Resumo: O presente trabalho tem como escopo o estudo acerca da possibilidade de aplicação do princípio da proporcionalidade para se admitir a utilização de provas ilícitas no processo penal. Aborda o tema das provas ilícitas e a vedação constitucional imposta às mesmas. Estabelece a distinção entre provas ilícitas, provas ilegítimas e provas ilícitas por derivação, discorrendo sobre as teorias doutrinárias e jurisprudenciais sobre o tema. Analisa a possibilidade de aplicação do princípio da proporcionalidade para permitir a utilização de prova ilícita no processo. Para tanto, examina a colisão entre os direitos fundamentais em jogo e estabelece o modo pelo qual o princípio da proporcionalidade pode ser utilizado nos casos de provas ilícitas em favor do acusado (pro reo) e em desfavor do mesmo (pro societate). Expõe as argumentações doutrinárias e jurisprudências sobre o tema, que ainda está distante de atingir posicionamento pacífico entre os juristas.
Palavras-chave: Processo penal. Prova ilícita. Admissibilidade..
Abstract: The present work has as its scope the study on the possibility of applying the principle of proportionality to admit the use of illegal evidence in criminal proceedings. It addresses the issue of unlawful evidence and the constitutional fence imposed on them. It distinguishes between illicit evidence, illegitimate evidence and illicit evidence by derivation, discussing doctrinal and jurisprudential theories on the subject. It examines the possibility of applying the principle of proportionality to allow the use of unlawful evidence in the case. To that end, it examines the collision between fundamental rights at play and establishes the way in which the principle of proportionality may be used in cases of unlawful evidence in favor of the accused (pro reo) and in disfavor (pro societate). It exposes doctrinal arguments and jurisprudence on the subject, which is still far from reaching a peaceful position among jurists.
Sumário: Introdução. 1. A Vedação das Provas Ilícitas. 2. Provas Ilegítimas, Provas Ilícitas e Provas Ilícitas por Derivação. 3. A admissibilidade das provas ilícitas no processo penal por meio da aplicação do princípio da proporcionalidade. 3.1. O princípio da proporcionalidade e a prova ilícita pro reo. 3.2. O princípio da proporcionalidade e a prova ilícita pro societate. Considerações finais. Referências.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como escopo principal a elucidação da problemática que envolve o princípio da inadmissibilidade das provas obtidas por meio ilícito no processo. O questionamento central consiste na possibilidade de aplicação do princípio da proporcionalidade – utilizado para solucionar colisões entre direitos fundamentais igualmente tutelados pela Constituição da República, através do método da ponderação – para permitir a utilização de prova ilícita no processo penal.
Para se atingir tal objetivo de pesquisa, será feito inicialmente o estudo acerca da vedação das provas ilícitas, tecendo comentários acerca da distinção existente entre prova ilícita e prova ilegítima, bem como da questão das provas ilícitas por derivação e da teoria dos frutos da árvore envenenada. Nesse sentido, serão expostas as divergências doutrinárias relativas aos temas propostos, recorrendo-se aos precisos fundamentos emanados por ilustres doutrinadores e os posicionamentos firmados pelos Tribunais Superiores pátrios.
Realizado o estudo sobre os temas elencados, atinge-se, então, o ponto central e inspirador da presente pesquisa, qual seja a admissibilidade das provas ilícitas no processo penal por meio da aplicação do princípio da proporcionalidade, tema que enseja discussão aprofundada e consiste em uma das mais expressivas polêmicas no âmbito do direito processual penal. Nesse diapasão, o enfrentamento do mencionado tema será feito da seguinte maneira: primeiramente, analisar-se-á como o princípio da proporcionalidade consiste no meio apto a possibilitar a utilização de prova ilícita no processo penal; num segundo momento, o foco estará na aplicação do princípio da proporcionalidade para admitir as provas ilícitas colhidas em benefício do acusado (proporcionalidade pro reo), analisando os direitos fundamentais colidentes e expondo as posições doutrinárias e jurisprudenciais sobre a questão; em seguida, passa-se a abordar o ponto de maior controvérsia em torno do tema, que é a possibilidade de aplicação do princípio da proporcionalidade para permitir a utilização de provas ilícitas colhidas em desfavor do réu (proporcionalidade pro societate). Para tal, serão mencionadas as correntes doutrinárias que se posicionam fundamentadamente sobre o tema, analisando o ponto de vista oriundo dos Tribunais Superiores e tecendo considerações acerca da problemática em voga.
Por fim, serão expostas as considerações finais sobre o estudo realizado, analisando os objetivos propostos e os resultados atingidos com a presente pesquisa.
1 A VEDAÇÃO DAS PROVAS ILÍCITAS
Embora o direito à prova seja consagrado no texto constitucional brasileiro, não se pode dizer que a atividade probatória possua um caráter absoluto, imune de limitações legais. Sabe-se que o processo penal tem como um de seus corolários a busca pela verdade processual. No entanto, tal desiderato deverá ser atingido com a observância dos limites impostos à produção das provas.
Nesse sentido, reza o art. 5º, LVI, da Constituição da República, que “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”. Analisando tal dispositivo no âmbito do direito processual penal, pertinente é o entendimento de Oliveira (2008, p. 287) no que tange à função cumprida pela mencionada norma:
“[…]a vedação das provas ilícitas atua no controle da regularidade da atividade estatal persecutória, inibindo e desestimulando a adoção de práticas probatórias ilegais por parte de quem é o grande responsável pela sua produção. Nesse sentido, cumpre função eminentemente pedagógica, ao mesmo tempo que tutela determinados valores reconhecidos pela ordem jurídica.”
Com efeito, entende-se que a disposição constitucional compreende duas espécies de provas proibidas, isto é, que vão de encontro aos preceitos constitucionais: as provas ilegítimas e as provas ilícitas. Cumpre importante tarefa, outrossim, estabelecer a distinção entre as mesmas.
2 PROVAS ILEGÍTIMAS, PROVAS ILÍCITAS E PROVAS ILÍCITAS POR DERIVAÇÃO
As provas ilegítimas, como bem define Fernando Capez (2005, p. 263), estão relacionadas às normas do direito processual:
“Quando a norma afrontada tiver natureza processual, a prova vedada será chamada de ilegítima. Assim, se, por exemplo, um documento for juntado na fase das alegações finais, na primeira parte do procedimento do júri, tal prova não poderá ser aceita, considerando-se ilegítima, pois o art. 406, §2º, do CPP proíbe a juntada de qualquer documento nessa fase do processo[…]”.
São ilegítimas, como exemplo, as provas obtidas com afronta aos arts. 207, 210, 226 e 243, §2º, do Código de Processo Penal, que rezam, respectivamente:
“Art. 207. São proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho. […]
Art. 210. As testemunhas serão inquiridas cada uma de per si, de modo que umas não saibam nem ouçam os depoimentos das outras, devendo o juiz adverti-las das penas cominadas ao falso testemunho. […]
Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:
I – a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;
Il – a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;
III – se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela;
IV – do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais. […]
Art. 243, § 2o. Não será permitida a apreensão de documento em poder do defensor do acusado, salvo quando constituir elemento do corpo de delito.”
Como se vê, a própria norma processual já prevê expressamente a proibição da utilização de determinadas provas no processo. Conseqüentemente, a inobservância dos regramentos estabelecidos na legislação acarreta a exclusão das provas produzidas através de tal violação.
Por outro lado, quando a vedação da prova se der em razão da violação de normas de direito material, estar-se-á diante das provas ilícitas. Nessa vertente posiciona-se Capez (2005, p. 279), elencando uma série de exemplos de provas ilícitas que, no ordenamento jurídico brasileiro, constituem afronta a normas e preceitos de diversas áreas:
“Quando a prova for vedada, em virtude de ter sido produzida com afronta a normas de direito material, será chamada de ilícita. Desse modo, serão ilícitas todas as provas produzidas mediante a prática de crime ou contravenção, as que violem normas de direito civil, comercial ou administrativo, bem como aquelas que afrontem princípios constitucionais […] Assim, por exemplo, confissão obtida mediante a prática de tortura (Lei n. 9.455/97), apreensão de documento realizada mediante violação de domicílio (CP, art. 150), a captação de uma conversa por meio do crime de interceptação telefônica (Lei n. 9.296/96, art. 10) e assim por diante. Outrossim, pode ocorrer que a prova não seja obtida pela realização de infração penal, mas se considere ilícita por afronta a princípio constitucional; é o caso da gravação de conversa telefônica que exponha o outro interlocutor a um vexame insuportável, colidindo com o resguardo da imagem, da intimidade e da vida privada das pessoas (CF, art. 5º, X). Podem também ocorrer as duas coisas ao mesmo tempo: a prova ilícita caracteriza infração penal e fere princípio da Constituição Federal. É o caso da violação do domicílio (art. 5º, XI), do sigilo das comunicações (art. 5º XII), da proteção contra tortura e tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III) e do respeito à integridade física e moral do preso (art. 5º, XLIX), entre outros”.
Distinção também existe no que tange ao momento da transgressão decorrente da prova ilegítima e da prova ilícita. De um lado, entende-se que naquela a ilegalidade se dá no momento de sua produção no processo; em contrapartida, na última, está pressuposta uma violação no momento da colheita da prova, anterior ou simultânea ao processo, mas sempre de forma externa a este (AVOLIO, 2003, p. 43).
Além das hipóteses já anteriormente mencionadas, outra modalidade de prova, também decorrente do princípio da inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos, possui destaque e gera diferentes posicionamentos tanto na doutrina quanto na jurisprudência: as provas ilícitas por derivação.
Avolio (2003, p. 68), afirmando que as provas ilícitas por derivação se colocam, por uma imposição lógica, nos sistemas de inadmissibilidade processual das provas ilicitamente obtidas, estabelece a seguinte definição:
“O problema das provas ilícitas por derivação, por uma imposição lógica, só se coloca nos sistemas de inadmissibilidade processual das provas ilicitamente obtidas. Concerne às hipóteses em que a prova foi obtida de forma lícita, mas a partir da informação extraída de uma prova obtida por meio ilícito”.
Desse modo, ao tratar do tema atinente às provas ilícitas por derivação, está-se diante de questão que envolve a extensão da ilicitude de uma prova a outras provas, que passariam a estar “contaminadas” pela primeira.
Isto posto, surge então a controvérsia doutrinária e jurisprudencial que gira em torno da possibilidade de tais provas ilícitas por derivação serem admitidas no processo. Obter conclusão sobre o tema não consiste em tarefa simples, e até hoje não há entendimento pacífico no direito pátrio nesse sentido.
Buscando elucidar o problema mencionado, a Suprema Corte americana construiu a teoria dos fruits of the poisonous tree, ou teoria dos frutos da árvore envenenada, segundo a qual o vício das plantas se transmite a todos os seus frutos. Tal teoria fora reconhecida pioneiramente em 1920, na decisão proferida no caso “Silverthorne Lumber Co. v. United States” e, a partir de então, as cortes americanas passaram a não admitir qualquer prova, mesmo que lícita em si mesma, oriunda de práticas ilegais (CAPEZ, 2005, p. 32).
No Brasil, o Supremo Tribunal Federal não pacificou entendimento no sentido de se admitir, ou não, as provas ilícitas por derivação. Conforme lição de Paulo Rangel (2006, p. 394), o Supremo posicionou-se inicialmente a favor deste meio de prova, entendendo não haver contaminação. Contudo, após determinados questionamentos, a Corte passou a ser contrária à admissibilidade da referida prova, taxando-a como vedada.
Embora patente a controvérsia acerca do tema, a tese oriunda da teoria dos frutos da árvore envenenada consiste em posição majoritária do Supremo Tribunal Federal, como salienta Alexandre de Moraes (2004, p. 129). Nesse sentido, segue o julgado do STF que ratifica tal entendimento:
“E M E N T A: PROVA PENAL – BANIMENTO CONSTITUCIONAL DAS PROVAS ILÍCITAS (CF, ART. 5º, LVI) – ILICITUDE (ORIGINÁRIA E POR DERIVAÇÃO) – INADMISSIBILDADE – […] ILICITUDE DA PROVA – INADMISSIBILIDADE DE SUA PRODUÇÃO EM JUÍZO (OU PERANTE QUALQUER INSTÂNCIA DE PODER) – INIDONEIDADE JURÍDICA DA PROVA RESULTANTE DA TRANSGRESSÃO ESTATAL AO REGIME CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS […] A QUESTÃO DA DOUTRINA DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA ("FRUITS OF THE POISONOUS TREE"): A QUESTÃO DA ILICITUDE POR DERIVAÇÃO. – Ninguém pode ser investigado, denunciado ou condenado com base, unicamente, em provas ilícitas, quer se trate de ilicitude originária, quer se cuide de ilicitude por derivação. Qualquer novo dado probatório, ainda que produzido, de modo válido, em momento subseqüente, não pode apoiar-se, não pode ter fundamento causal nem derivar de prova comprometida pela mácula da ilicitude originária. – A exclusão da prova originariamente ilícita – ou daquela afetada pelo vício da ilicitude por derivação – representa um dos meios mais expressivos destinados a conferir efetividade à garantia do "due process of law" e a tornar mais intensa, pelo banimento da prova ilicitamente obtida, a tutela constitucional que preserva os direitos e prerrogativas que assistem a qualquer acusado em sede processual penal […]”. (STF, RHC90376 / RJ – RIO DE JANEIRO RECURSO EM HABEAS CORPUS. Relator(a): Min. CELSO DE MELLO Julgamento: 03/04/2007 Órgão Julgador: Segunda Turma).
Nesse sentido, importante estabelecer um parâmetro acerca da amplitude da contaminação por parte da prova ilícita, a fim de se abordar um outro ponto de divergência sobre tema: se o fato de se estar diante de uma prova ilícita terá como conseqüência a inadmissibilidade de todas as provas a ela posteriores, ou somente a inadmissibilidade das que são, de fato, derivadas daquela obtida anteriormente.
Sobre o assunto, Grinover, Fernandes e Gomes Filho (2007, p. 163) fazem a seguinte ressalva:
“[…] excepcionam-se da vedação probatória as provas derivadas da ilícita, quando a conexão entre umas e outra é tênue, de modo a não se colocarem a primária e as secundárias como causa e efeito; ou, ainda, quando as provas derivadas da ilícita poderiam de qualquer modo ser descobertas por outra maneira[…]significa que se a prova ilícita não foi absolutamente determinante para o descobrimento das derivadas, ou se estas derivam de fonte própria não ficam contaminadas e podem ser produzidas em juízo.”
Na mesma esteira, Oliveira (2008, p. 302) afirma ser necessário, no exame cuidadoso de cada situação concreta, avaliar a eventual derivação da ilicitude. O referido autor, ainda, demonstra preocupação com as possíveis conseqüências que a ampla extensão do conceito dos frutos da árvore envenenada possa acarretar para a persecução penal, apresentando um exemplo concreto:
“Com efeito, interpretada em termos absolutos, alguns delitos jamais poderiam ser apurados, se a informação inicial de sua existência resultasse de uma prova obtida ilicitamente (por exemplo, escuta telefônica) […] prevalecendo esse entendimento, ou seja, no sentido de que todas as provas que forem obtidas a partir da notícia (derivada da prova ilícita) da existência de um crime são também ilícitas, será muito mais fácil ao agente do crime furtar-se à ação da persecução penal. Bastará ele mesmo produzir uma situação de ilicitude na obtenção da prova de seu crime, com violação a seu domicílio, por exemplo, para trancar todas e quaisquer iniciativas que tenham por objeto a apuração daquele delito então noticiado. “
Com isso, a doutrina construiu a tese da inevitabilidade, ou da descoberta inevitável (inevitable discovery), sustentando que devem ser admitidas no processo as provas que, embora sejam decorrentes de uma prova ilícita, inevitavelmente seriam obtidas, mas por outros meios lícitos (GRINOVER, FERNANDES e GOMES FILHO, 2007, p. 163). Fala-se também em independent source, ou, como salienta Rangel (2006, p. 395), em teoria da prova absolutamente independente (PAI) para a hipótese em que não há nexo causal entre a prova ilícita e a prova subseqüente.
Em conformidade com tal acepção, o STF firmou entendimentos no sentido de afastar a teoria da contaminação nas hipóteses em que as provas subseqüentes forem independentes da ilícita, como mostra o seguinte julgado:
“EMENTA: HABEAS CORPUS. PROVA ILÍCITA. ESCUTA TELEFÔNICA. FRUITS OF THE POISONOUS TREE. NÃO-ACOLHIMENTO.
Não cabe anular-se a decisão condenatória com base na alegação de haver a prisão em flagrante resultado de informação obtida por meio de censura telefônica deferida judicialmente. É que a interceptação telefônica – prova tida por ilícita até a edição da Lei nº 9.296, de 24.07.96, e que contaminava as demais provas que dela se originavam – não foi a prova exclusiva que desencadeou o procedimento penal, mas somente veio a corroborar as outras licitamente obtidas pela equipe de investigação policial. Habeas corpus indeferido”. (STF, HC 74599 / SP – SÃO PAULO HABEAS CORPUS Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO Julgamento: 03/12/1996 Órgão Julgador: Primeira Turma).
Por outro lado, há na doutrina pátria posicionamentos em sentido absolutamente contrário à aplicação da teoria dos frutos da árvore envenenada. Filia-se a esta corrente o autor Paulo Rangel (2006, p.395), que, sobre o tema, expõe o seguinte pensamento:
“O texto constitucional não prevê, expressamente, a vedação à prova derivada da obtida por meio ilícito […]somos do entendimento de que a prova obtida licitamente, através daquela colhida com infringência à lei, é admissível no processo, pois onde a lei (Constituição) não distingue, não cabe ao intérprete distinguir.”
De fato, o texto constitucional não possui previsão expressa no tocante às provas ilícitas por derivação. Todavia, entende-se que tal ausência não impede que se firmem entendimentos doutrinários e jurisprudenciais sobre o tema, uma vez que as normas constitucionais possuem alcance que não se restringe tão-somente à letra da lei. Ademais, verifica-se que o legislador vem trabalhando no sentido de regulamentar as questões atinentes à produção probatória e de tornar expressa a previsão acerca das provas ilícitas por derivação. Nessa esteira, a Lei 11.690/08, que proporcionou a reforma do Código de Processo Penal, deu a seguinte redação ao art. 157 do referido diploma legal:
“Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.
§ 1o São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras.
§ 2o Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova”.
Como se vê, a reforma do CPP colocou a teoria dos frutos da árvore envenenada de maneira expressa na legislação processual brasileira, estabelecendo duas hipóteses em que não se vislumbraria a contaminação das provas derivadas das ilícitas. Entretanto, OLIVEIRA (2009, p.318) aponta dificuldades que podem ser enfrentadas no plano prático:
“Impõe, porém, observar que, no plano prático, algumas dificuldades poderão surgir, sobretudo em razão de não se apresentar tão simples assim a definição de derivação. A dificuldade a que ora nos referimos em relação à definição da palavra derivação não é, evidentemente, de origem semântica. Ela se fará presente na identificação concreta de se tratar de prova efetivamente derivada da ilícita. Busca-se, então, o significado do apontado “nexo de causalidade da prova”.
Conclui-se, então, que não se deve desprezar a teoria dos frutos da árvore envenenada, sobretudo após a previsão expressa trazida com a reforma do CPP. Contudo, faz-se necessário o exame minucioso para se aferir a existência de nexo de causalidade entre as provas ilícita e derivada, bem como a “independência” desta com relação à primeira, para que sejam obtidas soluções para questões teóricas e práticas atinentes ao tema.
3 A ADMISSIBILIDADE DAS PROVAS ILÍCITAS NO PROCESSO PENAL POR MEIO DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Os direitos fundamentais consagrados na Constituição de 1988 não são dotados de um caráter absoluto, tendo em vista que, na hipótese da ocorrência de colisão entre direitos igualmente protegidos pela Carta Magna, necessária será a aplicação do princípio da proporcionalidade a fim de se sopesar qual interesse deverá prevalecer no caso concreto, em detrimento do direito fundamental que acabará por ser mitigado.
Dessa forma, embora aparentemente consista num dispositivo que não abra possibilidade de abrigar exceções ou mitigações, o preceito constitucional que veda a utilização das provas ilícitas também possui um cunho relativo, podendo ser flexibilizado quando, em determinada situação, encontrar-se em oposição a outro valor de equivalente relevo para o ordenamento jurídico pátrio.
Nesse sentido, o princípio da proporcionalidade ganha latitudinário relevo na abordagem do tema da admissibilidade das provas ilícitas na seara do processo penal, quando se verifica a configuração de uma efetiva colisão entre direitos fundamentais no caso concreto. Eis o entendimento de Grinover, Fernandes e Gomes Filho (2007, p.161) sobre a matéria:
“A teoria, hoje dominante, da inadmissibilidade processual das provas, colhidas com infringência a princípios ou normas constitucionais, vem, porém, atenuada por outra tendência, que visa a corrigir possíveis distorções a que a rigidez da exclusão poderia levar em casos de excepcional gravidade. Trata-se do denominado Verhältnismassigkeitsprinzip, ou seja, de um critério de proporcionalidade, pelo qual os tribunais da então Alemanha Federal, sempre em caráter excepcional e em casos extremamente graves, têm admitido a prova ilícita, baseando-se no princípio do equilíbrio entre valores fundamentais constrastantes”.
Analisando os entendimentos citados acerca do tema em voga, não resta dúvida em afirmar que a aplicação do princípio da proporcionalidade consiste no meio apto a relativizar a vedação das provas ilícitas expressa no texto constitucional e, conseqüentemente, permitir que as mesmas sejam utilizadas no processo penal, observando-se os requisitos da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito.
A maior controvérsia doutrinária reside, então, no questionamento acerca de quais hipóteses em que as provas ilícitas poderão ser admitidas no processo penal através da aplicação do princípio da proporcionalidade. De um lado, encontra-se a corrente majoritária que entende ser a prova ilícita admissível apenas quando sua utilização se der em benefício do acusado (proporcionalidade pro reo). De outro lado, parte menos expressiva da doutrina posiciona-se favorável à utilização da prova ilícita também em benefício da sociedade (proporcionalidade pro societate).
3.1. O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE E A PROVA ILÍCITA PRO REO
Possui respaldo pela grande maioria dos doutrinadores pátrios a possibilidade de aplicação do princípio da proporcionalidade no sentido de admitir a utilização no processo de provas ilícitas em favor do acusado, como assevera Grinover, Fernandes e Gomes Filho (2007, p. 162):
“Aliás, não deixa de ser, em última análise, manifestação do princípio da proporcionalidade a posição praticamente unânime que reconhece a possibilidade de utilização, no processo penal, da prova favorável ao acusado, ainda que colhida com infringência a direitos fundamentais seus ou de terceiros.”
Ratifica tal entendimento Oliveira (2008, p. 312), acrescentando o seguinte:
“A prova da inocência do réu deve sempre ser aproveitada, em quaisquer circunstâncias. Em um Estado Democrático de Direito não há como se conceber a idéia da condenação de alguém que o próprio Estado acredita ser inocente. Em tal situação, a jurisdição, enquanto Poder Público, seria, por assim dizer, uma contradição em seus termos. Um paradoxo jamais explicado ou explicável” (grifos do autor).
Como a aplicação do princípio da proporcionalidade pressupõe uma real colisão entre direitos fundamentais no caso concreto, faz-se necessário estabelecer quais valores se contrapõem quando se está diante de uma prova ilícita pro reo.
Entende-se que a previsão constitucional que expressamente veda a utilização das provas ilícitas no processo constitui uma garantia que o indivíduo possui em face do interesse de punir estatal, como bem define Mariano Da Silva (2007, p. 22). Tal afirmação é pertinente, haja vista o aludido dispositivo ter o condão de promover o respeito aos direitos garantidos ao particular no tocante à sua intimidade, ao devido processo legal, dentre outros valores consagrados no art. 5º da Carta Magna, tornando defesa a produção probatória que configure afronta a tais preceitos.
Todavia, o próprio texto Magno igualmente confere ao acusado o direito à ampla defesa, ao contraditório, bem como aos valores fundamentais da vida e da liberdade.
Dessa forma, como salienta Fabiana Lemes Zamalloa do Prado (2006, p. 209), estão em jogo dois direitos constitucionalmente protegidos, que são, de um lado, o direito de liberdade do acusado, e de outro, o direito eventualmente violado na produção da prova, e é aí que reside a colisão entre direitos fundamentais que dá ensejo à aplicação do princípio da proporcionalidade pro reo.
“[…] estão em jogo dois direitos constitucionalmente protegidos, quais sejam o direito eventualmente violado na produção da prova e o direito de liberdade do acusado, em risco de lesão, diante da possibilidade de uma condenação indevida. É a existência de uma colisão real entre interesses igualmente protegidos pela Constituição que autoriza a invocação do princípio da proporcionalidade, em matéria de prova ilícita pro reo.”
Desse modo, restando comprovado o efetivo conflito entre normas fundamentais de equivalente peso, torna-se necessária a aplicação do princípio da proporcionalidade para se ponderar qual direito deverá prevalecer no caso concreto. Nesse diapasão, advém o questionamento em torno de como se realizar a aplicação do princípio da proporcionalidade e determinar o direito fundamental a ser priorizado na situação concreta.
Com efeito, aplicação do princípio da proporcionalidade, além de pressupor a existência de um real conflito entre direitos constitucionalmente tutelados, deve ser efetuada à luz de três requisitos ou subprincípios, quais sejam a necessidade, a adequação e a proporcionalidade em sentido estrito, para que, então, o magistrado possa ponderar qual valor possui maior densidade no caso concreto.
Assim, a conduta do magistrado no que tange à aplicação do princípio da proporcionalidade deve se dar da seguinte maneira: primeiramente, através do requisito da adequação, verificar se a utilização da prova consiste num meio apto a se obter a absolvição de um indivíduo inocente; em segundo lugar, por intermédio do requisito da necessidade, aferir se a utilização da prova ilícita constitui o meio menos gravoso de se chegar ao fim almejado, qual seja a consecução da prova de inocência do réu; por fim, com fulcro no requisito da proporcionalidade em sentido estrito, verificar se está configurada a idéia de justa medida, ou seja, se existe uma reciprocidade equilibrada entre as desvantagens concernentes à utilização da prova ilícita e as vantagens obtidas com a absolvição do sujeito injustamente acusado.
Verifica-se, assim, que a aplicação do princípio da proporcionalidade no tocante às provas ilícitas no processo penal enseja uma atividade hermenêutica por parte do magistrado, por meio de critérios subjetivos, no sentido de se avaliar se a adoção de uma medida restritiva de um direito fundamental em determinada situação concreta é adequada, necessária e representa a proporção equilibrada para fazer cessar uma lesão grave a outro direito fundamental igualmente consagrado no sistema jurídico.
Diante dos argumentos expostos, entende-se guardar pertinência a acepção no sentido de relativizar o dispositivo que torna defesa a utilização das provas ilícitas no processo penal, nas hipóteses em que tal regra esbarra no direito à liberdade do ser humano, no caso, o acusado. Nesse sentido, as Mesas de Processo Penal da Universidade de São Paulo[1] já se posicionaram a respeito, enunciando em Súmula de nº 50 o entendimento de que “podem ser utilizadas no processo penal as provas ilicitamente colhidas, que beneficiem a defesa” (GRINOVER, FERNANDES e GOMES FILHO, 2007, p. 165).
Dessa forma, não se verifica impedimento na aplicação do princípio da proporcionalidade pro reo, ressaltando-se a necessidade de serem observados os subprincípios da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, a fim de que seja prolatada uma decisão justa no caso concreto, evitando o imensurável prejuízo que uma eventual condenação de um inocente traria ao indivíduo e ao sistema jurídico em geral.
3.2. O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE E A PROVA ILÍCITA PRO SOCIETATE
Elucidada a questão atinente às provas ilícitas em favor do acusado, cuja admissibilidade é defendida por expressiva maioria na doutrina, passa-se a abordar o ponto de maior controvérsia e preocupação entre os doutrinadores, que é o da admissibilidade das provas ilícitas em desfavor do acusado, ou seja, das provas ilícitas pro societate.
Consoante entendimento de Oliveira (2008, p. 12), o critério da proporcionalidade poderá ser utilizado em favor da acusação, quando não estiver em risco a aplicabilidade potencial e finalística da norma da inadmissibilidade:
“Por aplicabilidade potencial e finalística estamos nos referindo à função de controle da atividade estatal (responsável pela produção da prova) que desempenha a norma do art. 5º, LVI, da CF. Assim, quando não se puder falar no incremento ou no estímulo da prática de ilegalidade pelos agentes produtores da prova, pensamos ser possível, em tese, a aplicação da regra da proporcionalidade”.
Por sua vez, Fernando Capez (2005, p. 38) desperta a reflexão acerca da admissibilidade das provas ilícitas pro societate enumerando alguns questionamentos:
“Mais delicada, portanto, é a questão da adoção do princípio da proporcionalidade pro societate. Aqui, não se cuida de um conflito entre o direito ao sigilo e o direito da acusação à prova. Trata-se de algo mais profundo. A acusação, principalmente a promovida pelo Ministério Público, visa resguardar valores fundamentais para a coletividade, tutelados pela norma penal. Quando o conflito se estabelecer entre a garantia do sigilo e a necessidade de se tutelar a vida, o patrimônio e a segurança, bens também protegidos por nossa Constituição, o juiz, utilizando seu alto poder de discricionariedade, deve sopesar e avaliar os valores contrastantes envolvidos. Suponhamos uma carta apreendida ilicitamente, que seria dirigida ao chefe de uma poderosa rede de narcotráfico internacional, com extensas ramificações com o crime organizado. Seria mais importante proteger o direito do preso ao sigilo de sua correspondência epistolar, do qual se serve para planejar crimes, do que desbaratar uma poderosa rede de distribuição de drogas, que chefia milhões de vidas de crianças e jovens? Certamente não. Não seria possível invocar a justificativa do estado de necessidade?”
Como se percebe, trata-se de uma questão das mais complexas e enseja uma reflexão aprofundada acerca de todos os valores envolvidos, das possíveis conseqüências, enfim, uma ponderação cuidadosa através de critérios hermenêuticos para se chegar à conclusão de uma eventual possibilidade de admissão de provas ilícitas pro societate em um determinado caso concreto.
Oliveira (2008, p.312) utiliza o exemplo de uma decisão do STF, atinente ao RE nº 251.445/GO, para estudo sobre o tema. Eis o caso:
“T (em referência a um terceiro), sabendo da prática habitual de crimes contra crianças e adolescentes, por parte de R (réu, na ação penal em comento), adentrou o local de trabalho deste, dali subtraindo diversas fotografias nas quais apareciam diversas crianças nuas e/ou mantendo relações sexuais. De posse do material incriminador, T passou a exigir de R a entrega de dinheiro, sob ameaça de entregar as fotografias à Polícia. Recusada a exigência, as fotos foram efetivamente entregues à autoridade policial, terminando por instruir ação penal instaurada contra R. Após a absolvição em segunda instância, a Suprema Corte terminou por rejeitar o recurso aviado, sob o fundamento da inadmissibilidade da prova obtida ilicitamente, com violação ao domicílio do R” (grifos do autor).
Analisando o caso exposto, faz-se necessário, primeiramente, estabelecer quais os direitos fundamentais em jogo e se há uma efetiva colisão entre os mesmos, para posteriormente se verifique a possibilidade de aplicação do princípio da proporcionalidade para admitir, ou não, a utilização da prova ilícita colhida em desfavor do acusado.
Dessa forma, no que tange aos valores envolvidos no caso mencionado, verifica-se a existência de duas violações a direitos fundamentais igualmente tutelados pela Carta Magna. De um lado, nota-se a violação aos direitos dos menores (direito à segurança, à proteção da incapacidade, à intimidade, entre outros), e de outro, a violação ao direito de inviolabilidade do domicílio (art. 5º, XI, da CRFB) do acusado (OLIVEIRA, 2008, p. 313).
Constatada a colisão entre os valores mencionados no caso concreto e, aplicando-se a teoria da proporcionalidade para estabelecer quais os direitos que devem prevalecer, entende-se que a Suprema Corte cometeu equívoco ao rejeitar o recurso pelo fato de serem inadmissíveis as provas obtidas ilicitamente. Considera-se que os a violação dos valores em questão dos menores possui gravidade de “peso” bem mais elevado do que o dano causado pela violação ao domicílio do acusado. Nessa esteira, eis o fundamento de Oliveira (2008, p. 313):
“Acreditamos que a Suprema Corte perdeu uma grande oportunidade de aplicação do critério da proporcionalidade, sobretudo porque se encontrava diante de uma situação em que as lesões, presentes e futuras, causadas pela infração criminal eram (e serão), a senso comum, imensamente maiores que aquela decorrente da violação do domicílio”.
Nessa acepção, corrobora-se para o entendimento no sentido de que, no caso em tela, o Supremo deveria ter aplicado o princípio da proporcionalidade pro societate, uma vez que o mal causado aos menores é de maior gravidade, podendo a lesão se prolongar em termos psicológicos durante longo tempo. Além disso, entende-se que, a não aplicação do mencionado princípio em desfavor do acusado poderá propiciar que o mesmo continue a praticar os delitos, sob a proteção que o direito à inviolabilidade do domicílio lhe confere. Seria de considerável maior gravame para sociedade a impunidade de um criminoso de tal estirpe, a uma violação de seu direito à intimidade.
Numa outra vertente, nota-se a presença de julgados nos Tribunais Superiores que acabaram por autorizar a utilização de prova ilícita pro societate. Segue abaixo acórdão do Superior Tribunal de Justiça, referente ao julgamento do HC 3982/RJ, de 1995, em que se admitiu a prova decorrente de escuta telefônica, em desfavor do acusado:
“CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. "HABEAS CORPUS". ESCUTA TELEFONICA COM ORDEM JUDICIAL. REU CONDENADO POR FORMAÇÃO DE QUADRILHA ARMADA, QUE SE ACHA CUMPRINDO PENA EM PENITENCIARIA, NÃO TEM COMO INVOCAR DIREITOS FUNDAMENTAIS PROPRIOS DO HOMEM LIVRE PARA TRANCAR AÇÃO PENAL (CORRUPÇÃO ATIVA) OU DESTRUIR GRAVAÇÃO FEITA PELA POLICIA. O INCISO LVI DO ART. 5. DA CONSTITUIÇÃO, QUE FALA QUE 'SÃO INADMISSIVEIS AS PROVAS OBTIDAS POR MEIO ILICITO', NÃO TEM CONOTAÇÃO ABSOLUTA. HA SEMPRE UM SUBSTRATO ETICO A ORIENTAR O EXEGETA NA BUSCA DE VALORES MAIORES NA CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE. A PROPRIA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA, QUE E DIRIGENTE E PROGRAMATICA, OFERECE AO JUIZ, ATRAVES DA 'ATUALIZAÇÃO CONSTITUCIONAL' (VERFASSUNGSAKTUALISIERUNG), BASE PARA O ENTENDIMENTO DE QUE A CLAUSULA CONSTITUCIONAL INVOCADA E RELATIVA. A JURISPRUDENCIA NORTE-AMERICANA, MENCIONADA EM PRECEDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, NÃO E TRANQUILA. SEMPRE E INVOCAVEL O PRINCIPIO DA 'RAZOABILIDADE' (REASONABLENESS). O 'PRINCIPIO DA EXCLUSÃO DAS PROVAS ILICITAMENTE OBTIDAS' (EXCLUSIONARY RULE) TAMBEM LA PEDE TEMPERAMENTOS. ORDEM DENEGADA”.
Insta ressaltar que a decisão proferida se deu antes da vigência da lei nº 9296/96, que regulamentou a questão das interceptações telefônicas para prova em investigação criminal e em instrução processual penal. Sendo assim, considera-se que o citado acórdão constitui uma aplicação do princípio da proporcionalidade pro societate, em que se ponderou pela prevalência dos direitos fundamentais atinentes à coletividade, sobretudo o direito à segurança, previsto no art. 5º, caput, da CRFB, em detrimento do direito à inviolabilidade do sigilo das comunicações telefônicas (na época, ainda não regulamentadas) e, conseqüentemente, relativizou-se o art. 5º, LVI, do texto constitucional, que veda a admissibilidade das provas ilícitas no processo.
Oliveira (2008, p. 315) relata, ainda, um julgamento envolvendo a extradição de uma artista estrangeira, no qual o Supremo Tribunal Federal se utilizou do critério da proporcionalidade para admitir uma prova ilícita colhida em favor da acusação. No referido caso, a estrangeira alegou ter sido vítima de estupro nas dependências da Polícia Federal e, diante disso, a Suprema Corte deferiu a produção do exame de DNA na placenta da gesta, mesmo sem prévia autorização por parte desta. Trata-se da RCL nº 2.040/DF, e segue a ementa do referido acórdão:
“EMENTA: – Reclamação. Reclamante submetida ao processo de Extradição n.º 783, à disposição do STF. 2. Coleta de material biológico da placenta, com propósito de se fazer exame de DNA, para averigüação de paternidade do nascituro, embora a oposição da extraditanda. 3. Invocação dos incisos X e XLIX do art. 5º, da CF/88. 4. Ofício do Secretário de Saúde do DF sobre comunicação do Juiz Federal da 10ª Vara da Seção Judiciária do DF ao Diretor do Hospital Regional da Asa Norte – HRAN, autorizando a coleta e entrega de placenta para fins de exame de DNA e fornecimento de cópia do prontuário médico da parturiente. 5. Extraditanda à disposição desta Corte, nos termos da Lei n.º 6.815/80. Competência do STF, para processar e julgar eventual pedido de autorização de coleta e exame de material genético, para os fins pretendidos pela Polícia Federal. 6. Decisão do Juiz Federal da 10ª Vara do Distrito Federal, no ponto em que autoriza a entrega da placenta, para fins de realização de exame de DNA, suspensa, em parte, na liminar concedida na Reclamação. Mantida a determinação ao Diretor do Hospital Regional da Asa Norte, quanto à realização da coleta da placenta do filho da extraditanda. Suspenso também o despacho do Juiz Federal da 10ª Vara, na parte relativa ao fornecimento de cópia integral do prontuário médico da parturiente. 7. Bens jurídicos constitucionais como "moralidade administrativa", "persecução penal pública" e "segurança pública" que se acrescem, – como bens da comunidade, na expressão de Canotilho, – ao direito fundamental à honra (CF, art. 5°, X), bem assim direito à honra e à imagem de policiais federais acusados de estupro da extraditanda, nas dependências da Polícia Federal, e direito à imagem da própria instituição, em confronto com o alegado direito da reclamante à intimidade e a preservar a identidade do pai de seu filho. 8. Pedido conhecido como reclamação e julgado procedente para avocar o julgamento do pleito do Ministério Público Federal, feito perante o Juízo Federal da 10ª Vara do Distrito Federal. 9. Mérito do pedido do Ministério Público Federal julgado, desde logo, e deferido, em parte, para autorizar a realização do exame de DNA do filho da reclamante, com a utilização da placenta recolhida, sendo, entretanto, indeferida a súplica de entrega à Polícia Federal do "prontuário médico" da reclamante.”
Consoante o entendimento de Oliveira (2008, p.315), o STF foi preciso e coerente ao determinar a produção probatória mencionada, visto que tal intervenção não teve o condão de atingir a integridade física da vítima.
O tema atinente ao aproveitamento das provas ilícitas em desfavor do réu encontra bastante divergência tanto na doutrina, quanto na jurisprudência pátrias. Nota-se que vários doutrinadores sequer firmaram posicionamento a respeito, e os Tribunais ainda não tratam do assunto de forma suficientemente precisa.
Todavia, embora patente a divergência, entende-se que o princípio da proporcionalidade possa ser aplicado no sentido de se admitir a utilização de provas ilícitas pro societate em casos extremos, nos quais os valores sopesados indiquem a prevalência dos direitos fundamentais à segurança, à vida, entre outros que a Carta Magna confere à coletividade, e fique evidenciada a necessidade de se punir e coibir a prática de crimes causadores de elevado gravame, como, por exemplo, os crimes hediondos.
Uma eventual omissão por parte do Poder Judiciário ao não admitir uma prova ilícita que indique de forma cabal a prática de um crime hediondo, por exemplo, representaria uma medida desproporcional, ou seja, iria de encontro ao desiderato primordial do princípio da proporcionalidade, que é o de dar proteção aos direitos fundamentais. Pelo contrário, poderia ocasionar a postergação de práticas delituosas graves, que permaneceriam impunes e permanentes, em virtude da proteção conferida por direitos fundamentais de menor “valor” no caso concreto, como o direito à inviolabilidade do domicílio do acusado.
Contudo, há que se frisar a necessidade da plena observância dos requisitos da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, uma vez que o princípio da proporcionalidade, por consistir num critério de hermenêutica jurídica, não pode ser aplicado sem a precedência de um minucioso exame de todos os valores contrastantes no caso concreto. Nas hipóteses de prova ilícita obtida em desfavor do acusado, ressalta-se que a mesma poderá ser utilizada em casos de excepcionais, que representem sério risco à coletividade. Caso contrário, se o princípio da proporcionalidade for utilizado de forma sem critério, poder-se-á dar ensejo a decisões em discrepância com os demais princípios que norteiam o ordenamento jurídico pátrio.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo em vista a ampla abrangência dos princípios constitucionais e dos direitos fundamentais, indubitável é a influência que os mesmos exercem no âmbito do direito processual penal, constituindo os pilares necessários para a construção do modelo processual penal e para a aplicação e interpretação das normas nos casos concretos. Nesse sentido, podem ser encontrados diversos dispositivos constantes do texto constitucional que guardam estrita relação com o processo penal, sejam eles direitos concernentes ao indivíduo, à relação processual, ou à atuação do Estado na persecução penal. Em destaque, os princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, cuja observância consiste em condição sine qua non para a validade da relação processual.
Todavia, apesar da mencionada relevância que guardam no ordenamento jurídico, os direitos fundamentais não possuem caráter absoluto. Em determinadas situações, é possível que dois ou mais direitos fundamentais, equivalentemente consagrados na Constituição, se encontrem em oposição quando relacionados a certa conduta. Nesse caso, estar-se-á diante de uma colisão entre direitos fundamentais, cuja solução será realizada através do método da ponderação de bens e resultará na prevalência de um e a mitigação de outro direito fundamental colidente.
Nesse contexto, fora desenvolvido no direito alemão o princípio da proporcionalidade, que consiste no fundamento jurídico da ponderação de bens. A aplicação do referido princípio deve ser realizada com a observância de três subprincípios a ele inerentes: adequação entre os meios utilizados e os fins perseguidos; necessidade da adoção da medida que cause menor gravame para a consecução do objetivo almejado; e proporcionalidade em sentido estrito, que consiste na ponderação de bens, estabelecendo a justa medida entre os meios utilizados e os fins perseguidos, e promovendo o equilíbrio entre as vantagens e as desvantagens aferidas com a ponderação.
Dessa forma, o princípio da proporcionalidade possui o condão de solucionar as colisões entre direitos fundamentais, determinando qual prevalecerá e qual será mitigado no caso concreto, e a sua aplicação vem sendo relacionada à possibilidade de relativização do dispositivo constante do art. 5º, LVI, da Constituição da República, que veda a utilização, no processo, das provas obtidas por meio ilícito.
Entende-se como prova ilícita aquela cuja produção se deu mediante ofensa ao direito material. São consideradas provas ilícitas, por exemplo, aquelas colhidas com violação do domicílio, da intimidade, entre outros direitos fundamentais previstos ordenamento jurídico pátrio. Nesse sentido, adveio do direito norte-americano a teoria dos frutos da árvore envenenada, segundo a qual a ilicitude de uma prova acarreta a ilicitude das outras subseqüentes. Ainda que licitamente produzidas, são consideradas ilícitas por derivação, de acordo com a mencionada teoria.
Não há entendimento pacífico firmado pelos Tribunais Superiores acerca da questão concernente às provas ilícitas por derivação. Criou-se na doutrina as teorias da descoberta inevitável e da prova absolutamente independente, originadas no direito norte-americano como inevitable discovery e independent source, que prevêem a licitude da prova derivada quando, respectivamente, fossem inevitavelmente colhidas e não possuam nexo causal com a prova ilícita originária. Entende-se que tais teorias devem prevalecer no que tange à caracterização da ilicitude ou não da prova produzida subsequentemente à prova ilícita, pois a teoria dos frutos da árvore envenenada não pode ser aplicada sem o devido critério para aferir se houve, de fato, contaminação das provas derivadas. Atentado para isto, o legislador pátrio positivou expressamente as regras da descoberta inevitável e da prova independente no Código de Processo Penal, o que trouxe notável contribuição para diminuir a divergência sobre o assunto e orientar a atividade dos operadores do direito.
Há um consenso entre os doutrinadores acerca da possibilidade de se aplicar o princípio da proporcionalidade para permitir a utilização de prova ilícita em benefício do acusado, no processo penal. Nesse caso, verifica-se que, de fato, não há maiores problemas para a mencionada aplicação do princípio, tendo em vista os direitos fundamentais colidentes no caso concreto: de um lado, o direito que indivíduo tem à sua liberdade; de outro, o direito que fora violado ao se produzir a prova. Considera-se que, observados os requisitos de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, ao se colocar os valores contrapostos na balança, conclui-se que o direito à liberdade do indivíduo deve prevalecer e, quando existir uma prova ilícita que demonstre a sua inocência, esta conseqüentemente deverá ser admitida no processo. Ademais, entende-se que deve ser afastada a ilicitude da prova quando esta for colhida pelo acusado sob estado de necessidade, ou seja, quando a necessidade de salvar o seu direito à liberdade faz com que o acusado sacrifique o direito que fora violado quando da obtenção da prova.
A maior controvérsia reside, então, na aplicação do princípio da proporcionalidade pro societate, ou seja, para permitir a utilização de prova ilícita em desfavor do acusado e em prol dos interesses da coletividade. Muitos doutrinadores sequer se posicionam sobre o tema e percebe-se nos Tribunais Superiores, especialmente no Supremo, uma tendência a rechaçar a possibilidade de aplicação do princípio da proporcionalidade pro societate, embora haja alguns julgados isolados que vieram a admitir prova ilícita em desfavor do acusado.
No âmbito doutrinário, percebe-se que a preocupação por parte dos que rejeitam a tese da proporcionalidade pro societate gira em torno do argumento de que o direito penal e o processo penal possuem um teor garantista e, dessa forma, não se poderia permitir a flexibilização de direitos fundamentais do acusado.
Contudo, apóia-se na corrente que prevê a possibilidade de se utilizar, em casos extremos, prova ilícita obtida em desfavor do réu. Entende-se que, em determinadas situações, os direitos fundamentais relativos à sociedade, como o direito à vida, à segurança publica, entre outros, representam valores de maior densidade do que os direitos violados na colheita da prova, devendo, dessa forma, prevalecer com a aplicação do princípio da proporcionalidade.
Considera-se que não se pode permitir que crimes de grave potencial lesivo não sejam coibidos e que a coletividade fique a mercê de perigosos marginais, impunes devido a não admissão de uma prova obtida por meio ilícito. Na hipótese de existir uma prova (ilícita) cabal que indique a autoria de um crime gravíssimo, que põe em risco a paz social, deverá ela ser admitida no processo. Caso assim não seja, poderá se estar causando um gravame ainda maior, que é a possibilidade de que os crimes, além de impunes, continuem a ser praticados, com a proteção dos direitos fundamentais que impedem a utilização da prova que indica a autoria do delito.
Todavia, é necessário frisar que a aplicação do princípio da proporcionalidade seja realizada mediante a observância plena dos subprincípios da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito. Trata-se de um critério hermenêutico que deve ser utilizado com extremo cuidado, evitando que decisões sejam proferidas de modo desproporcional e desarrazoado, o que configuraria uma aplicação exacerbada a indevida do princípio em tela.
Destarte, conclui-se que, sendo corretamente aplicado, o princípio da proporcionalidade representa um importante aliado para os operadores do direito na consecução do objetivo supremo de todo o mundo jurídico: a justiça.
Informações Sobre o Autor
Davi Valdetaro Gomes Cavalieri
Procurador Federal da Advocacia Geral da União em Brasília/DF, Bacharel em Direito pela Faculdade de Direi-to de Vitória (FDV) e Especialista em Direito Público