Resumo: O homem tem sua atuação motivada pelo interesse próprio, o qual, corriqueiramente, se materializada na busca pela felicidade, competindo à sociedade, enquanto construção social destinada a proteger cada indivíduo, viabilizando a todos viver juntos, de forma benéfica. Impostergável se faz o reconhecimento do afeto e da busca pela felicidade, enquanto valores impregnados de juridicidade, porquanto abarcam a todos os indivíduos, suplantando qualquer distinção, promovendo a potencialização do superprincípio em destaque. Ademais, em se tratando de temas afetos ao Direito de Família, o relevo deve ser substancial, precipuamente em decorrência da estrutura das relações mantidas entre os atores processuais, já que extrapola a rigidez jurídica dos institutos consagrados no Ordenamento Pátrio, passando a se assentar em valores de índole sentimental, os quais, conquanto muitas vezes sejam renegados a segundo plano pela Ciência Jurídica, clamam máxima proteção, em razão das peculiaridades existentes. Destarte, cuida reconhecer que o patrimônio, in casu, não é material, mas sim de ordem sentimental, o que, por si só, inviabiliza qualquer quantificação, sob pena de coisificação de seu detentor e aviltamento à própria dignidade da pessoa humana.
Palavras-chaves: Família Poliafetiva. Busca pela Felicidade. Vetor de Interpretação. Dignidade da Pessoa Humana.
Sumário: 1 Ponderações Introdutórias: Breves Comentários à Evolução da Acepção de Dignidade da Pessoa Humana; 2 A Valoração dos Princípios: A Influência do Pós-Positivismo no Ordenamento Brasileiro; 3 Do Reconhecimento ao Direito Constitucional de Constituir Família: Os Influxos da Dignidade da Pessoa Humana na Pluralidade Familiar; 4 Famílias Poliafetivas: A Concreção do Direito Constitucional de Liberdade de Constituição Familiar e o Superprincípio da Dignidade da Pessoa Humana
1 Ponderações Introdutórias: Breves Comentários à Evolução da Acepção de Dignidade da Pessoa Humana
Em uma primeira plana, cuida assinalar que a acepção originária de dignidade rememora a priscas eras, tendo seu sentido evoluído, de maneira íntima, com o progresso do ser humano. Em sua gênese, as bases conceituais da dignidade se encontravam sustentadas na reflexão de cunho filosófico, proveniente de um ideal estoico e cristão. Por oportuno, prima evidenciar que o pensamento estoico, ao edificar reflexões no que tange ao tema, propunha que “a dignidade seria uma qualidade que, por ser inerente ao ser humano o distinguiria dos demais. Com o advento do Cristianismo, a ideia grande reforço, pois, a par de ser característica inerente apenas ao ser humano”[1]. No mais, ainda nesta trilha de raciocínio, não se pode olvidar que o pensamento cristão, em altos alaridos, propugnava que o ser humano fora criado à imagem e semelhança de Deus.
Ora, salta aos olhos que aviltar a dignidade da criatura, em último estágio, consubstanciaria violação à própria vontade do Criador. Com efeito, a mensagem, inicialmente, anunciada pelo pensamento cristão sofreu, de maneira paulatina e tímida, um sucedâneo de deturpações que minaram o alcance de suas balizas, maiormente a partir da forte influência engranzada pelos interesses políticos. Desta sorte, uma gama de violações e abusos passou a encontrar respaldo e, até mesmo, argumentos justificadores, tendo como escora rotunda o pensamento cristão, subvertido e maculado pelas ingerências da ganância dos detentores do poder.
Nesse prisma, impende realçar que o significado da dignidade da pessoa foi, de modo progressivo, objeto de construção doutrinária, sendo imprescindível sublinhar as ponderações, durante a Idade Média, de São Tomás de Aquino que, na festejada obra Summa Theologica, arquitetou significativa contribuição, precipuamente quando coloca em evidência que “a dignidade da pessoa humana encontra fundamento na circunstância de que o ser humano fora criado à imagem e semelhança de Deus”[2], ajustado com a capacidade intrínseca do indivíduo de se autodeterminar. Resta evidenciado, a partir do cotejo das informações lançadas alhures, que o ser humano é livre, orientando-se, negrite-se com grossos traços, segundo a sua própria vontade.
Ainda no que concerne ao desenvolvimento dos axiomas edificadores da acepção da dignidade da pessoa humana, durante o transcurso dos séculos XVII e XVIII, cuida enfocar a atuação de dois pensadores, quais sejam: Samuel Pufendorf e Immanuel Kant. Aduzia Samuel Pufendorf que incumbia a todos, abarcando o monarca, o respeito da dignidade da pessoa humana, afigurando-se como o direito de se orientar, atentando-se, notadamente, para sua razão e agir em consonância com o seu entendimento e opção. Immanuel Kant, por sua vez, “talvez aquele que mais influencia até os dias atuais nos delineamentos do conceito, propôs o seu imperativo categórico, segundo o qual o homem é um fim em si mesmo”[3]. Destarte, não pode o homem nunca ser coisificado ou mesmo empregado como instrumento para alcançar objetivos.
Afora isso, destacar se faz necessário que as coisas são dotadas de preço, já que podem ser trocadas por algo que as equivale; as pessoas, doutro modo, são dotadas de dignidade, sendo defeso a entabulação de uma troca que objetive a troca por algo similar ou mesmo que se aproxime. Oportunamente, Martins[4] leciona, em conformidade com os ideários irradiados pelo pensamento kantiano, que todas as ações norteadas em favor da redução do ser humano a um mero objeto, como instrumento a fomentar a satisfação de outras vontades, são defesas, eis que afronta, de maneira robusta, a dignidade da pessoa humana. No intento de fortalecer as ponderações estruturadas até aqui, há que se trazer o magistério de Schiavi:
“No âmbito do pensamento jusnaturalista dos séculos XVII e XVIII, a concepção da dignidade da pessoa humana, assim como a idéia do direito natural em si, passou por um processo de racionalização e laicização, mantendo-se, todavia, a noção fundamental da igualdade de todos os homens em dignidade e liberdade. A dignidade da pessoa humana era considerada como a liberdade do ser humano de optar de acordo com a sua razão e agir conforme o seu entendimento e opção, bem como – de modo particularmente significativo – o de Immanuel Kant, cuja concepção de dignidade parte da autonomia ética do ser humano, considerando esta (a autonomia) como fundamento da dignidade do homem, além de sustentar o ser humano (o indivíduo) não pode ser tratado – nem por ele próprio – como objeto. É com Kant que, de certo modo, se completa o processo de secularização da dignidade, que, de vez por todas, abandonou suas vestes sacrais. Sustenta Kant que o Homem e, duma maneira geral, todo ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio para uso arbitrário desta ou daquela vontade”[5].
Não se pode perder de vista que, em decorrência da sorte de horrores perpetrados durante a Segunda Grande Guerra Mundial, os ideários kantianos foram rotundamente rememorados, passando a serem detentores de vultosos contornos, vez que, de maneira realista, foi possível observar as consequências abjetas provenientes da utilização do ser humano como instrumento de realização de interesses. Além disso, há que se salientar que “os direitos humanos foram extremamente suprimidos pelo fanatismo nazista e a dignidade da pessoa humana foi reduzida a um mero e utópico conceito, sem qualquer atuação, tendo como limite imposto, a vontade de um governante”[6]. A fim de repelir as ações externadas durante o desenrolar da Segunda Grande Guerra Mundial, o baldrame da dignidade da pessoa humana foi maciçamente hasteado, passando a tremular como flâmula orientadora da atuação humana, restando positivado em volumosa parcela das Constituições promulgadas no pós-guerra, mormente as do Ocidente, tal como na Declaração Universal das Nações Unidas, em seu artigo 1º[7].
2 A Valoração dos Princípios: A Influência do Pós-Positivismo no Ordenamento Brasileiro
Ab initio, ao se dispensar um exame mais aprofundados acerca dos princípios, cuida salientar que os postulados e dogmas se afiguram como a gênese, o ponto de partida ou mesmo o primeiro momento da existência de algo. Nesta trilha, há que se gizar, com bastante ênfase, que os princípios se apresentam como verdades fundamentais, que suportam ou asseguram a certeza de uma gama de juízos e valores que norteiam as aplicações das normas diante da situação concreta, adequando o texto frio, abstrato e genérico às nuances e particularidades apresentadas pela interação do ser humano. O objetivo principal, por conseguinte, com a valoração dos princípios, reside em buscar vedar a exacerbação errônea do texto da lei, conferindo-lhe dinamicidade ao apreciar as questões colocadas em análise.
Com supedâneo em tais ideários, salientar se faz patente que os dogmas, valorados pelas linhas do pós-positivismo, são responsáveis por fundar o Ordenamento Jurídico e atuar como normas vinculantes, verdadeiras flâmulas desfraldadas na interpretação do Ordenamento Jurídico. Desta sorte, insta obtemperar que “conhecê-los é penetrar o âmago da realidade jurídica. Toda sociedade politicamente organizada baseia-se numa tábua principiológica, que varia segundo se altera e evolui a cultura e modo de pensar”[8]. Ao lado disso, em razão do aspecto essencial que apresentam, os preceitos podem variar, de maneira robusta, adequando-se a realidade vigorante em cada Estado, ou seja, os corolários são resultantes dos anseios sagrados em cada população. Entrementes, o que assegura a característica fundante dos axiomas, é o fato serem alicerçados na condição de cânone escrito, positivado pelos representantes de determinada nação ou mesmo decorrentes de regramentos consuetudinários, aderidos, de maneira democrática, pela população.
Nesta senda, os dogmas que são salvaguardados pela Ciência Jurídica passam a ser erigidos à condição de elementos que compreendem em seu bojo oferta de uma abrangência mais versátil, contemplando, de maneira singular, as múltiplas espécies normativas que integram o ordenamento pátrio. Ao lado do apresentado, com fortes cores e traços grossos, há que se evidenciar que tais mandamentos passam a figurar como super-normas, isto é, “preceitos que exprimem valor e, por tal fato, são como pontos de referências para as demais, que desdobram de seu conteúdo”[9]. Os corolários passam a figurar como verdadeiros pilares sobre os quais o arcabouço teórico que compõe o Direito se estrutura, segundo a brilhante exposição de Tovar[10]. Com efeito, essa concepção deve ser estendida a interpretação das normas que integram ao ramo Civilista da Ciência Jurídica, mormente o Direito das Famílias e o aspecto afetivo contido nas relações firmadas entre os indivíduos.
Em decorrência de tais lições, destacar é crucial que a Lei N° 10.406, de 10 de Janeiro de 2002[11], que institui o Código Civil, deve ser interpretada a partir de uma luz emanada pelos valores de maciça relevância para a Constituição Federal de 1988[12]. Isto é, cabe ao Arquiteto do Direito observar, de forma imperiosa, a tábua principiológica, considerada como essencial e exaltada como fundamental dentro da Carta Magna do Estado Brasileiro, ao aplicar a legislação abstrata ao caso concreto. A exemplo de tal afirmativa, pode-se citar tábua principiológica que orienta a interpretação das normas atinentes ao Direito das Famílias. Com o alicerce no pontuado, salta aos olhos a necessidade de desnudar tal assunto, com o intento de afasta qualquer possível desmistificação, com o fito primordial de substancializar um entendimento mais robusto acerca do tema.
3 Do Reconhecimento ao Direito Constitucional de Constituir Família: Os Influxos da Dignidade da Pessoa Humana na Pluralidade Familiar
À luz de tais ponderações, ao se analisar o direito em comento, cuida reconhecer que todas pessoas tem o direito de constituir uma família, independente de sua condição sexual ou identidade de gênero. Igualmente, as famílias existem em diversas formas, não se admitindo que uma célula familiar seja sujeitada à discriminação com base na condição sexual ou identidade de gênero de qualquer de seus membros. Ora, denota-se que o direito em análise deflui, obviamente, do primado republicano e democrático que abaliza o Estado Democrático de Direito e do superprincípio da dignidade da pessoa humana, sobretudo como pilar conformador da interpretação do ordenamento jurídico nacional e assegurando, via de consequência, a realização do ser humano.
Ora, ao reconhecer o direito em comento, está-se, de igual modo, admitindo a densidade jurídica assumida pelos corolários da busca da felicidade e da afetividade como pilares sustentadores daquele, tal como núcleo denso em que se prima pela realização do ser humano, sobretudo no que materializa a liberdade, na condição de direito fundamental, complexo e que se desdobra em plural incidência. Nesta esteira, ainda, infere-se que o afeto se apresenta como a verdadeira moldura que enquadra os laços familiares e as relações interpessoais, impulsionadas por sentimentos e por amor, com o intento de substancializar a felicidade, postulado albergado pelo superprincípio da pessoa humana. Quadra sublinhar que tal preceito encontra-se hasteada como flâmula a orientar a interpretação das normas, inspirando sua aplicação diante do caso concreto, dando corpo a um dos fundamentos em que descansa a ordem republicana e democrática, venerada pelo sistema de direito constitucional positivo.
Nessa linha de exposição, conforme se tem colhido em atuais entendimentos jurisprudenciais, notadamente os consolidados pelo Supremo Tribunal Federal, o afeto e a busca pela felicidade passaram a ser reconhecidos como valores jurídicos imersos em natureza constitucional, apresentando-se como novos paradigmas que informam e inspiram a formulação da própria acepção de entidade familiar. Ora, os reconhecimentos do afeto e da busca pela felicidade encontram robusto descanso na extensa rubrica de direitos compreendidos pelo superprincípio da dignidade da pessoa humana. Para tanto, cuida trazer a lume o seguinte aresto:
“Ementa: União Civil entre pessoas do mesmo sexo – Alta relevância social e jurídico-constitucional da questão pertinente às uniões homoafetivas – Legitimidade Constitucional do reconhecimento e qualificação da união estável homoafetiva como entidade familiar: Posição consagrada na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (ADPF 132/RJ e ADI 4.277/DF) – […] A dimensão constitucional do afeto como um dos fundamentos da família moderna. – O reconhecimento do afeto como valor jurídico impregnado de natureza constitucional: um novo paradigma que informa e inspira a formulação do próprio conceito de família. Doutrina. Dignidade da Pessoa Humana e Busca pela Felicidade – O postulado da dignidade da pessoa humana, que representa – considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) – significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País, traduz, e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo. Doutrina. – O princípio constitucional da busca da felicidade, que decorre, por implicitude, do núcleo de que se irradia o postulado da dignidade da pessoa humana, assume papel de extremo relevo no processo de afirmação, gozo e expansão dos direitos fundamentais, qualificando-se, em função de sua própria teleologia, como fator de neutralização de práticas ou de omissões lesivas cuja ocorrência possa comprometer, afetar ou, até mesmo, esterilizar direitos e franquias individuais. – Assiste, por isso mesmo, a todos, sem qualquer exclusão, o direito à busca da felicidade, verdadeiro postulado constitucional implícito, que se qualifica como expressão de uma idéia-força que deriva do princípio da essencial dignidade da pessoa humana. Precedentes do Supremo Tribunal Federal e da Suprema Corte americana. Positivação desse princípio no plano do direito comparado […]” (Supremo Tribunal Federal – Segunda Turma/ RE 477554 AgR/ Relator Ministro Celso de Mello/ Julgado em 16.08.2011/ Publicado no DJe-164/ Divulgado em 25.08.2011/ Publicado em 26.08.2011). (destaque nosso)
Por oportuno, torna-se forçoso o reconhecimento que o novel ideário, no âmbito das relações familiares, com a promulgação da Constituição Federal de 1988[13], com o fito de estabelecer direito e deveres decorrentes de vínculo familiar, consolidando na existência e no reconhecimento do afeto, tal como pela busca da felicidade. Consoante se extrai do entendimento jurisprudencial coligido, os preceitos mencionados algures, decorrem do feixe principiológico advindo da dignidade da pessoa humana, sendo dotados de proeminência e maciço destaque na caminhada pela afirmação, gozo e ampliação dos direitos fundamentais. Ao lado disso, não se pode olvidar que sobreditos paradigmas se revelam como instrumentos aptos a neutralizar práticas ou mesmo omissões lesivas que comprometem os direitos e franquias individuais. Nesta senda de exposição, “o direito de família é o único ramo do direito privado cujo objeto é o afeto”[14].
Forçoso, ainda, colocar em destaque que o direito à busca da felicidade representa derivação do superprincípio da dignidade da pessoa humana, apresentando-se como um dos mais proeminentes preceitos constitucionais implícitos, cujas raízes imergem, historicamente, na própria Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, de 04 de julho de 1776. Ao lado disso, em ordem social norteada pelo racionalismo, em de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana consonância com a teoria iluminista, o Estado “existe para proteger o direito do homem de ir em busca de sua mais alta aspiração, que é, essencialmente, a felicidade ou o bem-estar”[15]. Nesta linha de dicção, o homem tem sua atuação motivada pelo interesse próprio, o qual, corriqueiramente, se materializada na busca pela felicidade, competindo à sociedade, enquanto construção social destinada a proteger cada indivíduo, viabilizando a todos viver juntos, de forma benéfica.
Impostergável faz-se o reconhecimento do afeto e da busca pela felicidade, enquanto valores impregnados de juridicidade, porquanto abarcam a todos os indivíduos, suplantando qualquer distinção, promovendo a potencialização do superprincípio em destaque. Ora, de tais dogmas decorre o direito constitucional de constituir família, sobretudo na visão contemporânea em que a célula familiar é o microambiente em que o ser humano se desenvolve. Ademais, em se tratando de temas afetos ao Direito de Família, o relevo deve ser substancial, precipuamente em decorrência da estrutura das relações mantidas entre os atores processuais, já que extrapola a rigidez jurídica dos institutos consagrados no Ordenamento Pátrio, passando a se assentar em valores de índole sentimental, os quais, conquanto muitas vezes sejam renegados a segundo plano pela Ciência Jurídica, clamam máxima proteção, em razão das peculiaridades existentes. Destarte, cuida destacar que o patrimônio, in casu, não é material, mas sim de ordem sentimental, o que, por si só, inviabiliza qualquer quantificação, sob pena de coisificação de seu detentor e aviltamento à própria dignidade da pessoa humana.
4 Famílias Poliafetivas: A Concreção do Direito Constitucional de Liberdade de Constituição Familiar e o Superprincípio da Dignidade da Pessoa Humana
Dentre os dogmas que orientam o Direito das Famílias, cuida salientar, inicialmente, acerca do princípio da pluralidade das entidades familiares, ressoando, de forma determinante, com a realidade contida nas interações sociais. Anote-se, por oportuno, que o Ordenamento Pátrio, até a promulgação da Constituição da República Federativa de 1988, jungido em valores patrimoniais, assentava como núcleo familiar tão somente o constituído pelo vínculo matrimonial, renegando às demais entidades a uma situação de subcategoria, à margem do considerado como aceitável pela sociedade. “O Texto Constitucional alargou o conceito de família, permitindo o reconhecimento de entidades familiares não casamentárias, com a mesma proteção jurídica dedicada ao casamento”[16], como bem alude Farias e Rosenvald. Ao lado disso, cuida salientar que, de maneira expressa, a Carta Cidadã, no caput do artigo 226 consagrou que: “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”[17].
Ora, há que se reconhecer que o Constituinte tão somente positivou uma situação que vigorava em milhares de famílias brasileiras, reconhecendo, por via de consequência, que a constituição de um núcleo familiar é algo natural, oriundo das interações afetivas nutridas entre indivíduos. De outra banda, o casamento se afigura como uma solenidade, uma convenção estabelecida pela sociedade. Nesta esteira, com o escopo de adaptar a Ciência Jurídica aos anseios da sociedade, conferindo aos Diplomas Legais congruência com a atmosfera social em que incidem, mister se fez a adequação das normas a um cenário consolidado pela coletividade e que reclamava do Estado a devida proteção. Destarte, conforme se extrai do artigo supra, Farias e Rosenvald salientam que “não somente a família originada através do casamento, bem como qualquer outra manifestação afetiva como a união estável e a família monoparental – formada pela comunidade de qualquer dos pais e seus descendentes” [18].
Nessa linha de exposição, ainda, há que se obtemperar que a família se apresenta como base da sociedade, como expressamente referência faz o artigo 226 da Constituição Federal[19], gozando de especial proteção do Estado, eis que cumpre a função que a sociedade contemporânea destinou à entidade, qual seja: transmitir a cultura e formar a pessoa humana. Em razão do pontuado, mister se faz a sua compreensão como sistema democrático, afigurando-se como um espaço aberto ao diálogo entre os seus integrantes, na qual se ambiciona a felicidade e a realização plena. “Ademais, ao reservar 'especial proteção do Estado' ao núcleo familiar, o Texto Constitucional deixa antever que o pano de fundo da tutela que lhe foi emprestada é a própria afirmação da dignidade da pessoa humana” [20]. Convém destacar, neste quadrante, que a proteção do Estado ao ser humano deve ser conferida com a visão orientada ao respeito às diferenças interpessoais, no sentido de vedar comportamentos preconceituosos, discriminatórios e estigmatizantes, sob o robusto broquel dos princípios fundamentais da igualdade, da dignidade e da liberdade do indivíduo[21].
Destarte, a proteção da entidade familiar tem como ponto de alicerce a premissa que aquela se revela como tutela avançada da pessoa humana, substancializando no plano concreto, real, a dignidade erigida de modo abstrato. Trata-se, com destaque, da utilização do núcleo como instrumento apto ao desenvolvimento da personalidade humana, salvaguardando, por conseguinte, a realização plena de seus membros. Igualmente, retira-se o aspecto essencialmente econômico e reprodutivo da entidade familiar, não mais prosperando a aproximação daquela com o ideário de produção, avançando, por extensão, para uma compreensão arrimada em aspectos socioafetivos, nos quais se verifica a formação de uma unidade e de mútua ajuda, logo, é fato que restam materializados novos arranjos familiares.
O casamento, com a nova sistemática consolidada no Texto Constitucional, é descrito como ponto robusto para buscar a proteção e o desenvolvimento da personalidade do indivíduo. A dignidade da pessoa humana, desfraldada como superprincípio do Ordenamento Pátrio, passa a sobrepujar, de forma determinante, os valores simplesmente patrimoniais. A inegável superação de antigos modelos do direito de família tem se operado pela gradativa evanescência da função “procriacional” a definir a entidade familiar, bem como pela dissipação do conteúdo de cunho marcadamente patrimonialista, para dar lugar à comunhão de vida e de interesses pautada no cuidado e na afetividade, tendo como suporte a busca da realização pessoal de seus integrantes. É cediço que o Direito não confere regulamentação aos sentimentos, contudo, define os liames com base neles produzidos, o que obsta que a própria norma, que estabelece a vedação a qualquer espécie de segregação, seja agasalhada por conteúdo discriminatório.
Diante de tais comentários, cuida anotar que a união poliafetiva, constituída pela pluralidade de indivíduos vivendo em união encontra amparo da interpretação jurisprudencial do texto agasalhado no artigo 226 da Constituição Federal, tal como no princípio da pluralidade familiar e no direito à constituição familiar. Ao lado disso, a união poliafetiva apresenta o mesmo escopo que o casamento e a união estável, qual seja: a constituição da família, a obtenção de direitos e deveres recíprocos, mútua assistência, lealdade, respeito e fidelidade, tal como a vida em comum no domicilio conjugal e obrigação de guarda, sustento e educação dos filhos. É conveniente apontar que, em relação à fidelidade, repousa o ponto nevrálgico da questão, porquanto podem os companheiros, sejam eles três, quatro ou cinco, serem fiéis uns aos outros, enquanto pode haver uma unidade familiar, socialmente aceita, composta pelo homem e a mulher, em que um deles, ou mesmo os dois não retratam o dever de fidelidade.
Mais uma vez, há que se reconhecer a proeminência do núcleo duro que sustenta a proteção constitucional das famílias, desbordando do aspecto patrimonial e se assentando na premissa de serem aquelas as células-base para o desenvolvimento do indivíduo. Com efeito, cuida, por imprescindível observância sistemática, conferir relevo ao primado da pluralidade familiar como consentâneo da vida contemporânea, comportando uma realidade mosaica e dinâmica, compreendendo a diversidade familiar como dogma indissociável da dignidade da pessoa humana. Igualmente, o direito à constituição da família traz a reboque o preceito que a família é instituída não para atender um modelo normativo eleito pelo Estado, mas sim condensar, em seus limites e relações, afeto, zelo e felicidade enquanto moldura fática para o desenvolvimento humano. Tal como aconteceu com a união homoafetiva, realidade jurídica de indiscutível valor, são os sentimentos travados entre os componentes da entidade familiar que delineiam, ou não, a existência do núcleo a ser protegido pela Constituição. Assim, a união poliafetiva, apesar do silêncio da legislação e a necessidade de aprimoramento das interpretações, é típica modalidade familiar, encontrando, obviamente, amparo nos axiomas constitucionais.
Informações Sobre o Autor
Tauã Lima Verdan Rangel
Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), linha de Pesquisa Conflitos Urbanos, Rurais e Socioambientais. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especializando em Práticas Processuais – Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo-ES