Resumo: O presente trabalho tem por foco a análise dos conceitos comuns aplicáveis a todos os segmentos do Direito, percorrendo a Teoria Geral do Direito, desde a consciência até a norma jurídica.
Palavras-chave: Teoria Geral do Direito. Consciência. Conhecimento. Linguagem. Conceito de Direito. Norma Jurídica.
Sumário: Introdução. 1. Consciência e conhecimento. 2. Linguagem e realidade. 3. Definição do conceito de direito. 4. Norma jurídica. Conclusão.
Introdução
Um estudo teórico objetiva conhecer cientificamente um determinado objeto. Ao refletir acerca de uma teoria, pensamos num conjunto de informações e dados que nos permitem compreender algum fenômeno e sua realidade.
Uma teoria acerca do Direito, então, nada mais busca do que conhecê-lo na forma de ciência. Considerando, entretanto, a complexidade da realidade jurídica, e sua usual classificação didática em ramos (Direito Constitucional, Direito Tributário, Direito Penal etc.), é possível fazer um corte epistemológico para compreender os conceitos comuns e elementares aplicáveis a qualquer dos segmentos, formando uma Teoria Geral do Direito.
É justamente sobre alguns aspectos dessa teoria que caminharemos. Nessa conformidade, buscaremos definir o que é ter consciência de algo, demonstrando a importância essencial da linguagem no conhecimento.
O próprio Direito, verdadeiro objeto cultural, manifesta-se por meio de uma linguagem prescritiva que tem por finalidade a regulação das condutas intersubjetivas. O direito é posto por textos, textos estes que devem ser produzidos pelas autoridades credenciadas pelo próprio ordenamento.
Assim como todo texto, os documentos normativos requerem interpretações. O intérprete, ao criar e decidir os sentidos normativos, veiculam normas jurídicas, as unidades que compõem o próprio Direito.
1) Consciência e conhecimento
Numa acepção simplista, conhecer é tornar um objeto presente para o sujeito, ou seja, significa ter consciência sobre algo. O ato de conhecer, nas palavras de AURORA TOMAZINI DE CARVALHO, “fundamenta-se na tentativa do espírito humano de estabelecer uma ordem para o mundo (exterior ou interior) para que este, como conteúdo de uma consciência, se torne inteligível, ou seja, possa ser articulado intelectualmente (constituindo aquilo que a filosofia chama de racionalidade)”[1].
O homem é essencialmente um espírito cognoscente. Sua atitude frente aos objetos é uma atividade intelectual, uma atitude do pensamento numa constante ânsia de saber[2]. É nesse sentido que se fala na intencionalidade da consciência, afinal a consciência é sempre direcionada a algo.
De acordo com PAULO DE BARROS CARVALHO[3], a consciência envolve três distintas faces:
“o ato de consciência, o resultado do ato (que é a forma), e o conteúdo do ato (que é seu objeto). Uma coisa é exercer o ato de pensar, que gera a forma “pensamento” e se dá num determinado instante; outra é o conteúdo desse pensamento (seu objeto), que pode ocupar-se de qualquer situação da vida, inclusive dele mesmo, “pensamento”. Uma coisa é lembrar-se (ato); outra, a lembrança (forma); outra, ainda, a situação lembrada (objeto).
(…) Cabe aduzir que o ser consciente não sente a sensação, não percebe a percepção, não pensa o pensamento, mas sim apreende o objeto dessas formas em que a consiência se manifesta.
De qualquer modo, é sempre útil assinalar que a consciência somente existe por aquilo que a transcende…
Mediante a intencionalidade, a consciência seria doadora de significado ao mundo”.
Conhecimento é a apreensão intelectual de um objeto. Trata-se de um produto da consciência humana, que se materializa num ato, dotado de forma e conteúdo. Conhecer, como anotou ALAOR CAFFÉ ALVES[4], “é representar um objeto… É o ato de tornar um objeto presente à percepção, à imaginação ou à inteligência de alguém… Esse processo cognitivo está fundado, portanto, em três elementos: a representação, o objeto representado e o sujeito que representa o referido objeto.”
Ao estudar o processo de conhecimento, LEONIDAS HEGENBERG[5] identificou três etapas para atingir sua plenitude, denominadas de (i) saber de; (ii) saber como; e (iii) saber que. O saber de consistiria na compreensão rudimentar das coisas, adquirida pelas sensações (visão, audição, toque etc.), permitindo o reconhecimento da coisa na hipótese do sujeito reencontrá-la. O saber como consiste na atribuição de causa e efeito à coisa, constituindo seu significado. E o saber que, como resultado da experiência vivida, envolve a capacidade de raciocinar e inferir sobre a coisa, alcançando o conhecimento propriamente dito.
Nessa conformidade, é possível diferenciar o conhecimento em sentido amplo e o conhecimento em sentido estrito. No seu sentido amplo, o conhecimento pode ocorrer mediante qualquer forma de consciência (ex.: a imaginação, a lembrança, a percepção etc.), mas somente atinge sua plenitude (seu sentido estrito) a partir do momento em que se revela sob a forma de um juízo.
Eles, os juízos, são processados na nossa consciência pelo pensamento e relacionados na forma de raciocínio. Com eles atribuímos características aos objetos, definimos suas propriedades e conferimos sentidos às coisas.
Reportando-nos aos ensinamentos de ALAOR CAFFÉ ALVES[6]:
“pensar é um ato que produz uma forma representativa bastante diferente da percepção e da imaginação. Aquele ato permite o acesso ao “sentido”, isto é, à significação das coisas e dos processos do mundo.(…)
O raciocínio é uma relação entre juízos, e o juízo (segunda operação de espírito) é uma relação entre conceitos. O juízo é essencialmente a afirmação de uma relação de conveniência ou de desconveniência entre dois conceitos (ideias). Exemplos: “Paulo é aluno; “Paulo não é médico”; “a norma jurídica possui coercibilidade”; “o direito não elimina a liberdade, protege-a”. Quando pensamos, quando expressamos um pensamento, não apresentamos ideias soltas, conceitos isolados. Formulamos conexões entre ideias (mediante proposições, conjunções, verbos, etc.) e também relações entre juízos (inferências). O juízo, portanto, é o primeiro movimento de composição intelectual”.
O conhecimento propriamente dito atinge sua plenitude por meio dos juízos (e raciocínios), que uma vez articulados verbalmente, dão origem às proposições[7]. Isto significa dizer que o conhecimento, em sentido estrito, é proposicional, operando-se por meio da construção e relação entre juízos. É sob esta premissa que FABIANA DEL PADRE TOMÉ afirma que o objeto do conhecimento “não são as coisas-em-si, mas as proposições que as descrevem.”[8].
Dizemos, contudo, que o sujeito conhece algo quando ele está apto a emitir proposições sobre este algo, relacionando-as coerentemente por meio de raciocínios. Em síntese, mais se conhece um objeto quanto mais se consegue falar sobre ele.
A palavra “objeto”, ressalte-se, designa qualquer coisa que seja merecedora de atenção. É algo que se coloca diante do sujeito, algo que se atira ou se lança contra (jectum, objectus). “Objeto é tudo aquilo que pode ser sujeito lógico de um juízo. É tudo aquilo a respeito do que se pode predicar algo. Predica-se pelo juízo, pelo ato do intelecto que afirma ou nega algo de algo”[9].
Ao falar “objeto”, devemos ter em mente qualquer item que possa ser abrangido pelo pensamento. “Objetos, em tal sentido amplo, nascem com o discurso, surgem com o exercício de atos de fala, ou seja, não o precedem, ao contrário do que comumente se pensa. Os objetos nascem quando deles se fala: o discurso, na sua amplitude, lhes dá as condições de sentido mediante as quais os recebemos e os processamos” [10].
Coube a CARLOS COSSIO retomar e sintetizar a posição filosófica de EDMUND HUSSERL, que reduziu os objetos a quatro classes: (i) objetos naturais (ou físicos), que são oferecidos pela natureza, são reais (têm existência no tempo e no espaço), estão na experiência e são neutros de valor; (ii) objetos ideais, que são irreais, não estão na experiência e são neutros de valor; (iii) objetos culturais, “que são aqueles aos quais o homem acrescentou a marca de sua individualidade, objetos que passaram da natureza para a sociedade, numa trajetória do dado ao construído”[11]. São reais, estão na experiência e são valiosos, positiva ou negativamente; e (iv) objetos metafísicos, que são reais, não estão na experiência e são passíveis de valoração.
Como se percebe, o objeto não é uma coisa concreta, uma essência a ser descoberta, mas algo construído intelectualmente e que se apresenta sob alguma forma de consciência. Há, pois, uma dualidade entre sujeito e objeto, na linha do que ensina MARIA HELENA DINIZ: “o sujeito cognoscente é sujeito apenas enquanto há objeto a apreender e o objeto é somente objeto de conhecimento quando for apreendido pelo sujeito. Logo, todo conhecimento envolve três ingredientes: o “eu” que conhece; a atividade ou ato que se desprende desse “eu” e o objeto atingido pela atividade”.[12]
Diante da infinidade de objetos, e considerando as diversas posturas filosóficas que o sujeito cognoscente pode adotar, o conhecimento científico demanda a unicidade epistemológica, reclamando para seu sucesso uma precisa delimitação do objeto e definição do respectivo método de investigação.
A delimitação do objeto impõe os limites da experiência, permitindo a própria compreensão daquilo que se pretende conhecer. Já o método, com base nos ensinamentos de MIGUEL REALE[13], “é o caminho que deve ser percorrido para a aquisição da verdade, ou, por outras palavras, de um resultado exato ou rigorosamente verificado. Sem método não há ciência”.
O método constitui uma garantia de veracidade do conhecimento e mecanismo de controle do conhecido. Ele norteia todo o percurso de investigação científica. Sem precisão metodológica, e sem delimitação do objeto, o conhecimento científico resta prejudicado.
Coube o Neopositivismo Lógico (ou Positivismo Lógico) – nomes conferidos a uma corrente do pensamento humano que ganhou expressão na segunda década do século XX – formar uma Teoria Geral do Conhecimento Científico (Epistemologia). Para LUIS ALBERTO WARAT[14], “a primeira ideia que devemos reter do Positivismo Lógico é sua obsessiva preocupação com a linguagem da ciência: a ciência se faz com a linguagem, mas, em última instância, é a própria linguagem. Desta forma, a compreensão coerente e sistemática do mundo é obtida através da linguagem”.
Esse movimento, na verdade, atribui à linguagem o instrumento do conhecimento científico, razão pela qual se preocupam sobremaneira com a sua precisão. O rigor científico passou a depender de uma linguagem mais técnica do que a natural, voltada à máxima precisão dos sentidos dos termos empregados, num verdadeiro processo de elucidação.
Sem dúvida nenhuma tais pressupostos exercem enorme influência na consistência do discurso científico. É inconteste que uma linguagem precisa (de forma a eliminar ambiguidades e vaguidades[15]), além da delimitação do objeto e método, são essenciais para o conhecimento científico.
2) Linguagem e realidade
Como bem observou LEÔNIDAS HEGENBERG[16], “ao nascer, somos “atirados” em um mundo. Diante de nós, uma circunstância cheia de coisas, a que, aos poucos, nos ajustamos. Para que o ajuste não seja apenas “físico”, mas também intelectual, contamos com as interpretações que dela fizeram aqueles que nos antecederam. A função das interpretações é emprestar inteligibilidade às coisas, permitindo que, ao agir sobre elas, possamos usá-las em nosso benefício”.
Esse ajuste intelectual tendente a tornar algo inteligível é fruto do pensamento. O ato de pensar, conforme visto, dá origem ao próprio objeto, bem como às proposições que buscam descrevê-lo.
E o pensamento, as proposições, a interpretação, enfim, o próprio conhecimento, enquanto construções intelectuais, somente ocorrem através da linguagem. É a linguagem que permite a comunicação e, consequentemente, a aquisição e transmissão de conhecimento. É justamente sob esta óptica que LUDWIG WITTGENSTEIN concluiu que “os limites de minha linguagem são os limites do meu mundo”[17].
Com efeito, Ludwing Wittgenstein foi o grande percussor da filosofia da linguagem, a qual deu origem ao movimento conhecido como giro linguístico. A concepção filosófica em questão rompeu com a concepção da linguagem como instrumento de conexão entre o sujeito e o objeto, passando a ser o próprio pressuposto do conhecimento e, mais ainda, o instrumento para controlá-lo.
Na doutrina de DARDO SCAVINO[18], “a linguagem deixa de ser um meio, algo que estaria entre o sujeito e a realidade, para se converter num léxico capaz de criar tanto o sujeito como a realidade.”
Nesse sentido aduz FABIANA DEL PADRE TOMÉ[19]: “tomados o conhecimento e seu objeto como construções intelectuais, sua existência dá-se pela linguagem: metalinguagem o primeiro; linguagem-objeto o segundo”.
Dito em outros modos: é por meio da linguagem que temos acesso às coisas. Na visão de CLARICE VON OERTZEN ARAUJO[20], “não é a realidade o que conhecemos, mas somente uma parte dela; apenas a parcela que sujeitamos à linguagem, às representações e aos conceitos.”
Quando enunciamos que a linguagem cria a nossa realidade não estamos afirmando que inexistem outros dados independentes dela. O que se quer dizer é que somente por meio da linguagem é possível conhecê-los, transformando-os numa realidade para nosso intelecto.
Sobre esse assunto, merece ser trazido à baila os ensinamentos de VILÉM FLUSSER[21]:
“a matéria prima do intelecto, a realidade, portanto, consiste em palavras e de dados brutos a serem transformados em palavras para serem apreendidos e compreendidos. (…)
Apreender palavras é formal intelecto. As palavras apreendidas começam a formar uma superestrutura sobre os sentidos, começa a surgir um Eu no sentido estrito. As palavras apreendidas têm significado. Por sobre o caos dos dados brutos sem significado, dentro do qual vivem os sentidos, surge o cosmos simbólico das palavras, dentro do qual vive o intelecto. (…)
os dados brutos se realizam somente quando articulados em palavras. Não são realidade, mas potencialidade. A realidade será, em consequência, o conjunto das línguas”.
De fato, não utilizamos a linguagem para reproduzir o mundo físico. Pelo contrário, é a linguagem que determina o que chamamos de realidade, afinal é ela o meio pelo qual processamos e transmitimos o conhecimento. Como faz crer TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM[22], “a importância da linguagem, para o homem, encontra-se plasmada em sua inevitabilidade. A linguagem é inevitável. Permeia toda a realidade sociocultural, que, por sua vez, condiciona a ação humana”.
A linguagem não possui somente função descritiva. Também pode ser usada para diversas outras finalidades, devendo levar em conta o conjunto de suas regras dentro do universo do discurso em que estiver inserida (teoria dos jogos de linguagem). Nesses termos, é usual valer-se da linguagem na sua função de prescrever condutas ou fazer coisas, o que varia conforme o “ato de fala” empregado.
Por ato de fala devemos compreender a ação que é executada através do dizer. Tal terminologia foi utilizada por AUSTIN[23], ao afirmar que o uso da linguagem assume diferentes sentidos num discurso, podendo significar “dizer algo” como “fazer algo”, de acordo com a intenção do locutor, identificada por meio da elocução de uma determinada frase.
O ato de fala está intimamente relacionado à forma de falar do sujeito, isto é, a maneira de utilizar uma dada língua.
No seu Curso de Linguística Geral[24], FERDINAND DE SAUSSURE aponta que a linguagem comporta duas partes: (i) a língua, sua parte social; e (ii) a fala, sua parte individual. Quanto à língua, diz o autor que “ela é parte social da linguagem, exterior ao indivíduo, que, por si só, não pode nem criá-la nem modificá-la; ela não existe em virtude duma espécie de contrato estabelecido entre os membros da comunidade.(…) é um sistema de signos que exprimem ideias.”. Já a fala “é, ao contrário, um ato individual de vontade e inteligência, no qual convém distinguir: 1º, as combinações pelas quais o falante realiza o código da língua no propósito de exprimir seu pensamento pessoal; 2º, o mecanismo psico-físico que lhe permite exteriorizar essas combinações.”[25]
A língua é um produto social, adotada por uma determinada coletividade com a finalidade de promover a comunicação, via de acesso ao conhecimento. Trata-se de uma espécie de código convencionado para fins comunicacionais (caso do idioma português, um código idiomático). A fala é subjetiva, constituindo-se pelo efetivo uso da língua por cada pessoa que habita uma mesma comunidade linguística.
Refletir sobre linguagem, língua e fala reporta-nos a outro termo, o signo. Num conceito amplo, o “signo” é a unidade de um sistema que permite a comunicação entre duas ou mais pessoas. É, conforme CHARLES SANDERS PEIRCE[26] “aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria na mente dessa pessoa, um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido.”
Os signos podem ser classificados em três espécies, conforme a relação que mantém com seus significados: (i) índice; (ii) ícone; e (iii) símbolo. O primeiro (índice) mantém uma conexão física (exemplo: onde há fumaça, há fogo); no segundo (ícone) há uma representação do objeto (exemplos: caricatura e foto). E o terceiro (símbolo) é arbitrariamente construído, conforme os aspectos culturais (exemplos: palavras e placas).
Na visão de PAULO DE BARROS CARVALHO[27]:
“Como unidade de um sistema que permite a comunicação inter-humana, signo é um ente que tem o status lógico de relação. Nele, um suporte físico se associa a um significado e a uma significação, para aplicarmos a terminologia husserliana. O suporte físico da linguagem idiomática é a palavra falada (ondas sonoras, que são matérias, provocadas pela movimentação de nossas cordas vocais no aparelho fonético) ou a palavra escrita (depósito de tinta no papel ou de giz na lousa). Esse dado, que integra a relação sígnica, como o próprio nome indica, tem natureza física, material. Refere-se a algo do mundo exterior ou interior, da existência concreta ou imaginária, atual ou passada, que é seu significado; e suscita em nossa mente uma noção, ideia ou conceito, que chamamos de “significação””.
A Semiótica (ou Semiologia), como ciência que tem por objeto o estudo dos signos, distingue três planos de investigação dos sistemas sígnicos, ou seja, três dimensões que a linguagem apresenta: (i) o sintático, em que os signos são analisados entre si (signos com signos); (ii) o semântico, que examina a relação do signo com o que ele representa; e (iii) o pragmático, em que se estudam a relação do signo com os utentes da linguagem (isto é, emissor e destinatário).
Cada língua, tomada como um sistema próprio de signos que se prestam à comunicação, possui aspectos próprios, promovendo ao sujeito nela inserido uma sensação própria de realidade. “Ao conjunto de categorias e modos de pensar incorporados pela vivência de uma ou várias línguas atribuímos o nome de cultura. E, neste sentido, dizemos que os horizontes culturais do intérprete condicionam seu conhecimento, ou seja, sua realidade”[28].
Os objetos, enquanto construções linguísticas, estão condicionados à vivência do sujeito, vivência esta determinada pelas categorias de uma dada língua. É justamente este aspecto cultural que torna o mundo comum para aqueles que habitam uma mesma comunidade linguística.
Junto com o aspecto cultural, a compreensão de um dado objeto também está condicionada às coordenadas de tempo e espaço, formando aquilo que se denominou de sistema de referência, que nada mais é do que as condições que informam o conhecimento sobre um determinado objeto. “Sem sistema de referência, o conhecimento é desconhecimento”[29].
FABIANA DEL PADRE TOMÉ[30] caminhou nessa mesma trilha: “não existe conhecimento sem sistema de referência: este é condição sem a qual aquele não subsiste. É exatamente por se colocarem em um tipo de sistema de referência que os objetos adquirem significado, pois algo só é intelegível à medida que é conhecida sua posição em relação a outros elementos”.
Cada sujeito dispõe de uma forma particular de conhecimento sobre algo, de acordo com seu sistema de referência. Isto nos permite arguir que não há que se falar em verdades absolutas. Uma proposição tomada como verdadeira num modelo pode ser falsa se construída sob um sistema referencial e cultural diferente. Uma verdade de ontem não necessariamente corresponde a uma verdade de hoje.
Tal constatação, cumpre ressaltar, não significa dizer que não existem afirmações verdadeiras. Pelo contrário, o discurso descritivo é construído em nome da verdade. A verdade consiste justamente como um valor em nome do qual se fala.
É pela relação estabelecida entre uma proposição e a linguagem de um dado sistema que é possível aferir sua veracidade ou falsidade. Assim, diz-se que uma proposição é verdadeira quando ela está em conformidade com uma interpretação estabelecida, aceita dentro da referência em que o conhecimento é processado.
3) Definição do conceito de direito
Não temos a pretensão de realizar uma investigação aprofundada sobre as diferentes concepções acerca do conteúdo da palavra “direito”, mas sim de definir o seu sentido para delimitar o objeto da Ciência do Direito.
Para tanto, é importante, inicialmente, traçar considerações sobre o que é “conceito”. Segundo dispõe EROS ROBERTO GRAU[31]:
“O conceito na concepção aristotélica compreende, em sentido amplo, a simplex apprehensio rei, envolvendo também a representação sensitiva ou imagem do objeto conceituado. Em sentido estrito compreende a simplx apprehensio essentiae rei. Ao formulá-lo extraímos mentalmente do objeto sua aparência singular ou individual. Daí por que o conceito, em oposição à imagem ou representação concreta, ou gráfica, é sempre abstrato.
A cada conceito corresponde um termo. Este – o termo – é o signo linguístico do conceito. Assim, o conceito, expressado no seu termo, é coisa (signo) que representa outra coisa (seu objeto).
Os conceitos jurídicos não são referidos a objetos, mas sim a significações. Não são conceitos essencialistas”.
Essas considerações colocam em evidência a distinção entre “termo” e “conceito”. Utilizando-se da explicação de TÁCIO LACERDA GAMA[32], “o termo é o suporte físico, o significante, a partir do qual se constrói uma significação acerca de um significado. Esta significação é o conceito, a ideia suscitada pelo contato com o termo”.
O “conceito” é seletor de propriedades. Ao conceituar, nada mais fazemos do que criar uma classe (critérios), nos quais são possíveis incluir ou excluir determinado(s) objeto(s). Nas palavras de LOURIVAL VILANOVA[33], o conteúdo do conceito “é justamente a identidade que o pensamento destaca na multiplicidade do objeto, é a unidade e a permanência que coexistem no objeto, ao lado da pluralidade e variação”.
As pessoas, na verdade, possuem o conceito de uma palavra por vivenciarem uma língua. É o contexto cultural e o uso dos termos que aproxima e distancia os conceitos, permitindo a comunicação. Não existe uma significação absoluta às palavras. Há, na verdade, ideias dos signos que tendem a se aproximar em relação às pessoas que habitam uma mesma comunidade linguística e, em função disto, acabam associando significações próximas.
Os conceitos, todavia, também podem distanciar-se, afinal a vivência cultural é própria de cada indivíduo, que é livre para escolher os meios de delimitação do objeto e eleger o modelo filosófico de investigação. Os conceitos, como dito, referem-se sempre a uma unidade linguística, e não ao descobrimento da essência das coisas.
Isso nos permite colocar em evidência um dos grandes problemas dos juristas, qual seja, o da busca por um conceito unívoco de direito. Como notou HERBERT HART[34], “poucas questões respeitantes à sociedade humana têm sido postas com tanta persistência e têm obtido respostas, por parte dos pensadores sérios, de formas tão numerosas, variadas, estranhas e até mesmo paradoxais como a questão: O que é Direito?”.
GENARO CARRIÓ[35] assinala que a palavra direito é ambígua, pois pode ter distintos significados, segundo os diferentes contextos em que esteja inserida, ou distintos matizes de significado em função desses diversos contextos. Já vaga, porque o uso faz com que seja incerta ou duvidosa a inclusão de um fato ou de um objeto concreto, deixando-a em uma “zona de penumbra” que circunda a área de significado claro da palavra, como ocorre com as palavras “noite”, “jovem”, “velho”, “alto”, “baixo”.”
De fato, a palavra “direito” é ambígua, pois contém vários significados. É vaga, tendo em vista que os critérios de seu uso não são suficientemente precisos para definir o seu significado. E, ainda, o termo “direito” traz consigo forte carga valorativa, afinal não raramente as pessoas se utilizam dele para expressarem verdadeiros valores, tais como o de poder, de justiça, de aquilo que é correto etc.
Não existe um “conceito de direito” absoluto, afinal a palavra “direito”, por si só, não traz seu significado. Pelo contrário, o signo “direito” costuma ser utilizado em diversos contextos e em acepções diferentes, trazendo consigo o vício de ambiguidade e vaguidade, além de carregar forte carga valorativa.
Diante desses ruídos quanto ao conteúdo semântico da palavra “direito”, mister defini-lo. De acordo com FLORENCE HARET[36]:
“A ação de definir associa-se a outros verbos como circunscrever, determinar, precisar, ou mesmo pôr ou assinalar limites a determinada coisa. De uma forma ou de outra, tem-se que definição é atitude em que se busca demarcar um objeto mediante inúmeras técnicas cognitivistas, mas que guardam uma mesma característica: o fato de serem sempre feitas mediante a enunciação de propriedades e características, capazes de diferenciar uma determinada coisa de outra(s). Portanto, é somente com a linguagem que a definição se mostra presente. E é enunciando sobre que se define o objeto mencionado. (…)
Para a lógica, definir é determinar com rigor a compreensão exata de um conceito com o fim de situá-lo em relação a outros conceitos, classificando-o e distinguindo-o”.
As definições podem ser percebidas de duas maneiras: na forma conotativa ou na forma denotativa. A conotação busca delimitar o uso da palavra, indicando as características do seu conceito, ou seja, os critérios que permitem chamar o objeto por um nome próprio. Já a denotação busca identificar os elementos que se ajustam ao termo. A título de exemplo, vejamos a palavra “fruta”. Enunciar banana, maça, melancia é definir denotativamente o termo, ao passo que dizer produto alimentício normalmente obtido pelas plantas ou na terra seria defini-lo conotativamente.
E a definição de um termo como o direito está intimamente ligada ao corte metodológico do sujeito cognoscente. No plano científico, coube a HANS KELSEN desenvolver uma “teoria pura do Direito”. Para tanto, esquivando-se dos ideais políticos, morais e de justiça, propôs a purificação metodológica do estudo do Direito, na tentativa de conferir autonomia à Ciência do Direito. Eis algumas palavras do mestre de Viena acerca de sua teoria:
“A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial. É teoria geral do Direito, não interpretação de particulares normas jurídicas, nacionais ou internacionais. Contudo, fornece uma teoria da interpretação.
Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto. Procura responder a esta questão: o que é e como é o Direito? Mas já não lhe importa a questão de saber como deve ser o Direito, ou como deve ele ser feito. É ciência jurídica e não política do Direito.
Quando a si própria se designa como “pura” teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental. (…)
O Direito, que constitui o objeto deste conhecimento, é uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o comportamento humano.”[37]
Adotando esse mesmo caminho epistemológico, definimos direito como o conjunto de normas jurídicas postas pelas autoridades e órgãos competentes, que têm por finalidade veicular comandos proibindo, permitindo ou obrigando determinados comportamentos na vida social, sob pena do Estado adotar providências coercitivas que o próprio sistema prevê para seu descumprimento.
Nas palavras de GERALDO ATALIBA, “o direito (em sentido objetivo) é um conjunto de normas que – por isso que integrando a ordem jurídica – se chamam normas jurídicas. Formam o direito positivo: o direito posto (e só pode ser retirado) por quem tem poder jurídico para tanto.”[38]
Falar em direito é falar em norma jurídica. E falar em norma jurídica voltamos a falar em linguagem.. O direito se manifesta por meio da linguagem.
O direito positivo (ou direito posto) não deve ser confundido com a “Ciência do Direito”. Tratam-se de realidades totalmente distintas. Em linhas gerais, consistindo no conjunto de normas jurídicas, o direito positivo objetiva regulamentar condutas. Manifesta-se por meio de linguagem prescritiva, sujeitando-se à lógica deôntica e às valências de validade ou invalidade. A Ciência do Direito toma o direito posto como objeto, razão pela qual descreve a realidade jurídica na tentativa de compreendê-la.
Ao estudar de forma mais aprofundada as características de cada uma das linguagens, AURORA TOMAZINI DE CARVALHO[39] sintetizou que:
“(i) O direito positivo é um corpo de linguagem com função prescritiva, que se dirige ao campo das condutas intersubjetivas com a finalidade de alterá-las. Configura-se como linguagem objeto em relação à Ciência do Direito e como metalinguagem em relação à linguagem social. É materializado numa linguagem do tipo técnica, que se assenta no discurso natural, mas utiliza-se de termos próprios do discurso científico. É operado pela Lógica Deôntica, o que significa dizer que suas proposições estruturam-se sob a fórmula “H – C”, onde a consequência prescrita “C” aparece modalizada com os valores obrigatório (O), proibido (V) e permitido (P). Suas valências são validade e não validade, o que não impede a existência de contradições entre seus termos.
(ii) A Ciência do Direito é um corpo de linguagem com função descritiva, que tem como objeto o direito positivo, caracterizando-se como metalinguagem em relação a ele. É objetivada num discurso científico, onde os termos são precisamente colocados. Sintaticamente é operada pela Lógica Alética, o que significa dizer que suas proposições manifestam-se sob a forma “S é P”, onde o predicado “P” aparece modalizado com os valores necessários (N) e possível (M). Suas valências são verdade e falsidade e seu discurso não admite a existência de contradições entre os termos”.
Tanto o direito positivo quanto a Ciência do Direito são verdadeiros sistemas, afinal cada um deles é formado por um conjunto de elementos que, relacionados entre si, formam um todo unitário. Na lição de LOURIVAL VILANOVA[40], “o que chamamos ordenamento jurídico, sintaticamente é o sistema. Sob esse ângulo formal, cabe dizer, com Pontes de Miranda: o Direito é um sistema lógico de proposições. Mas tanto o Direito-ciência, como o Direito positivo.”
O sistema jurídico é dotado de características próprias que lhe conferem autonomia, distinguindo-o dos demais sistemas. Um dos seus principais atributos repousa no fato de que as normas jurídicas vinculam seu descumprimento à aplicação de sanções coercitivas, inclusive mediante utilização do uso de força, mesmo contra a vontade do sujeito destinatário[41].
Com lastro em HANS KELSEN[42], “como ordem coativa, o Direito distingue-se de outras ordens sociais. O momento coação, isto é, a circunstância de que o ato estatuído pela ordem como consequência de uma situação de fato considerada socialmente prejudicial deve ser executado mesmo contra a vontade da pessoa atingida e – em caso de resistência – mediante o emprego de força física, é o critério decisivo.”
O povo, diante da necessidade de impor limites aos governantes, e de preservar a garantia de direitos fundamentais, se viu na contingência de criar um sistema normativo tendente a implementar determinados valores sociais. O Direito, portanto, aparece como um produto cultural que, mediante atos de valoração, insere normas jurídicas reguladoras de conduta, prescrevendo comportamentos que tanto o Estado quanto os particulares devem obediência, sob pena de sofrerem sanções estabelecidas no interior do próprio sistema.
O direito positivo, pois, caracteriza-se como um verdadeiro objeto cultural, servindo como um instrumento de intervenção social. As normas jurídicas se voltam à linguagem social com a finalidade de regulá-la, o que evidencia que o elemento axiológico é inerente ao direito.
Para ingressar no direito positivo (mundo normativo do dever ser) é preciso que um acontecimento da realidade social (mundo do ser) seja manifestado por meio de uma linguagem própria (jurídica, no caso). Caso o sistema jurídico não qualifique juridicamente o acontecimento, não integrando o território da facticidade jurídica, ele não é relevante para o direito[43].
4) Norma jurídica
A expressão “norma jurídica” é ambígua. Normalmente costuma ser empregada para representar o texto legal, os enunciados prescritivos neles constantes, os veículos introdutores e/ou a própria conduta normatizada. Segundo GABRIEL IVO[44]:
“debaixo de um mesmo rótulo (= norma jurídica) se escondem elementos distintos. É comum o termo referir-se aos instrumentos introdutores de normas, aos documentos normativos, aos enunciados prescritivos e ao sentido que se atribui aos enunciados prescritivos. Assim, quando nos deparamos com um diário oficial encontramos leis publicadas. Essas leis publicadas contêm enunciados que veiculam normas. Não vemos as normas, porquanto o que se abre aos nossos olhos são os textos prescritivos por meio dos quais elas são transmitidas”.
No seu sentido estrito, a norma jurídica é o sentido completo, a unidade mínima e irredutível do deôntico, construída intelectualmente a partir da interpretação dos documentos postos no sistema jurídico. Como leciona ROQUE ANTONIO CARRAZZA[45]:
“a legislação não se confunde com o conjunto de normas jurídicas; estas somente surgem com a interpretação da legislação.
Realmente, a partir dos enunciados do direito positivo, o exegeta, valorando-se, constrói as normas jurídicas. Não se nega que estas tomam como ponto de partida os textos do direito positivo, porém seu conteúdo vem discernido pelo intérprete, que se vale, para tanto, de sua própria ideologia, isto é, de sua pauta de valores. As normas jurídicas são, pois, construções intelectuais do intérprete, efetuadas a partir da análise da legislação lato sensu.”
De acordo com o modelo proposto por PAULO DE BARROS CARVALHO[46], a compreensão dos textos prescritivos do direito positivo opera-se por meio de um verdadeiro percurso gerativo de sentido, o qual pode ser segregado, para fins didáticos, em quatro planos.
O primeiro deles (S1) consiste no plano da expressão, da literalidade textual ou plano dos significantes. Neste plano estão depositados os documentos normativos, suporte físico dos enunciados prescritivos.
No subsistema S1 ocorre o primeiro contato do intérprete com o texto, momento no qual a análise recai nos enunciados prescritivos. Neste momento o intérprete analisa as palavras, frases, períodos e parágrafos constantes dos textos produzidos no âmbito do ordenamento jurídico.
Ato contínuo, o exegeta ingressa no plano do conteúdo (subsistema S2), imitindo-se na dimensão semântica e pragmática dos comandos legislados. É o momento em que são criados valores unitários aos vários signos dos enunciados, selecionando as significações (proposições) individuais dos enunciados.
No terceiro plano, o intérprete contextualiza as proposições criadas isoladamente, construindo uma significação normativa plena. Neste momento, o exegeta sistematiza as proposições, identificando uma unidade completa de sentido para as mensagens veiculadas nos textos jurídicos. É aqui que o raciocínio do jurista transforma os textos normativos em normas jurídicas em sentido estrito.
Em esclarecedora lição, AURORA TOMAZINI DE CARVALHO[47] registra que “a norma jurídica não se encontra no plano de expressão, não faz parte do sistema morfológico e gramatical do direito, por este motivo nunca é explícita. Está em outro plano: dos conteúdos significativos deonticamente elaborados. Ela é um juízo construído pelo intérprete a partir dos enunciados prescritivos, por isso, sempre implícita”.
O intérprete, no plano S3, cria a norma jurídica stricto sensu, compondo a regra de conduta regulada pelo direito positivo. Na lição de JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES[48] “é a norma que determina, nos seus âmbitos de validade, quem são os seus destinatários (âmbito pessoal) e como devem eles comportar-se (âmbito material) no tempo e no espaço (âmbito temporal e espacial)”.
Finalmente, o processo exegético se esgota no subsistema S4, plano este no qual as normas jurídicas são sistematizadas e agrupadas nas relações mútuas de coordenação e subordinação, a fim de definir sua hierarquia dentro do sistema jurídico.
Essa classificação do processo interpretativo em planos (S1, S2, S3 e S4) é apenas metodológica. O exegeta transita livremente por cada um destes subsistemas, quantas vezes julgar necessário, mas sem deles sair.
Essa trajetória interpretativa, que abomina a dita interpretação literal[49], esgota-se num modelo devidamente articulado do ponto de vista lógico: a norma jurídica enquanto um juízo implicacional.
Na linguagem do direito posto, as normas jurídicas seguem o princípio da imputação[50], conforme explicita JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES[51]:
“As normas jurídicas atuam, na sociedade, segundo o princípio da imputação: dado um certo antecedente normativamente previsto, um descritor normativo (Voraussetzung), deve-se seguir um certo consequente, um prescritor normativo (Folgerung). Quer dizer: ao comportamento normativamente regulado imputa-se uma consequência juridicamente relevante”.
A norma jurídica estrita apresenta-se na forma de um juízo hipotético condicional, estrutura típica da linguagem prescritiva e que pode ser reduzida à seguinte fórmula: “se se dá um fato F qualquer, então o sujeito Sa deve fazer ou deve omitir ou pode fazer ou omitir conduta C ante outro sujeito Sp – assim deve ser”[52].
Essa estrutura é inerente a todas as normas jurídicas de conduta em seu sentido estrito, que se diferenciam apenas quanto ao seu conteúdo. Isto significa dizer que o direito positivo é um sistema fechado sintaticamente (homogeneidade sintática), mas aberto nos seus aspectos semânticos e pragmáticos (heterogeneidade semântica).
Observando a estrutura normativa, identificamos duas proposições: (i) a hipótese (antecedente ou pressuposto), que descreve um acontecimento de possível ocorrência, o qual serve de fundamento para atribuição de (ii) uma consequência (tese ou prescritor), cuja função é criar um vínculo relacional entre dois sujeitos em torno de uma dada prestação.
Como explica EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI[53]:
“A hipótese implica a tese. Descritor de possível situação fáctica do mundo natural ou social, o primeiro; prescritor da relação em que um sujeito Sa fica em face de outro sujeito Sp, o segundo.
Retomando a fórmula D [h → R(Sa, Sp)] temos: “D” functor-de-functor indicador da operação deôntica incidente sobre a relação de implicação interproposicional, é o functor “D” (deve ser o vínculo implicacional) que constitui o nexo jurídico das proposições jurídicas intranormativas (hipótese e tese); “h”, hipótese; “→”, conectivo implicacional; e “R(Sa, Sp)”, tese. Nesta, “R” é variável relacional que no universo deôntico triparte-se nos modais obrigatório (O), permitido (P) e proibido (V); “Sa” e “Sp” são os termos, relato e referente, desta relação”.
O antecedente normativo é descritor de uma situação que pode ocorrer no mundo fenomênico. Tem por função estabelecer as notas que um fato social tem para tornar fato jurídico, implicando uma determinada consequência no ordenamento jurídico. A hipótese, ensina LOURIVAL VILANOVA, é uma “proposição descritiva de situações objetivas possíveis, com dados de fato incidente sobre a realidade social e não coincidente com a realidade” [54].
O antecedente normativo pode ensejar a qualificação da norma jurídica em abstrata ou concreta. Uma norma é abstrata quando contém critérios de identificação de um evento futuro e incerto, mas de possível ocorrência; e concreta quando descrever um acontecimento passado, definido no tempo e espaço.
Veja-se aqui a posição de TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM[55]: “a norma abstrata não contém no seu antecedente o fato jurídico, mas unicamente os critérios para sua identificação. Ao contrário, a norma concreta encerra no seu interior o fato jurídico. A norma abstrata enuncia a conotação do fato, enquanto a norma concreta compreende a denotação do fato jurídico”.
Nesse ponto, importante traçar breves considerações sobre a diferença entre evento e fato. Segundo FABIANA DEL PADRE TOMÉ[56], “chamamos de evento o acontecimento do mundo fenomênico, despido de qualquer relato linguístico. O fato, por sua vez, é tomado como enunciado denotativo de uma situação, delimitada no tempo e no espaço”.
A diferença entre evento e fato, então, repousa no dado linguístico. O fato é o relato do evento, o qual se perde no tempo e no espaço. Não temos como repetir um evento, apenas podemos falar sobre ele. Nesses termos, podemos resumir, na linha do que aduz AURORA TOMAZINI DE CARVALHO[57] que “evento é uma situação de ordem natural, pertencente ao mundo da experiência, fato é a articulação linguística desta situação de ordem natural, e fato jurídico é a sua articulação em linguagem jurídica”.
Pois bem. O antecedente normativo é conectado ao consequente por meio do “dever-ser” (deve ser que H implique C: “D (H → C)”), de acordo com o ato de vontade da autoridade competente. Trata-se o “dever ser” de um operador deôntico interproposicional que não aparece qualificado, razão pela qual é tido como neutro[58].
O consequente da norma (tese) tem por função determinar uma conduta que deve ser prestada por um sujeito em relação a outro. Nele estão previstos os efeitos imputados ao acontecimento relevante no mundo jurídico. Na lição de PAULO DE BARROS CARVALHO[59], “se a proposição-hipótese é descritora de fato de possível ocorrência no contexto social, a proposição-tese funciona como prescritora de condutas intersubjetivas. A consequência normativa apresenta-se, invariavelmente, como uma proposição relacional, enlaçando dois ou mais sujeitos de direito em torno de uma conduta regulada como proibida, permitida ou obrigatória”.
O prescritor normativo, pois, constitui o meio por excelência da concretização do direito. Os efeitos atribuídos aos fatos jurídicos são justamentes a forma de garantir a realização do comportamento, sob pena de o Estado aplicar uma sanção no caso de seu descumprimento.
As notas informativas do consequente devem guardar fiel relação com a situação prevista no antecedente, uma vez que esta é causa daquele. O prescritor é sempre uma proposição relacional, que cria um vínculo entre dois ou mais sujeitos em torno de uma determinada conduta, que deve ser prestada por um e pode ser exigida por outro.
A norma jurídica prescreve que a ocorrência de um fato previsto no ordenamento implica uma relação jurídica entre dois ou mais sujeitos, relação esta expressada por intermédio do conectivo dever-ser modalizado em permitido, obrigatório, ou proibido, com o que se exaure a possibilidade do comportamento. Qualquer conduta caberá sempre em um destes três modais deônticos, não havendo lugar para uma quarta alternativa (lei do quarto excluído).
O consequente da norma pode ser classificado como individual ou geral. Individual é aquele que identifica (personaliza) os sujeitos da relação jurídica; e geral é aquele que não há esta identificação, regulando uma conduta para uma classe indeterminada de pessoas.
Feitas todas essas considerações, forçoso concluir que é possível construir (i) normas gerais e abstratas; (ii) normas gerais e concretas; (iii) normas individuais e concretas e (iv) normas individuais e abstratas[60].
As normas individuais e concretas são sempre subordinadas às gerais e abstratas. Como bem observou PAULO DE BARROS CARVALHO[61]: “há uma forte tendência de que as normas gerais e abstratas se concentrem nos escalões mais altos, surgindo as gerais e concretas, individuais e abstratas e individuais e concretas à medida que o direito vai se positivando”.
De fato, o direito positivo não tem condições de normatizar as condutas referidas diretamente a todas as pessoas. É por isso que o sistema jurídico tem como pressuposto a criação de regras específicas (normas individuais e concretas), a fim de individualizar a conduta propriamente dita, solucionando os conflitos e definindo os comportamentos.
Tendo em vista a completude do sistema do direito, além da regulação do comportamento das pessoas, ele próprio também regulamenta a conduta de produzir normas, o que ocorre no âmbito daquilo que se denominou de processo de positivação do direito.
Positivação, conforme definido por TECIO SAMPAIO FERRAZ JR.[62], “designa o ato de positivar, isto é, de estabelecer um direito por força de um ato de vontade. Segue daí a tese segundo a qual todo e qualquer direito é um conjunto de normas que valem por força de serem postas pela autoridade constituída e só por força de outra posição podem ser revogadas. Ora, à medida que tais atos de vontade são atos decisórios, positivação passa a ser termo correlato de decisão”.
Essa atividade de produção normativa consiste justamente na forma de criar o direito. A fonte do direito é a própria atividade humana[63], o procedimento, a enunciação, e não o resultado ou o produto desta atividade. E é, conforme CHARLES MCNAUGHTON, “pelo exame da norma de competência que se observa quem pode dizer o que, para quem e como”[64].
Segundo ensinamentos do mestre de Viena, “Os órgãos jurídicos têm – como autoridade jurídica – antes de tudo por missão produzir o Direito para que ele possa então ser conhecido e descrito pela ciência jurídica”[65].
Nessa trilha caminhou EROS ROBERTO GRAU[66]: “praticamos a interpretação do direito não – ou não apenas por isso – porque a linguagem jurídica é ambígua e imprecisa, mas porque interpretação e aplicação do direito são uma só operação”.
Com efeito, as normas gerais e abstratas são produzidas para serem aplicadas. Já as normas individuais e concretas são resultados da incidência daquelas sobre fatos determinados. O que uma prescreve abstratamente, criando uma classe que compreende inúmeros elementos (mais precisamente, tanto quanto forem as situações passíveis de enquadramento), a outra define tais elementos, situando-se no próprio campo material das condutas normatizadas.
A subsunção (ou incidência normativa) consiste na operação de inclusão de classes. Desta forma, um fato se subsume à norma apenas se ele se enquadrar no campo de extensão do conceito previsto no antecedente. Para que isso ocorra, é necessária a produção de linguagem específica que caracterize o fato como fato jurídico. E uma vez constituído o fato jurídico, instaura-se a relação jurídica entre sujeitos, como causa da imputação deôntica.
Essa ideias foram bem captadas por PAULO DE BARROS CARVALHO[67]
“a chamada incidência jurídica se reduz, pelo prisma lógico, a duas operações formais: a primeira, de subsunção ou de inclusão de classes, em que se reconhece que uma ocorrência concreta, localizada num determinado ponto do espaço social e numa específica unidade de tempo, inclui-se na classe dos fatos previstos no suposto da norma geral e abstrata; outra, a segunda, de implicação, porquanto a fórmula normativa prescreve que o antecedente implica a tese, vale dizer, o fato concreto, ocorrido hic et nunc, faz surgir uma relação jurídica também determinada, entre dois sujeitos de direito”.
Sob os prismas semântico e pragmático, a incidência busca denotar os enunciados relativos às normas gerais e abstratas, apontando quais os elementos de sua classe. Isso é feito justamente pela identificação dos critérios da regra matriz de incidência e, ato contínuo, pela individualização do elemento que nela se espelha.
Tal labor é fruto da interpretação do sujeito competente, expediente este que está intimamente ligado à ação de valorar e, consequentemente, pressupõe uma decisão, na linha do que predica FABIANA DEL PADRE TOMÉ[68]:
“O direito surge por meio de decisões jurídicas. São os atos de fala, entendidos como enunciação, as condutas caracterizadoras de tomadas de decisão, cujo resultado são os enunciados normativos postos no ordenamento.(…).
O ato decisório, sendo criador da norma jurídica, apresenta-se como um ato de fala, expressão comunicativa produtora de enunciados, ou seja, enunciação. (…).
Os atos decisórios não aparecem apenas no momento da resolução de conflitos, com a emissão de normas individuais e concretas. São vislumbrados, também, quando se estabelecem os critérios nos termos dos quais o direito há de ser aplicado, ou conflitos deverão ser solucionados, por exemplo. Sempre que se editam normas gerais e abstratas, ou qualquer outra modalidade normativa, existe uma decisão que a precede. (…)
A teoria da decisão jurídica se concentra no tema da produção normativa, quer no âmbito da abstração ou da concretude, da generalidade ou da individualidade. O intérprete, ao aplicar o direito, realiza ato decisório, emitindo enunciados normativos”.
A positivação do direito pressupõe uma escolha num universo de infinitas interpretações possíveis de serem atribuídas aos documentos normativos e provas. Quando o aplicador produz uma norma, ele constitui o fato jurídico e diz qual é o direito aplicável, vinculando sujeitos em torno da relação jurídica.
O dinamismo do Direito ocorre justamente nesse momento. A partir da regra geral e abstrata, a autoridade competente aos olhos do sistema jurídico, aplicando o direito, cria a norma individual e concreta em prol da conduta regulada. A norma jurídica, portanto, é o resultado da incidência. Produzir norma é aplicar o Direito; é interpretar o sistema jurídico. “Vamos à Faculdade de Direito aprender direito, não justiça. Justiça é como a religião, a filosofia, a história”[69].
Conclusão
O ser humano é um espírito que possui a capacidade de conhecer. Conhecer, no seu sentido amplo, é ter consciência de um determinado objeto. A consciência é sempre de algo, o que revela o seu caráter de direcionalidade (intencionalidade da consciência).
Já no seu sentido estrito, o conhecimento é proposicional, alcançado por meio do raciocínio. Mais se conhece um objeto quanto mais proposições sobre ele são articuladas.
O próprio “objeto”, aliás, é algo construído intelectualmente, nascendo com o discurso e apresentado sob alguma forma de consciência.
Daí a importância da linguagem. O pensamento, as proposições, a interpretação, enfim, o conhecimento, opera-se por meio dos recursos linguísticos.
A linguagem, nessa concepção, deixa de ser um meio para reproduzir a essência das coisas, para se situar num léxico capaz de construir a própria realidade.
A linguagem possui diversas funções (descritiva, prescritiva, interrogativa etc.), razão pela qual sua compreensão está relacionada justamente ao contexto do “ato de fala” produzido. Mais precisamente, a linguagem comporta duas partes: (i) a língua, sua parte social, convencionada em uma dada cultura; e (ii) a fala, sua parte individual.
Cada língua, formada pelo conjunto de signos (tais como as palavras), possui aspectos próprios, promovendo ao sujeito nela inserido uma sensação própria de realidade.
Os conceitos são oriundos das ideias que temos de um dado termo, o que pode variar de acordo com o sistema de referência existente em torno do seu uso.
Nesse sentido, entendemos que não há conceitos absolutos, mas sim ideias que podem ou não se aproximar diante de um dado signo. É justamente com base nessa premissa que não existiria um conceito unívoco do Direito.
Diante de palavras ambíguas e vagas, como é a palavra Direito, necessária uma definição, a fim de delimitar o objeto.
A nosso ver, direito é o conjunto de normas jurídicas que buscam regular condutas intersubjetivas. Trata-se do direito posto, ou melhor, imposto pelas autoridades credenciadas no próprio sistema.
O Direito aparece como um objeto cultural, construído pelo homem com uma finalidade específica, qual seja, a de prescrever comportamentos que tanto o Estado quanto os particulares devem obediência, sob pena de sofrerem sanções estabelecidas no ordenamento.
A expressão “norma jurídica” é ambígua. Ordinariamente costuma ser empregada para representar o texto legal (documento normativo), os enunciados neles constantes, os veículos introdutores e/ou a própria conduta regulada. Esse é seu sentido amplo.
No seu sentido estrito, “norma jurídica” é o sentido completo da conduta, a unidade mínima e irredutível do deôntico. É, na verdade, o resultado da interpretação dos textos e preceitos implícitos e explícitos que integram o sistema jurídico.
Na linguagem do direito posto, as normas jurídicas estão submetidas ao princípio da imputação: dado um certo fato relevante para o Direito, deve-se seguir uma certa consequência.
É possível identificar duas proposições na estrutura normativa: (i) a hipótese (antecedente), que descreve um acontecimento de possível ocorrência, que serve de fundamento para atribuição de (ii) uma consequência, cuja função consiste na criação de um vínculo relacional entre dois sujeitos em torno de uma prestação.
O antecedente normativo é conectado ao consequente por meio do “dever-ser”, conforme o ato de vontade da autoridade competente. Isso ocorre no momento da aplicação do Direito. Direito é norma jurídica; norma jurídica é interpretação; e interpretação é produzir norma.
Informações Sobre o Autor
Luis Henrique Marotti Toselli
Mestrando em Direito Tributário pela PUC/SP. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários IBET. Especialista em Direito Previdenciário pela Escola Paulista de Direito EPD