Resumo: O presente trabalho objetiva analisar a ação do Garantismo Penal sobre o conteúdo constitucional dos direitos fundamentais e quais os decorrentes impactos sobre os institutos da emendatiolibelli e da mutatiolibelli. Busca-se descortinar o significado do Garantismo e revelar onde e como esse pensamento tangencia a Constituição Federal de 1988 com seu espírito. Insere-se o leitor no cenário atual da emendatioe da mutatiolibelli, confrontando as teses doutrinárias acerca de sua aplicação no processo, com questionamentos a respeito de sua base de validade e curial importância na qualidade da defesa do imputado.
Palavras-chave: Garantismo Penal. Direitos Fundamentais. EmendatioLibelli. MutatioLibelli. Direito Processual Penal.
Abstract: This work aims to analyse the Criminal Guaranteeism's action on the constitucional content of fundamental rights and what it impacts on the institutes of emendatiolibelli and mutatiolibelli. In this step, the work seek to uncover the meaning of guaranteeism and reveal where and how that thought touches the Federal Constitution of 1988 with its spirit. The reader is insert in the present scenario of emendatio and mutatiolibelli confronting doctrinal theses about its application in the process, with questions about their base validity and curial importance in charge of protecting the quality of the accused's defense.
Keywords: Criminal Guaranteeism. Fundamental Rights. EmendatioLibelli. MutatioLibelli. Criminal Procedural Law.
Sumário: Introdução. 1. Estudo da Emendatio e da MutatioLibelli. 2. Limiar jurídico entre fato novo x fato diverso. 3. (Im)Possibilidade de alteração da acusação em ações penais privadas. 4. A inconstitucionalidade da EmendatioLibelli.Conclusão. Referências.
Introdução
A instrução do processo pode trazer inovações fáticas e jurídicas por vezes inesperadas pelas partes, e, especificamente no processo penal, tais inovações demandam exame mais rigoroso, já que o direito em litígio não é maleável ou disponível como o são na preponderância as demais espécies de processo. São enaltecidos o contraditório e a ampla defesa. Em unanimidade, tais basilares princípios são postos, com propriedade, em pedestais. Mas seriam tais preceitos suficientes para exigir que o acusado tivesse outra oportunidade para, por exemplo, se defender dos mesmos fatos quando o magistrado altera apenas a capitulação do crime? Criou-se ambiente de aflição na doutrina quanto à necessidade ou não de se ouvir o réu quando o crime pelo qual foi denunciado é alterado, o que trouxe à tona o tema como de crucial relevância, dada o cotidiano jurisdicional em lidar com tais embates. Nesta feita, pretende adentrar o presente trabalho pelos caminhos a serem mais propriamente seguidos quando se está diante de alterações circunstanciais no processo penal, notadamente face os conceitos garantistas, timbrados na Bíblia Política.
1. Estudo da Emendatio e da MutatioLibelli
De duvidosa constitucionalidade, os dispositivos a serem tratados por esta pesquisa se revelaram suspeitosos frente a própria Constituição, e permaneceram inseridos no Diploma Processual Penal junto à reforma que lhe ocorreu em 2008, a qual teve como emblema uma reformulação do Código para mais adequá-lo ao sistema acusatório.
Ainda mais duvidosa foi a inserção desse mesmo dispositivo, a ser adiante analisado, que se opõe frontalmente ao princípio do contraditório, dissimulado dentro de uma reforma concebida pretensamente para aplaudir o sistema acusatório. O fato é que a norma, a ser analisada nestes capítulos, foi inserida no Código Processual, e dela as varas criminais distribuídas em todo o Brasil fazem uso indiscriminado, julgando por comum aquilo que tem intensamente dúbia sua compatibilidade com a Carta de 88.
É assim que, no cenário retratado, acabaram por permanecer, com a Reforma Processual Penal de 2008, os institutos da emendatiolibelli e da mutatiolibelli, dentro de uma receita criada pelo Congresso Nacional para “atualizar” aquilo que já estava enferrujado há anos no Compilado de 1941. Não há qualquer dúvida da salutar mudança ocorrida, da reformulação do processo que já não se compatibilizava quer com a Constituição, quer com os novos conceitos de direitos fundamentais nela exarados. A sociedade, como é de sua essência, tampouco continuava a mesma. Urgiam certamente transformações.
Ocorre que a Reforma ratificou as possibilidades de manejar a marcha do processo com elasticidade nas acusações, através de aditamentos, emendatiolibelli e mutatiolibelli, de feitio que a indicação do tipo incriminador, no pleito exordial de condenação, revelou-se quase que uma formalidade processual, se se considerar que ao juiz é permitido transmudá-la ou afastá-la, em conformidade com o método da emendatio, como adiante se verá. Com peculiaridade tal, a capitulação penal imputada permaneceu maleável e flexibilizada, tornando incerto ao réu a constância ou não da denúncia que lhe é atribuída.
Quer isso dizer que o pedido inicial da acusação não é definitivo ou imutável. Ao revés, é hábil a se adaptar às circunstâncias que se desenvolvam no curso do processo, para se conformar ao que foi apurado pelos fatos e provas enfrentados nos atos instrutórios.
Continuou-se, assim, a existir um permissivo legal que viabilizava ao magistrado do caso alterar o tipo penal que motivou a conduta acusatória, sem nenhuma participação das partes nessa atitude, e isso tão-somente como resultado de uma faculdade jurisdicional, realizada em sentença. De tal forma se dá a emendatiolibelli:
“1.O órgão acusador oferece a denúncia somente após plenamente concebida a sua opinio delicti sobre os fatos que lhe foram apresentados em inquérito ou em peças de informação.
2.Formada a opinio delicti e sua convicção acerca do tipo penal incorrido, tem-se como resultado a confecção da denúncia, a qual tem como requisito obrigatório a classificação do crime, conforme ditames do artigo 41[1] do Diploma Processual Repressivo.
3.Expõem-se os fatos supostamente criminosos, em conjunto com a tipificação em tese, sujeitando-os ao contraditório.
4.O réu recebe a versão acusatória dos fatos e a capitulação que lhes foi correspondida, respondendo a imputação com base no conjunto fato + crime a si imputados. Nessa fase, com base no princípio da ampla defesa, e conferidos ao acusado todos os meios de defesa que lhe estão à mão, poderá se valer de quaisquer alegações que lhe pareça favoráveis.”
No ponto, tão alargada é a possibilidade de defesa, tamanha a sua dimensão teórica, que até a eventual ilicitude de uma prova pode ser desprezada, se realizada para se erguer em peça defensiva, em favor e pelo direito à presunção de inocência do imputado. Moreira, acompanhando a jurisprudência e a doutrina dominantes, acentuou em sua composição “A Constituição e as Provas Ilícitas Adquiridas”:
“É possível a utilização de prova favorável ao acusado ainda que colhida com infringência a direitos fundamentais seus ou de terceiros, quando indispensáveis, e, quando produzida pelo próprio interessado (como a de gravação de conversação telefônica, em caso de extorsão, p. ex.), traduzindo a hipótese de estado de necessidade, que exclui a ilicitude.”[2]
A proporcionalidade se alia à “teoria do sacrifício”, projetada em seus primórdios para incidir no processo civil, agora incidente também no processo penal, segundo a qual, quando constatado um confronto entre dois atos lícitos opostos, os quais resultassem em dano, a razoável e mais ponderada alternativa frente o ordenamento seria amparar aquela conduta que mais inocente parecesse. Canotilho acredita que: “[…] de um modo geral, considera-se inexistir uma colisão de direitos fundamentais quando o exercício de um direito fundamental por parte do seu titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular”[3]. Seria de se admitir, destarte, em uma aplicação analógica ao processo penal, prova ilícita em favor do réu, quando a única possível, consoante entendimento da Corte Suprema:
“O Supremo Tribunal Federal entende que em matéria de provas ilícitas apenas aplica-se o princípio da proporcionalidade pro reo, entendendo-se que a ilicitude é eliminada por causas excludentes de ilicitude, tendo em vista o princípio da inocência.”[4]
Nesse horizonte, está o inúmero de instrumentos de defesa à disposição do réu, com esteio maior constante da Constituição Federal, que prevê seu direito fundamental de defesa ampla[5], quase que irrestrita, tendo à vista o direito em lide, o das liberdades humanas, contendo em seu núcleo a liberdade física, a liberdade de profissão, a liberdade pecuniária, a liberdade de filiação, dentre todas as demais sobre as quais pode recair a reprovação penal.
Deste modo, em rápida excursão, está ao alcance do acusado negar os fatos, alegar a não adequação plena do fato à norma (não adequação ao tipo, ausência de tipicidade), a inconstitucionalidade da norma aplicável, da própria pena ou do próprio tipo, postular por progressão de regime ainda durante o processo – acaso já esteja aprisionado –, por livramento condicional, por suspensão condicional da pena, todos estes adstritos à quantidade de pena dosada abstratamente ao delito.
Tão extenso é o quilate das defesas possíveis, que inarredável é o reconhecimento do fato de que o tipo penal, aliado à respectiva cominação legal, está intrinsecamente relacionado com o modo pelo qual se dará a preparação da a tese defensiva em sua integralidade.
“5.Projetados ao julgador todos os recursos probatórios, com a acusação apontando para uma espécie de delito e a parte contrária negando os fatos, a constitucionalidade das normas aplicáveis ao tipo, a própria tipicidade, ou apresentando quaisquer outros argumentos defensivos, é formada a convicção do magistrado acerca do fato-crime a ele descrito.
6.Em sede de prolação de sentença, contrariando tudo aquilo anteriormente discutido na instrução do processo, delibera o magistrado pela condenação do imputado por crime diverso daquele sobre o qual foi instaurado o debate e o contraditório, podendo surpreender as partes que sequer puderam opinar sobre o novo parâmetro tipificado, acerca do novo apanhado de normas incidentes sobre o crime diverso (talvez novos prazos para progressão de regime, livramento, compatibilidade ou não com pena restritiva de direitos ou suspensão condicional da pena). É, enfim, edificada uma conjuntura inesperada ao réu, a qual poderá se mostrar mais benéfica, como também mais severa, contudo sempre imprevista.
7.Assim, finda a sucessão dos atos processuais, é o réu apenado por crime sobre o qual não teve sequer oportunidade de manifestação, tampouco a acusação se posicionara sobre concorde ou não com a imputação tachada pelo magistrado, ultimando-se em uma prestação jurisdicional às avessas, eis que inexistente a acusação ministerial, como órgão privativamente[6] detentor da aptidão para iniciar e mover a persecução, a fim de aceitar o novo tipo, como se de sua própria opinio fosse. Inexistente, ainda, a defesa, para completar a triangularidade do processo.”
Ainda que custoso de se acreditar que tal procedimento um Estado de Direito se presta a permitir, é o que reza a redação do obscuro artigo 383 do Código Processual Repressivo:
“Art. 383. O juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave.
§ 1o Se, em conseqüência de definição jurídica diversa, houver possibilidade de proposta de suspensão condicional do processo, o juiz procederá de acordo com o disposto na lei. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).
§ 2o Tratando-se de infração da competência de outro juízo, a este serão encaminhados os autos.” (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).
Com esse procedimento singular, toma o magistrado o poder de escolher tipificação legal, alheio às opiniões da acusação e ignorando as possíveis alegações da defesa quanto ao novo tipo penal, o que é demais repreensível, apesar de esmagadora doutrina clássica seguir celebrando com satisfação e legitimidade esse modo de atuação. A explicação jurídica para tal aceitação se repete indistintamente entre os autores, residindo, sempre e unicamente, no brocardo latino que aduz que, sendo o juiz conhecedor do direito – jura novitcuria –, bastar-se-ia narrar-lhe os fatos – narra mihifactumdabotibi jus[7]–, nos dizeres de Capez, em seu “Curso de Processo Penal”, o qual partilha da uníssona opinião doutrinária:
“No processo penal, o réu se defende de fatos, sendo irrelevante a classificação jurídica constante da denúncia ou queixa. Segundo o princípio da correlação, a sentença está limitada apenas à narrativa feita na peça inaugural pouco importando a tipificação legal dada pelo acusador. Desse modo, o juiz poderá dar aos eventos delituosos descritos explícita ou implicitamente na denúncia ou queixa a classificação jurídica que bem entender[…].”[8]
A sustentação do instituto da emendatio por esses anos em que continua permanecendo com vigência, não obstante a fortemente questionável indiferença para o acusado quando há “simples” alteração classificatória do delito, tem encontrado guarida e pretexto em assustador segmento doutrinário, o qual domina com vigor o pensamento jurídico nacional. E segue a doutrina de Fernando Costa Tourinho, identicamente embasada e de igual natureza insatisfatória:
“Inteira aplicação tem, aqui, o refrão narra mihifactumdabotibi jus. Certo que deve haver correlação entre a sentença e a acusação. Mas esta relação mútua há de verificar-se entre a sentença e o fato contestado, e não entre a decisão e a capitulação dada à causa petendi, que é o próprio fato.”[9]
O discurso não varia nem encontra fundamentos outros além daquele brocardo latino, tomando-o como se um indiscutível princípio, regra ou lei fosse, que se aplicasse nas relações jurídicas indistintamente, porém tal não pode se dar. É inconteste o valor destes brocardos, como orientadores que são, dando sentido ou direção a certas interpretações jurídicas, todavia nunca foram diretrizes, muito menos reconhecidos constitucionalmente, a repercutirem com obrigatoriedade nas relações e em detrimento do que foi insculpido na Carta Magna. Na perspicaz publicação “Os pouco conhecidos e lembrados brocardos jurídicos”, Freitas assinala:
“Assim são os brocardos jurídicos. Não alcançam o caráter científico dos princípios que, nas palavras de Sérgio Sérvulo da Cunha, “estabelecem uma ponte entre o jusnaturalismo e o positivismo, permitindo a superação de ambos” […]. Mas continuam influenciando a aplicação do Direito.”[10]
De que modo poderia um brocardo de aplicação inexata no processo penal se sobrepor ao conceito garantista da defesa ampla e do contraditório estampados na Texto Político, de densidade normativa definitivamente mais vinculativa? O argumento de que o juiz conhece o direito, e de que seria bastante narrar-lhe os fatos, não comunga com a realidade de que o sistema de ordenamento adotado impõe amarras constitucionais severamente compulsórias, e não se atentar para tanto significa rejeitar os pilares sobre os quais o Estado Democrático de Direito Brasileiro se ergue.
Prossegue aquela mesma doutrina a continuamente anunciar que não haveria dano ao imputado a alteração do tipo penal efetivada pelo magistrado em sentença[11], porquanto a defesa técnica a ser oposta permaneceria a mesma, independentemente da classificação conferida ao delito, do mesmo modo que o juiz poderia proceder com a reclassificação independentemente do tipo indicado pelo Ministério Público. Em rápida síntese, não existiria influência alguma sobre a tese defensiva a capitulação delituosa conferida pelo órgão julgador.
Capez cita o exemplo de uma “denúncia que narra que fulano empurrou a vítima e arrebatou-lhe a corrente do pescoço, qualificando como furto tal episódio[12]”, e que nada impediria fosse proferida sentença condenatória por roubo, sem ofensa ao contraditório, uma vez que o acusado não estaria a se defender de uma imputação por furto, mas tão somente do fato narrado. Ora, não merece prosperar a conclusão do respeitado penalista, já que notória a carga inteiramente distinta de significação trazida ao processo e conferida pela condenação por roubo, e não por furto, como antes imputado. Não estava o réu se defendendo, ao longo de toda a marcha processual, somente da subtração furtiva de um objeto? A defesa haveria por se preocupar, naturalmente, apenas quanto ao fato de que o agente subtraiu coisa móvel, desprezando qualquer ato de violência que eventualmente ao fato poderia estar associado, vez que em relação a isto não estava sendo acusado.
Não haveria sentido em se defender de um fato que não fizesse parte do tipo penal pelo qual a defesa está sendo denunciada. Se determinada circunstância não está inserida dentre os elementos do crime eleito pelo órgão ministerial, é de se esperar que o réu não cuide por infirmá-lo. Caso assim não fosse, resquício de segurança jurídica não haveria a assegurar ao réu do que especificamente precisaria se defender, já que aquela imputação dada pelo Parquet seria mera formalidade, apta a ser modificada sem o seu conhecimento. Tão aflitiva conjuntura abriria leque de possibilidades acusatórias inesperadas para a defesa, ferindo de morte o princípio do contraditório, na sua faceta do direito à ciência plena e inequívoca da acusação. Guedes traz à baila:
“Numa época como nossa, em que a sensação de impunidade estimula a presunção de que todos são culpados até que provem o contrário, quando se passa a admitir acusações deduzidas de forma genérica, onde fatos imprecisos se cruzam com provas aceitas de forma aberta e indeterminada (predispostas a provar tudo e nada), pode-se pedir qualquer coisa sobre qualquer coisa, pois, ao final, restará sempre uma certeza difusa no órgão julgador de que, por entre aquela maranha de fatos e provas e diante do apelo público contra a impunidade, alguma condenação deva ser imposta”.[13]
Trata-se da realização de um sopesar de valores deplorável a defesa do instituto em liça, quando o subterfúgio da economia processual toma o espaço reservado ao contraditório e à ampla defesa, a parecer que estes princípios fossem elementos acessórios e facultativos em um processo acusatório, utilizados ao sabor e conveniência do julgador. Tal foi o cenário representado e aclamado por Nucci, em sua passagem:
“Não vemos praticidade na conduta do magistrado que, estando com o processo em seu gabinete para sentenciar, após verificar que não é o caso de condenar o réu por estelionato, mas sim por furto com fraude, por exemplo, paralisa seu processo de fundamentação, interrompe a prolação da sentença e determina a conversão do julgamento em diligência para o fim de ouvir as partes sobre a possibilidade […] de aplicar ao fato definição jurídica diversa da constante nos autos”.[14]
Estaria isso a significar que os princípios ordenados pela Constituição Federal poderiam ser rechaçados em nome da “praticidade” para o juiz e para o processo? A conveniência ao julgador ou à celeridade processual teriam efetivamente o condão de afastar o direito a uma denunciação clara e precisa, com o seu necessário contraditório? Não se titubeia na resposta, porém persiste este falho entendimento na doutrina, consolidando-se em uma prática atentatória às garantias do acusado,
Diante do cenário descrito, adveio a denominação “sistema inquisitorial”, com a intenção de simbolizar aquele processo livre de segurança às partes, arbitrário em sua natureza e com as funções acusatórias, defensivas e jurisdicionais diligenciadas por um único órgão, a denotar o menosprezo para com a lisura e a respeitabilidade mínimas inerentes a um processo legal. Referia-se, por consectário, a um processo tendencioso, parcial e unilateral. Teoricamente, apontado sistema tem sido repelido pelo ordenamento repressivo pátrio, tendo a Reforma de 2008 prometido afastá-lo com ainda mais veemência, entretanto falhado em seu intento de forma displicente, ao insistir na validade de instituto do gênero do da emendatio.
A figura do juiz que muda a imputação apenas em fase de veredito inequivocamente furta ao acusado o seu direito a ter ciência livre e sem rebuços da acusação em virtude da qual está sendo condenado, eis que o réu permanece de mãos atadas e sem saída para atuar livremente em defesa própria, visto já estar condenado quando consegue ter conhecimento do crime em razão do qual cumprirá pena. Fases processuais determinantes são menosprezadas, e a oportunidade para expor as razões de defesa impugnando cada específico elemento do novo crime, em instância a quo, resta definitivamente embaraçada.
Os danos à qualidade e à amplitude da defesa são incalculáveis, uma vez que ter ciência do crime é ter ciência dos pontos a serem necessariamente impugnados, todavia à doutrina ainda é árduo reconhecê-lo, seja por conveniência à economia processual, seja por ater-se a um brocardo que não poderia ser empregado em confronto com uma imposição constitucional. A maneira como o procedimento da emendatio se dá, sem receio das discordantes opiniões, está em séria desarmonia com o que foi pautado como direito fundamental do indivíduo, a despeito do que defende a clássica doutrina, até os dias de hoje seguida, sem previsão para cair em desuso.
A insensatez do instituto, que não permite oitiva do réu antes de condenação por determinado crime, se faz ainda mais acentuada quando se está diante da expressividade do princípio da ampla defesa, cuja essência permite e assegura, indubitavelmente, a maior quantidade de defesas e alegações possíveis, com absolutamente todos os “meios e recursos a ela inerentes[15]”. Com esteio na doutrina de Badaró, a emendatio se mostra procedimento insidioso quando desgasta a defesa e viola o ditame da não-surpresa no processo:
“Em síntese, o juiz não pode condenar o acusado, mudando as circunstâncias instrumentais, modais, temporais ou espaciais de execução do delito, sem dar-lhe a oportunidade de se defender da prática de um delito diverso daquele imputado inicialmente, toda vez que tal mudança seja relevante em face da tese defensiva, causando surpresa ao imputado. […] Antes de sentenciar, em respeito ao contraditório, deve o juiz convidar as partes a se manifestarem sobre a possibilidade de uma nova classificação jurídica dos fatos, evitando que sejam surpreendidas com a nova capitulação, sem que tenham tido oportunidade de debatê-la. Embora o réu se defenda dos fatos imputados e não da classificação legal dos fatos, ocerto é que o tipo penal exerce influência decisiva na condução da defesa, de forma que sua alteração poderia surpreendê-la”[16].
Ora, se o réu pode alegar, por exemplo, até a inconstitucionalidade da pena, como recentemente se decidiu, como ainda defender que a tipificação dada a sua conduta não tem importância? Como acreditar que, ao aplicar o tipo, o juiz está fazendo uma adequação meramente jurídica, de modo a restar aplicado indiferenciadamente o brocardo “dá-me os fatos e dar-te-ei o direito”?
É, inclusive, reconhecida pela Suprema Corte a possibilidade de declaração da inconstitucionalidade de leis penais pelo Poder Judiciário, de acordo com o trecho de julgado paradigma:
“Mandatos constitucionais de criminalização […] impõem ao legislador […] o dever de observância do princípio da proporcionalidade como proibição de excesso e como proibição de proteção insuficiente. A ideia é a de que a intervenção estatal por meio do Direito Penal, como ultimaratio, deve ser sempre guiada pelo princípio da proporcionalidade […] Abre-se, com isso, a possibilidade do controle da constitucionalidade da atividade legislativa em matéria penal.”[17]
De fato, o Superior Tribunal de Justiça, consoante o que foi acima aludido, deu azo, em inusitado e recente julgamento, constante do seu informativo de número 559 (período de 6 a 16 de abril de 2015), à declaração de inconstitucionalidade de preceitos secundários, dando azo a importantes precedentes e inaugurando um entendimento completamente novo.
No caso em tela, declarou eivada de inconstitucionalidade insanável a pena do artigo 273, parágrafo 1º-B, inciso V, do Código Penal (CP), tomando como fundamento os reflexos de proporcionalidade emanados da Carta Magna:
“Sendo assim, em atenção ao princípio constitucional da proporcionalidade e razoabilidade das leis restritivas de direitos (CF, art. 5º, LIV), é imprescindível a atuação do Judiciário para corrigir o exagero e ajustar a pena de 'reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa' abstratamente cominada à conduta inscrita no art. 273, § 1º-B, V, do CP, referente ao crime de ter em depósito, para venda, produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais de procedência ignorada. Isso porque, se esse delito for comparado, por exemplo, com o crime de tráfico ilícito de drogas (notoriamente mais grave e cujo bem jurídico também é a saúde pública), percebe-se a total falta de razoabilidade do preceito secundário do art. 273, § 1º-B, do CP, sobretudo após a edição da Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas), que, apesar de ter aumentado a pena mínima de 3 para 5 anos, introduziu a possibilidade de redução da reprimenda, quando aplicável o § 4º do art. 33, de 1/6 a 2/3.”[18]
Com essas razões, o Colendo Tribunal afastou a pena do crime de adulterar produtos para fins terapêuticos ou medicinais, dado o caráter excessivamente drástico de seu quantum, longe de estar condizente com a lesividade e gravidade da conduta perpetrada. A pena tomada como parâmetro consistiu na cominada ao crime de tráfico de entorpecentes, a qual tutela, semelhantemente, o mesmo bem jurídico, por isso ser mister a adequação lógica e proporcional. Os impactos da distinta decisão, no entanto, não se restringiram ao âmbito da Corte Cidadã, pois que já vem tendo eco também em Tribunais inferiores[19].
Absolutamente indispensável lembrar que tal decisão apenas foi exarada em resposta a manifestação da defesa, que pedia intervenção sobre aquela absurda pena, com os seguintes dizeres, presentes no relatório do acórdão supracitado:
“Na apelação, a defesa arguiu, entre outras matérias, a desproporcionalidade entre a pena cominada para o delito previsto no mencionado dispositivo legal e o bem jurídico ali tutelado, pugnando pela declaração incidental de inconstitucionalidade da norma ou, ainda, pela aplicação, por analogia in bonam partem, da pena cominada para o tráfico de drogas”.[20]
Face esses pedidos arrolados em apelação, os quais foram rejeitados pelo Tribunal local, e também presentes no habeas corpus impetrado no Tribunal Superior, esta Corte Cidadã concedeu os pleitos da defesa, realmente reconhecendo a inconstitucionalidade da pena cominada e aplicando a prevista para o delito de tráfico de drogas, nos exatos termos dos pedidos defensivos:
“Para mim, devemos ficar adstritos ao preceito secundário da norma e, considerando-o inconstitucional, no caso concreto será aplicada a pena prevista no art. 33 da Lei de Drogas, com possibilidade até de incidência do respectivo § 4º.”[21]
Com essa permissão jurisdicional já concedida pelo Superior Tribunal de Justiça em precedentes, bem assim por outros Tribunais inferiores, fica demais evidenciado que o conhecimento, pelo réu, do tipo penal pelo qual está sendo posto a julgamento integra o seu direito de ampla defesa, de vez que poderá impugnar quaisquer elementos que entender devidos em oposição ao crime atribuído em denúncia, à semelhança da inconstitucionalidade do crime ou da pena, conforme evidenciado, de forma que cerceá-lo dessa prerrogativa – que nada mais é do que a obediência ao devido processo legal – limita a gama de possibilidades de alegações a serem lançadas.
Se é limitadora do direito de defesa, como persistir na fraca declaração de constitucionalidade e legitimidade da norma do artigo 383 do Código de Processo Penal? Se a amplitude de defesa está prejudicada, em qualquer que seja o seu grau, não consegue prosperar, em um Estado Democrático, e ante os ditames fundamentais impostos pela Constituição, o pensamento de que a mudança de imputação ocorrida em sentença, efetuada pelo próprio magistrado, é apenas aplicação jurídica, e não fática ou meritória.
Conforme se demonstrou, o tipo penal, em jurisprudência cada vez mais inovadora, pode ser impugnado dos mais diversificados feitios, e não somente em fatos a defesa pode se basear, mas também em razões jurídicas.
Significa fechar os olhos à realidade admitir que defesas e respostas à acusação emanadas em processos criminais se refiram somente a fatos. Talvez a clássica doutrina não esteja também a recordar da atipicidade criminal tão conclamada nas peças processuais provindas especialmente da Defensoria Pública. Sabe-se que a tese mais propugnada – e talvez a mais popular – por este órgão em procedimentos criminais é a não adequação do fato ao tipo penal indicado pelo Ministério Público, a culminar em uma possível declaração de atipicidade, como não raramente ocorre.
Uma vez atípico o crime, a conduta não irá se amoldar a qualquer fato penalmente relevante. Mas estaria disponível à defesa alegar atipicidade de um crime sobre o qual não pode opinar ou prever? Com o uso da emendatio, são feridos o contraditório e a versão sopesada das argumentações de cada uma das partes.
Não se está aqui a defender o excêntrico tratamento dado pelo Superior Tribunal de Justiça ao alterar penas, tampouco a permuta de penas entre tal ou qual crime. Caracterizou-se, entretanto, uma tolerante jurisprudência, aberta a receber essa natureza de pedidos por parte dos réus.
Uma vez a jurisprudência haja assentido com a postulação de análise de penas e a aferição de sua razoabilidade, assim como com a apreciação de validade de normas penais em geral, concedeu-se à parte ré outra razão para necessitar ter conhecimento do crime por conta do qual poderá eventualmente vir a ser condenado. Furtar a palavra ao acusado frente o novo crime cogitado pelo juiz é fugir da retidão processual, é retroceder a tempos inquisitórios.
Com a permanência de características legislativas como as perpetradas pelo instituto da emendatio, é utópico ambicionar por um “processo de garantias”, voltado para a segurança jurídica entre as partes envolvidas.
Uma vertente da importância do tipo e da subsunção legal para o acusado é a vasta possibilidade de declaração de atipicidade do fato, tese fundamental à Defensoria Pública, como antes dito, conforme largamente difundido na jurisprudência dos Tribunais:
“PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. MEDIDA PROTETIVA. DESOBEDIÊNCIA. ATIPICIDADE. APLICAÇÃO DA SÚMULA 83 DO STJ. FUNDAMENTO INATACADO. SÚMULA 182 DO STJ. […] 2. Ainda que superado o óbice, a pretensão ministerial esbarra no entendimento pacificado deste Tribunal Superior de que o descumprimento de medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha não configura o crime de desobediência. 3. Agravo regimental não conhecido.”[22]
Se surpreendida por condenação de incurso em crime do qual não teve espaço para rebater, a defesa resta indefinidamente afetada e fragilizada. A postulação pela atipicidade, que pode inclusive ser a única tese a favor da defesa, acabaria por se retratar inútil.
O pedido de declaração de atipicidade do novo crime apontado, também, acaba por ser impossível de análise em primeiro grau, mas apenas em sede de apelação ou habeas corpus. Em apontadas circunstâncias, a instância encontra-se irremediavelmente diminuída e suprimida, configurando-se uma indesejável supressão de instância, odiada pelo ordenamento pátrio.
E quando a mudança do tipo penal ocorre em segundo grau de jurisdição? Quais os meios alternativos para que o réu se defenda dessa nova imputação dada pelo magistrado? Restam, de fato, escassos meios de defesa. No máximo, poderá ele contar com algum dos improváveis e dificultosos recursos ao STF/STJ ou com um habeas corpus. Nota-se o encolhimento de instâncias para apreciação de um fato, qual seja a nova definição típica conferida pelo julgador, o que nunca seria admissível de ocorrer, vez que é das garantias constitucionais implícitas o acesso à justiça nos graus de jurisdição que lhe são próprios.
O exame de dado fato juridicamente relevante deveria ocorrer precípua e preferencialmente em primeiro grau, quando o juiz está mais próximo das partes, presidindo a instrução e tornando-se sensível aos fatos e razões postas pelas partes.
Retirar do réu a possibilidade de obter palavra frente ao juiz de primeiro grau, acaso este aplique a emendatio, é aplacar seu âmbito de defesa; é apequenar suas chances de ter seu pedido atendido. Desenha-se uma situação extremamente deletéria e teratológica imaginar a fuga de instância perpetrada por um instituto infraconstitucional, o qual entrega as alegações quanto ao novo tipo penal somente ao órgão jurisdicional ad quem.
Nessa toada, não se aceita, no momento atual, um procedimento como o daemendatiolibelli, o qual não se ajusta a um processo garantista, em conformidade e formato coerentes com os ordenados constitucionalmente, protetor dos direitos e garantias fundamentais, no afã de se ver construir um devido processo.
Um tal procedimento recomenda a instauração do contraditório antes
de que seja alterado o crime originariamente imputado, de forma que, na atual época, em que vige um Estado de Direito que busca a conquista, o mais próximo possível, de um devido processo constitucional, legítimo em todos os seus termos,
a doutrina clássica não tem mais como ser erguida sem manchar o direito à
ampla defesa.
De outra senda, em oposição à emendatio, o instituto da mutatiolibelli sofreu valorosas transformações com a reforma de 2008. Quando antes apenas era necessário aditar a denúncia e estabelecer o contraditório na hipótese em que o novo crime albergasse pena mais grave, agora a reconstrução da instrução, com a oitiva da defesa, se faz uma obrigatoriedade sempre que a mudança de imputação decorra de um fato inédito, descoberto no desenrolar do processo, cuja revelação ensejaria a tal alteração típica.
É o que estatui a nova redação do artigo 384 do Código Processual Penal:
“Art. 384. Encerrada a instrução probatória, se entender cabível nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação, o Ministério Público deverá aditar a denúncia ou queixa, no prazo de 5 (cinco) dias, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, reduzindo-se a termo o aditamento, quando feito oralmente.” (Redação dada pela Lei nº 11.719, de 2008).
A mudança produzida pela reforma consertou aquilo que não tinha razão para persistir no sistema, pois pergunta-se: com que critério legal o legislador julgava que, por haver a condenação por um crime menor, o contraditório e o devido processo legal deveriam ser dispensados?
Tratou-se de reparar, assim, um erro antigo existente na legislação,
que se avizinhava do que se entende por processo de segunda ou
terceira velocidades – classificação dada por Silva Sánchez[23] –, desprovido de
segurança jurídica e com uma flexibilização ruinosa de garantias penais e processuais penais[24].
Desse modo, constatou o legislador a debilidade com que se impunha à defesa, que era aturdida, ao fim do processo, com a condenação por crime outro, brindado com novos fatos, que poderiam nem ter sido debatidos em sede de instrução, mas que surgiam na sentença para fundamentar o laudo condenatório. Em brilhante artigo, Fudoli ressalta com clareza que:
“Havendo aditamento, o juiz fica, na sentença, adstrito aos seus termos (art. 384, § 4º, CPP), ou seja, não mais poderá condenar o réu pelo crime inicialmente narrado, medida esta que prestigia o sistema acusatório (o Juiz não pode, ainda que de forma reflexa, ter iniciativa na persecução criminal.”[25]
É assim que foi feliz o legislador ao prestigiar o sistema formalmente adotado pelo Código Processual Penal, agraciando as garantias fundamentais do réu e da acusação, em uma quase que paridade de armas. De igual modo não se deu com o instituto da emendatiolibelli, dantes criticado, que erigiu à legalidade e à aparente normalidade o dano ao contraditório e à ampla defesa.
Pelo exposto, digna de aplausos a alteração no instituto da mutatiolibelli, a qual tratou de respeitar a defesa do réu quando se está diante de nova acusação, novos fatos, e, portanto, novas configurações típicas. Nesse ponto, acertou o legislador ao reconhecer que, diante de novos fatos, sejam eles mais graves ou mais tênues, há que se observar o devido processo, e, com ele, o contraditório.
Quanto à emendatio, o mesmo legislador arquitetou um contrassenso, pois que é cada tipo penal senão fatos distintos descritos? Se existem dois tipos diferentes, quer isso dizer que os fatos típicos constantes ao seu preceito primário são também distintos. Cada tipo alude a fatos distintos. Assim, se há fatos distintos, por que razão idônea não conferir o juiz a oportunidade de defesa ao denunciado?
2. Limiar jurídico entre fato novo x fato diverso
No percurso de um processo penal, infinitas possibilidades podem advir de uma audiência de instrução. Fatos, antes desconhecidos, podem vir à tona, com a real possibilidade de mudança radical daquela imputação originária, rotulada pelo órgão de acusação.
Muito se confunde, durante a marcha processual, quanto à classificação a ser dada para tais alterações fáticas. Em se tratando de fato novo ou de fato diverso, as consequências serão drasticamente diferentes, o que atrapalha a desempenho das partes e dos operadores atuantes no processo.
O instituto da mutatiolibelli, que impõe aditamento da denúncia ou acusação e a complementação do processo com uma nova audiência de instrução, com pronunciamento da defesa quanto à nova situação fática, somente se dará quando da ocorrência de um fato diverso daquele contido na denúncia ou queixa originária, conforme explica o artigo 384, do Código de Processo Penal, antes mencionado:
“Art. 384. Encerrada a instrução probatória, se entender cabível nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação, o Ministério Público deverá aditar a denúncia ou queixa […]”.
Destarte, o procedimento da mutatio apenas será aplicado quando os elementos do núcleo essencial do tipo derivado (nova classificação) correspondem parcialmente aos do fato da imputação primitiva, mas com o acréscimo de algum elemento que o modifique, por isso a menção a “elemento ou circunstância” não contidos na acusação, e não “elementos ou circunstâncias novos”.
Se assim fosse, com o aditamento da denúncia pela presença de “elementos ou circunstâncias novos”, o tipo originário seria modificado por outro que não guardaria em sua descrição nenhum dos elementos do primeiro.
Isso sinaliza que a mutatiolibelliapenas poderá ter lugar quando os novos elementos ou circunstâncias surgidos sejam apenas complementos do tipo originário.
Em apertada síntese, o tipo primitivo tem de estar contido no tipo secundário, de forma que este último guarde aqueles elementos iniciais e mais outro ou outros.
Assim, é de se constatar que a mutatiolibelli está para o “fato diverso”, assim como a absolvição do réu está para o “fato novo”. Explica-se: o fato se diz novo quando cada especial elemento de seu núcleo essencial se transmuda em fato criminoso completamente distinto daquele que estava desenhado na denúncia inicial.
Se os fatos descobertos aclararam que se trata de crime que nada tem de elementos do crime inicial, é mister ser conduzida a absolvição, com o posterior oferecimento de nova denúncia, condizente com o novo crime.
Daí que não se poderia aplicar, por exemplo, a emendatiolibelli ao fim do processo, quando presentes elementos que nada têm de similares com os presentes na denúncia ou queixa inicial. Em havendo fatos novos, que alteram sobremaneira a tipificação, não é dado ao magistrado fazê-lo em sentença, mas apenas absolver o acusado pelo crime imputado, porquanto este nunca existiu.
Pazzanese[26] oferece exemplo em que se toma como base uma denúncia de furto, a qual conduz, no decorrer do processo, a novas revelações, que dão ensejo à caracterização de uma receptação. Nesse caso, o julgador haverá de absolver o acusado, para só então receber uma denúncia congruente com o crime revelado, qual seja a receptação.
A mutatiolibelli não é aplicável a tal espécie de caso, já que somente admite como requisito o “fato diverso”.
A nova denúncia, nos termos da apresentação de um fato novo, poderá fazer uso, a título de prova emprestada, das provas colhidas no processo anterior, porém nunca ser objeto de uma mutatio.
O órgão acusatório, portanto, não poderá fazer uso da mutatiolibelli a fim de alterar a tipificação para outra inteiramente nova, em nome de uma economia processual que afetaria sobremaneira as feições e liames do cenário inicial do processo, danificando as expectativas e os preparatórios das partes quando da propositura da ação. A mutatio, por conseguinte, não foi criada para servir como “correção” de uma denúncia equivocada, mas apenas para acrescentar elementos antes não conhecidos quando do oferecimento da peça acusatória. A função do instituto, dessarte, não pode ser subvertida.
3. (Im)Possibilidade de alteração da acusação em ações penais privadas
As ações movidas por meio de queixa-crime são espécies singulares quando se está a tratar das eventuais mudanças de imputação durante o desenvolvimento processual, pois que regidas por princípios distintos daqueles aplicáveis às ações penais públicas, quais sejam a disponibilidade, a conveniência e a oportunidade.
O instituto da emendatiolibelli, em ações exclusivamente privadas, é facilmente identificável na redação do artigo 383, do Código de Processo Penal, cujo teor indica expressamente a queixa-crime como objeto de mudança da capitulação legal empreendida pelo magistrado.
Nessa esteira, o diploma processual não abriu oportunidade para incerteza quanto ao (duvidoso) poder jurisdicional para modificar a classificação jurídica de crime descrito em queixa, contanto que não se alterem os relatos dos fatos. Nesse específico ponto, aplicam-se as mesmas censuras já articuladas anteriormente à falta de qualquer sinal de constitucionalidade no procedimento da emendatio[27].
O que se tornou nebuloso na dicção do artigo que versa sobre a mutatiolibellifoi a ausência de qualquer alusão à queixa-crime. As linhas do artigo 384 são claras ao citar somente o órgão do Parquet como legitimado para conduzir o aditamento da peça acusatória, limitado às peças de denúncia e de queixa subsidiária da pública.
Nota-se um inteiro vácuo legal no que diz com a possibilidade de mutatio nas ações privadas exclusivamente.
A exclusão do querelante como legitimado a aditar a queixa-crime na conformidade do artigo 384 se dá em razão de que as ações penais privadas são movidas pelo princípio da disponibilidade, cabendo ao querelante expor ao juiz os fatos que deseja judicializar, estando ao seu alvedrio a exposição em juízo ou não dos fatos com ele ocorridos, objetos de infração penal.
Segundo esse pensamento do legislador, elucidado pela doutrina, se o querelante não expôs a completude dos fatos na inicial, é porque não achou oportuno, por isso não caberia ao juiz apontar a propriedade de um possível aditamento. No entanto, a majoritária doutrina condena essa omissão legal, julgando-a afrontosa ao princípio da analogia e da isonomia, inerentes ao Direito Processual Penal.
Ora, e se no decorrer da instrução for descoberto um fato diverso superveniente que exija aditamento da inicial? Não teria o querelante poderes para aditar sua própria peça? Acompanha-se a lição de Tourinho Filho quando sustenta que:
“Possa também o querelante proceder ao aditamento. Há duas situações: a) se, ao tempo da queixa, já havia prova sobre determinada circunstância elementar capaz de alterar a qualificação jurídico-penal do fato, objeto do processo, e o querelante não se deu conta, o aditamento seria até impossível por manifesta decadência; b) se a prova se deu posteriormente, o aditamento pode ser feito por aplicação analógica […], não havendo violação ao princípio da disponibilidade que rege a ação privada, mesmo porque ninguém está fazendo o aditamento pelo querelante e tampouco obrigando-o a fazê-lo.”[28]
No entanto, ao contrário do que afirmado pelo nobre mestre, acaso a prova seja preexistente ao oferecimento da queixa, mas a decadência ainda não haja escoado, acredita-se que seria viável o aditamento da queixa-crime, independentemente de previsão expressa no diploma processual, eis que se trata de insurgência de ninguém menos que o próprio querelante na indicação de outros fatos que se aliam ao seu intento condenatório.
Dessa forma, filia-se ao entendimento de que é possível aditamento de queixa-crime no curso do processo, contanto que o magistrado não tenha participação como propulsor deste aditamento; que a decadência não tenha chegado em seu termo; e que o fato seja superveniente, ou antigo, mas desde que observada a decadência.
É essa, portanto, a conclusão que mais respeita a analogia e isonomia processuais, decorrentes diretamente do próprio direito de ação de que o querelante é detentor, e, por isso, tal prerrogativa integra seu interesse processual.
4. A inconstitucionalidade da EmendatioLibelli
A principal justificativa daqueles que persistem na defesa de que a emendatiolibelli é autêntica e válida é a de que o magistrado, ao aplicá-la, estaria fazendo uso tão-somente daquela sua típica função jurisdicional, de receber os fatos, tais quais foram discutidos em processo, e de dizer o direito, como conhecedor dele – narra mihifactumdabotibi jus.
De acordo com esse segmento da doutrina, estaria o juiz apenas aplicando a norma jurídica aos fatos apreciados. Seria uma mera adequação legal, como se a subsunção realizada fizesse parte do seu ofício jurisdicional de deslindar o caso. Ocorre que, em processo civil, tal acepção pode até se adequar como uma luva, já que não há tipos taxativos nos quais os fatos precisam estar perfeitamente em encaixe. Apontados tipos, presentes no processo penal em obediência integral à severa taxatividade penal, inexistem no processo civil.
Em processo penal, o cenário é inteiramente diverso. Os contornos de contraditório e de ampla defesa processuais penais seguem totalmente apartados dos presentes ao processo civil. As mudanças de tese ao longo do processo penal podem ser feitas a qualquer momento, o que seria impossível em um processo civil, pois o correr deste tipo de processo deve se orientar de acordo com os bens a que visa tutelar. É vistosa a índole completamente distinta do bem tutelado pelo processo penal frente ao tutelado pelo processo civil.
Nesse jaez, tais modelos e formatos processuais não podem se misturar, a parecer que o tratamento a bens da vida inconfundíveis entre si pudesse ser semelhante. E não o é.
Se o julgador aplica um tipo distinto do presente na acusação inicial, sem dar chances para a defesa se posicionar, o contraditório estará aniquilado, e as possíveis alegações de que os fatos não se adequam ao que está descrito no novo tipo restarão sepultadas. As constitucionais premissas do contraditório e da ampla defesa, tomadas como mandamentos que integram o conjunto dos direitos fundamentais, deveriam ser refletidas como encargo do Estado, na sua função de protetor e garantidor maior de tais direitos. A dimensão objetiva dos direitos fundamentais, consoante lições de Andrade, constitui “valores constitucionais que aos poderes públicos cabe respeitar, mas igualmente fazer respeitar como interesses públicos fundamentais”[29]. Porém tal objetivo não se realiza com a permanência no ordenamento de normas que restringem direitos fundamentais com um arranjo inteiramente inadmissível frente o Texto Político.
Ora, o Direito Penal se ergue pelo princípio, dos mais elementares, da taxatividade. Só é crime o fato que estiver detida e detalhadamente, em cada uma das suas circunstâncias, descrito naquele tipo penal. Uma vez alterando a capitulação legal, estão a se abrir novas possibilidades para que o réu possa arguir que o fato não se adequa inteiramente naquele novo tipo.
É notável que o injusto penal não é norma jurídica pura; ele é norma jurídica aliada a fato. Por isso é que se defende aqui que o tipo penal não é simples norma, mas uma espécie de “norma-fato”, que só existirá se o fato lhe for completamente amoldado. Tipo penal é essa aglutinação, como o fato gerador o é para o direito tributário: a subsunção perfeita do fato à norma. E como subsunção, não se trata de norma puramente jurídica, mas também fática.
O ato criminoso não é criminoso sozinho. Aliado à norma, no entanto, se torna fato típico. Por isso defende-se que não se aplica o brocardo “dá-me os fatos que te direi o direito”, pois o tipo não é só direito, ele também é fato. E se existem dois crimes diferentes, é porque o fato é diferente. Sendo este diferente, o réu, sob os efeitos da emendatio, não pode se defender destes novos fatos. Condenar o denunciado por fato sobre o qual ele não foi ouvido, é, no fim das contas, ferir o processo legal e penal.
Desse modo, mesmo havendo emendatiolibelli, deve sempre ser concedida vista à defesa para manifestar-se sobre a mudança do tipo. É o que também vem sendo utilizado pelo STF em algumas decisões:
“[…] DELIBERAÇÃO DO PLENÁRIO PELA REALIZAÇÃO DE INTERROGATÓRIO DO RÉU E PELA OPORTUNIDADE DE DEFESA DIANTE DA EMENDATIO LIBELI. […] 2. Emendatiolibeli apresentada pelo Ministério Público Federal em alegações finais. Manifestação da defesa. 3. Questão de ordem resolvida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no sentido da realização da audiência de interrogatório do denunciado e da indispensabilidade da intimação da defesa para se manifestar a respeito da emendatiolibeli apresentada pelo Parquet em alegações finais.”[30]
Julgou ainda o STF, na mesma Ação Penal nº. 545, que o réu deveria ser novamente interrogado sobre o cometimento de suposto crime eleitoral, momento em que o Ministério Público Federal alterou a classificação do tipo originariamente imputada ao deputado réu. No entendimento do relator o Ministro Luiz Fux:
“O julgamento do processo depende desse interrogatório e também de que a defesa do parlamentar se pronuncie sobre proposta do Ministério Público Federal (MPF) no sentido de alterar o tipo penal originalmente imputado ao deputado. […] Segundo ele, sem a realização do interrogatório e sem a possibilidade de a defesa falar sobre essa emendatiolibelli (emenda na acusação) que causa prejuízo ao réu não será possível julgar a ação penal. 'Tenho a impressão de que é absolutamente inviável esse julgamento antes dessas providências prévias', concluiu.”[31]
Por todo o aduzido, não se concebe a permanência, no ordenamento jurídico brasileiro, de uma norma que suga a defesa do réu, que o condena por um fato pelo qual nem ele nem a acusação discutiram como elemento de crime; que sequer ensejou a inquietude da acusação. Não padeceria a norma de uma inconstitucionalidade chapada?
Os fatos presentes no novo tipo dado pelo juiz não foram debatidos no processo como possíveis elementos de injusto penal. Quando o juiz muda a imputação unilateralmente, resta uma condenação por crime que nem sequer o Ministério Público se ocupou de acusar. Mas quem, afinal, estaria acusando por este novo crime? Seria o magistrado? Estar-se-ia diante de um vestígio dissimulado do sistema inquisitivo?
Assim exposto, acredita-se que tratar de emendatio significa debilitar o postulado da ampla defesa e abandonar a observância do contraditório, de forma a se edificar um processo indevido, não consentâneo com o modelo constitucional, supressor de fases das quais não se poderia arredar e detentor de sinais inquisitivos.
Conclusão
Perante o que foi debatido e pesquisado no trabalho que ora se apresentou, concluiu-se que:
1.Os brocardos jurídicos servem para a interpretação e orientação da legislação e de casos concretos, mas sua aplicação não pode se sobrepor a mandamentos constitucionais.
2.A alegação de inconstitucionalidade de tipos penais, válida e amplamente aceita pelos Tribunais, está intrinsecamente conectada com o crime em relação ao qual o réu está sendo acusado.
3.É possível o argumento da inconstitucionalidade da pena, tendo à vista razões de proporcionalidade e razoabilidade insculpidas na Constituição Federal, de modo que a possibilidade de tal tese defensiva se encontra também aliada ao tipo penal imputado, dele sendo dependente.
4.A apreciação e a instrução jurisdicionais realizadas se dão de forma intensamente mais ampla e profunda em primeiro grau de jurisdição, sendo os Tribunais de segunda instância órgãos de jurisdição mais restrita no que diz com a análise de novos fatos e provas, razão pela qual eventuais alegações possíveis de serem opostas somente em segundo grau, como consequência da emendatiolibelli, representam supressão de instância.
5.A reforma legislativa efetuada sobre a mutatiolibellitratou de homenagear os postulados do contraditório e da ampla defesa, pois que se tornava inconstitucional abandoná-los baseando-se na mera diminuição de pena.
6.Com advento da reforma, a mutatiolibelli tornou-se constitucional.
7.A mutatiolibelli está para o “fato diverso”, assim como a absolvição está para o “fato novo”.
8.As provas utilizadas em processo no qual se encontre um fato novo poderão ser utilizadas, com o título de provas emprestadas, para instruir a denúncia pelo novo crime revelado.
9.É possível o aditamento de queixa-crime no curso do processo, contanto que:
9.1.O magistrado não tenha participação como propulsor do aditamento.
9.2.A decadência não se tenha escoado.
9.3.O fato seja superveniente, ou antigo, mas sempre observada a decadência.
10.As mudanças de tese em processo penal podem ocorrer a todo momento, diferentemente do que sucede no processo civil.
11.No processo penal, há a singular exigência, em observância ao princípio da taxatividade estrita, de que a conduta praticada se adeque com perfeição ao tipo abstratamente previsto. Por tal fato, a acusação está relacionada a ele, fato que não se percebe no processo civil, onde o brocardo narra mihifactumdabotibi jus encontra realmente aplicação, em razão da não necessidade de precisa subsunção.
12.Com a alteração da capitulação legal, dá-se azo a novas possibilidades para que o réu possa arguir que o fato não se adequa inteiramente àquele novo tipo.
13.O tipo penal não é simples norma, mas, antes de tudo, uma espécie de “norma-fato”, que só existirá se o fato lhe for completamente amoldado.
14.Ao alterar a imputação unilateralmente, o juiz promove uma condenação por crime acerca do qual o Ministério Publico não versou a acusação. O órgão julgador substitui o órgão acusador.
15.A emendatiolibelli diminui a ampla defesa e representa um vestígio dissimulado do sistema inquisitivo.
16.A emendatiolibelli é inconstitucional.
[10] FREITAS, Vladimir Passos de. Os pouco conhecidos e lembrados brocardos jurídicos. Revista Consultor Jurídico, 24 mar. 2013. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-mar-24/segunda-leitura-conhecidos-lembrados-brocardos-juridicos?imprimir=1>. Acesso em: 28 set. 2015.
.[13] GUEDES, Néviton. O direito de ser bem acusado, ou nem tudo pode numa acusação. Revista Consultor Jurídico, 8 set. 2014. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-set-08/constituicao-poder-direito-bem-acusado-ou-nem-tudo-numa-acusacao#author>. Acesso em: 29 set. 2015.
Informações Sobre o Autor
Indirana Cabral Alves
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Advogada. Formanda do Curso de Delegado da Polícia Civil do Estado do Ceará