Resumo: Neste estudo, examinam-se a origem, desenvolvimento e caracteres essenciais do direito inglês, representativo do sistema jurídico anglo-saxônico, com vista a uma identificação das razões históricas da importância conferida à jurisprudência como fonte do Direito no mencionado regime.
Palavras-chave: Sistema jurídico anglo-saxônico. Common law.
Abstract: This study examines the origin, development and essential characters of English law, representative of the Anglo-Saxon legal system, with a view to identifying the historical reasons for the importance given to case law as a source of law in the said scheme.
Keywords: Anglo-Saxon legal system. Common law.
Sumário: Introdução. 1. Formação da common law e da equity. 2. Princípios e caracteres. Conclusão. Notas. Referências.
Introdução
A common law é um paradigma de direito que teve origem na Inglaterra, no momento posterior à conquista normanda, em resultado, sobretudo, da ação normativa dos Tribunais Reais de Justiça (DAVID, 1972, p. 327). A compreensão dos fundamentos do sistema jurídico anglo-saxônico, por conseguinte, pressupõe o conhecimento da formação histórica do direito inglês, através do qual a Europa e o mundo foram apresentados a um peculiar regime de Justiça.
Neste estudo, examinam-se a origem, desenvolvimento e caracteres essenciais do direito inglês, representativo do sistema anglo-saxônico, com vista a uma identificação das razões históricas da importância conferida à jurisprudência como fonte do Direito no mencionado regime.
1. Formação da common law e da equity
A doutrina comparatista costuma reconhecer, na história do ordenamento jurídico inglês, quatro períodos principais (DAVID, 1972, p. 331): a) o que antecede a conquista normanda de 1066; b) o que vai de 1066 ao estabelecimento da dinastia dos Tudors, em 1485, no qual se verifica a formação da common law, com imposição de um direito novo em substituição aos costumes locais; c) o de 1485 a 1832, marcado pela ampliação da common law e pela complementaridade de um sistema potencialmente rival baseado em “regras de equidade”; d) e um quarto e último período, iniciado em 1832 e que perdura até os dias atuais, em que se vislumbra a convivência da common law com elevada quantidade de lei em sentido estrito, a qual é produzida e utilizada em volume nunca antes visto.
No período inicial, prévio à ocupação normanda, as relações sociais eram reguladas pelos costumes locais, aplicados pelas County Courts ou Hundred Courts, tribunais regionais mantidos pelo High Sheriff ou administrador principal de cada condado.[1] Posteriormente, houve um desenvolvimento e aprimoramento das funções judiciais com as jurisdições senhoriais, exercidas por tribunais descentralizados do período feudal, a exemplo das Courts Baron, da Court Leet e das Manorial Courts, instituídas para atribuições materiais específicas. Já sob a égide da dominação normanda, no século XIII, os Tribunais Reais de Justiça (Royal Courts of Justice), ou Tribunais de Westminster, na forma do Exchequer, do Common Pleas e do King's Bench, produziram as doutrinas e teorias que constituíram os fundamentos e as mais importantes regras da common law. Constituiu-se, assim, um direito “comum” a toda a Inglaterra, em oposição aos diferentes costumes locais, válidos para cada uma das tribos da ilha britânica (RAMIRES, 2010, p. 63). Nos séculos que se seguiram, o aumento progressivo da atuação dos Tribunais Reais, além de propiciar uma maior concentração de poderes em favor da monarquia, resultou em significativa difusão do conhecimento jurídico ao povo inglês (LIMA, 2013, p. 95-96).
Paralelamente à atuação dos Tribunais de Westminster, funcionava, como instância recursal, o Tribunal da Chancelaria, que exercia uma jurisdição de equidade (equity), em prejuízo das normas da common Law (DAVID, 1972, p. 345). O excessivo formalismo da época impunha às jurisdições reais uma competência muito restrita, que resultava, por vezes, no emprego de soluções injustas às causas a elas submetidas.[2] Tal realidade provocou, em boa parte dos casos, o acionamento da autoridade real, representada não raro pela pessoa do chanceler,[3] a quem recorria o vencido ou aqueles não admitidos a litigar perante os Tribunais Reais (LIMA, 2013, p. 96). René David esclarece o ponto nos seguintes termos:
“Os obstáculos existentes na administração da justiça pelos Tribunais de Westminster davam inevitavelmente origem a que, em numerosos casos, não fosse dada uma solução justa aos litígios. Nestes casos, aflorava naturalmente ao espírito da parte ludibriada que lhe restava ainda uma possibilidade de obter justiça: era o recurso direto ao rei, fonte de toda a justiça e generosidade. […] Esse recurso supremo ao rei, nas concepções da Idade Média, surgia como uma coisa natural, e os Tribunais Reais de forma alguma se sentiam desprestigiados, por verem as partes, em caso disso, recorrerem de suas decisões. Os próprios Tribunais Reais ficaram definitivamente a dever o seu desenvolvimento ao funcionamento deste mesmo princípio, pelo qual se podia apelar para o rei, em casos excepcionais, para obter justiça.” (DAVID, 1972, p. 345)
A jurisdição exercida pelo rei ou chanceler, pois, tinha por fundamento o caráter absoluto dos poderes do monarca, e, precisamente em razão desse atributo, as decisões proferidas, de início, eram pautadas pelo senso pessoal de justiça do julgador, o qual intervinha “para tranquilizar sua consciência e fazer uma obra de caridade” (DAVID, 1972, p. 346). Dada a excepcionalidade de que se pretendia revestir o instituto, não se cogitava da aplicação do direito consuetudinário a que estavam vinculados os tribunais recorridos, constituindo o próprio poder real motivação suficiente para a validade da decisão prolatada.
Inevitável, pois, que um sistema judicial de equity assim instituído viesse, com o tempo, a pôr em risco a utilidade prática das regras estáticas da common law, aplicada pelos tribunais ordinários. Se admitido em larga escala, o recurso à prerrogativa real tenderia a institucionalizar-se, tornando-se um meio vulgar de revisão das decisões dos tribunais e acabando por suplantar suas atividades no todo ou em parte.
Em muito por essa razão, sobretudo a partir do século XV, vivenciou-se um processo de objetivação da jurisdição da equity exercida pelo Tribunal da Chancelaria. As decisões do chanceler, do Conselho ou do monarca, inicialmente tomadas com base na “equidade do caso particular”, tornaram-se cada vez mais sistemáticas, ante a aplicação de “doutrinas equitativas”, que passaram a se impor como adjutórios ou corretivos aos princípios jurídicos da common law aplicados pelos Tribunais Reais (DAVID, 1972, p. 346).
A prerrogativa real foi amplamente utilizada pela dinastia Tudor, no século XVI, com destaque, em matéria criminal, para a Câmara Estrelada (Star Chamber, Chambre des Estoylles ou Camera Stellata), que constituiu terrível ameaça à liberdade dos indivíduos. No âmbito civil, a extensiva atuação do chanceler foi marcada pela invocação de princípios e institutos próprios dos direitos romano e canônico, à recepção dos quais o processo ali empregado não impunha as restrições presentes nos Tribunais de common law. O triunfo da jurisdição de equidade, com decadência da common law, no século XVI, acabou por enfraquecer o direito inglês ante a pesada influência, no período, da família de direitos da Europa continental. Tornou-se real, pois, o perigo de substituição da common law por essa nova versão da equity inspirada em princípios do direito romano-germânico, tal como, três séculos antes, havia ocorrido o abandono das Hundred e County Courts em favor dos Tribunais de Westminster (DAVID, 1972, p. 347).
Não obstante tal movimentação, em 1616, com o apoio do Parlamento, conseguiram os Tribunais de common law frear o avanço da jurisdição do chanceler, aprovando uma espécie de “entendimento tácito” acerca das atribuições de uns e outros, com base no statu quo. A partir de 1621, a Câmara dos Lordes passou a controlar as decisões do Tribunal da Chancelaria e, em 1641, o congresso obteve a queda da Câmara Estrelada. Com o fito de conquistar o respaldo do Parlamento, os chanceleres passaram a julgar de forma cada vez mais objetiva e técnica, utilizando-se de precedentes; os tribunais de common law, nessas condições, continuaram a aceitar as intervenções da equity, na forma da jurisdição direta do monarca ou chanceler (DAVID, 1972, p. 348-349).
O direito inglês, pois, desde então, e até os dias atuais, passou a ostentar um caráter nitidamente dualista: a par das regras da common law, de base consuetudinária, produto da construção e consolidação jurisprudencial dos Tribunais Reais do século XIII, subsistem numerosas doutrinas de equity, fruto da jurisdição pessoal do monarca ou chanceler, nos séculos XV e XVI, que se destinaram, precipuamente, a corrigir ou acrescentar institutos jurídicos à common law. A equity, por seu amadurecimento – resultante, inicialmente, da pesada influência do direito romano e do direito canônico, e, posteriormente, da formação histórica de um específico quadro político e social (pressão do Parlamento pela objetivação dos julgamentos, com vista à contenção das arbitrariedades do monarca) – , deixou de constituir mero acervo de decisões fundadas no senso pessoal de justiça do julgador para representar repertório vasto de regras objetivas e técnicas, tão estritas e jurídicas quanto as da common law. O próprio termo equity, nos dias atuais, não mais designa, na Inglaterra, aquilo que, em outros idiomas, é compreendido por “equidade”, valendo-se os ingleses, para referir-se a este último instituto, da expressão natural justice (DAVID, 1972, p. 349). É a equity, assim, uma realidade jurídica estritamente inglesa, um peculiar sistema de direito criado em função da common law, e a ela atualmente integrado. Em palavras de René David:
“Por essa razão [i. e., compromisso entre a common law e a equity, de 1616], o direito inglês possui, até aos nossos dias, uma estrutura dualista. Ao lado das regras da common law, que são obra dos Tribunais Reais de Westminster, também designados por tribunais de common law, ele apresenta regras de equidade, que vieram completar e aperfeiçoar as regras de common law. A característica destas regras de equidade foi, até 1875, a circunstância de serem aplicadas exclusivamente por uma jurisdição especial: o Tribunal da Chancelaria. Contudo, as regras de equidade tornaram-se, com o decorrer dos séculos, tão estritas, tão “jurídicas” como as da common law e sua relação com a equidade não era muito mais íntima do que com as regras da common law. A equidade inglesa é, no seu ponto de partida, a equidade tal como se pôde conceber nos séculos XV e XVI e, na medida em que nesta época foi possível ao Chanceler conceder-lhe realização. Esta dupla reserva não deve ser perdida de vista. Os tribunais ingleses consideram com muitas reservas, nos nossos dias, as sugestões que lhe são feitas para continuar a obra do Chanceler dos séculos XV e XVI e para desenvolver ousadamente as novas doutrinas da equidade. A equidade parece-lhes um conjunto de regras que vieram corrigir historicamente o direito inglês, e que constituem hoje uma peça integrante do mesmo. As razões que outrora justificaram a intervenção do Chanceler já não existem; o Parlamento lá está para intervir se o direito inglês tiver necessidade de um aperfeiçoamento. A segurança das relações jurídicas e a supremacia do direito seriam ameaçadas se, sob o pretexto da equidade, os juízes aceitassem pôr em discussão as regras de direito estabelecidas; os juízes ingleses manifestaram, de maneira clara, em fórmulas surpreendentes, a sua determinação de não se comprometerem nesta via.” (DAVID, 1972, p. 349)
No século XVIII, o acontecimento marcante a registrar é a absorção do direito comercial pela common law, em verdadeira unificação do direito civil com o direito empresarial (DAVID, 1972, p. 350). Com a progressiva perda da autonomia das jurisdições específicas do comércio, princípios e institutos anteriormente aplicáveis somente aos comerciantes (merchants) passaram a propagar-se, ampliando o rol de elementos da common law.
O século XIX representa um período de grandes transformações no direito inglês. Até então, o conhecimento do ordenamento jurídico britânico se fazia por obras clássicas de doutrina e compilações de jurisprudência, tendo sido fundamentais os trabalhos de Littleton (Tenures, século XV), Coke (Institutes of the Laws of England, 1628-1642), Fortescue (De laudibus legum Anglie, 1470) e Saint-Germain (Doctor and Student, 1523-1532), este último, um diálogo entre um defensor do direito romano e um partidário do sistema anglo-saxônico. Em sede de jurisprudência, fundamentais para o conhecimento da common law foram os Year Books, crônicas publicadas até 1535, substituídas por compilações de decisões judiciárias (English Reports), de inegável interesse prático, que se situam na raiz de elementos essenciais do moderno direito inglês. Há que se registrar, ainda, no século XVIII, a publicação de uma obra clássica, descritiva, os Commentaries on the Laws of England, de Blackstone (1765-1769), que marca o apogeu da common law, e fixa os quadros do direito na Inglaterra, favorecendo sua aplicação nos países de língua inglesa e, sobretudo, nos Estados Unidos da América (DAVID, 1972, p. 351).
A partir do século XIX, porém, com o triunfo das ideias democráticas e sob a influência de Bentham, houve, em território inglês, um desenvolvimento sem precedentes da legislação como fonte do Direito. Os anos de 1832, 1833 e 1852 registram profundas transformações nas regras de processo, abolindo o formalismo exacerbado das antigas ações e permitindo que os juristas ingleses avancem rumo ao desenvolvimento do direito material. No período de 1873 a 1875, a organização judiciária foi radicalmente transformada pelos Judicature Acts, que suprimiram a distinção formal entre os tribunais de common law e os tribunais da equity, passando a todas as jurisdições inglesas poderem aplicar tanto o direito consuetudinário quanto as regras de equidade. Vivenciou-se uma grande obra clarificadora e ordenadora do direito, com a revogação de leis em desuso e a consolidação de normas complementares – nada, contudo, que se assemelhe à codificação francesa, já que os ingleses jamais incorreram no equívoco de presumir fosse possível descrever em abstrato a integralidade das relações sociais, inserindo-se a lei apenas como orientador ou guia para o trabalho dos tribunais. Como assevera René David:
“A importância da obra de legislação, realizada no século XIX, não fez perder ao direito inglês o seu aspecto tradicional: não intervém nessa obra de legislação nenhuma codificação concebida à maneira francesa e o desenvolvimento do direito inglês mantém no essencial a obra dos tribunais; o legislador oferece-lhes novas orientações, já que ele próprio não cria, na realidade prática, um direito novo. Já nenhum autor tem a ambição, como outrora Glanvill, Bracton, Coke e Blackstone, de descrever o conjunto de um direito que reflita a complexidade das relações da civilização moderna. Os instrumentos essenciais para o conhecimento do direito inglês são, futuramente, no que diz respeito à jurisprudência e legislação, a nova coleção dos Law Reports (criada em 1865) e, no que se refere à exposição sistemática do direito inglês, a coleção das Laws of England, publicada sob a direção do Lorde Halsbury.” (DAVID, 1972, p. 351-352)
No século XX, por fim, presenciou-se na Inglaterra o desenvolvimento de uma corrente social que substituiu as ideias liberais, predominantes até 1914 (DAVID, 1972, p. 352). Prevaleceu a teoria do welfare state (Estado do bem-estar social, Estado-providência ou Estado social), a qual exigia uma organização política e econômica na qual o Estado se colocava como agente da promoção social e da economia. Nessa perspectiva, o governo funciona como regulamentador de toda a vida econômica, política e social do País, cabendo-lhe garantir serviços públicos e proteção à população (SCHUMPETER, 1908, p. 1). Tal construção infligiu verdadeira crise à common law, vez que sua elaboração casuística e jurisprudencial parecia incompatível com o anseio por um Estado ativista e encarregado de promover rápidas transformações (DAVID, 1972, p. 352.). Ademais, o crescimento da Administração Pública, fruto da aliança entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo, produziu uma massa de decretos, regulamentos e outros atos administrativos, inspirados em uma tradição nitidamente romanística, ligada à elaboração legislativa e doutrinal do direito, para o tratamento dos quais o espírito tradicional da common law parecia menos preparado. Estrutura-se, assim, um movimento de aproximação entre o direito inglês e o do continente europeu, intensificado pelas necessidades do comércio internacional e favorecido pela nítida consciência das afinidades axiológicas existentes entre os Estados ocidentais contemporâneos (DAVID, 1972, p. 352).
Por força de uma formação histórica peculiar, o direito inglês, e, de resto, o de todos os países que adotaram o regime da common law, notadamente os Estados Unidos da América, estruturaram-se sobre princípios, categorias e conceitos distintos dos que vigoram na Europa continental e nos Estados formados em seus antigos territórios (DAVID, 1972, p. 353-354). O caráter essencialmente formal do ordenamento jurídico inglês, constituído por regras majoritariamente processuais, por exemplo, fez inexistir, no Reino Unido, até os dias atuais, a clássica distinção entre direito público e privado, própria da tradição romanista.[4] Em contrapartida, é célebre e ainda em vigor a diferenciação didática e prática entre common law e equity, hoje indicativa, respectivamente, da dicotomia entre processo oral e escrito, destinado ao julgamento de temas pré-estabelecidos de direito material, em cada uma das divisões do Supremo Tribunal de Justiça inglês (DAVID, 1972, p. 365).
Em verdade, é ampla a quantidade de conceitos do sistema jurídico anglo-saxônico que não encontram correspondentes na família de direitos do continente europeu (DAVID, 1972, p. 354-384). As noções de real e personal property, trust, bailment, estoppel, consideration, trespass e joint tenancy,[5] para citar apenas algumas, são próprias e específicas do direito inglês, e somente se explicam pela origem dos institutos, intimamente ligados a uma jurisdição formal e técnica, outorgada aos magistrados em rígidos e estritos termos por um monarca cioso de seus poderes. De outra banda, e pelas mesmas razões, juristas dos sistemas anglo-saxônicos desconhecem conceitos como os de norma imperativa e supletiva, vez que todo o direito, em essência, lhes é imperativo, não havendo, ainda que se falar em supletividade da norma jurídica, conceito intrinsecamente relacionado à ideia de uma criação legislativa e doutrinal do direito.
A distinção entre os sistemas da civil law e da common law, porém, supera o nível dos conceitos, alcançando a própria estrutura dos respectivos paradigmas, entendida como o modo básico de elaboração e difusão do conhecimento jurídico e a forma das relações entre as fontes do direito. A diferença estrutural se explica historicamente pela origem das famílias jurídicas: enquanto os sistemas romanistas foram construídos de forma racional e lógica, considerando as regras de fundo do direito, graças à obra das universidades e do legislador, o direito inglês foi ordenado, longe de qualquer preocupação lógica, nos quadros que lhe eram impostos pelo processo, conservando-se, de forma geral, as classificações às quais se estava habituado devido a uma longa tradição (DAVID, 1972, p. 357). Diferentemente dos romanistas, os juristas ingleses, até hoje, guardam uma tendência de valorização ao direito processual (adejective law), já que, na origem, seu direito não foi fruto dos princípios e teorias pregados nas universidades, mas da prática, na qual se formava o jurista, ciente da preocupação histórica de “evitar as ciladas que lhe reservava, a cada passo, um processo muito formalista”, incluindo minuciosas regas de direito probatório que marcaram o direito inglês por sua riqueza e tecnicismo, considerado excessivo por alguns (DAVID, 1972, p. 373-375).
O fato de a common law não representar, de início, um conjunto de normas de direito material, mas de rigorosas regras de processo, foi determinante para a imposição histórica da jurisprudência como a principal fonte do direito inglês. Era no seio dos Tribunais Reais que o direito era sucessivamente construído, ora pela aplicação de antigas fórmulas consuetudinárias, ora por um julgamento de equidade, o qual, posteriormente, com a atuação do chanceler, tornou-se gradativamente objetivo ante forte influência de princípios dos direitos romano e canônico. A inexistência de um corpo normativo estático, codificado, conduziu ao inevitável recurso aos precedentes por parte dos juízes e solicitadores (advogados). Na ausência de uma norma escrita, o precedente era, por vezes, o único documento jurídico que assentava uma possível solução oficial para o conflito, sendo certo, ainda, que o tratamento uniforme de casos semelhantes atendia à noção de justiça, pela satisfação do valor da igualdade.[6]
Por essa razão, a regra de direito ou norma jurídica da Inglaterra e dos Estados Unidos, em que vige o sistema da common law, é muito mais específica e elaborada que a da França, Alemanha, Itália e Brasil, integrantes do civil law. A legal rule inglesa difere da régle de droit francesa por ostentar menor generalidade, com menos amplitude e aplicabilidade, estando vinculada a todas as circunstâncias da demanda específica que formou o precedente. O suporte fático da norma de civil law mostra-se genérico e abstrato em comparação com os elementos de fato do precedente de common law, que, com todas as peculiaridades do caso concreto, integram a norma encerrada na ratio decidendi jurisprudencial. Fato e norma não se distinguem na regra de direito anglo-saxônica. É o precedente, pois, formato muito mais distintivo de emanação da norma jurídica, pelo que o catálogo de direitos nos países de origem inglesa é absurdamente vasto, algo de que os autores locais muitas vezes têm lamentado (DAVID, 1972, p. 383).
A jurisprudência, assim, é a fonte por excelência do direito inglês, estruturado sob a forma de casos regrados (case law). A lei, denominada pelos ingleses de statute, desempenhava, originalmente, apenas uma função secundária, limitando-se a acrescentar corretivos ou complementos à obra dos tribunais. Modernamente, porém, vastos setores da vida social já são regulados por textos emanados do Poder Legislativo, a exemplo do direito administrativo, em que a lei e os regulamentos (delegated legislation, subordinate legislation) alcançam nitidamente função normativa primária (DAVID, 1972, p. 385-386).
A lei inglesa, contudo, não assume o caráter de princípio geral que ostenta a legislação nos sistemas de direito romanistas; reveste-se de uma natureza eminentemente casuísta, afastando a generalização inevitável que uma obra de codificação “à francesa” produziria. O legislador inglês busca-se colocar, tanto quanto possível, no plano da regra jurisprudencial, considerada a única regra normal do direito. Apesar disso, os preceitos contidos na lei somente são plenamente reconhecidos pelos juristas quando aplicados, reformulados e desenvolvidos pela jurisprudência, ocasião na qual são verdadeiramente integrados ao sistema da common law.[7] O jurista inglês ainda não se habituou à técnica das regras de direito estabelecidas pelo legislador e este, por sua vez, além de não dispor da tradição que seu colega do continente europeu possui, desconhece o modo de formulação de regras jurídicas que postulem um princípio geral (DAVID, 1972, p. 409-410).
A valorização da jurisprudência nos sistemas de common law e o caráter casuístico de seu direito, inclusive de origem legislativa, são responsáveis por uma grande distinção na concepção filosófica dos ordenamentos respectivos. Em oposição aos direitos da origem romano-germânica, que instituem “sistemas fechados” e, em tese, completos, o direito inglês é, pelo contrário, um “sistema aberto”, cuja construção se dá em caráter em permanente pela atividade dialética dos tribunais. A técnica jurídica adotada nos dois sistemas, outrossim, é diversa: enquanto no primeiro toda espécie de questões é resolvida pela “interpretação” de um texto jurídico existente, no segundo, busca-se identificar, dentre as legal rules de base jurisprudencial, qual é a legal rule, talvez nova, que deverá ser aplicada na espécie, valendo-se, para tanto, de uma estrita observação dos fatos e de uma análise da conformidade ou distinção do caso concreto em relação aos casos passados. Na perspectiva inglesa, a cada nova situação deve corresponder uma nova regra, sendo a função do juiz administrar a justiça e não formular, em termos gerais, regras que ultrapassem o alcance do litígio (DAVID, 1972, p. 381).
Segundo José Rogério Cruz e Tucci (TUCCI, 2010, p. 218-219), na atualidade, as cortes judiciárias britânicas, de onde efetivamente emana o direito jurisprudencial inglês, encontram-se assim organizadas:
a) Supreme Court of the United Kingdom – tribunal mais elevado da hierarquia judiciária britânica, formado por doze magistrados (Law Lords) indicados pela Rainha, aconselhada pelo Primeiro Ministro ou pela Judicial Appoints Comission. Sucede ao Appellate Committee of the House of Lords, extinto em 1º de outubro de 2009 por força do Constitutional Reform Act 2005, que concedeu ao órgão estrutura política independente, de sorte a não mais integrar o Parlamento britânico. Por essa razão histórica, a jurisprudência e doutrina anteriores ao ano de 2005 fazem referência ao comitê específico da House of Lords como a instância máxima de julgamento na Inglaterra;
b) Supreme Court of Judicature – situada em grau imediatamente inferior à Suprema Corte do Reino Unido, compõe-se de dois principais órgãos de julgamento, a 1) High Court of Justice e a 2) Court of Appeal, presidida pelo Master of the Rolls. Estas, por sua vez, se organizam em Divisions, algumas especializadas em determinadas matérias. A High Court é seccionada em três órgãos colegiados, a saber, a i) Queen's Bench Division, a ii) Chancery Division e a iii) Family Division. O Queen’s Bench, de seu turno, divide-se na i.1) Commercial Court e na i.2) Admiralty Court;
c) Crown Court – subordinada à High Court, é encarregada do julgamento em primeira instância das causas criminais. Encontra-se espalhada pela Inglaterra e País de Gales na forma de aprox. 90 (noventa) juízos;
d) County Courts – competentes para o processo e julgamento, em primeiro grau, das causas cíveis no valor de até 50.000 Libras. No ano de 2010, alcançavam o número de 216 (duzentos e dezesseis) juízos, na Inglaterra e no País de Gales. Encontram-se regulados pelo County Courts Act 1984 e são administrados pelo Her Majesty’s Courts Service, subordinado ao Ministério da Justiça do Reino Unido.
Nos Estados Unidos da América, por sua vez, consoante o Federal Judicial Center (FEDERAL JUDICIAL CENTER, 2013, p. 1-7), agência de ensino e pesquisa dos tribunais federais norte-americanos, a jurisdição é dividida em federal estadual, cabendo à primeira o julgamento de feitos conexos à administração federal e, à segunda, a feitos de interesse local ou crimes de menor gravidade. A jurisdição é assim organizada:
a) Supreme Court of the U.S. – situada no ápice do sistema normativo estadunidense, é composta de 9 (nove) ministros (justices) que tratam dos casos de maneira conjunta. A seu próprio critério, a Suprema Corte dos Estados Unidos pode aceitar recursos oriundos dos vários tribunais regionais, assim como das varas da mais alta instância estadual, se os mesmos tiverem relação com a Constituição dos EUA ou leis federais;
b) District Courts ou Circuit Courts – juízos federais de primeira instância, em número de 94 (noventa e quatro), espalhados por todo o País. Cada estado conta com pelo menos um juízo federal. Os juízes federais (district judges) trabalham individualmente em seus diversos casos. Além deles, os juízos federais também incluem juízes de falências (de competência exclusivamente falimentar) e os magistrate, ou juízes de pequenas causas, que cuidam de várias tarefas judiciais sob a supervisão geral dos juízes federais;
c) Courts of Appeals – tribunais federais de recursos, também chamados de circunscrições, no total de 12 (doze), em diversas regiões do País. Recursos oriundos dos juízos federais são analisados por painéis compostos de três juízes. Não se admite ao Estado recorrer em feitos criminais quando o veredicto é “não culpado”. Admitem-se, nos tribunais regionais, recursos de decisões tomadas por órgãos administrativos federais. Um dos tribunais federais não é regional (Federal Circuit) e possui competência recursal para casos especializados, como demandas que envolvam leis de patentes e ações contra o governo federal;
d) U.S. Bankruptcy Courts – tribunal federal especializado em matéria falimentar. Cada um dos 94 distritos judiciais federais lida com questões de falência, mas, em quase todos os distritos, casos de falência são concluídos no tribunal de falência. Nos Estados Unidos, a matéria falimentar é de competência exclusiva da Justiça Federal;
e) U.S. Courts of Special Jurisdiction – Justiça especializada por matéria, mantida pelo governo federal norte-americano, composta da U.S. Court of Appeals for the Armed Forces (militares), U.S. Court of Federal Claims (demandas contra o governo federal), U.S. Court of International Trade (comércio internacional), U.S. Tax Court (matéria tributária), U.S. Court of Appeals for Veterans Claims (ex-combatentes) e o Judicial Panel on Multidistrict Litigation (questões de competência jurisdicional de feitos cíveis conexos pendentes em diferentes juízos federais);
f) Justiça Estadual – a estrutura dos sistemas de tribunais estaduais varia conforme o estado. A maioria dos estados tem juízos de jurisdição limitada, presididas por um único juiz que cuida de casos menores, tanto cíveis quanto criminais. Os estados têm juízos de primeira instância (trial courts), de competência geral, que são presididos por um único juiz. São geralmente chamados de circuit courts (comarcas ou circunscrições) ou superior courts e cuidam de casos graves, tanto civis quanto criminais. Alguns estados têm também uma vara intermediária de recursos chamada court of appeals, que cuida de recursos oriundos dos juízes de primeira instância. De um modo geral, qualquer parte envolvida em um determinado caso conta com um direito de apelação.
Ao lado da jurisprudência e da lei, uma terceira fonte do direito anglo-saxônico, inferior em importância, é o costume (custom). Consoante o magistério de René David, o direito inglês não é consuetudinário. “O costume geral imemorial do reino, sobre o qual teoricamente está fundada a common law, nunca foi senão uma simples ficção destinada a afastar dos juízes a desconfiança de julgarem de modo arbitrário.” Antes da elaboração da common law, o direito na Inglaterra era essencialmente consuetudinário, ao ponto de a própria common law retirar algumas das suas regras dos vários costumes locais então em vigor. A própria razão de ser da constituição da common law, porém, era a busca pela elaboração de um direito jurisprudencial, fundado sobre a razão, que substituísse o direito da época anglo-saxônica, baseado no costume (DAVID, 1972, p. 405).
Logo, inegável o caráter subsidiário da norma costumeira em relação ao direito construído pelos tribunais. Acerca da aplicação dos costumes locais, ainda vige na Inglaterra uma lei do ano de 1265 que exige, para fins de obrigatoriedade de observância da norma costumeira, deva a regra ostentar a condição de “costume imemorial”, o qual, segundo a lei, é entendido como aquele que já existia no ano de 1189. O caso ilustra o quão restrita é a utilização do costume enquanto fonte direta do moderno direito inglês, já que a maioria das regras costumeiras já foi absorvida pela legislação ou jurisprudência, não mais podendo ser elencadas como efetivos exemplos de norma consuetudinária (DAVID, 1972, p. 405).[8] É exceção à regra o direito constitucional, no qual as conventions of the Constitution (costumes a que a teoria não atribui caráter jurídico) dominam a vida política inglesa. O mesmo se pode dizer em relação ao direito penal, já que, no Reino Unido, o júri, tecnicamente falando, é apenas uma instituição de que o juiz, ao seu livre talante, pode ou não se utilizar, sendo certo, porém, que, em determinadas circunstâncias, o costume determinará, de modo imperativo, que a ele recorra (DAVID, 1972, p. 406).
Por último, elenca a doutrina a “razão” como fonte do direito inglês. Afastada a noção fictícia do embasamento nos “costumes imemoriais do reino”, concebe-se que a common law foi construída sobre a razão, embora tenha absorvido, em muitos casos, os diferentes costumes locais. É a razão a fonte material do direito emanado pela jurisprudência, vez que é esta quem efetivamente cria a legal rule inglesa, observando, quando existentes, as orientações gerais do Parlamento contidas na legislação. Como sistema aberto, o direito inglês é reconhecidamente incompleto, construindo-se casuisticamente pela atividade dialética dos tribunais. E, nesse contexto, a doutrina inglesa é franca em admitir a razão como o elemento apto a balizar a discricionariedade judiciária na fixação da norma aplicável a cada situação específica sob julgamento. Sobre o tema, lapidar a explicação do multicitado mestre francês, quando assim leciona:
“Na medida em que as regras mais precisas não foram estabelecidas, de modo a dar mais certeza às relações sociais, a razão continua a ser a fonte inesgotável à qual os tribunais recorrerão, tanto para preencher as lacunas do sistema de direito inglês como para guiar a evolução desse sistema. Nesse aspecto, o princípio não é diferente na Inglaterra do que é nos países do sistema romanista; no entanto, uma diferença deve ser notada. Nos países de direito escrito, em que o direito se apresenta principalmente sob a forma de um direito legislativo, as regras de direito são formuladas com uma tal generalidade que o apelo à razão se processa, normalmente, no quadro das fórmulas legais, sob a forma de aplicação e interpretação dessas regras; a existência de lacunas na ordem legislativa é reconhecida dificilmente; mais do que para completar a ordem jurídica, a razão desempenha uma função na interpretação da lei. Em um sistema jurisprudencial, como é o direito inglês, a situação apresenta-se muito diferente. O aspecto casuístico que reveste então o direito deixa subsistir, de forma intencional, muitas lacunas; e a razão é francamente reconhecida como uma fonte subsidiária do direito, chamada a preencher estas lacunas. A uma técnica de interpretação do direito substituiu-se uma técnica de distinções, visando estabelecer regras novas, cada vez mais precisas, em vez de aplicar uma regra pré-existente. Os sistemas de direito da família romano-germânica são sistemas fechados, e a common law é um sistema aberto, onde novas regras são continuamente reveladas; estas novas regras fundam-se na razão.” (DAVID, 1972, p. 407-408)
Diante da inexistência de um precedente, texto legal ou costume obrigatório aplicável, o dever do juiz da common law de estabelecer uma solução fundada na “razão” não constitui, de forma alguma, um exercício de arbitrariedade. Cuida-se, em vez disso, de uma tentativa de conformação do caso novo às regras de direito já existentes, ante a busca por uma alternativa judiciária que esteja em maior harmonia com o espírito essencial das legal rules anteriormente pronunciadas. Trata-se da identificação e aplicação dos princípios gerais que se destacam das regras vigentes, o que se pode alcançar, nos países de common law, pela análise das obras de doutrina, da fundamentação acessória e não vinculante das decisões judiciais (obiter dictum), e do conteúdo de precedentes não obrigatórios, a exemplo das decisões proferidas por órgãos judiciários sem autoridade vinculante ou por outros Estados nacionais integrantes da família de direitos anglo-saxônica.
A razão, pois, enquanto fonte jurídica no sistema da common law, não é o sentimento impreciso de justiça que os cidadãos possam eventualmente assumir em um dado momento histórico; é, antes, o raciocínio isento empregado pelos juízes, à luz das regras e princípios vigentes, em face de um conflito real e concreto, com a preocupação consciente de edificar um sistema coerente de direito, o qual existe, precisamente, para impedir a “razão artificial” (artificial reason of the law) que resultaria de uma equivocada pretensão universalizante da atividade do legislador (DAVID, 1972, p. 408-409).
A esse respeito, ressalte-se que, não obstante a omissão nos textos jurídicos ingleses quanto aos princípios que usualmente informam o processo nas democracias modernas, é certo que as cortes de justiça britânicas respeitam as garantias processuais previstas na Convenção Europeia para a Salvaguarda dos Direitos do Homem, recepcionada internamente pelo Human Rights Act 1998. Ademais, princípios como os do fair trial (julgamento justo), e da equality of arms (paridade de armas) são historicamente disseminados na doutrina processual inglesa, a qual contempla, ainda, os princípios da demanda e dispositivo, que consagram a inércia da jurisdição e a atribuição ao autor do poder de delimitação do objeto litigioso. Mais recentemente, com a reforma processual instituída pelo Civil Procedure Act 1997 e pelas Civil Procedure Rules 1998, verificou-se maior equilíbrio entre as estratégias adversarial e inquisitória do processo inglês, conferindo-se ao o magistrado papel mais proeminente na condução e andamento do processo, inclusive no plano probatório, em detrimento da célebre perspectiva do laissez-fare processual inglês (party control), típica dos valores culturais britânicos, fixados na ideia de imparcialidade da magistratura, em que predominava o princípio da iniciativa dos litigantes (TUCCI, 2010, p. 224-226).
Conclusão
A common law é um regime de direito que teve origem na Inglaterra, no momento posterior à conquista normanda, em resultado, sobretudo, da ação normativa dos Tribunais Reais de Justiça. A expressão faz referência ao direito “comum” ao inteiro povo inglês, em oposição aos diferentes costumes locais, válidos para cada uma das tribos da ilha britânica.
O fato de a common law não representar, de início, um conjunto de normas de direito material, mas de rigorosas regras de processo, foi determinante para a imposição histórica da jurisprudência como a principal fonte do direito inglês. Era no seio dos Tribunais Reais que o direito era sucessivamente construído, ora pela aplicação de antigas fórmulas consuetudinárias, ora por um julgamento de equidade, o qual, posteriormente, com a atuação do Chanceler, tornou-se gradativamente objetivo ante forte influência de princípios dos direitos romano e canônico. A inexistência de um corpo normativo estático, codificado, conduziu ao inevitável recurso aos precedentes por parte dos juízes e advogados. Na ausência de uma norma escrita, o precedente era, por vezes, o único documento jurídico que assentava uma possível solução oficial para o conflito, sendo certo, ainda, que o tratamento uniforme de casos semelhantes atendia à noção de justiça, pela satisfação do valor da igualdade.
São caracteres essenciais do direito inglês, exemplificativo do sistema da common law (DAVID, 1972, p. 409-414):
a) não se tratar de direito consuetudinário, mas jurisprudencial, em que o Poder Judiciário francamente cria o direito, com base na “razão”;
b) a regra de direito, tanto a de origem jurisprudencial quanto a de base legislativa, é formatada sob um prisma nitidamente casuístico, o que a torna muito mais específica que a norma de civil law, resultando em ser vasto o catálogo de direitos daquele ordenamento;
c) modernamente, a lei não mais representa uma fonte simplesmente secundária do direito. O papel da jurisprudência, contudo, permanece ainda mais relevante que o da legislação escrita, constituindo a decisão judicial a legítima forma de integração da regra jurídica legislada ao sistema da common law;
d) a regra do precedente (rule of precedent) ou stare decisis, estabelecida formalmente apenas no século XIX, longe de constituir um entrave ao desenvolvimento da common law, representou uma decorrência lógica da formação histórica do direito inglês, de origem jurisprudencial, e construído sob os quadros normativos do processo. A despeito dela, há um desenvolvimento contínuo do direito anglo-saxônico, sendo que, nos temas tradicionais da common law, raramente o legislador é solicitado a intervir, bastando o trabalho dos tribunais para tal desiderato;
e) a técnica das distinções é o método fundamental de trabalho no âmbito da common law. Tal como a interpretação para o jurista de civil law, a distinção é a base da formação do jurista inglês, cujo treinamento essencial consiste no domínio da técnica distintiva e na percepção dos limites de sua aplicação;
f) diferentemente do que ocorreu no continente europeu, a doutrina, na Inglaterra, exerceu papel eminentemente sistematizador, na medida em que não havia um direito de professores, mas de práticos, já que não se promovia a formação jurídica nas universidades inglesas. Não obstante tal fato, a importância de certas obras doutrinárias (rectius, repositórios sistematizados de jurisprudência, de autoria dos próprios magistrados), a exemplo dos trabalhos de Glanvill, Bracton, Littleton e Coke, alcançaram o reconhecimento pelos tribunais de “books of authority”, com um prestígio comparável ao da própria lei nos países de civil law. No atual estágio do direito inglês, em que se vivencia a simplificação do processo e o avanço da legislação escrita, os juristas recebem cada vez mais formação universitária, em que lhes são ensinados princípios de direito material, circunstância que tende a alterar significativamente o papel da doutrina nesse sistema jurídico;
g) a base da common law é a “razão”, a partir da qual os magistrados, com o fito consciente de produzirem um sistema de direito coerente, procuravam estabelecer soluções justas em face das circunstâncias dos casos concretos que lhes eram postos a julgamento. Tal realidade não significa que o direito inglês seja mais empírico e menos lógico que o dos países de civil law, vez que no termo de sua atividade judiciária encontra-se um esforço racional, tal como ocorre com a atividade interpretativa na tradição romanista. O direito inglês é, pois, uma obra da razão, distinta da lei, pelo que a common law, “a herança comum das nações de língua inglesa”, em sua essência, assume, na perspectiva saxônica, uma natureza que transcende as fronteiras do Reino Unido, e cuja descrição teórica é a de um direito ideal, que se desvela pela prática forense.
Informações Sobre o Autor
Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior
Especialista em Direito Processual Civil pela PUC/MG. Pós-Graduando em Direito Empresarial e em Direito Tributário pela Universidade Cândido Mendes do Rio de Janeiro. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Ex-Assessor da Justiça Federal da 5 Região. Ex-Assessor do Ministério Público Federal na 1 Região. Atualmente é Oficial de Justiça do Tribunal Regional Federal da 5 Região