Da responsabilidade civil pelo abandono afetivo dos filhos

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo a análise, por meio de entendimentos doutrinários, jurisprudenciais e legislação vigente, da possibilidade da responsabilização no âmbito civil, por meio de indenização, dos pais por não darem afeto aos filhos menores, bem como da inserção de previsão legal para o caso.[1]

Palavras-chave:  Responsabilidade civil; Abandono afetivo; Danos morais; Indenização; Dignidade da pessoa humana.

Resumen: Este estudio tiene como objetivo analizar, a través de la comprensión doctrinal, jurisprudencial y de la legislación brasileña, la posibilidad de la responsabilización civil, com indemnización, de los padres por no dar afecto a los hijos menores de edad, así como la inclusión de una disposición legal para el caso.

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Palabras clave: Responsabilidadd civil; Abandono afectivo; Daños morales; Indemnización; Dignidad de la persona humana.

Sumário: Introdução. 1. Princípios que regem o Direito de Família na atualidade – em busca do ideal de família eudemonista. 2. Dos deveres dos pais com relação aos filhos menores. 3. Da diferenciação entre abandono moral e abandono afetivo e seu tratamento jurisprudencial em demandas que versam sobre responsabilidade civil dos pais com relação aos filhos. 4. Pelo reconhecimento jurídico do dever de assistência afetiva e do correlata responsabilidade civil por abandono afetivo dos filhos. Conclusão. Referências.

Introdução

A Constituição Federal de 1988 prevê que é livre o planejamento familiar, mas impõe ao mesmo dois requisitos: a proteção da dignidade da pessoa humana e a paternidade/maternidade responsável.

Pode-se afirmar que a paternidade/maternidade responsável é garantida através do exercício dos deveres inerentes ao poder familiar. Dentre eles, os deveres de assistência material, intelectual e moral são mais relevados neste trabalho, uma vez que é no âmbito dos deveres de assistência que discutir-se-á a existência do dever de assistência afetiva dos filhos por parte de seus pais.

A legislação brasileira, em momento algum, prevê esta obrigação de amar, de dar afeto. Contudo, em nome da proteção integral do menor – pessoa cuja personalidade encontra-se em desenvolvimento – acredita-se que a falta de tal assistência provoca efeitos maléficos em sua formação psíquica.

Frise-se que a formação da personalidade do indivíduo não é algo linear e pontual. Trata-se de um processo de evolução ao longo de seu ciclo vital, onde as primeiras etapas de sua vida são as mais importantes para seu posterior desenvolvimento. Segundo estudos, ser amado ou rejeitado pelos pais nas primeiras fases da vida afeta a criança até sua fase adulta. Assim, relações de afeto com os pais moldam características da personalidade do indivíduo para sempre. Até mesmo quando este está sendo gerado dentro do ventre de sua mãe.  

Assim, considerando a proteção integral do menor, defender-se-á que a assistência afetiva é um dever inerente à paternidade/maternidade responsável. Defender-se-á, ainda, que a assistência afetiva deveria ser prevista em lei, ao lado das assistências material, moral e intelectual, pois só assim seu descumprimento ensejaria reparação por danos morais.

A temática está em total consonância com a função social da família que, na atualidade, deve prestar-se a garantir a promoção e a proteção da dignidade de seus membros, sendo os menores alvos de maior atenção neste contexto, já que estão com sua personalidade em desenvolvimento.

A pesquisa realizada foi qualitativa, essencialmente bibliográfica e documental.

1 Princípios que regem o Direito de Família na atualidade – em busca do ideal de família eudemonista

A família, antes de ser um instituto jurídico, é um fato social que vem sendo moldado ao longo dos tempos até chegar à concepção plural assumida na atualidade. Conforme explica Dias (2009, p. 42-43),

“Como diz Teresa Wambier, a “cara” da família moderna mudou. O seu principal papel é de suporte emocional do indivíduo, em que há flexibilidade e, indubitavelmente, mais intensidade no que diz respeito a laços afetivos. Difícil encontrar ma definição de família de forma a dimensionar o que, no contexto social dos dias de hoje, se insere nesse conceito. É mais ou menos intuitivo  identificar família com a noção de casamento, ou seja, pessoas ligadas pelo vinculo do matrimônio. Também vem à mente a imagem da família patriarcal, o pai como a figura central, na companhia da esposa e rodeado de filhos, genros, noras e netos. Essa visão hierarquizada da família, no entanto, sofreu, com o tempo, enormes transformações.Além de ter havido significativa diminuição do numero de seus componentes, também começou a haver um embaralhamento de papéis. A emancipação feminina e o ingresso da mulher no mercado de trabalho levaram-na para fora do lar. Deixou o homem de ser o provedor exclusivo da família, sendo exigida sua participação nas atividades domésticas. (…) O novo modelo da família funda-se sobre os pilares da repersonalização, da afetividade, da pluralidade e do eudemonismo, impingindo nova roupagem ao direito de família”.

A mesma autora acrescenta, ainda, que a família eudemonista é aquela que “enfatiza o sentido de busca pelo sujeito de sua felicidade” (DIAS, 2009, p. 54), sendo que nesta busca constrói-se o processo de emancipação de seu membros. Assim, para que este ideal de família seja alcançado, o Direito de Família vem sendo norteado por um conjunto de princípios que possuem como corolário a concretização da função social da família na atualidade, qual seja, a proteção e a promoção da dignidade da pessoa de seus membros. O Princípio da Dignidade da pessoa Humana é um dos principais e mais amplos princípios que a Constituição Federal prevê. É o valor moral inerente a cada pessoa, sendo o fundamento do Estado Democrático de Direito brasileiro (art. 1o., III, CF/88). Segundo Moraes (2004, p. 128-129), a dignidade

“É um valor espiritual e moral inerente a pessoa humana, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício de direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. O direito à vida privada, à intimidade, à honra, à imagem, entre outros, aparece como consequência imediata da consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento da Republica Federativa do Brasil”.

Nota-se desta forma, que a dignidade da pessoa humana é o bem maior do ordenamento jurídico brasileiro, estando ligada diretamente aos direitos humanos, posto que fora introduzida na Constituição Federal de 1988 como cláusula pétrea. Cabe assim, aos legisladores brasileiros criar meios de proteção a fim de que não se concretize qualquer infração a tal princípio fundamental, principalmente no que concerne ao direito das famílias.   

Tal princípio deve reger todas as relações jurídicas, de qualquer ramo do direito, e principalmente, do direito de família, já que é um ramo do direito civil com “características peculiares, é integrado pelo conjunto de normas que regulam as relações jurídicas familiares, orientado por elevados interesses morais e bem-estar social” (VENOSA, 2005, p. 26). Assim, a dignidade assegura o pleno desenvolvimento e formação da personalidade e do caráter de todos os integrantes do núcleo familiar, ao contrário do modelo patriarcal do passado, onde apenas o marido detinha poderes e, conceitualmente, a dignidade. No modelo ideal de família na atualidade deve imperar a solidariedade familiar, donde se extrai o princípio de mesmo nome. Este princípio tem origem nos vínculos afetivos e deveres recíprocos existentes entre os integrantes da família, como compreensão, cooperação, ajuda mútua sempre que necessário, abrangendo tanto obrigações de cunho alimentar quanto a de assistência imaterial ou afetiva, como o amparo, o cuidado e o carinho. Dias (2009, p.  66) afirma que

“(…) solidariedade é o que cada um deve ao outro. Esse princípio, que tem origem nos vínculos afetivos, dispõe de acentuado conteúdo ético, pois contém em suas entranhas o próprio significado da expressão solidariedade, que compreende a fraternidade e a reciprocidade. A pessoa só existe enquanto coexiste”.

Para Gagliano e Pamplona Filho (2012, p. 95), "a solidariedade, portanto, culmina por determinar o amparo, a assistência material e moral recíproca, entre todos os familiares, em respeito ao princípio maior da dignidade da pessoa humana". Exemplo deste princípio está previsto no art. 229 da Constituição, que prevê que os pais possuem o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, sendo que os filhos maiores devem ajudar a amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade. De acordo com Gama (2008, p.74):

“O princípio da solidariedade se vincula necessariamente aos valores éticos   do ordenamento jurídico. A solidariedade surgiu como categoria ética e moral, mas que se projetou para o universo jurídico na representação de um vínculo que compele à oferta de ajuda ao outro e a todos”.

Ainda que todos os membros de uma família sejam portadores da mesma dignidade humana, os menores de idade, por sua condição de vulnerabilidade decorrente do fato de que estão com sua personalidade em formação, merecem atenção especial. Daí decorrem dois outros princípios: o do livre planejamento familiar e o da paternidade/maternidade responsável, sendo o segundo um requisito do primeiro, conforme se extrai do parágrafo 7º do art. 226 da Constituição Federal:

“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.           

§7º. Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”.  

A paternidade/maternidade responsável  começa na concepção do indivíduo e se estende até a maioridade, até que ele se sinta capaz e desenvolvido para conviver em sociedade. Assim, é direito da criança e do adolescente ter o suporte necessário e acompanhamento dos pais para seu sadio crescimento físico e psicológico. Constitui uma ideia de responsabilidade que deve ser observada tanto na formação como na manutenção da família.

Segundo Rosenvald (2010, p.47), “o propósito do planejamento familiar, é sem dúvida, evitar a formação de núcleos familiares sem condições de sustento e de manutenção”. Afinal, o ato de colocar um filho no mundo deve constituir-se de algo responsável, posto que todo direito impõe obrigações, que constituem seus limites. E os direitos da prole e do bem comum configuram os seus contornos (DINIZ, 2010).

 A Convenção Sobre os Direitos da Criança, de 1989, ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 1990, dispõe que toda criança terá direito, na medida do possível, de conhecer seus pais e ser cuidada por eles.

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Não apenas os pais possuem o dever de zelar pela formação da personalidade dos filhos menores. Assim, para assegurar os direitos da criança e do adolescente, foi formulada a doutrina da proteção integral do menor, focada na busca da concretização de seus interesses.

 De acordo com esse princípio, deve-se preservar ao máximo, aqueles que se encontram em situação de fragilidade e hipossuficiência. A criança e o adolescente encontram-se nesta posição por estarem em processo de amadurecimento e formação da personalidade e do caráter. O menor, além de seus direitos básicos e fundamentais salvaguardados pelo ordenamento pátrio, tem o direito de chegar à fase adulta sob as melhores garantias, conforme preceitua o caput do art. 227, da Constituição Federal:

“Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Desse modo, percebe-se que a criança e o adolescente gozam de proteção integral do Estado, assegurando-lhe a lei, todas as oportunidades para seu melhor desenvolvimento físico, mental, moral, social, espiritual, em plenas condições de liberdade e dignidade.

Esse princípio, segundo Amin (apud SILVA, 2013) “deve estar na análise do caso concreto, acima de todas as circunstâncias fáticas e jurídicas, como garantidor  do respeito aos direitos fundamentais titularizados por crianças e jovens”.

Outro princípio que rege o direito de Família é o da igualdade entre os filhos e a igualdade entre homem e mulher na condução de suas famílias. Tais princípios estão expressamente previstos na Constituição Federal.

Desta Lei Maior extrai-se, também, o princípio da pluralidade familiar. Embora o texto constitucional preveja expressamente as famílias matrimoniais, monoparentais e decorrentes de uniões estáveis, é pacífico que referido rol não é taxativo, tanto que o Supremo tribunal Federal – guardião da Constituição Federal – considerou as uniões homoafetivas entidades familiares.

Desta forma, ainda que não haja vínculo solene, caso seja verificado numa situação de fato o ânimo de constituir família (affectio familiae), sendo esta vontade pública e duradoura, estar-se-á diante de uma família e desta realidade haverá produção de efeitos jurídicos. Esta é a tradução do princípio da afetividade, que não possui previsão legal expressa no ordenamento jurídico brasileiro.

É o princípio da afetividade que reconhece efeitos jurídicos a uniões homoafetivas ou estáveis sem qualquer registro em cartório e que embasa o parentesco socioafetivo. Neste sentido, Dias (2009, p. 67) afirma que

“O afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam  da convivência familiar, e não do sangue. Assim, a posse de estado de filho nada mais é do que o reconhecimento jurídico do afeto, com o claro objetivo de garantir a felicidade, como um direito a ser alcançado. O afeto não é somente um laço que envolve os integrantes de uma família”.

O princípio da afetividade é o elemento de conexão entre o Direito de Família e a Filosofia Eudemonista. A família eudemonista é um conceito moderno que se refere à família que busca a realização plena de seus membros, caracterizando-se pela comunhão de afeto recíproco, a consideração e o respeito mútuos entre os membros que a compõe, independente do vínculo biológico.

 2 Dos deveres dos pais com relação aos filhos menores

A responsabilidade dos pais com relação aos seus filhos menores é um dever irrenunciável, em razão da vulnerabilidade da criança e do adolescente, que estão em pleno desenvolvimento psicológico e moral. Nesse sentido, o ordenamento jurídico brasileiro atribui aos pais certos deveres, em virtude do exercício do poder familiar.

“Podemos conceituar o poder familiar como o plexo de direitos e obrigações reconhecidos aos pais, em razão e nos limites da autoridade parental que exercem em face dos seus filhos, enquanto menores e incapazes” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2015, p. 59). Segundo Pereira (2007, p. 421-422),

“O que se verifica é o desenvolvimento de estrutura que suplanta a anterior concepção do pátrio poder como subordinação dos filhos ao pai; ao contrário, desenvolve-se o domínio da fixação jurídica dos interesses dos filhos.

A referida estrutura consagra, definitivamente, a “doutrina jurídica da proteção integral” ao indicar que os interesses dos pais não se impõem aos dos filhos, reconhecendo-se a condição de sujeitos de direitos que a lei lhes atribui. Estamos diante de uma nova estrutura familiar marcada essencialmente pelas responsabilidades dos pais pelos filhos, pessoas em condições peculiares de desenvolvimento”.

O Estatuto da Criança e do Adolescente evidencia a existência de deveres essenciais ao poder familiar da seguinte forma:

“Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade”.

Por sua vez, o Código Civil, em seu art. 1.634, especifica os direitos e deveres inerentes ao poder familiar:                    

“Art. 1.634.  Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos:

I – dirigir-lhes a criação e a educação;

II – exercer a guarda unilateral ou compartilhada nos termos do art. 1.584;

III – conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem;

IV – conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para viajarem ao exterior;

V – conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para mudarem sua residência permanente para outro Município;

VI – nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar;

VII – representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;

VIII – reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;

IX – exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição”.

Fica evidente o dever dos pais de cuidarem de seus filhos, mas, como já dito, em nenhum inciso deste artigo há previsão do dever de dar afeto. Maria Berenice Dias (2009, p. 388), comenta que:

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“Nesse extenso rol não consta o que talvez seja o mais importante dever dos pais com relação aos filhos: o dever de lhes dar amor, afeto e carinho. A missão constitucional dos pais, pautada nos deveres de assistir, criar e educar os filhos menores, não se limita a vertentes patrimoniais. A essência existencial do poder parental é a mais importante, que coloca em relevo a afetividade responsável que liga pais e filhos, propiciada pelo encontro, pelo desvelo, enfim, pela convivência familiar”.

O dever de assistência moral, além de ser reafirmado a todo momento nos incisos do art. 1634 do Código Civil, consta como sendo dever de ambos os cônjuges, que deverão exercer o sustento, a guarda e a educação dos filhos (art. 1566, IV, CC). Reflexo deste dispositivo no Estatuto da Criança e do Adolescente é o seu artigo 22, segundo o qual “aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais”.

Neste ponto, mais precisamente com relação à guarda, Elias (1999, p. 53) explica que “a guarda diz respeito à prerrogativa de ter o filho em seu poder, em ter-lhe oponível a terceiros, e vinculadas aos deveres de prestar-lhe assistência material, moral e educacional”.

Enquanto o poder familiar continua sendo exercido pelos pais mesmo em casos de desfazimento de sua relação amorosa, o mesmo nem sempre acontecerá com a guarda, que poderá ser fixada judicialmente de forma unilateral, por exemplo. De qualquer forma, importante destacar que a separação de um casal não retira dos genitores o dever de cuidado, assistência e proteção aos filhos enquanto não atingirem a maioridade civil (art. 1.632 Código Civil).

Ainda no cenário da guarda, cabe mencionar que a guarda compartilhada ganhou status de regra geral no Brasil justamente para que ambos os pais possam exercer o direito-dever de acompanharem de perto o desenvolvimento da personalidade do filho, sempre tendo em vista a doutrina da proteção integral do menor. O objetivo do instituto é acabar com a ideia de pai ou mãe visitante, pais de fim de semana.

Segundo explica Grisard Filho, na guarda unilateral, principal modelo utilizado no Brasil antes da propagação do instituto da guarda compartilhada, as “visitas periódicas têm efeito destrutivo sobre o relacionamento entre pais e filho, uma vez que propicia o afastamento entre eles, lento e gradual, até desaparecer, devido às angústias perante os encontros e as separações repetidas” (2002, p. 108).

Conforme explica Grisard  Filho (2009, p. 220), a guarda compartilhada

“Assume uma importância extraordinária, na medida em que valoriza o convívio do menor com seus dois pais, pois mantém, apesar da ruptura conjugal, o exercício em comum da autoridade parental e reserva, a cada um dos pais, o direito de participar das decisões importantes que se referem à criança. […] Este modelo, priorizando o melhor interesse dos filhos e a igualdade dos gêneros no exercício da parentalidade, é uma resposta mais eficaz à continuidade das relações da criança com seus dois pais na família dissociada, semelhantemente a uma família intacta. É um chamamento dos pais que vivem separados para exercerem conjuntamente a autoridade parental, como faziam na constância da união conjugal, ou de fato”.

Importante ressaltar que a guarda compartilhada minimiza as chances de alienação parental, conduta maléfica que consiste na implantação de falsas memórias na cabeça do menor para que ele não queira mais conviver com um dos pais em decorrência da campanha negativa feita contra o mesmo.

Diante de tais objetivos da guarda compartilhada pode-se afirmar que a mesma propicia o melhor cumprimento do dever de assistência moral dos pais que não convivem sob a perspectiva de um relacionamento amoroso.

Cabe aos pais, independente da relação conjugal em que se encontram, fornecer aos filhos educação, boa criação, saúde, lazer, alimentação e tudo que o faça crescer como um indivíduo apto a enfrentar as adversidades do mundo ou até que este se sinta capaz para convivência em sociedade.

O papel desempenhado pelos pais em relação aos filhos menores é tão relevante para o contexto social que não é por outro motivo que o legislador constituinte estabeleceu que a família é a base da sociedade. Segundo o raciocínio constitucional, menores que tiverem sua personalidade desenvolvida de forma sadia, moldados pelos cuidados dos pais, seriam, em tese, cidadãos ideais.

A ausência dos genitores e/ou família na vida do menor é capaz de acarretar sérias dificuldades em sua vida cotidiana, resultando em deficiências psíquicas intensas, sentimento de decepção, de rejeição, de tristeza e autodesvalorização. Quanto mais crianças sem os cuidados devidos e responsáveis dos pais, maiores serão as chances de indivíduos que comentem crimes, entre outros males.

3 Da diferenciação entre abandono moral e abandono afetivo e seu tratamento jurisprudencial em demandas que versam sobre responsabilidade civil dos pais com relação aos filhos

Observa-se que há uma grande confusão na conceituação de abandono moral e abandono afetivo. Há uma linha muito tênue que as separa, porém, não são expressões sinônimas, representam condutas diferentes e, consequentemente, produzirão afeitos jurídicos diferentes, de forma que não se pode confundi-las.

O abandono moral consiste na conduta do pai e/ou da mãe de não cuidar do desenvolvimento moral, psicológico e social do filho. Significa não acompanhar o crescimento da sua personalidade e como o menor está inserido no meio social em que vive.

O abandono moral viola, portanto, um dos deveres inerentes ao poder familiar, expresso no inciso I do art. 1.634 do Código Civil , que determina que compete aos pais, quanto à pessoas dos filhos menores, dirigir-lhes a criação e  educação.

Por sua vez, o abandono afetivo pode ser traduzido pela falta de demonstração de afeto, de carinho dos pais com relação aos filhos. Embora dar afeto não seja um dever previsto no dispositivo legal que disciplina o poder familiar, a psicologia explica que a falta de afeto por parte dos genitores pode desenvolver nos filhos sintomas de rejeição, baixa auto-estima, prejudicar seu rendimento escolar, podendo resultar em inúmeras outras consequências na fase adulta de sua vida.

Desta forma, afeto, carinho, amor, são deveres (implícitos) que os pais devem ter pra com a sua prole e o não amar ou não demonstrar carinho pelo filho, caracteriza-se como abandono afetivo.

Normalmente as condutas do abandono moral e afetivo caminham juntas – o que contribui para a confusão conceitual entre ambas –, mas podem ser verificadas separadamente.

Este dever implícito, mas presente a todo momento no contexto das relações familiares, de pais amarem seus filhos, é verificado na doutrina contemporânea do Direito de Família. Neste contexto, Biasuz (apud PEREIRA, 2016) explica que

“A família e afeto são dois personagens desse novo cenário.  Contemporaneamente, o afeto é desenvolvido e fortalecido na família, sendo este, ao mesmo tempo, a expressão de união entre seus membros e a mola propulsora dos integrantes que buscam a sua realização pessoal através da sua exteriorização de forma autêntica”.

Demonstrando que os deveres inerentes à paternidade/maternidade responsável não são apenas legais, a primeira decisão que versou sobre abandono afetivo no Brasil foi proferida pelo juiz Mario Romano Maggioni, em 15/09/2003, na 2ª Vara da Comarca de Capão da Canoa – RS. A sentença reconheceu o direito à indenização de uma filha de 23 anos, abandonada afetivamente pelo pai aos 9 anos, embora a pensão alimentícia fosse paga regulamente. O magistrado condenou o genitor ao pagamento de 200 salários mínimos e usou o ECA como base para sua condenação: 

“Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos (art. 22, da lei nº 8.069/90). A educação abrange não somente a escolaridade, mas também a convivência familiar, o afeto, amor, carinho, ir ao parque, jogar futebol, brincar, passear, visitar, estabelecer paradigmas, criar condições para que a criança se auto-afirme”.

Destacou também as consequências negativas que as crianças podem sofrer decorrentes do abandono afetivo:

“A ausência, o descaso e a rejeição do pai em relação ao filho recém-nascido, ou em desenvolvimento, violam a sua honra e a sua imagem. Basta atentar para os jovens drogados e ver-se-á que grande parte deles derivam de pais que não lhes dedicam amor e carinho; assim também em relação aos criminosos”.

Neste caso, o Ministério Público, intervindo no feito por haver interesse de menor, mostrou-se contrário à procedência da decisão do juiz que condenou favorável a indenização pelo abandono afetivo. Segundo a instituição pública, não compete ao Judiciário condenar alguém ao pagamento de indenização por desamor, argumentando ainda que não há previsão legal pra o caso. Contudo, a sentença foi julgada procedente, transitado em julgado pela não interposição de recurso pelo réu, ou seja, pelo genitor ausente, considerado revel no processo. De forma paulatina, outras decisões versando sobre o abandono afetivo, se somaram a esta. Umas favoravelmente ao seu reconhecimento e pagamento de indenização por danos morais dele decorres, outras contrárias a tal posicionamento. Como favoráveis, destacam-se as seguintes:

“EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE DANOS MORAIS – ABANDONO  AFETIVO DE MENOR – GENITOR QUE SE RECUSA A CONHECER E ESTABELECER CONVÍVIO COM FILHO – REPERCUSSÃO PSICOLÓGICA – VIOLAÇÃO AO DIREITO DE CONVÍVIO FAMILIAR – INTELIGÊNCIA DO ART. 227, DA CR/88 – DANO MORAL – CARACTERIZAÇÃO – REPARAÇÃO DEVIDA – PRECEDENTES – 'QUANTUM' INDENIZATÓRIO – RATIFICAÇÃO – RECURSO NÃO PROVIDO – SENTENÇA CONFIRMADA. 
– A responsabilidade pela concepção de uma criança e o próprio exercício da parentalidade responsável não devem ser imputados exclusivamente à mulher, pois decorrem do exercício da liberdade sexual assumido por ambos os genitores”.  (TJMG –  Apelação Cível  1.0145.07.411698-2/001, Relator(a): Des.(a) Barros Levenhagen , 5ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 16/01/2014, publicação da súmula em 23/01/2014)”.

“APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – ABANDONO AFETIVO – ILICITUDE POR OMISSÃO – COMPENSAÇÃO POR DANOS MORAIS – POSSIBILIDADE. 1. Com fulcro na dignidade da pessoa humana, consagrada na CR/88, há que se condenar os pais negligentes ao pagamento de indenização com o escopo de firmar responsabilidades da ação volitiva de se conceber uma criança, mesmo sendo tal ato advindo de uma situação não planejada ou até mesmo daquelas em que não há relação marital entre os genitores. 2. É inconcebível a ideia de deixar os filhos à deriva pelo mundo, abandonados à sua própria sorte, privando-os de cuidados necessários a um desenvolvimento sadio, garantido pelo nosso ordenamento jurídico. Alguns papéis são insubstituíveis e indelegáveis: os de pai e mãe são bons exemplos disso. Pai e mãe são apenas rótulos, quando não se dedicam ao papel imposto a eles por meio legal. 3. É imperioso ressaltar que várias decisões já foram proferidas pelos tribunais com base no argumento de que não se pode impor a obrigação de amar. Seria impossível realmente tal imposição. No entanto, tais julgadores se esquecem de que amor é um sentimento aprendido. Ninguém nasce amando os pais, os irmãos ou a natureza, daí a importância do convívio. Por isso o absenteísmo de um pai é tão perverso na vida do filho, uma vez que este foi privado de aprender a amar. Por outro lado, há de se imputar uma pena a essa conduta moralmente reprovável. 4. Em consonância com o Superior Tribunal de Justiça, no voto da Ministra Nancy Andrighi, é possível pleitear indenização por danos morais quando há comprovação de que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida, ocorrendo ilicitude civil sob a forma de omissão”. (DESEMBARGADORA MARIZA DE MELO PORTO – VOGAL VENCIDA)  (TJMG –  Apelação Cível  1.0628.13.001301-2/001, Relator(a): Des.(a) Wanderley Paiva , 11ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 22/04/2015, publicação da súmula em 29/04/2015)”.

Importante observar que na ementa de tais julgados acima colacionados há a expressão “abandono afetivo”, mas ao logo da explicitação da decisão o que se observa é que os julgadores pátrios estão usando indistintamente as expressões “abandono moral” e “abandono afetivo”, confundindo-as. Tal confusão não existe nas decisões que negam a indenização por abandono afetivo, conforme se observa a seguir:

“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. PAI. ABANDONO AFETIVO. ATO ILÍCITO. DANO INJUSTO. INEXISTENTE. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. MEDIDA QUE SE IMPÕE. O afeto não se trata de um dever do pai, mas decorre de uma opção inconsciente de verdadeira adoção, de modo que o abandono afetivo deste para com o filho não implica ato ilícito nem dano injusto, e, assim o sendo, não há falar em dever de indenizar, por ausência desses requisitos da responsabilidade civil. (TJMG –  Apelação Cível 1.0499.07.006379-1/002, Relator(a): Des.(a) Luciano Pinto , 17ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 27/11/2008, publicação da súmula em 09/01/2009)”.

“AÇÃO DE INDENIZAÇÃO – DANOS MORAIS – ABANDONO AFETIVO – ATO ILÍCITO – INEXISTÊNCIA – DEVER DE INDENIZAR – AUSÊNCIA. A omissão do pai quanto à assistência afetiva pretendida pelo filho não se reveste de ato ilícito por absoluta falta de previsão legal, porquanto ninguém é obrigado a amar ou a dedicar amor. Inexistindo a possibilidade de reparação a que alude o art. 186 do Código Civil, eis que ausente o ato ilícito, não há como reconhecer o abandono afetivo como passível de indenização. (Apelação Cível nº 1002407790961-2, 12º Câmara Cível do TJMG, Rel. Des. Alvimar de Ávila, j. 11.02.2009, DJ 13.07.2009)”.

“EMENTA: APELAÇÃO. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. ABANDONO AFETIVO. AUSÊNCIA DE CONDUTA ILÍCITA. INDENIZAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. O abandono afetivo do pai em relação aos filhos, ainda que moralmente reprovável, não gera dever de indenizar, por não caracterizar conduta antijurídica e ilícita.  (TJMG –  Apelação Cível  1.0194.09.099785-0/001, Relator(a): Des.(a) Tiago Pinto , 15ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 07/02/2013, publicação da súmula em 18/02/2013)”.

“RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO AFETIVO. Paternidade responsável implica o dever de presença dos pais na vida dos filhos. Ausência do réu que não foi comprovada. Prova que demonstra a convivência com os autores ainda que permeada de conflitos. Transtornos psicológicos que não podem ser diretamente relacionados às atitudes do réu. Sentença mantida. Recurso desprovido. (TJ-SP – APL: 00033968920118260457 SP 0003396-89.2011.8.26.0457, Relator: Milton Carvalho, Data de Julgamento: 29/01/2015,  4ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 04/02/2015)”.

Diante de tais julgados, fica a dúvida: será que as decisões que concederam a indenização por abandono afetivo simplesmente confundiram-no com o abandono moral, tendo tal confusão sido determinante para o posicionamento judicial? O presente estudo busca justamente afirmar que, embora exista esta confusão conceitual, o abandono afetivo pode produzir efeitos nocivos aos filhos e, por este motivo, deve ensejar reparação por danos morais decorrentes desta conduta reprovável sob a perspectiva da paternidade/maternidade responsável e  do melhor interesse da criança.

4 Pelo reconhecimento jurídico do dever de assistência afetiva e do correlata responsabilidade civil por abandono afetivo dos filhos

Expostos os princípios que regem as famílias na atualidade, bem como os deveres dos pais com relação aos seus filhos no sentido do exercício da paternidade responsável, com vistas à sadia estruturação psíquica dos mesmos, passar-se-á à defesa de que a assistência afetiva e tão importante quanto a assistência moral e que, assim como esta, deveria ensejar reparação civil em caso de danos morais decorrentes de sua ausência. Nas palavras de Maluf, (2012, p. 5-6)

“Podemos nos perguntar qual seria a verdadeira relação que existe entre o direito e o amor. Tento num campo estritamente jurídico, quanto numa abordagem interdisciplinar esses temas se interrelacionam e se casam de forma quase simbiótica. (…)

No direito público, notadamente no campo das relações internacionais, vemos a real dimensão que o amor, ou a falta deste, pode alcançar no universo das interações pessoais do ser humano. Traduziu este os meandros da ação do homem, da mais cruel e sangrenta manifestação – vista nas diversas guerras perpetradas entre os povos e, sobretudo, no limiar do século XX, nas duas guerras mundiais – à maior expressão da tolerância, manifestada pela valorização dos direitos humanos. (…)

No âmbito do direito privado, as relações familiares  vêm marcadas profundamente pela afetividade, tornando-se esta um verdadeiro paradigma para a sustentação e legitimidade da família e das relações parentais na pós-modernidade”.

Sobre a importância do afeto nos relacionamentos familiares, discorre Madaleno (apud CIARDO, 2015):

“O afeto é mola propulsora dos relacionamentos familiares e das relações interpessoais movidas pelo sentimento e pelo amor, para ao fim e ao cabo dar sentido e dignidade à existência. A afetividade deve estar presente nos vínculos de filiação e de parentesco, variando tão-somente na sua intensidade e nas especificidades do caso concreto”.

Complementa Tartuce (apud SOUSA) que “mesmo não constando a palavra afeto no Texto Maior como um direito fundamental, podemos dizer que o afeto decorre da valorização constante da dignidade humana”. Para Maria Helena Diniz, “deve-se, portanto, vislumbrar na família uma possibilidade de convivência marcada pelo afeto e pelo amor (…). É ela o núcleo ideal do pleno desenvolvimento da pessoa. É um instrumento para a realização integral do ser humano” (2012, p.17).

Neste sentido, Dias (2009) explica que

“Como seres em desenvolvimento, e, portanto merecedores de proteção especial, é dever dos genitores proporcionar aos seus filhos momentos de afeto e carinho, elementos essenciais ao desenvolvimento saudável de uma criança, resguardando-as contra o abandono afetivo”.

Referida autora ressalta, ainda, que

“O conceito atual de família, centrada no afeto como elemento agregador, exige dos pais o dever de criar e educar os filhos sem omitir-lhes o carinho necessário para a formação plena de sua personalidade, como atribuição do exercício do poder familiar. […] Assim, a convivência dos filhos com os pais não é direito do pai, mas direito do filho. Com isso, quem não detém a guarda tem o dever de conviver com ele. Não é direito de visitá-lo, é obrigação de visitá-lo. O distanciamento entre pais e filhos produz sequelas de ordem emocional e reflexos no seu sadio desenvolvimento. O sentimento de dor e de abandono pode deixar reflexos permanentes em sua vida” (DIAS, 2009, p. 415).

Da leitura de todas as citações doutrinárias acima observa-se que o elemento afetivo enquanto uma das características principais da família na atualidade faz com que o conceito de paternidade/maternidade responsável passe a pensar, obrigatoriamente, nos efeitos maléficos da falta de assistência afetiva aos filhos menores. Se até pouco tempo cogitava-se apenas o abandono moral, material e intelectual enquanto violadores da paternidade/maternidade responsável e da proteção integral do menor, é urgente incluir neste contexto a reflexão sobre o abandono afetivo.

Como visto, a participação afetiva da família é imprescindível para formação do caráter, personalidade e até mesmo idoneidade moral do menor, uma vez que a falta desse cuidado e amor é capaz de acarretar sérias dificuldades na sua vida, resultando em deficiências psíquicas intensas, sentimento de decepção, de rejeição e autodesvalorização. Muitas vezes, essa carência afetiva, pode resultar em quadros psicossomáticos, que quando não atendidos evoluem de uma forma que o menor necessita de tratamento terapêutico. Há crianças e adolescentes que respondem de maneira distinta, com requintes de raiva, podendo, quando em casos de abandono paterno, projetar essa responsabilidade de ausência sobre a mãe. Contudo, não é pacífico o entendimento doutrinário (nem jurisprudencial, conforme visto no capítulo anterior) sobre a reparabilidade pecuniária do abandono afetivo dos filhos pelos pais.

A corrente negativa do dever de indenizar pela falta de afetividade defende que os deveres decorrentes da paternidade/maternidade não podem adentrar ao campo subjetivo do afeto, inexistindo, desta forma, obrigação legal de amar alguém.

Para Farias e Rosenvald (apud SALMAN; SCHELEDER, 2016, p. 39),

“A pura e simples violação do afeto não deve ser motivo para ensejar uma indenização por dano moral, pois somente quando uma conduta caracteriza-se como ilícita, é que será possível falar-se em indenização pelos danos dela decorrentes, sejam eles materiais ou morais.

Para os referidos autores, reconhecer esse tipo de indenização produziria, na verdade, uma verdadeira patrimonialização de algo que não possui tal característica econômica. No entanto, os mesmos ponderam que:

“Em que pese a negativa de afeto entre pai e filho não dê ensejo a uma indenização por dano moral, devendo-se utilizar os mecanismos dispostos pelo Direito de Família para a solução do caso, é possível que este abandono enseje um dano material, por exemplo, quando desta negligência advier traumas que demandam tratamento psicológico. Nestes casos o dano é tão somente de ordem patrimonial, gerando uma indenização, com base no ressarcimento integral (restitutio in integrum)” (FARIAS; ROSENVALD apud SALMAN; SCHELEDER, 2016, p. 40).

E é nesse entendimento que pretendia-se chegar. Como já abordado em todo o presente trabalho, a ausência de amor, carinho e afeto dos pais com os menores, pode acarretar em males dificilmente recuperáveis na fase adulta desta criança.

É difícil entender o que justifica o abandono, principalmente o afetivo. Os filhos não pedem para nascer, pelo contrário, são indivíduos frágeis que nascem totalmente desamparados e são os que mais sofrem com essa rejeição.

As questões psicológicas, sociais e afetivas implicam na formação do ser humano como pessoa crítica, sociável e moralmente valorizada em todas as suas potencialidades. Se o indivíduo cresce sem o mínimo de amor e afeto de seus pais, ele pode vir a tornar-se um adulto com graves problemas, intolerante ao meio social em que vive.

A quantidade de crianças desamparadas afetivamente que se tornam adultos amargurados, com sentimento de ódio e vingança é enorme. Então deve haver punição sim para os que causam esses males que podem ser eternos na vida da criança e do adolescente. 

Desta forma, estabelecida conexão entre o afastamento paterno e o desenvolvimento de sintomas psicopatológicos no filho e comprovado o comprometimento da sua saúde física, psíquica e moral, é possível falar-se de indenização pelo dano moral decorrente do abandono afetivo. Por isso o julgador deve se atentar sempre ao caso concreto, pois os males psicológicos deixados na criança devem ser considerados em sua potencialidade para a melhor resolução da demanda.

Segundo entendimento de Maria Helena Diniz (2007, p. 35),

“A responsabilidade civil é a aplicação de medidas que obriguem uma pessoa a reparar dano moral ou patrimonial causado a terceiros, em razão de ato por ela mesma praticado, por pessoa por quem ela responde, por alguma coisa a ela pertencente ou de simples imposição legal”.

 Conforme definição de Gagliano e Pamplona Filho,

“A palavra “responsabilidade” tem sua origem no verbo latino “respondere”, significando a obrigação que alguém tem de assumir com as consequências jurídicas de suas atividades, contendo ainda, a raiz latina de spondeo, fórmula através da qual se vinculava, no Direito Romano, o devedor nos contratos verbais (2011)”.

A responsabilidade civil está inserida nos direitos das obrigações, onde a prática de um ato ilícito sobre uma obrigação gera um dever de indenizar a vítima que foi lesada pelo ato. A forma mais clássica desse dever de reparação é a indenização pecuniária ao final da demanda processual. Para Diniz (2007)

“A todo instante surge o problema da responsabilidade civil, pois cada atentado sofrido pelo homem relativamente à sua pessoa ou ao seu patrimônio constitui um desequilíbrio de ordem moral ou patrimonial que reclama a criação de soluções ou remédios por parte do ordenamento jurídico, visto que o direito não poderá tolerar ofensas que fiquem sem reparação”.

Assim, a  responsabilização civil pressupõe um dever jurídico anterior que foi descumprido, de forma que toda conduta humana que violar tal dever e gerar prejuízo a alguém deve ensejar reparação civil

Nem sempre a conduta que gerar prejuízo a outrem será considerada um ato ilícito. O abuso de direito  também pode ser fato gerador de responsabilização civil, conforme se extrai dos arts. 186 e 187 do Código Civil, in verbis:

“Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

Em sentido complementar, o art. 927 do mesmo diploma legal, dispõe:

“Art. 927: Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único: Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.

Para ser considerado ilícita, uma conduta deve estar prevista legislativamente como tal, motivo pelo qual acredita-se que o abandono afetivo não possa ser enquadrado como ato ilícito, a não ser que o legislador pátrio legisle neste sentido.

Em contrapartida, acredita-se ser totalmente cabível o enquadramento do abandono afetivo dos filhos pelos pais na categoria de abuso de direito, a saber, do direito ao livre planejamento familiar – constitucionalmente previsto e condicionado à paternidade/maternidade responsável  e à dignidade da pessoa humana –, bem como ao direito-dever dos pais de exercer o poder familiar em relação aos filhos menores.

De qualquer forma, para se falar em dever de indenizar será preciso a demonstração dos danos decorrentes do abuso de direito dos pais no exercício do poder familiar.

Porém, não se trata de dar preço ao amor, conforme explana Silva (apud PARÍSIO, 2015):

“Não se trata, pois, de "dar preço ao amor" – como defendem os que resistem ao tema em foco -, tampouco de "compensar a dor" propriamente dita. Talvez o aspecto mais relevante seja alcançar a função punitiva e dissuasória da reparação dos danos, conscientizando o pai do gravame causado ao filho e sinalizando para ele, e outros que sua conduta deve ser cessada e evitada, por reprovável e grave”.

O afeto não se quantifica, mas o reconhecimento doutrinário e jurisprudencial do abandono afetivo, quiçá o reconhecimento legislativo – certamente irão mitigar a incidência desta conduta reprovável na sociedade. Corroborando com este entendimento, Gagliano e Pamplona Filho (2011, p.737) acrescentam que

“Logicamente, dinheiro nenhum efetivamente compensará a ausência, a frieza, o desprezo de um pai ou de uma mãe por seu filho, ao longo da vida. Mas é preciso se compreender que a fixação dessa indenização tem um acentuado e necessário caráter punitivo e pedagógico, na perspectiva da função social da responsabilidade civil, para que não se consagre o paradoxo de se impor ao pai ou a mãe responsável por esse grave comportamento danoso (jurídico e espiritual), simplesmente, a perda do poder familiar, pois, se assim o for, para o genitor que o realiza, essa suposta sanção repercutiria como um verdadeiro favor”.

Portanto, defende-se a indenização por danos morais decorrentes de abandono afetivo dos pais para com seus filhos, uma vez que a doutrina da proteção integral do menor deve nortear o exercício da paternidade/maternidade responsável e do direito-dever ao poder familiar, sendo certo que o livre planejamento familiar só é garantido pela Constituição Federal se os pais zelarem pela dignidade de sua prole.

Conclusão

A família na atualidade serve a uma função social, qual seja, a proteção e a promoção da dignidade de seus membros. Dentro do núcleo familiar, embora todos os membros tenham a mesma importância, crianças e adolescentes, por sua condição de vulnerabilidade, em razão de estarem com sua personalidade em formação, recebem maiores cuidados, através da doutrina da proteção integral do menor.

A Constituição Federal garante a todos os casais o livre planejamento familiar, mas o condiciona ao exercício da paternidade/maternidade responsável, bem como à dignidade da pessoa humana que nascerá.

Conforme restou demonstrado, o abandono afetivo dos filhos por seus pais normalmente gera efeitos devastadores naqueles, motivo pelo qual o abuso de direito no exercício do poder familiar deverá ser considerado fato gerador de responsabilização civil.

Como já comentado, o afeto não é um dever imposto aos pais, tanto é que não consta expressamente em nenhuma norma brasileira. Porém, a inexistência de uma norma expressa que regularize o dever de dar afeto e amor aos filhos, não autoriza o abuso de direito na condução do poder familiar a ponto de restar configurado o abandono afetivo, que viola o dever de paternidade/maternidade responsável.

 

Referências
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VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: direito de família. 5. Ed. São Paulo: Atlas, 2005.
 
Nota:
[1] Trabalho orientado pela Profa. Laira Carone Rachid Domith, Mestre em Direito Público e Evolução Social pela Universidade Estácio de Sá, Especialista em Direito da Saúde pela Faculdade de Ciências Medicas e da Saúde de Juiz de Fora, Professora de Direito de Família da Faculdade Doctum de Juiz de Fira, Advogada.


Informações Sobre o Autor

Luana Tavares de Almeida

Acadêmica de Direito pela Faculdade Doctum de Juiz de Fora


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