne aos crimes políticos, contra a segurança nacional, contra a ordem econômica e social e contra a economia popular”.[17]
Na atual Constituição da República, promulgada em 5 de outubro de 1988, o legislador constituinte originário manteve em seu texto o direito à ação de habeas corpus, precisamente em seu artigo 5º, inciso LXVIII, o qual preconiza que “conceder-se-á o habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”.
E não parou por aí. Reconheceu ainda a gratuidade do processamento do remédio heróico por meio de seu inciso LXXVII.
Demais disso, o Supremo Tribunal Federal têm dado larga interpretação à ação constitucional de habeas corpus, desde que a questão posta seja relacionada ao direito de locomoção, ainda que de forma reflexa, a exemplo do que restou discutido no bojo dos seguintes julgados: HC nº 85203/SP, rel. Min. Eros Grau, 6/8/2009; no HC nº 94397/BA, rel. Min. Cezar Peluzo, 9/3/2010; HC nº 102897/SP, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 29/6/2010; HC nº 103153/MS, rel. Min. Carmem Lúcia, 3/8/2010; HC nº 106709/RS, rel. Min. Gilmar Mendes, 21.6.2011; HC nº 110605/RS, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 6.12.2011; etc.
A se analisar os casos citados e tantos outros, imperioso apontar que o STF vem acolhendo o remédio heróico sempre que o direito fundamental de locomoção (ir, vir, permanecer) puder se vir ameaçado pelo ato impugnado na via estreita, ainda que não tenha se consumado tal ameaça.
Importante destacar também que o writ constitucional não se presta a coibir a aplicação de punições disciplinares militares, nos exatos termos do artigo 142, § 2º, da Constituição da República de 1988[18].
De mais a mais, forçoso perfilhar que a doutrina do habeas corpus encontra-se consolidada em nosso sistema constitucional vigente.
Por fim, destaca-se ainda que essa ferramenta de defesa do direito de locomoção encontra-se arrolado na lista de direitos e garantias fundamentais, não podendo ser abolidos do texto constitucional, consoante preceito plasmado no § 4º do artigo 60 da Constituição Federal de 1988.
2.2. Disposição infraconstitucional atual
Hodiernamente, o remédio heróico encontra-se disciplinado no bojo do Código de Ritos Penais,[19] precisamente em seu artigo 647 e seguintes.
Destaca-se o artigo 648 do Código de Processo Penal, o qual elenca uma série de hipóteses de cabimento do writ constitucional, cuja análise se dará mais adiante.
Conforme mencionado alhures, o habeas corpus adentrou em nosso sistema primeiramente pela norma infraconstitucional, sendo posteriormente guindado à categoria de direito fundamental de estatura constitucional.
Com o advento de constituições posteriores à incorporação do remédio heróico em nosso sistema, não houve qualquer delas que tenha abolido esse mecanismo de defesa do direito fundamental à liberdade de locomoção.
Há de se ressaltar as disposições da Lei nº 8.038/1990, que disciplina o trâmite de ações no âmbito do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal. Nelas, precisamente em seu artigo 23, há expressa remissão à regulamentação contida no Código de Processo Penal.
A doutrina autorizada elenca uma série de espécies de habeas corpus. Todavia, nos ateremos tão somente aos mais relevantes e mais utilizados em nossa praxe forense.
Nessa esteira, em pleno alinhamento à doutrina e à jurisprudência, discorreremos apenas sobre o remédio heróico preventivo, repressivo, suspensivo e o profilático.
Como o nome nos indica, trata-se de remédio que se antecipa à eventual violência à liberdade de locomoção.
O artigo 647 do Código de Processo Penal preconiza que “dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar.”
Guilherme Nucci interpreta essa iminência como sendo “algo muito próximo, que está em vias de acontecer, não sendo termo condizente com o alargamento da utilização do habeas corpus para fazer cessar ilegalidades, que estão por ocorrer.[20]”
Assim, é de rigor que a ameaça seja iminente.
Nas lições de Nestor Távora, “o preventivo dá azo à emissão de salvo-conduto. Contudo, o ajuizamento preventivo pode se deparar, no curso da demanda, com a efetivação da ameaça à liberdade de locomoção.[21]” Em ocorrendo essa, arremata o autor asseverando que “em tal caso, o habeas corpus preventivo se transmuda em liberatório, mercê do princípio da fungibilidade que permeia a compreensão da demanda.[22]”
Paulo Rangel narra situação interessante, e ao mesmo tempo desarrazoada, de utilização do habeas corpus preventivo, em que determinado magistrado determinou a expedição de salvo-conduto em favor de pessoas que se encontravam em situações totalmente dissociadas da verdadeira finalidade a que se propõe o remédio heróico. Vejamo-la:
“Em nossa vida acadêmica, já tivemos conhecimento de juízes que concederam habeas corpus preventivo, expedindo salvo-conduto a alunos do curso de direito, a fim de que pudessem participar do famigerado dia da pendura (onze de agosto): dia em que estudantes de direito saem às ruas, freqüentando restaurantes de luxo, comem e bebem, e não pagam a conta, pendurando-a. Na hora em que a polícia chega, mostram o salvo-conduto expedido por uma autoridade judiciária e fazem um belo discurso. O comerciante? Fica no prejuízo, porque, dizem eles, é tradição do curso de direito. Tradição de dar prejuízo aos outros.
Pensamos que o salvo-conduto é um instrumento que deve ser utilizado em prol da liberdade de locomoção ameaçada de sofrer uma violência ou coação ilegal e não para proteger quem, do direito sendo, age errado.”[23]
Portanto, prevalece o entendimento de que o habeas corpus preventivo só deve ser conhecido e processado quando houver efetiva ameaça de violência ou coação à liberdade de locomoção da pessoa.
Também conhecido como liberatório, o writ of habeas corpus repressivo tutela o momento seguinte ao protegido pelo habeas corpus preventivo, ou seja, quando a violência ou coação ilegal já se encontra perpetrada.
Para Bonfim Mougenot, o habeas corpus liberatório “é voltado a afastar constrangimento à liberdade já consumado, com vistas à restituição do status libertatis de alguém[24].” Ao revés do que ocorre com o remédio heróico em sua modalidade preventiva, no qual se expede um salvo-conduto, ao se conceder a ordem de habeas corpus repressivo expedir-se-á alvará de soltura em favor da pessoa a cuja violência está sendo direcionada.
Em suas lições, Paulo Rangel aduz que “a violência é a vis absoluta, que se traduz num constrangimento físico (prisão, cárcere privado ou sequestro).[25]”
No tocante à coação, o mesmo autor entende que esta pode ser conceituada como “um constrangimento moral, que se traduz em um fazer ou não fazer alguma coisa. Entretanto, para o Código, a coação é gênero do qual a violência e o constrangimento moral são espécies.[26]”
Não obstante, calha lembrar as observações do mestre Frederico Marques, no sentido de que “o pedido pode revestir-se na natureza de pretensão processual declaratória, constitutiva ou cautelar: em todas as hipóteses, porém, seu objeto último será o direito de locomoção, posto em perigo ou lesado por coação ilegal ou abuso de poder.[27]”
Essa espécie de habeas corpus é extraída das lições de Luiz Flávio Gomes, o qual considera que “ocorre quando já existe constrangimento ilegal, mas o sujeito ainda não foi preso.[28]”
Imagine-se a situação em que foi decretada a prisão temporária de determinada pessoa. Nesse caso, o constrangimento à liberdade de locomoção já existe. Entretanto, a efetiva privação dessa liberdade só se aperfeiçoará com o cumprimento do mandado de prisão.
Ocorre que entre o prazo de decretação da prisão e o efetivo cumprimento da medida, há um lapso temporal passível de ser tutelado por meio dessa espécie de remédio heróico, a fim de se evitar o cumprimento da ordem de prisão ilegal.
Ainda nas lições de Luiz Flávio Gomes, surge o entendimento de que se deve expedir um contramandado, isto é, um ato que iniba o cumprimento do mandando de prisão expedido, já que se trata de “ameaça efetiva à liberdade, mas o sujeito não está preso.[29]”
Essa espécie de habeas corpus é aquela utilizada com o fito de se fulminar[30] inquérito policial ou ação penal em curso, desde que haja manifesta ilegalidade no início desta demanda judicial penal.
Embora não seja reconhecida por toda doutrina, essa espécie do remédio heróico pode ser considerada como um meio termo entre as citadas anteriormente, notadamente entre a modalidade preventiva e a suspensiva.
Para Bernardo Gonçalves, o remédio heróico profilático é
“aquele em que no ato ilegal não existe violência ou coação na liberdade de locomoção, nem mesmo na forma iminente, porém este (ato praticado) permite que o constrangimento (violação) à liberdade de ir e vir possa surgir. Nesse sentido, os exemplos seriam o do habeas corpus para trancamento da ação penal ou mesmo do inquérito policial (ainda que o acusado não esteja preso ou sequer haja ordem de prisão expedida.”[31]
Nela, o writ constitucional visa evitar que o direito de locomoção seja atingido por inquérito policial ou ação penal em curso que pode redundar em pena privativa de liberdade.
Nas lições de Nestor Távora, fica evidente a inteligência da parte do Código que autoriza a utilização dessa espécie de remédio constitucional. Vejamos:
“Para que seja cabível o habeas corpus, é necessária então a presença do que se entende por constrangimento ilegal, com possibilidade de um desfecho cerceador da liberdade de ir e vir. É preciso, ademais, que não haja previsão de recurso específico contra o ato violador ou ameaçador da liberdade de locomoção. Atendidas essas peculiaridades, pode ser ajuizada ação de habeas corpus para ver trancado inquérito policial, processo penal, termo circunstanciado de ocorrência ou procedimento criminal junto ao juizado especial criminal. O que importa é que a causa petendi seja alusiva à falta de justa causa em virtude da existência do feito ameaçar a liberdade de locomoção em face de apurar, por exemplo, fato que não encontre correspondência nas leis penais.”[32]
Imperioso é fazer alusão às observações de Guilherme Nucci, o qual entende que “a interposição do habeas corpus e a concessão da ordem para fazer cessar o constrangimento ilegal detectado não impede, naturalmente, o prosseguimento da ação penal.[33]”
Por fim, calha lembrar que a presença de eventual nulidade que possui o condão de dar cabo ao processo é passível de ser atacada pela via estreita do habeas corpus. Contudo, semelhantemente com o que ocorre no processo civil, quando se extingue um processo sem julgamento de mérito, cabe a renovação do ato inquinado de nulidade após as devidas correções.
Assim, a ação penal poderá ser intentada novamente e prosseguir regularmente, a não ser que presente qualquer das causas arroladas no artigo 648 do Código de Processo Penal.
Antes de mais nada, importante fazer menção aos sujeitos participantes de uma ação de habeas corpus. De um lado temos o paciente, o qual se constitui na pessoa vítima da violência ou coação em seu direito de ir, vir e permanecer. Lado outro, figura a chamada autoridade coatora, a qual é a responsável pela prática do ato que ensejou a limitação ilegal no direito de locomoção daquele. Por fim, temos o impetrante, ou seja, a pessoa que volveu o remédio heróico.
O remédio constitucional heróico foi concebido para ser impetrado por qualquer pessoa, inclusive pela própria pessoa que esteja sofrendo a violação ou coação em seu direito de locomoção. Assim, as figuras do paciente e do impetrante podem coincidir quando do manejo da ordem de habeas corpus.
Destaca-se que não é exigido o preenchimento de qualquer formalidade para a impetração do writ, a exemplo “se o paciente for analfabeto, alguém poderá assinar a seu rogo.[34]”
Não se faz necessário a outorga de procuração e nem mesmo se exige capacidade postulatória do paciente ou do impetrante.
Abaixo serão minudenciadas a legitimidade ativa e passiva de quem e em favor de quem se maneja o remédio heróico.
Qualquer pessoa poderá impetrar o habeas corpus. Isso mesmo, qualquer pessoa poderá manejar esse remédio constitucional de defesa do seu direito de locomoção ou do de outrem.
O Ministério Público, igualmente, possui legitimidade ativa para impetrar o habeas corpus. Essa é a dicção do artigo 654 do Código de Processo Penal vigente.
Por algum tempo se questionou a legitimidade da pessoa jurídica para ingressar com a ação de habeas corpus. Hoje, é pacífico o entendimento de que a pessoa jurídica goza de legitimidade para impetrar o writ constitucional, desde que o seja feito em favor de uma pessoa, nunca em seu próprio favor, “porquanto lhe falta liberdade ambulatória, e é exclusivamente esta que o habeas corpus tutela.[35]”
Na mesma linha é o entendimento esposado por Paulo Rangel, o qual giza da seguinte forma:
“Questão que pode trazer discussão é quanto a possibilidade da pessoa jurídica impetrar ordem de habeas corpus em favor de uma pessoa física.
A resposta é afirmativa.
A uma, porque o legislador não restringiu e onde a lei não restringe não cabe ao intérprete restringir.
A duas, porque, tratando-se de regra concessiva de direito, é admissível a interpretação extensiva e analógica, bem como a aplicação da analogia.
A três, porque, por força do art. 12, VI, do Código de Processo Civil, as pessoas jurídicas podem ser representadas em juízo, ativa e passivamente, pelos seus diretores ou quem os seus estatutos indicarem.
Assim, autorizada está a pessoa jurídica a impetrar ordem de habeas corpus em favor de qualquer pessoa física e, em especial, daquelas que integram seus quadros.”[36]
E a autoridade policial?
Poderia impetrar a ação de habeas corpus?
Para Paulo Rangel a resposta é negativa. O autor esposa o entendimento de que “a autoridade policial no exercício de suas funções, portanto, nesta qualidade, não tem legitimidade para impetrar ordem de Habeas Corpus (art. 654 do CPP). A legitimidade ativa […] é conferida a qualquer cidadão […], mas não ao delegado.”[37]
Outra questão abordada pela doutrina e pela jurisprudência recai sobre a possibilidade ou não de o juiz impetrar ordem de habeas corpus.
Para Tourinho Filho, a resposta é não. O autor aduz que “O juiz não pode impetrá-lo, a menos que ele seja o paciente, mesmo porque sua função não é a de postular.”[38]
Ressalte-se a possibilidade de o juiz, e também os tribunais, concederem a ordem de habeas corpus de ofício por força do permissivo legal plasmado no § 2º do artigo 654 do Código de Processo Penal.[39]
Conforme dito alhures, a legitimidade passiva no processamento do remédio heróico “recai sobre a pessoa responsável pelo ato ilegal e lesivo à liberdade de ir e vir da pessoa física. Não é necessário que o sujeito passivo seja autoridade.[40]”
Impende salientar que a desnecessidade de o sujeito passivo ser autoridade reside na possibilidade de o habeas corpus ser manejado contra ato de particular.
Nessa esteira, arremata Eugênio Pacelli:
“Normalmente, a coação é feita por agentes do Poder Público. A jurisprudência, porém, já aceitou e ainda aceita a impetração de ordem de habeas corpus até mesmo contra particular. A nosso juízo, quando a coação é feita por particular, a solução deve ser mais policial que jurisdicional, tendo em vista que aquele (o particular) estaria, na verdade, praticando conduta definida como crime (crimes contra a liberdade individual, arts. 146 a 148, CP). Seja, como for, se possível a ação policial, quanto mais a jurisdicional”.[41]
Nos ensinamentos de José Frederico Marques, para o qual o Estado deve figurar no pólo passivo, “desde que o habeas corpus não seja contra ato de particular, o autor da coação, violência ou ameaça não passa de representante do Estado, o qual, na realidade, é o verdadeiro sujeito passivo no processo.[42]”
Em sentido oposto, giza Guilherme Nucci. Para ele “no pólo passivo, está mesmo a pessoa, ainda que seja autoridade, pois está será condenada em custas, segundo o espírito do Código de Processo Penal, e responderá por abuso.”[43]
Por fim, cumpre salientar que toda vez em que a autoridade responsável pela apreciação do ato coator corroborá-lo, e isso enseje na permanência da violação ou coação do direito de locomoção, esta passará a ser a autoridade coatora, já que tinha a obrigação legal de fazer cessar os efeitos maléficos do ato ilegal.
Por se tratar de ação que visa tutelar um dos mais importantes direitos inerentes à pessoa humana, qual seja a liberdade de ir, vir e permanecer, o habeas corpus foi concebido para se desenvolver da forma mais ágil possível.
Além disso, a própria constituição achou por bem reconhecer que se trata de ferramenta necessária ao exercício da cidadania, além de lhe reconhecer o caráter de gratuidade, consoante o disposto no inciso LXXVII de seu artigo 5º.
Na sequência, serão explorados alguns temas relacionados ao processamento do remédio heróico, notadamente os referentes à competência, ao rito utilizado pela lei penal, o julgamento e os principais recursos cabíveis.
2.5.1. Competência
Inicialmente, no tocante à competência para o julgamento da ação de habeas corpus, necessário se faz um cotejamento de alguns pontos-chave com as regras processuais penais, já que “a competência em matéria de habeas corpus deve ser estudada casuisticamente, a começar pela Constituição do Brasil[44]”.
Não se pretende aqui esgotar e delinear toda a competência referente ao julgamento das ações de habeas corpus. Contudo, é importante mencionar as principais delas, mormente as relacionadas ao Supremo Tribunal Federal, visto que o intuito da presente pesquisa está intimamente ligada a ele.
A nossa Carta Magna estabelece a competência dos Tribunais Superiores estabelecendo, em seu artigo 102, inciso I, alínea “d”, que compete ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar as ações de habeas corpus quando o paciente for o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros, o Procurador-Geral da República, os Ministros de Estado, os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente, bem como quando o coator for Tribunal Superior ou quando o coator ou o paciente for autoridade ou funcionário cujos atos estejam sujeitos diretamente à jurisdição do Supremo Tribunal Federal, ou se trate de crime sujeito à mesma jurisdição em uma única instância[45].
Na sequência, o mesmo artigo anteriormente citado em seu inciso II estabelece que, igualmente, cabe ao Supremo Tribunal Federal julgar em recurso ordinário o "habeas-corpus", o mandado de segurança, o "habeas-data" e o mandado de injunção decididos em única instância pelos Tribunais Superiores, se denegatória a decisão.
Como visto, é importante, inicialmente, saber a qualidade da pessoa da qual emana o ato ilegal com o condão de ofender ao direito de locomoção do paciente, bem como eventual qualidade funcional desta, a qual poderá estar acobertada com o manto do foro privilegiado.
O Código de Processo Penal, por sua vez, estabelece em seu artigo 69 que a competência jurisdicional criminal será determinada pelo: I – o lugar da infração; II – o domicílio ou residência do réu; III – a natureza da infração; IV – a distribuição; V – a conexão ou continência; VI – a prevenção; VII – a prerrogativa de função.
Entretanto, a ordem estabelecida pelo Código não parece a mais acertada, já que o último critério se sobrepõe aos demais. Contudo, essa questão não será aprofundada, bastando sabermos que de início é preciso verificar a existência ou não de prerrogativa de função.
Em segundo plano, imperioso observar o ponto geográfico, isto é, o local em que ocorre o constrangimento ilegal, para se estabelecer a autoridade judicial competente a julgar a ação de habeas corpus, quer seja um Juízo de primeiro grau, quer seja um Tribunal.
E essa segunda verificação se faz importante na medida em que desprezado o primeiro critério (funcional), deverão ser observadas as regras contidas no artigo 649 do Código de Processo Penal, combinados, é claro, com aquelas do artigo 69, também do CPP.
Dessa análise resulta a ciência de quais os órgãos competentes ao julgamento da ordem de habeas corpus e seu conseqüente recurso, se houver.
Em uma comarca estadual, por exemplo, o Juízo de primeira instância será competente para processar e julgar todas as ações de habeas corpus que esteja sob a sua jurisdição, desde que não figure paciente ou autoridade coatora dotada de prerrogativa de foro, já que estas se submetem às regras ditas anteriormente.
Se dentro da referida comarca atuar mais de um Juízo competente, devemos observar as normas do artigo 69 do Código de Processo Penal, aliado às normas de Organização Judiciária local.
Em que pese o processamento do remédio heróico deva respeito às normas contidas no artigo 69 do CPP, a doutrina alerta para a observância das disposições do artigo 650 também do Código de Processo Penal.
Para Antonio Mossin, “se coação ou violência for praticada por um determinado juiz, o pedido do mandamus deverá ser requerido perante o tribunal de grau de jurisdicional superior ao do que cometeu constrangimento ou sua ameaça.[46]”
Não obstante a isso, há casos em que o impetrante deve buscar a jurisdição de tribunal superior diretamente, como no caso em que se esteja diante de autoridade coatora revestida na função militar federal.
Nesse sentido, as lições de Tourinho Filho, senão vejamos:
“Se o constrangimento partir de qualquer autoridade militar federal e se relacionar com crime cujo processo seja da competência da Justiça Militar Federal, o habeas corpus somente poderá ser impetrado perante o Superior Tribunal Militar, uma vez que os Conselhos de Justiça, órgãos inferiores da Justiça castrense, não têm competência para a concessão do writ.”[47]
Basicamente, são esses os critérios para se definir a competência nos julgamentos das ações de habeas corpus.
Conforme acenado anteriormente, não é objetivo de no presente trabalho esgotar e delinear a competência jurisdicional para a apreciação do remédio heróico no processo penal pátrio.
2.5.2. Condições de procedibilidade no habeas corpus
Alguns autores fazem alusão à necessidade da presença de alguns requisitos para que se dê conhecimento e processe a ação constitucional de habeas corpus.
Dentre eles, Antonio Mossin, o qual entende que “aqui, como em qualquer outro processo, a ação penal, para ter início, deverá se conformar com as exigências prévias consubstanciadas em regras de direito processual.[48]”
Nessa linha, Mossin sustenta que “para o impetrante obter a prestação jurisdicional de mérito suscitada em seu pedido de habeas corpus, é indeclinável a ação penal por ele intentada reunir as condições de procedibilidade em sentido estrito.[49]”
Contudo, é de rigor aclarar que as condições de procedibilidade mencionadas por parte da doutrina são aquelas comuns a toda e qualquer ação, quais sejam, possibilidade jurídica do pedido, interesse processual, legitimidade ad causam, lembrando que esta última tem aplicação em casos excepcionais, já que, em regra a ordem de habeas corpus pode ser impetrada por qualquer pessoa, seja ela paciente ou não da coação ou violência no direito de locomoção.
Assim, é preciso que seja possível que da concessão da ordem do remédio heróico seja possível juridicamente o atendimento do pedido carreado.
Demais disso, é imperioso que a impetração de habeas corpus traga ao paciente um legítimo aproveitamento e utilidade, sob pena de não se atender ao pressuposto processual do interesse.
Por fim, no tocante à legitimidade, guardadas as devidas proporções e as ressalvas sobreditas, é importante frisar que é necessário que o impetrante a possua, sob pena de o remédio heróico sequer ser conhecido. Todavia, o fato de não se conhecer a ação de habeas corpus em determinados casos, não significa que a parte cuja a liberdade de locomoção tenha sofrido violência ou coação esteja desamparada. Não. E isso se atentarmos que a ordem de habeas corpus pode ser concedida de ofício pelo juízo competente ou pelo tribunal.
Assim, temos que este último requisito de procedibilidade foi grandemente abrandado pela norma que rege o processamento do remédio heróico em nosso ordenamento jurídico.
O writ constitucional se apresenta como ação constitucional de rito especial. E essa especialidade não se dá por ter sido o habeas corpus regulado em legislação esparsa, até porque suas disposições estão contidas no próprio Código de Processo Penal, conforme dito alhures.
Entretanto, parte da doutrina observa que “o rito da ação de habeas corpus é especial, porém sumário, célere.[50]”
Outra observação que merece ganhar destaque é a de que as ações de habeas corpus possuem prioridade em relação à outras ações, consoante inteligência extraída do artigo 664 do Código de Processo Penal, o qual preconiza que “recebidas as informações, ou dispensadas, o habeas corpus será julgado na primeira sessão, podendo, entretanto, adiar-se o julgamento para a sessão seguinte”.
Guilherme de Sousa Nucci nos lembra ainda da inviabilidade da produção de provas quando da análise de um writ constitucional, e a afirma em suas lições que “não se admite, no entanto, o habeas corpus, quando envolver exame aprofundado das provas, como ocorre no caso de progressão de regime de réu condenado, por exigir a análise de laudos e colheita de vários pareceres.[51]”
Por fim, calha transcrever as lúcidas e refinadas palavras do Mestre Antonio Mossin, o qual apresenta uma breve síntese de qual seria o rito do remédio heróico. Vejamos:
“O writ of habeas corpus, por sua própria natureza constitucional voltada à proteção da liberdade corpórea do indivíduo, que sem justa causa é objeto de constrangimento ilegal ou ameaça de coação injurídica, reclama a adoção de medida processual pronta e rápida.
Em razão dessa celeridade reclamada quanto aos procedimentos desse remédio heróico é que a ação penal de habeas corpus difere das demais formas de provocação da atividade judicante do Estado-juiz, uma vez que ela tem, relativamente àquelas, preferências de conhecimento e de julgamento.”[52]
Como visto anteriormente, o nosso sistema jurídico atribuiu ao remédio heróico considerável celeridade no seu conhecimento, processamento e, conseqüente, julgamento.
Prova disso, se extrai das disposições do caput do artigo 660 do Código de Processo Penal, o qual preconiza que, uma vez “efetuadas as diligências, e interrogado o paciente, o juiz decidirá, fundamentadamente, dentro de 24 (vinte e quatro) horas”.
Outro ponto que revela essa busca pela celeridade é a consagração do cabimento de medida liminar no habeas corpus pela doutrina e jurisprudência pátrias. E isso é de grande valia, pois, como se sabe, a legislação regente do remédio heróico não prevê a possibilidade de apreciação de pedido liminar.
Nesse sentido, as lições de Tourinho Filho:
“Uma das mais belas criações da nossa jurisprudência foi a da liminar em pedido de habeas corpus, assegurando de maneira mais eficaz o direito de liberdade. No habeas corpus, que recebeu o n. 41.296, em favor do Governador de Goiás, Mauro Borges, o relator, Sua Excelência o Ministro Gonçalves de Oliveira, então Presidente do STF, como naquele dia não havia sessão no Tribunal, concedeu a liminar, aduzindo: ‘se no mandado de segurança pode o relator conceder a liminar até em casos de interesses patrimoniais, não se compreenderia que, em casos em que está em jogo a liberdade individual ou as liberdades públicas, a liminar, no habeas corpus preventivo, não pudesse ser concedida’. Este foi um dos primeiros, senão o primeiro caso de liminar em habeas corpus.”[53]
Não obstante a isso, a jurisprudência também consagrou a possibilidade de extensão da ordem de habeas corpus às pessoas que estiverem sob a violência ou coação, em seu direito de locomoção, pelo mesmo ato.
Para Uadi Lammêgo Bulos, “a ordem de habeas corpus pode ser estendida aos co-réus em virtude do art. 580 do Código de Processo Penal (STJ, HC 1.005-RJ, rel. Min. Costa Leite, 6ª Turma, v. u., DJ1, de 9-3-1992, p. 2592).[54]”
Em sendo a ação de habeas corpus impetrada junto a um tribunal, com visas a atacar constrangimento ilegal de autoridade de primeiro grau, o Código de Processo Penal, em seu artigo 662, prevê a possibilidade de se requisitar informações à autoridade coatora com vistas a subsidiar o julgamento da ordem de habeas corpus.
Para Guilherme Nucci, “cada tribunal deve prever, no seu Regimento Interno, a autoridade judiciária competente para despachar a inicial, analisar eventual pedido de liminar, bem como requisitar informações à autoridade coatora[55].”
Após a chegada das informações solicitadas, quando for o caso, será proferida uma sentença (ou acórdão – se processado no tribunal) concedendo ou denegando a ordem de habeas corpus.
Em caso positivo, será expedido um alvará de soltura, caso o paciente esteja preso, ou a ordem de trancamento de um inquérito policial, de um termo circunstanciado ou de uma ação penal em curso.
Ao revés, se a ordem for denegada, não haverá a expedição de qualquer ato complementar, em regra.
É possível que a violência ou coação ao direito de locomoção cesse antes mesmo do julgamento da ordem de habeas corpus. Nessas situações, diz-se que a ação perdeu seu objeto e a análise restou prejudicada, uma vez que o pedido mediato da mesma não pode mais ser atingido com o julgamento da demanda.
A teor do disposto no verbete de súmula da jurisprudência do STF nº 431, o qual preconiza que “é nulo julgamento de recurso criminal na segunda instância sem prévia intimação ou publicação da pauta, salvo em habeas corpus”, cumpre ressaltar que o writ constitucional não se submete ao entendimento encartado na súmula porquanto sua natureza se destaca das demais no tocante à celeridade com que tramita e é julgada pelo poder judiciário.
Demais disso, é de se considerar que no âmbito da ação de habeas corpus a coisa julgada se faz presente e se opera identicamente às demais ações.
Nesse sentido, para Fernandes,
“é cediço na doutrina e na jurisprudência pátria o entendimento de que não cabe a reiteração de pedido de habeas corpus fundado em idênticos fundamentos veiculados em outro habeas corpus já transitado em julgado (com o devido esgotamento dos meios recursais cabíveis). É claro que, se a nova impetração tiver fundamento diferenciado do manejado em habeas corpus precedente, não haverá a proteção da res judicata (coisa julgada). Nesse sentido, estaremos diante de uma nova ação. Outra possível hipótese de impetração do writ é aquela na qual, mesmo existindo o pedido com idênticos fundamentos do anterior, ocorra a apresentação de novas provas.”[56]
Por fim, quando do julgamento do remédio heróico no âmbito de tribunais, compostos por colegiados (turmas, câmaras, seções ou plenários), é possível que haja um empate na votação de determinada ação.
Nesse caso, doutrina e jurisprudência agitam o entendimento de que prevalece o direito de liberdade do paciente, mormente pelos reflexos da máxima in dúbio pro reo.
3. HABEAS CORPUS PER SALTUM E A SÚMULA Nº 691 DO STF
De início, cumpre salientar que o tema em análise ganhou mais relevo no mundo jurídico após o julgamento do Habeas Corpus nº 95009/SP[57], cujo paciente era um renomado banqueiro do país.
No writ em comento, após a negativa de um pedido liminar no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, o Supremo Tribunal Federal concedeu a ordem e determinou a soltura do paciente, antes mesmo de o STJ enfrentar o mérito do habeas corpus impetrado pela defesa.
O Acórdão referente ao caso ilustrado restou assim ementado:
“EMENTA: HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. CORRUPÇÃO ATIVA. CONVERSÃO DE HC PREVENTIVO EM LIBERATÓRIO E EXCEÇÃO À SÚMULA 691/STF. PRISÃO TEMPORÁRIA. FUNDAMENTAÇÃO INIDÔNEA DA PRISÃO PREVENTIVA. CONVENIÊNCIA DA INSTRUÇÃO CRIMINAL PARA VIABILIZAR A INSTAURAÇÃO DA AÇÃO PENAL. GARANTIA DA APLICAÇÃO DA LEI PENAL FUNDADA NA SITUAÇÃO ECONÔMICA DO PACIENTE. PRESERVAÇÃO DA ORDEM ECONÔMICA. QUEBRA DA IGUALDADE (ARTIGO 5º, CAPUT E INCISO I DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL). AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO CONCRETA DA PRISÃO PREVENTIVA. PRISÃO CAUTELAR COMO ANTECIPAÇÃO DA PENA. INCONSTITUCIONALIDADE. PRESUNÇÃO DE NÃO CULPABILIDADE (ARTIGO 5º, LVII DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL). CONSTRANGIMENTO ILEGAL. ESTADO DE DIREITO E DIREITO DE DEFESA. COMBATE À CRIMINALIDADE NO ESTADO DE DIREITO. ÉTICA JUDICIAL, NEUTRALIDADE, INDEPENDÊNCIA E IMPARCIALIDADE DO JUIZ. AFRONTA ÀS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS CONSAGRADAS NO ARTIGO 5º, INCISOS XI, XII E XLV DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. DIREITO, DO ACUSADO, DE PERMANECER CALADO (ARTIGO 5º, LXIII DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL).
CONVERSÃO DE HABEAS CORPUS PREVENTIVO EM HABEAS CORPUS LIBERATÓRIO. O habeas corpus preventivo diz com o futuro. Respeita ao temor de futura violação do direito de ir e vir. Temor que, no caso, decorrendo do conhecimento de notícia veiculada em jornal de grande circulação, veio a ser concretizado. Justifica-se a conversão do habeas corpus preventivo em liberatório em razão da amplitude do pedido inicial e porque abrange a proteção mediata e imediata do direito de ir e vir.
SÚMULA 691. EXCEÇÃO. DECISÃO FUNDAMENTADA NA NECESSIDADE, NO CASO CONCRETO, DE PRONTA ATUAÇÃO DESTA CORTE. Esta Corte tem abrandado o rigor da Súmula 691/STF nos casos em que (i) seja premente a necessidade de concessão do provimento cautelar e (ii) a negativa de liminar pelo tribunal superior importe na caracterização ou manutenção de situações manifestamente contrárias ao entendimento do Supremo Tribunal Federal.
PRISÃO TEMPORÁRIA REVOGADA POR AUSÊNCIA DE SEUS REQUISITOS E PORQUE CUMPRIDAS AS PROVIDÊNCIAS CAUTELARES DESTINADAS À COLHEITA DE PROVAS. Prisão temporária que não se justifica em razão da ausência dos requisitos da Lei n. 7.960/89 e, ainda, porque no caso foram cumpridas as providências cautelares destinadas à colheita de provas.
PRISÃO PREVENTIVA: Indeferimento, pelo Juiz, sob o fundamento de ausência de conduta, do paciente, necessária ao estabelecimento de nexo de causalidade entre ela e fatos imputados a outros investigados. Reconsideração com fundamento em prova nova consistente na apreensão de papéis apócrifos na residência do paciente. Insuficiência de provas que se reportam a circunstâncias remotas, dissociadas do contexto atual.
FUNDAMENTAÇÃO INIDÔNEA: I) CONVENIÊNCIA DA INSTRUÇÃO CRIMINAL PARA VIABILIZAR, COM A COLHEITA DE PROVAS, A INSTAURAÇÃO DA AÇÃO PENAL. Tendo o Juiz da causa autorizado a quebra de sigilos telefônicos e determinado a realização de inúmeras buscas e apreensões, com o intuito de viabilizar a eventual instauração da ação penal, torna-se desnecessária a prisão preventiva do paciente por conveniência da instrução penal. Medidas que lograram êxito, cumpriram seu desígnio. Daí que a prisão por esse fundamento somente seria possível se o magistrado tivesse explicitado, justificadamente, o prejuízo decorrente da liberdade do paciente. A não ser assim ter-se-á prisão arbitrária e, por conseqüência, temerária, autêntica antecipação da pena. O propalado "suborno" de autoridade policial, a fim de que esta se abstivesse de investigar determinadas pessoas, à primeira vista se confunde com os elementos constitutivos do tipo descrito no art. 333 do Código Penal (corrupção ativa). II) GARANTIA DA APLICAÇÃO DA LEI PENAL, FUNDADA NA SITUAÇÃO ECONÔMICA DO PACIENTE. A prisão cautelar, tendo em conta a capacidade econômica do paciente e contatos seus no exterior não encontra ressonância na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, pena de estabelecer-se, mediante quebra da igualdade (artigo 5º, caput e inciso I da Constituição do Brasil) distinção entre ricos e pobres, para o bem e para o mal. Precedentes. III) GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA, COM ESTEIO EM SUPOSIÇÕES. Mera suposição — vocábulo abundantemente utilizado no decreto prisional — de que o paciente obstruirá as investigações ou continuará delinqüindo não autorizam a medida excepcional de constrição prematura da liberdade de locomoção. Indispensável, também aí, a indicação de elementos concretos que demonstrassem, cabalmente, a necessidade da prisão. IV) PRESERVAÇÃO DA ORDEM ECONÔMICA. No decreto prisional nada se vê a justificar a prisão cautelar do paciente, que não há de suportar esse gravame por encontrar-se em situação econômica privilegiada. As conquistas das classes subalternas, não se as produz no plano processual penal; outras são as arenas nas quais devem ser imputadas responsabilidades aos que acumulam riquezas.
PRISÃO PREVENTIVA COMO ANTECIPAÇÃO DA PENA. INCONSTITUCIONALIDADE. A prisão preventiva em situações que vigorosamente não a justifiquem equivale a antecipação da pena, sanção a ser no futuro eventualmente imposta, a quem a mereça, mediante sentença transitada em julgado. A afronta ao princípio da presunção de não culpabilidade, contemplado no plano constitucional (artigo 5º, LVII da Constituição do Brasil), é, desde essa perspectiva, evidente. Antes do trânsito em julgado da sentença condenatória a regra é a liberdade; a prisão, a exceção. Aquela cede a esta em casos excepcionais. É necessária a demonstração de situações efetivas que justifiquem o sacrifício da liberdade individual em prol da viabilidade do processo.
ESTADO DE DIREITO E DIREITO DE DEFESA. O Estado de direito viabiliza a preservação das práticas democráticas e, especialmente, o direito de defesa. Direito a, salvo circunstâncias excepcionais, não sermos presos senão após a efetiva comprovação da prática de um crime. Por isso usufruímos a tranqüilidade que advém da segurança de sabermos que se um irmão, amigo ou parente próximo vier a ser acusado de ter cometido algo ilícito, não será arrebatado de nós e submetido a ferros sem antes se valer de todos os meios de defesa em qualquer circunstância à disposição de todos. Tranqüilidade que advém de sabermos que a Constituição do Brasil assegura ao nosso irmão, amigo ou parente próximo a garantia do habeas corpus, por conta da qual qualquer violência que os alcance, venha de onde vier, será coibida.
COMBATE À CRIMINALIDADE NO ESTADO DE DIREITO. O que caracteriza a sociedade moderna, permitindo o aparecimento do Estado moderno, é por um lado a divisão do trabalho; por outro a monopolização da tributação e da violência física. Em nenhuma sociedade na qual a desordem tenha sido superada admite-se que todos cumpram as mesmas funções. O combate à criminalidade é missão típica e privativa da Administração (não do Judiciário), através da polícia, como se lê nos incisos do artigo 144 da Constituição, e do Ministério Público, a quem compete, privativamente, promover a ação penal pública (artigo 129, I). [omissis]
AFRONTA ÀS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS CONSAGRADAS NO ARTIGO 5º, INCISOS XI, XII E XLV DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. De que vale declarar, a Constituição, que "a casa é asilo inviolável do indivíduo" (art. 5º, XI) se moradias são invadidas por policiais munidos de mandados que consubstanciem verdadeiras cartas brancas, mandados com poderes de a tudo devassar, só porque o habitante é suspeito de um crime? Mandados expedidos sem justa causa, isto é sem especificar o que se deve buscar e sem que a decisão que determina sua expedição seja precedida de perquirição quanto à possibilidade de adoção de meio menos gravoso para chegar-se ao mesmo fim. A polícia é autorizada, largamente, a apreender tudo quanto possa vir a consubstanciar prova de qualquer crime, objeto ou não da investigação. Eis aí o que se pode chamar de autêntica "devassa". Esses mandados ordinariamente autorizam a apreensão de computadores, nos quais fica indelevelmente gravado tudo quanto respeite à intimidade das pessoas e possa vir a ser, quando e se oportuno, no futuro usado contra quem se pretenda atingir. De que vale a Constituição dizer que "é inviolável o sigilo da correspondência" (art. 5º, XII) se ela, mesmo eliminada ou "deletada", é neles encontrada? E a apreensão de toda a sorte de coisas, o que eventualmente privará a família do acusado da posse de bens que poderiam ser convertidos em recursos financeiros com os quais seriam eventualmente enfrentados os tempos amargos que se seguem a sua prisão. A garantia constitucional da pessoalidade da pena (art. 5º, XLV) para nada vale quando esses excessos tornam-se rotineiros.
DIREITO, DO ACUSADO, DE PERMANECER CALADO (ARTIGO 5º, LXIII DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL). O controle difuso da constitucionalidade da prisão temporária deverá ser desenvolvido perquirindo-se necessidade e indispensabilidade da medida. A primeira indagação a ser feita no curso desse controle há de ser a seguinte: em que e no que o corpo do suspeito é necessário à investigação? Exclua-se desde logo a afirmação de que se prende para ouvir o detido. Pois a Constituição garante a qualquer um o direito de permanecer calado (art. 5º, LXIII), o que faz com que a resposta à inquirição investigatória consubstancie uma faculdade. Ora, não se prende alguém para que exerça uma faculdade. Sendo a privação da liberdade a mais grave das constrições que a alguém se pode impor, é imperioso que o paciente dessa coação tenha a sua disposição alternativa de evitá-la. Se a investigação reclama a oitiva do suspeito, que a tanto se o intime e lhe sejam feitas perguntas, respondendo-as o suspeito se quiser, sem necessidade de prisão. Ordem concedida.” (HC 95009, Relator(a): Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 06/11/2008, DJe-241 DIVULG 18-12-2008 PUBLIC 19-12-2008 EMENT VOL-02346-06 PP-01275 RTJ VOL-00208-02 PP-00640 – sem destaque no original)
Ao enfrentar o mérito do referido HC, antes mesmo de o outro Tribunal se manifestar acerca da viabilidade ou não de se conceder a ordem, o Supremo Tribunal demonstrou considerável mudança em sua própria jurisprudência encartada no verbete de súmula nº 691.
Demais disso, o escopo desta pesquisa é exatamente verificar a que pé anda a jurisprudência do Pretório Excelso quando da aplicação ou não das disposições da cártula de jurisprudência nº 691.
Por fim, é de destacar que a composição plenária é bastante diversa daquela que foi responsável pela aprovação da súmula ilustrada.
O verbete de súmula nº 691, cuja redação estabelece que “não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de ‘habeas corpus’ impetrado contra decisão do relator que, em "habeas corpus" requerido a Tribunal Superior, indefere a liminar”, foi aprovado na Sessão Plenária de 24/09/2003, em razão de uma série de pessoas começarem a ingressar com uma ação de habeas corpus diretamente no Supremo Tribunal antes mesmo do julgamento do mérito pelos Tribunais Superiores, após estes negarem o pedido liminar.
Assim, a referida súmula teve por escopo evitar a supressão de instâncias naturais do Poder Judiciário, em estrito respeito ao artigo 5º, inciso LIII, da Constituição de 1988.
Ainda hoje, é de se afirmar que o objetivo é o mesmo, todavia, com efeitos mitigados pelo próprio Supremo Tribunal Federal.
Ademais, não tão simples afirmar e reconhecer a chamada superposição de decisão e nem mesmo violação ao princípio da hierarquia ou da competência, como alguns afirmam, uma vez que o direito de liberdade e locomoção se sobrepõe à eventual conflito.
É bem verdade que os ministros quase a revogaram durante o julgamento do HC 95.009/SP, no qual figurava como paciente o dono do Banco Oportunity, Daniel Valente Dantas.
Em meio as discussões, entendeu-se por bem manter válida a jurisprudência consolidada no verbete nº 691, com o fito de transparecer a jurisprudência da Excelsa Corte.
Portanto, é imperioso lembrar que as disposições da referida súmula continuam a ser aplicadas nos casos de denegação do pedido liminar em Tribunal Superior, cujo recurso natural seria dirigido ao Supremo Tribunal.
3.3. Leading case
Não se sabe ao certo qual seria o leanding case em que se presenciou a primeira mitigação do teor da súmula de jurisprudência nº 691 do STF.
Mas se verifica casos na evolução jurisprudencial do Supremo em que se aventou certa relativização das disposições da súmula.
Dentre eles, merece destaque o Acórdão resultante do julgamento do HC nº 84.014, de relatoria do Ministro Marco Aurélio Mello. Nele, resta patente que o STF não editou a súmula para petrificar sua jurisprudência. Confira-se a ementa do Acórdão mencionado:
“HABEAS CORPUS – OBJETO – INDEFERIMENTO DE LIMINAR EM IDÊNTICA MEDIDA – VERBETE 691 DA SÚMULA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.
A Súmula do Supremo Tribunal Federal revela, como regra, o não-cabimento do habeas contra ato de relator que, em idêntica medida, haja implicado o indeferimento de liminar. A exceção corre à conta de flagrante constrangimento ilegal que, uma vez não verificado, impede a seqüência do habeas corpus.” (HC 84014 AgR, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 30/03/2004, DJ 25-06-2004 PP-00017 EMENT VOL-02157-02 PP-00325 – sem grifo no original)
Posteriormente, no Acórdão oriundo do HC nº 87.468, de relatoria do Ministro Cezar Peluso, ficou mais nítido o posicionamento sufragado no sentido da possibilidade de relativização das vedações, antes impostas pela súmula nº 691.
De sua ementa, verifica-se que
“o enunciado da súmula 691 do Supremo não o impede de, tal seja a hipótese, conhecer de habeas corpus contra decisão do relator que, em habeas corpus requerido ao Superior Tribunal de Justiça, indefere pedido de liminar”.[58]
No mesmo sentido, o Acórdão assim ementado no julgamento do writ constitucional nº 91.241, relatado pelo Ministro Ayres Brito:
“EMENTA: HABEAS CORPUS. AGRAVO REGIMENTAL. ABRANDAMENTO DA SÚMULA 691. POSSIBILIDADE. ALEGADA AFRONTA À JURISPRUDÊNCIA CONSOLIDADA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. WRIT INTERPOSTO PARA TRANCAR AÇÃO PENAL JÁ TRANSITADA EM JULGADA. PRETENSÃO DESPIDA DE PLAUSIBILIDADE. AGRAVO IMPROVIDO.
1. A via processualmente restrita do habeas corpus não é de ser usada indiscriminadamente para impedir, material ou empiricamente, o trânsito em julgado das condenações criminais.
2. Transitada em julgado a condenação sem qualquer insurgência contra a denúncia, não há que se falar em falta de justa causa para a persecução penal.
3. O enunciado da Súmula 691 do Supremo Tribunal Federal comporta relativização tão-somente quando, de logo, avulta o cerceio à liberdade de locomoção por ilegalidade ou abuso de poder (inciso LXVIII do art. 5º da CF/88).
4. Agravo improvido.” (HC 91241 AgR, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO, Primeira Turma, julgado em 07/08/2007, DJE-065 DIVULG 10-04-2008 PUBLIC 11-04-2008 EMENT VOL-02314-04 PP-00760)
É bem verdade também que houve Ministros que tentaram reforçar o entendimento esposado no enunciado sub examine, indo de encontro com a novel jurisprudência que, pouco a pouco, ia se formando.
Nessa linha, o julgamento monocrático proferido em face do habeas corpus nº 93.653, da lavra da e. Ministra Ellen Gracie, assim ementado:
“DIREITO PROCESSUAL PENAL. PRISÃO PREVENTIVA. EXCESSO DE PRAZO. DECISÃO MONOCRÁTICA DO STJ. SÚMULA 691, STF. NÃO CONHECIMENTO DO HABEAS CORPUS.
1. Obstáculo intransponível ao conhecimento do habeas corpus (enunciado 691, da Súmula do Supremo Tribunal Federal: Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do relator que, em sede de habeas corpus requerido a Tribunal Superior, indefere a liminar").
2. Decisão do STJ não é flagrantemente ilegal, teratológica, não cabendo a relativização da orientação contida na referida Súmula 691, desta Corte.
3. O STF tem adotado orientação segundo a qual há proibição legal para a concessão da liberdade provisória em favor dos sujeitos ativos do crime de tráfico ilícito de drogas (art. 44, da Lei n 11.343/06), o que, por si só, é fundamento para o indeferimento do requerimento de liberdade provisória.
4. O critério da razoabilidade deve nortear a aferição do prolongamento do processo penal. Apenas o excesso injustificado da instrução processual se afigura constrangimento ilegal, hábil à concessão da ordem para fins de cassação do decreto prisional.
5. Habeas corpus não conhecido.” (HC 93653, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 03/06/2008, DJe-117 DIVULG 26-06-2008 PUBLIC 27-06-2008 EMENT VOL-02325-04 PP-00715 – sem grifo no original)
De mais a mais, pouco importa precisar em qual julgamento se originou o entendimento que possibilitou enxergar que as disposições encartadas no enunciado nº 691 da jurisprudência do Supremo Tribunal não poderiam ser tidas como um óbice intransponível quando se estivesse diante de grave e patente ilegalidade.
3.4. Entendimento predominante
Extrai-se do julgamento do habeas corpus nº 91.078 o entendimento de que a “jurisprudência do STF, sempre em caráter extraordinário, tem admitido o afastamento, hic et nunc, da Súmula 691/STF, em hipóteses nas quais a decisão questionada divirja da jurisprudência predominante nesta Corte.[59]”
Ademais, o Ministro Celso de Mello (relator) ainda faz alusão aos casos em que seja evidente e manifesto o abuso de poder ou a manifesta ilegalidade.
Hodiernamente, a jurisprudência no âmbito do Pretório Excelso é remansosa em afirmar a mitigação do seu verbete de súmula nº 691, destaque-se, excepcionalmente.
E, conforme dito alhures, esse entendimento ganhou musculatura após o julgamento do habeas corpus nº 95.009/SP, no qual o banqueiro Daniel Dantas figurou como paciente. E frise-se que esse caso emblemático foi diuturnamente repercutido pela mídia brasileira.
Destaque-se dos fundamentos carreados pelo Ministro relator, Eros Grau, quando do julgamento do writ:
“Esta Corte tem abrandado o rigor da Súmula 691/STF nos casos em que (i) seja premente a necessidade de concessão do provimento cautelar e (ii) a negativa de liminar pelo tribunal superior importe na caracterização ou manutenção de situações manifestamente contrárias ao entendimento do Supremo Tribunal Federal.”[60]
Fica claro que essa mitigação ostenta cunho eminentemente processual, extraído diretamente da Carta Maior de 1988.
Não obstante a isso, essa conclusão torna evidente que a súmula não foi superada, quissá revogada.
Outro ponto interessante de se anotar é que esse abrandamento do enunciado só ocorre em casos de excepcionalidade.
Por fim, é importante também fazer alusão às decisões teratológicas,[61] as quais por serem verdadeiras aberrações também autorizam o abrandamento hic et nunc[62] da súmula 691 do Supremo Tribunal Federal.
CONCLUSÃO
Desde os tempos antigos o homem é vítima de constrangimentos em sua liberdade de locomoção. Em muitas das vezes, essa sujeição se dá de forma ilegal e violenta. Ilegal porque realizado em desconformidade com a lei e violenta porquanto tolhe o direito basilar de liberdade.
Nesse passo, aprouve a este buscar uma solução viável para se evitar que os abusos fossem reiterados.
Conforme dito anteriormente, não se sabe com precisão a origem do habeas corpus, indicando a doutrina especializada que, não obstante tenha havido no direito romano algo semelhante, o direito inglês foi o precursor da doutrina do remédio heroico.
Concebido para que as autoridades tomem conhecimento de eventuais constrangimentos ao direito de locomoção e os expurgue da órbita de proteção da pessoa, a ação de habeas corpus se constitui em verdadeiro mecanismo de exercício de parte dos direitos fundamentais inerentes ao homem.
É de se concluir, portanto, que o remédio constitucional heróico se traduz em verdadeira e importante ferramenta de controle jurídico-social do direito de locomoção do cidadão.
Deflui de toda análise também que a ação constitucional de habeas corpus se presta para tutelar toda e qualquer violência ou ameaça ao direito de locomoção, consubstanciado no direito de ir, vir, permanecer.
Verificou-se ainda que a competência para o julgamento do habeas corpus verifica-se com a observância de alguns critérios de cunho processual. Primeiramente, é preciso analisar se o paciente ou a autoridade coatora possuem alguma prerrogativa de função, para tão somente, caso necessário, avançar na análise dos demais critérios.
Independente disso, é de lembrar que a competência do Supremo Tribunal Federal no tocante às ações de habeas corpus, está capitulado no artigo 102 da Constituição Federal de 1988.
Dentre elas, mereceu destaque para os fins da pesquisa em tela, a arrolada na alínea “a” do inciso II do artigo 102 da Constituição da República de 1988.
Impende lembrar ainda que diante de tamanha avalanche de ações de habeas quando da denegação liminar da ordem nos tribunais superiores, mormente no âmbito do STJ, o Supremo Tribunal Federal achou por bem editar súmula (691) com o entendimento de que não conheceria essas ações antes do julgamento definitivo do mérito pela corte originária.
Assim, se determinado paciente impetrasse writ constitucional no Superior Tribunal de Justiça com pedido liminar, inclusive, por exemplo, e tivesse denegada a ordem liminarmente, não poderia esta pessoa buscar socorro junto ao Supremo antes que o STJ apreciasse o mérito de seu HC.
Não obstante a isso, na condição de guardião da constituição, o Supremo Tribunal Federal entendeu por bem mitigar os efeitos desse mesmo enunciado, uma vez que se viu diante de verdadeiras aberrações jurídicas.
Nesta esteira, o colegiado foi flexibilizando o teor da súmula 691 ao ponto de afastar hic et nunc (de plano) seu próprio verbete, conhecer do remédio constitucional heróico e apreciar o mérito.
Para tanto, a corte estabeleceu alguns parâmetros necessários ao regular conhecimento do habeas, quais sejam, a necessidade premente e imediata de se conceder o provimento cautelar, bem como que a negativa da liminar proferida pelo tribunal superior se constitua em verdadeira manutenção ou caracterização de situações manifestamente contrárias à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Ademais, entende-se cabível ainda a mitigação quando estivermos diante de casos ditos teratológicos, isto é, evidentemente contrários ao direito positivado.
Assim, é possível asseverar que o afastamento hic et nunc do óbice encartado na súmula nº 691 é uma realidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o qual, provavelmente, não revogou o referido enunciado por políticas processuais criminais.
Informações Sobre o Autor
Joabson Carlos Pereira Silva
Especialista em Direito Público pelo Instituto Processus de Direito; Pós-graduando (lato sensu) em Direito e Contemporaneidade pela Escola da Magistratura do Distrito Federal; Técnico Judiciário do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios