Sumário: 1. Introdução; 2. A Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995; 3. A Lei 10.259, de 12 de julho de 2001; 4. As discussões advindas; 5. A Lei 10.741, de 1º de outubro de 2003; 6. O art. 94 da Lei 10.741/03 determinou um novo conceito de infração penal de menor potencial ofensivo?; 7. Conclusão.
1. Introdução
A Constituição Federal de 05 de outubro de 1998, em seu artigo 98 dispõe que a União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados, “criarão juizados especiais, providos de juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante procedimento oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau”.
Estabeleceu-se, nestes termos, a autorização Constitucional para a criação e instalação dos juizados especiais criminais, e é necessário se reconheça a grande virtude de tais “juizados”, nos termos em que inicialmente pensados, e reclamados por juristas de escol.
A idéia embrionária dos ditos “juizados especiais criminais”, e que merece aplauso, é a de se estabelecer valioso instrumento na agilização da prestação jurisdicional no tocante as denominadas infrações penais de menor potencial ofensivo, entretanto, desde o primeiro instante a definição que fixa a competência dos juizados tem causado enorme inquietação na comunidade jurídica. Ademais, demonstrando pouca ou quase nenhuma afinidade com as questões penais e processuais penais, o Poder Legislativo tem contribuído de forma significativa para o agravamento do quadro, que é um tanto mais preocupante do que se imagina, visto esbarrar suas molduras em questão de ordem constitucional, atingindo princípios verdadeiramente caros a toda a sociedade.
Os problemas que vêm sendo proporcionados pelo Legislador desatento ou despreparado não se referem, como pensaria o leigo ou aquele dado a conclusões apressadas e de pouca raiz, de simples questões processuais. As preocupações são mais profundas e estão a revelar que diante de tal quadro os operadores do Direito vêm adotando posturas que buscam “contornar” as verdadeiras ciladas legislativas, não sem grande risco de ferir princípios constitucionais, notadamente o da igualdade de todos perante a lei, estatuído do caput do artigo 5º da Carta Magna.
2. A Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995
No âmbito normativo infraconstitucional, a Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995, que passou a dispor sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, no seu art. 61 buscou estabelecer o conceito de “infração penal de menor potencial ofensivo”, assim o fazendo nos seguintes termos:
“Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a um ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial”.
Longe da esperada boa técnica, o dispositivo em comento trouxe para o campo jurídico profundas discussões quanto ao seu conteúdo e alcance, cumprindo destacar, nesse passo, a questão relacionada a previsão de “procedimento especial”, a excluir do âmbito de incidência dos Juizados Especiais Criminais as infrações a eles submetidas, conforme a ressalva contida na parte final do texto legal.
3. A Lei 10.259, de 12 de julho de 2001
No âmbito da Justiça Federal, os Juizados Especiais Cíveis e Criminais foram instituídos pela Lei 10.259, de 12 de julho de 2001.
Novas discussões surgiram com o advento da nova lei, e o debate mais acalorado fincou raízes na questão da ampliação ou não do conceito de infrações penais de “menor potencial ofensivo”.
É que o Novo Diploma legal estabelece no parágrafo único do art. 2º que:
“Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, ou multa”.
De substancial para a análise proposta, nota-se que com o texto legal passaram a ser considerados de menor potencial ofensivo os crimes punidos com pena máxima não superior a 2 (dois) anos e multa. Não se renovou a ressalva relativa a existência de procedimento especial, a excluir a infração do rol de incidência da Lei mais benéfica.
4. As discussões advindas
Após o advento da Lei 10.259/01 a discussão se estabeleceu nos planos doutrinário e jurisprudencial.
De um lado, vários juristas passaram a sustentar que a lei que instituiu os Juizados Especiais no âmbito da Justiça Federal não ampliou o conceito de infração de menor potencial ofensivo para além dos limites da competência da Justiça Federal. Vale dizer: permanecia a definição dada pela Lei 9.099/95 para os crimes de competência da Justiça Estadual, e para os crimes de competência da Justiça Federal era de se observar os parâmetros firmados no parágrafo único do art. 2º da Lei 10.259/01.
De outro vértice, não faltaram aqueles que passaram a sustentar que a nova definição legal, por ser ampliativa e, portanto, mais benéfica, deveria estender-se a toda e qualquer infração, fosse ela ajustada ao âmbito de competência da Justiça Estadual ou Federal. O argumento de base foi o princípio constitucional da isonomia ou igualdade, exortado no art. 5º, caput, da Constituição Federal.
Nesse sentido se posicionaram, desde logo, autores de nomeada como Alberto Silva Franco, Damásio E. de Jesus,[1] Fernando da Costa Tourinho Filho, Fernando Capez, Luiz Flávio Gomes e Victor Eduardo Rios Gonçalves, dentre outros. Tal entendimento acabou encampado pelos Tribunais e hoje a jurisprudência dominante é no sentido de que “a Lei nº 10.259/01, em seu art. 2º, parágrafo único, alterando a concepção de infração de menor potencial ofensivo, alcança o disposto no art. 61 da Lei nº 9.099/95”.[2]
O Superior Tribunal de Justiça vem decidindo reiteradamente que “em função do Princípio Constitucional da Isonomia, com a Lei nº 10.259/01 – que instituiu os juizados especiais cíveis e criminais no âmbito da Justiça Federal, o limite de pena máxima, previsto para a incidência do instituto da transação penal, foi alterado para 02 anos”.[3]
Nessa mesma linha argumentativa também já se decidiu que “com o advento da Lei nº 10.259/2001, que instituiu os Juizados Especiais Criminais na Justiça Federal, por meio de seu art. 2º, parágrafo único, ampliou-se o rol dos delitos de menor potencial ofensivo, por via da elevação da pena máxima abstratamente cominada ao delito, nada se falando a respeito das exceções previstas no art. 61 da Lei nº 9.009/95. Desse modo, devem ser considerados delitos de menor potencial ofensivo, para efeito do art. 61 da Lei n. 9.099/95, aqueles a que a lei comine, no máximo, pena detentiva não superior a dois anos, ou multa, sem exceção”.[4]
Aliás, com o surgimento da Lei 10.259, de 12 de julho de 2.001, o Ministério Público do Estado de São Paulo, por seu Procurador Geral de Justiça, baixou recomendação firmando o entendimento de que não se deveria aplicá-la no âmbito da Justiça Estadual,[5] sendo que tal posicionamento fora agora modificado, reconhecendo-se a ampliação do conceito de infração penal de menor potencial ofensivo para o âmbito da Justiça Estadual.[6]
5. A Lei 10.741, de 1º de outubro de 2003
Publicado no Diário Oficial da União em 03 de outubro de 2003, o denominado Estatuto do Idoso, Lei 10.741, de 1º de outubro de 2003, terá vigência, segundo dispõe seu artigo 118, em 90 dias contados da sua publicação,[7] com exceção ao disposto no artigo 36, caput, que entrará em vigor em 1º de janeiro de 2004, e traz em seu texto, entre outros temas, diversos dispositivos de natureza penal e também regras processuais penais.
Considera-se idoso, para os termos de tal lei, a pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos.
No âmbito do Código Penal o Estatuto alterou os seguintes dispositivos: art. 61, inc. II, letra h; art. 121, § 4º; art. 133, § 3º, inc. III; art. 140, § 3º; art. 141, inc. IV; art. 148, § 1º, inc. I; art. 159, § 1º; art. 183, inc. III, e art. 244.
A Lei de contravenções Penais sofreu modificação em seu art. 21. Também sofreram alterações as Leis de Tortura (Lei 9.455/97, em seu art. 1º, § 4º, inc. II), e a Lei Antitóxicos (Lei 6.368/76, no art. 18, inc. III).
Na lógica do “Estatuto do Idoso”, buscou-se punir com maior rigor as infrações praticadas contra pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos. Ocorre, entretanto, que seu artigo 94 aparentemente contraria a lógica que parecia evidente, ao dispor que:
“Aos crimes previstos nesta Lei, cuja pena máxima privativa de liberdade não ultrapasse 4 (quatro) anos, aplica-se o procedimento previsto na Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995, e, subsidiariamente, no que couber, as disposições do Código Penal e do Código de Processo Penal”.
Ora, o procedimento previsto na Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995, é o que se aplica às infrações penais de menor potencial ofensivo, assim reconhecidas nos termos do parágrafo único do art. 2º da Lei 10.259/01, e se o desejo era punir com maior rigor as infrações destacadas no novel Diploma, exatamente por entender-se que as mesmas são mais graves, qual a razão lógica para dar-lhes o tratamento dispensado àquelas de menor gravidade?
A questão de fundo é saber, ainda, se com as disposições do art. 94 da Lei 10.741/03 ampliou-se ou não, novamente, o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo, devendo ser considerados como tal, a partir da vigência da nova lei, e por igual, todos os crimes “cuja pena máxima privativa de liberdade não ultrapasse 4 (quatro) anos”.
Observado o foco central do estudo que ora se faz, passaremos a analisar a questão no tópico seguinte.
6. O art. 94 da Lei 10.741/03 determinou um novo conceito de infração penal de menor potencial ofensivo?
Certamente não.
A própria redação do art. 94 não faz qualquer menção a “infração penal de menor potencial ofensivo”. O legislador não indicou que os crimes cuja reprimenda buscou exasperar são considerados de menor potencial ofensivo; apenas determinou que em relação a eles se observe o procedimento da Lei 9.099/95, que é mais célere.
É certo que em sentido amplo, dito procedimento estabelece, dentre outros benefícios, o da possibilidade de transação penal antecedente à denúncia, quando preenchidos os requisitos legais, o que se revela, sem sombra de duvida, extremamente vantajoso ao “autor do fato”.
Não é razoável concluir, todavia, que fora intenção do legislador aplicar o procedimento da Lei 9.099/95 em sentido amplo, visando permitir, por exemplo, a transação penal.
Não seria lógico impor punição mais severa e permitir em relação aos mesmos delitos o instituto da transação penal, abrandando o tratamento inclusive em relação à forma de punição pretérita à vigência do Novo Diploma Legal. Haveria inaceitável antagonismo; uma verdadeira autofagia.
Doutrinando sobre a matéria, o insuperável Damásio E. de Jesus, com sua inteligência de sempre, dá a seguinte lição: “O art. 94 somente pretendeu imprimir à ação penal por crimes contra o idoso, com sanção abstrata máxima não superior a quatro anos, o procedimento da Lei n. 9.099/95, conferindo maior rapidez ao processo. Não seria razoável que, impondo um tratamento penal mais rigoroso aos autores de crimes contra o idoso, contraditoriamente viesse permitir a transação penal, instituto de despenalização (art. 76 da Lei dos Juizados Especiais Criminais). A ampliação do limite máximo viria permitir a concessão da roupagem de infrações de menor afetação jurídica a delitos de gravidade, como aborto consentido, furto e receptação simples, rapto, abandono material, contrabando etc. O art. 61 da Lei n. 9.099/95 contém a conceituação de crimes de menor potencial ofensivo para efeito da competência dos Juizados Especiais Criminais. O art. 94 do Estatuto do Idoso disciplina a espécie de procedimento aplicável ao processo, não cuidando de infrações de menor potencial ofensivo. Temos, pois, disposições sobre temas diversos, cada uma impondo regras sobre institutos diferentes, sendo incabível a invocação do princípio da proporcionalidade”.[8]
Na visão de Luiz Flávio Gomes e Thales Tácito Pontes Luz de Pádua Cerqueira, “o Estatuto do Idoso apenas quis emprestar da Lei 9.099/95 o rito dos artigos 77 a 83, chamado de rito sumaríssimo, que é mais célere, tendo o litígio uma rápida solução processual”.[9] Bem por isso, no mesmo trabalho, dentre outras conclusões apresentam as seguintes: 1ª “o conceito de ‘procedimento’ do artigo 94 do Estatuto do Idoso está vinculado com o procedimento strito sensu (artigos 77 a 83) da Lei 9.099/95 e não o procedimento lato sensu (Audiência Preliminar dos artigos 70/73 da Lei 9.099/95, transação penal, composição civil dos danos e representação nas lesões para pena máxima de 4 anos, como sugeriu de início)”; 2ª: “continua a viger no Brasil o conceito de infração de menor potencial ofensivo com pena máxima até 2 anos (artigo 2º, parágrafo único da Lei 10.259/01) e, ainda, o conceito de infração de médio potencial para embriaguez ao volante (artigo 306 do CTB), cuja pena máxima é de 3 anos, porém, cabendo nesse caso os institutos despenalizadores da Lei 9.099/95 (artigo 291, parágrafo único da Lei 9.503/97)”.
Cuidando do mesmo assunto e seguindo a mesma linha de raciocínio acima indicada, Jayme Walmer de Freitas apresenta as seguintes conclusões em excelente artigo que redigiu[10]: “a) O Estatuto somente inovou no campo processual ao ampliar a competência, em razão da matéria, dos Juizados Especiais Criminais, trazendo como conseqüência a possibilidade de processar e julgar os crimes contra idosos não considerados de menor potencial ofensivo que tenham pena máxima superior a dois anos e igual ou inferior a quatro anos. b) Não alterou o conceito de infração de menor potencial ofensivo, até o momento, privativo de leis específicas (Lei 9099/95 e 10259/01). c) Não permitiu, a exemplo do Código de Trânsito Brasileiro, que os institutos da composição civil de danos e da transação penal fossem aplicados às infrações que refogem ao âmbito das de menor potencial e apenadas até 4 (quatro) anos, mantendo o status quo ante inalterado”.
No estudo do tema é inevitável mencionar a questão relacionada ao parágrafo único do art. 291 do Código de Trânsito Brasileiro, Lei 9.503, de 23 de setembro de 1997, onde se estabeleceu a possibilidade de transação penal e outros benefícios da Lei 9.099/95 em relação a infrações não consideradas de menor potencial ofensivo; direito que acabou reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, desde que satisfeitos os requisitos legais.[11]
De ver-se, entretanto, que o parágrafo único do art. 291 do CTB faz expressa menção à possibilidade de aplicação do “disposto nos arts. 74, 76 e 88 da Lei 9.099, de 26 de setembro”, o que não é o caso do art. 94 do Estatuto do Idoso.
7. Conclusão
Embora numa primeira e rápida leitura do disposto no art. 94 da Lei 10.741, de 03 de outubro de 2003, fosse até possível imaginar conclusão diversa, é necessário convir, pelos argumentos acima expendidos, sem prejuízo de outros, que o dispositivo em comento não ampliou o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo, que hoje permanece intacto, conforme o entendimento ampliativo que se emprestou ao disposto no parágrafo único do art. 2º, da Lei 10.259, de 12 de julho de 2001, sendo injurídica qualquer pretensão de se permitir o instituto da transação penal aos delitos atingidos pela Lei 10.741/03 apenas e tão-somente for força do disposto em seu art. 94.
Notas:
Informações Sobre o Autor
Renato Flávio Marcão
Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito. Professor convidado no curso de pós-graduação em Ciências Criminais da Rede Luiz Flávio Gomes e em cursos de pós-graduação em diversas Escolas Superiores do Ministério Público e da Magistratura. Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP). Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), do Instituto de Ciências Penais (ICP) e do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP).