O Direito para além da reprodução: do simbólico poder legal a construção da norma jurídica

Resumo: Nas seguintes sentenças exaradas neste curto enunciado, tentaremos demonstrar, de modo claro e conciso, como o trabalho de Bourdieu, se bem desenvolvido, pode contribuir para construção, de modo mais eficiente, da norma jurídica. Não se pode olvidar que o campo Jurídico, muita das vezes, não se permite trabalhar com conceitos ditos “periféricos” e, talvez por esse fato, ele não se desenvolva de modo mais eficaz. Essa é uma crítica pontual do professor francês, rubricando em parte de suas obras, a maquiagem do discurso jurídico por meio da cortina projetada pelo requintado capital de palavras que detém o jurista. Enfim, não se almeja aqui, por óbvio, modificar de imediato o estratificado campo do discurso jurídico, conquanto não se descura que pequenas reflexões acerca da linguagem simbólica do texto de lei e sua legitimidade, a partir das premissas bourdieusianas, podem, concretamente, colaborar para a formação de um Direito mais próximo da realidade social.

Palavras-chave: Bourdieu; Direito; discurso; norma jurídica; poder simbólico.

Abstract: In the following sentences entered in this short statement, we will try to demonstrate, in a clear and concise, as the work of Bourdieu, if well designed, can contribute to construction, more efficiently, the rule of law. We should not forget that the Legal field, a lot of times, it is not working with concepts so-called "peripheral" and, perhaps by this fact, he is not allowed to develop more effectively. This is a critical point of the French teacher, remonstrate in part of his works, the makeup of the juridical discourse through the curtain designed by refined capital of words that holds the lawyer. Finally, it is not Difficult here, of course, modify immediately the stratified field of legal discourse, although not if it neglects that small reflections about the symbolic language.of the text of the law and its legitimacy, the premise from bourdieusianas, can, in particular, contribute to the formation of a Right closest to the social reality.

Keywords: Bourdieu; Law; speech; rule of law; symbolic power.

Sumário: Introdução. 1. O poder simbólico e o texto de lei. Conclusão. Referências.

Considerações introdutórias

A caótica situação em que o Direito contemporâneo se encontra é circunstância notória e já trabalhada por alguns teóricos jurídicos. Streck[1] (2014, p.114) desenha este quadro sob a rubrica de uma crise hermenêutica a partir do claudicante discurso jurídico-dogmático. Pode-se afirmar que parcela relevante deste problema se dá por meio da construção jurídica isenta de compreensão das particularidades da sociedade, e a inerente integração tridimensional (fática, valorativa e normativa) que formulam o Direito contemporâneo (REALE, 2002).

Neste ponto, faz-se mister ressaltar como os trabalhos de Bourdieu podem contribuir para a depuração acerca das atividades desenvolvidas no campo Jurídico. Ora, sendo a reprodução sistemática do texto de lei, requisito fundamental para um particular destaque no campo[2] jurídico-acadêmico, fácil perceber que esta “crise” justamente se dá pela vítrea formação hermenêutica, sociológica e filosófica do bacharel. É notório que tais pontos são meros detalhes na grade curricular de grande parte das universidades brasileiras, evidenciando, portanto, essa crise, apenas um reflexo da formação social do jurista.

Por meio da simples interpretação literal ou gramatical do texto da lei o jurista tapa os olhos para a realidade social. Com efeito, o disfarce promovido pelo discurso jurídico, com sustentáculo em seu forte capital de palavras, ratifica a promoção da permanência estática do Estado (Bourdieu, 2015, p. 430).  O desenho mais evidente é uma superestrutura a favor dos dominantes, ou para usar o termo clássico, detentores do capital[3].

Frente essa situação, vários trabalhos do professor francês contribuem para um aclaramento da visão obscura que relevante parcela dos juristas possui a respeito da sociedade. E é isso que este ensaio almeja: traçar, em breves linhas, os principais conceitos da sociologia de Bourdieu paralelamente à sua aplicação no campo jurídico, mais especificadamente no rompimento do simbolismo do texto à efetividade da norma jurídica.

1. O poder simbólico[4] do texto legal

Inserto no habitus[5] da atividade legiferante hodierna está a produção de textos simbólicos (NEVES, 2012). O legislador artista, na ânsia de responder o clamor social, emanado por uma suposta, imaterial e flexível opinião pública[6], produz textos legais apenas com efetividade formal, com vistas a acalantar ideologias voláteis (MENDES; MONTEIRO, 2015).  

     Nesse sentido, a compreensão do conceito de poder simbólico, aplicado a atividade do legislador, revela um duplo simbolismo. A força simbólica do texto de lei, que sempre existirá, reforçada pela cristalina vontade de produzir textos sem efetividade. O problema é que esse duplo simbolismo fere preceitos estampados na Carta Maior de 1988, e obsta, por consequência, lograr êxito na construção de uma sociedade mais democrática. A partir do conhecimento de tais premissas, pode-se trabalhar no caminho inverso. O jurista deve ter em mente esse processo legislativo simbólico, e construir uma norma jurídica, mais próxima possível da realidade social[7].

Conclusões preliminares

Não se pode conceber o Direito como um campo autônomo e insensível às pressões externas. A hermenêutica jurídica revestida com sua finalidade prática deve ter como sustentáculo a realidade social, deixando de lado a vítrea fundamentação do Direito em si[8].

A compreensão dos conceitos bourdieusianos e sua alocação dentro das possibilidades do campo Jurídico, como se pode demostrar, contribuem para uma fundamentação normativa mais próxima da realidade. Este atuar deve se dar por meio de uma reorientação do olhar jurídico, atento aos fenômenos sociais e a produção simbólica do poder, bem como ao recurso à sociologia do conhecimento.

Enfim, os trabalhos de Bourdieu, constroem uma sociologia do campo jurídico a partir de fatos e interpretações das próprias relações jurídicas. O poder conferido ao Direito, não se pode deixar efetivar de maneira a abandonar as crenças daqueles que lhe conferem legitimidade[9].Afinal, o discurso não é tão-somente o reflexo das lutas ou sistemas de dominação, “mas aquilo pelo que se luta, o poder de que queremos nos apoderar” (FOUCAULT, 2014, p.10).

 

Referências
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 5a ed. São Paulo: Perspectiva.
BOURDIEU, Pierre. Alta costura. Comunicação feita em Noroit (Arras) em novembro de 1974 e publicada em Noroit, 192, novembro de 1974, dezembro de 1974, janeiro de 1975.
BOURDIEU, Pierre. A opinião pública não existe. In: Comunicação feita em Noroit (Arras) em janeiro de 1972 e publicada em Les Temps Modernes, 318, janeiro de 1973.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
BOURDIEU, Pierre. Sobre o Estado. Tradução Rosa Freire d’ Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
FOUCAULT, Michael. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola, 2014.
MENDES, Ronaldo Pimenta.  MONTEIRO, Deivison Resende. O novo sistema recursal do agravo de instrumento contra decisões proferidas por magistrados de primeiro grau. Disponível em: > http://www.epublicacoes.uerj.br/index.php/redp/article/view/16879 <Acesso em:10/07/2015.
NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.
REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, ed.27° (2002), 15° tiragem (2015).
STRECK, Lênio. Hermenêutica jurídica e (m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.
 
Notas:
 
[1] Streck (2014, p.141) sustenta ser nesse contexto – “que a crise de paradigma do Direito e da dogmática jurídica – deve permear a discussão acerca dos obstáculos que impedem a realização dos direitos em nossa sociedade”.

[2] Na definição de Boudieu (1975) o campo é “um espaço de jogo, um campo de relações objetivas entre indivíduos ou instituições que competem por um mesmo objeto”.

[3] Cf. Bourdieu (1989, p.245): “O trabalho jurídico, assim inscrito na lógica da conservação, constitui um dos fundamentos maiores da manutenção da ordem simbólica também por outra característica do seu funcionamento: pela sistematização e pela racionalização a que ele submete as decisões jurídicas e as regras invocadas para as fundamentar ou as justificar, ele confere o selo da universalidade, factor por excelência da eficácia simbólica, a um ponto de vista sobre o mundo social que, como se viu, em nada de decisivo se opõe ao ponto de vista dos dominantes.”

[4] Cf. Bourdieu, (1989, p. 8) trata-se de um “poder invisível o qual pode ser exercido com cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”.

[5] Nas palavras de Bourdieu (2007, p.191), o habitus é um “sistema de disposições socialmente constituídas que, enquanto estruturas estruturadas e estruturantes, constituem o princípio gerador e unificador do conjunto das práticas e das ideologias características de um grupo de agentes. ”

[6] O professor francês (1973, p.1), em trabalho intitulado “A opinião pública não existe”, sustenta que a opinião pública, desenhada pelos grandes órgãos midiáticos, sequer existe. Pauta-se, basicamente em três postulados, quais sejam: “Qualquer pesquisa de opinião supõe que todo mundo pode ter uma opinião; ou, colocando de outra maneira, que a produção de uma opinião está ao alcance de todos (…); supõe-se que todas as opiniões têm valor (…); pelo simples fato de se colocar a mesma questão a todo mundo, está implícita, a hipótese de que há um consenso sobre problemas, ou seja, que há um acordo sobre as questões que merecem ser colocadas (…)”

[7]A título exemplificativo, cite-se a declaração de inconstitucionalidade, pelo Supremo Tribunal Federal, acerca da vedação de progressão de regime, do art.2°, §1° da Lei 8072/90 no julgamento do habeas corpus (HC) 82.959.

[8] Cf. EHRLICH apud BOURDIEU  (1989, p. 241). “O centro da gravidade do desenvolvimento do direito (…), na nossa época, como em todo o tempo, não deve ser procurado nem na legislação, nem na doutrina, nem na jurisprudência, mas sim na sociedade ela própria”.

[9]Cf. Bourdieu, (1989, p.15) “O que faz o poder das palavras e das palavras da ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras”.


Informações Sobre os Autores

Ronaldo Pimenta Mendes

Acadêmico de Direito na Universidade José do Rosário Vellano campus de Cambo Belo

Deivison Resende Monteiro

Mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. Professor de Direito da Universidade José do Rosário Vellano UNIFENAS/Campo Belo. Consultor jurídico de Regimes Próprios de Previdência Municipal

Daniel Limongi Alvarenga Alves

Advogado Criminalista e Professor Universitário Mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas FDSM pesquisador


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