Resumo: o princípio da precaução cada vez mais é suscitado nas discussões jurídicas como instrumento prático de solução de celeumas envolvendo a aplicação da técnica em sentido amplo (abarcando e qualquer campo de atividade: tecnológica, econômica, mineradora, industrial etc.). Como princípio, possui um conteúdo fluido; e, hoje, possui status de norma jurídica (até mesmo com força superior à regra) definidora do comportamento humano. Dessa maneira, deve-se buscar traçar um standard comportamental para o princípio da precaução, o que se faz por meio da ética, pressuposto valorativo de qualquer princípio, a ligação moral entre a teoria e a prática do Direito. Justamente aqui se buscará contribuir com a razão da aplicação desse princípio na atividade humana. Para tanto, analisa-se no trabalho o princípio responsabilidade de Hans Jonas, forjado a partir da heurística do medo, embasamento ético suficiente para orientar refletidamente o comportamento humano.
Palavras-chave: princípio da precaução; filosofia da ciência; fundamentos filosóficos; princípio responsabilidade; heurística do medo.
Abstract: The precautionary principle is increasingly elicited in legal discussions as a practical tool to solve the problem of the application of technology in a broad sense (covering all fields of activity: technological, economic, mining, industrial etc.). As a principle, it has a fluid content; And, today, it has the status of a legal norm (even with force superior to the rule) that defines human behavior. In this way, one must seek to establish a behavioral standard for the precautionary principle, which is done through ethics, an evaluative presupposition of any principle, the moral link between theoretical and empirical law. It is precisely here that one will seek to contribute with the reason for the use of this principle in human activity. In order to do so, this paper analyses Hans Jonas imperative of responsibility, based on the heuristic of fear, an ethical basis sufficient to guide human behavior.
Key-words: Precautionary principle; Philosophy of science; Philosophical foundations; imperative of responsibility; Heuristic of fear.
Sumário: Apresentação. 1. A precaução como um problema ético; 2. Razões para a ética da precaução; 3. Introduzindo o pensamento de Jonas: a limitação da ética “pré-moderna” e a necessidade de uma nova ética; 4. A heurística do medo e o princípio da precaução: uma ligação necessária; 5. Ausência de reciprocidade: a relação dever-dever; 6. Conclusão; 7. Notas. Referências.
Apresentação.
O “Princípio da Precaução é usualmente invocado em casos de atividades humanas exercidas com o emprego de tecnologias avançadas que suscitam incertezas quanto a efeitos mediatos para o meio ambiente e para a saúde humana” (CEZAR; ABRANTES, 2003, p. 244).
E cada vez mais o ser humano depende da tecnologia (que hoje se mostra como fim em si mesmo).Por isso, cada vez mais juridicamente se suscita a aplicação do princípio da precaução.
Este artigo possui, então, a pretensão de identificar a fundamentação de uma ética específica para o princípio da precaução, que, como base teórico-filosófica, será o guia para sua interpretação e aplicação jurídico-prática (o fim a ser seguido).
Para tanto, tentar-se-á aproximar as aspirações éticas pós-modernas de Hans Jonas e sua heurística do medo com as bases filosóficas do princípio da precaução.
A alusão alegórica ao “ambientalista” em Hans Jonas só demonstra que a base para a ética ambiental do princípio da precaução partirá de sua construção do Princípio responsabilidade, a partir da heurística do medo, mas não revela que ele se preocupou com o tema em particular (o princípio da precaução).
Além, claro, da análise do Princípio responsabilidade de Jonas, far-se-á a análise do princípio da precaução não em sua dimensão dogmática, mas em sua dimensão ético-filosófica, buscando a aproximação entre o comportamento desejado pela aplicação do princípio da precaução e sua concepção deontológica.
Ainda que Jonas e sua heurística do medo constituam a base deste trabalho, tentar-se-á não perder de vista, em momento algum, os dilemas reinventados ou inaugurados pela pós-modernidade, de modo que a influência de outros autores e trabalhos se farão presentes.
1. A precaução como um problema ético.
O princípio da precaução (ou enfoque da precaução), hoje, recebe guarida dogmática em inúmeros tratados internacionais. Não só, possui diversas interpretações jurídico-dogmáticas tendentes à sua concretização pelo Direito e sua práxis, tais como a da Declaração das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Declaração do Rio de 1992) – talvez a mais famosa –, segundo a qual “Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental” (Princípio 15).
Muito completa parece ser aquela trabalhada pela Comissão Mundial sobre Ética da Ciência e da Tecnologia da Unesco (Comest), usada por Hugh Lacey (2006, p. 373-392) para defender o princípio da precaução contra quem o acusa de estagnador do desenvolvimento científico e que aqui merece destaque:
“Quando atividades podem conduzir a dano moralmente inaceitável, que seja cientificamente plausível, ainda que incerto, devem ser empreendidas ações para evitar ou diminuir aquele dano. "Dano moralmente inaceitável" refere-se a dano para os seres humanos ou para o ambiente, que seja uma ameaça à vida ou à saúde humanas, ou que seja sério e efetivamente irreversível, ou injusto com as gerações presentes e futuras, ou imposto sem a adequada consideração dos direitos humanos daqueles afetados. O juízo de plausibilidade deve estar fundado em análise científica. As análises devem ser contínuas, de modo que as ações escolhidas sejam submetidas a revisão. ‘Incerteza’ pode aplicar-se, mas não necessita limitar-se, à causalidade ou aos limites do dano possível. ‘Ações’ são intervenções empreendidas antes que o dano ocorra que buscam evitar ou diminuir esse dano. Deve-se escolher ações que sejam proporcionais à seriedade do dano potencial, com consideração de suas conseqüências positivas e negativas, e com uma avaliação tanto da ação como da inação. A escolha da ação deve ser o resultado de um processo participativo” (Comest, 2005, p. 14).
Acrescente-se ainda que em 1998, em Wingspread, nos Estados Unidos, realizou-se uma reunião com cientistas, legisladores, advogados e ambientalistas para buscar uma definição para o Princípio da Precaução. A Declaração de Wingspread (Precautionary Principle Conference, 1998) define o Princípio da Precaução da seguinte forma:
“Quando uma atividade gera ameaças de dano à saúde humana ou ao meio ambiente, medidas de precaução devem ser tomadas mesmo se algumas relações de causa e efeito nãosão completamente estabelecidas cientificamente. Neste contexto, o proponente de uma atividade, mais do que o público, deve ter o ônus da prova” (CEZAR; ABRANTES, 2003, p. 230).
À luz dessas definições normativo-dogmáticas (sem pretensão de analisá-las em si), e a despeito de outras existentes, trabalhar-se-á, então, aqui, com a perspectiva segundo a qual “O Princípio da Precaução é aquele que determina que não se produzam intervenções no meio ambiente antes de ter a certeza de que estas não serão adversas para o meio ambiente” (ANTUNES, 2004, p. 36) – e com isso se pretende afastar, também, outras abordagens possíveis das definições e interpretações jurídico-normativas, a exemplo da epistemológica –.
Não obstante as figuras dogmáticas cunhadas (as apresentas e muitas outras), elas não prescindem de considerações anteriores, calcadas no ambiente filosófico, até porque, com Tércio Sampaio Ferraz Junior (2013, p. 18), sabe-se, “o enfoque dogmático preocupa-se em possibilitar uma decisão e orientar a ação” (dever-ser) a partir de pressupostos assumidos, mas não cuida de problematizar e/ou legitimar determinado pressuposto adotado.
Vale dizer, aqui se parte do chamado viés zetético propugnado por Tércio Sampaio, em que se está preocupado em questionar, perquirir e estabelecer premissas para a práxis, para a ação jurídico-normativa; no caso, identificando os valores para a abordagem precautória.
“Isto é assim porque nenhum ramo da ciência pode viver sem filosofia, porque é nela que o cientista vai buscar as linhas mestras que orientam e norteiam o saber científico”, conforme destaca Maria Helen Diniz, que segue: “Todas as ciências estão em estreito contato com a filosofia, uma vez que possuem princípios gerais, axiomas e supostos que não entram no objeto que investigam, daí a necessidade de uma consideração filosófica que permita justifica-los” (2009, p. 22).
E por essa razão é que se tentará, num breve esboço, fundamentar o princípio da precaução a partir de uma ética específica, a partir do Princípio responsabilidade e da heurística do medo formulada por Hans Jonas.
Todo problema jurídico-comportamental é um problema ético. Afinal, a Ética é entendida, grosso modo, como “ciência da conduta” (ABBAGNANO, 2007, p. 442).
2. Razões para a ética da precaução.
“O poder da humanidade de transformar as características físicas da Terra alcançou um nível que dificilmente poderia ser imaginado há um século. Ao mesmo tempo, a população mundial aumentou numa velocidade sem precedentes, dobrando em algumas décadas”. A partir dessas constatações, “houve uma crescente conscientização de que as mudanças globais podem ter como efeito a redução da parte da riqueza global a que cada habitante do mundo tem acesso” (KISS, 2004, p. 1-2).
Ou seja, dá-se como um dos motivos para o cuidado da ética como mote da pós-modernidade, dentre outros, “os desenvolvimentos da ciência e da técnica, ou seja, da descoberta de novas tecnologias capazes de intervir não só nos mecanismos ambientais, como também na própria constituição biológica e psíquica do homem”(ABBAGNANDO, 2007, p. 451).
Fato é que o ser humano atingiu um tal nível de desenvolvimento técnico que lhe permitiu, como nunca antes percebido, alterar a natureza a ponto de modificá-la irreversivelmente, de suprimi-la, inclusive, em muitos pontos. E não só a natureza extra-humana como a própria conformação biogenética do Homem está à mercê da técnica.
Hans Jonas (2006, p. 43), a par dessa constatação, chega a afirmar que “somos tentados a crer que a vocação dos homens se encontra no contínuo progresso desse empreendimento”, a tal ponto de concluir, conseguintemente, que a “conquista de um domínio total sobre as coisas e sobre o próprio homem surgiria como a realização do seu destino”. Revela Jonas, então, a prevalência do Homo faber (o homem da técnica) sobre o Homo sapiens.
A técnica adquiriu tamanha força que, hoje, nas mãos dos próprios seres humanos, a humanidade corre risco de extinção; o Homem, dada a capacidade técnica que o desenvolvimento tecnológico-científico atingiu, é capaz de produzir sua própria extinção. Não só pela capacidade que demonstrou em desenvolver armamentos altamente destrutivos, como também pela capacidade de manipular a si próprio biogeneticamente, de sorte que a humanidade, pelo menos como sempre se conheceu, tende a acabar pela possibilidade de alterações em sua própria substância biogenética.
Sobre a capacidade destrutiva do Homem, que é inegável, seja proposital (como as bombas nucleares Fat Man e Little Boy) ou não (como os acidentes de Chernobyl e Bhopal), Edward O. Wilson (2012, especialmente Cáp. 3), após analisar as cinco grandes extinções na Terra e seus ciclos de recuperação,[1] chega a vaticinar a tese de que o ser humano deu início à sexta grande extinção, mediante o declínio da biodiversidade provocada pela intervenção antrópica no meio ambiente, especialmente no que diz respeito à sua temperatura. Caso acerte em seu prognóstico, o maior problema é que o tempo humano não acompanhará o tempo terrestre de recuperação que é de milhares ou mesmo milhões de anos.
Sobre a capacidade de manipulação genética, por seu turno, com Maura Roberti (2013, p. 16-7), é de se ter que “O caminho para a chamada ‘genética humana’ foi aberto em 1970, quando os microbiologistas norte-americanos Hamilton Othaniel Smith e Daniel Nathans encontraram substâncias da classe de enzimas que têm uma propriedade utilíssima. Elas são naturais da molécula de DNA, da qual são feitos os genes”. Seguindo com a autora, em sua pesquisa sobre a bioética e o Direito Penal, tem-se que, “com isso, é possível realizar alterações no DNA, extraindo um gene ou abrindo um espaço nessa molécula, para inserir, no local que fica vago, uma gene artificial”.
E com a evolução a técnica, “quase três décadas se passaram entre a construção do modelo da dupla hélice e o desenvolvimento da tecnologia que iria permitir o acesso ao interior da estrutura molecular do DNA, sendo que, hodiernamente, o homem tecnológico gera novos seres, por meio do domínio das complexas técnicas de redução assistida” (Ib., p. 18-9).
Vale dizer, a capacidade do ser humano de reproduzir-se e modificar-se sem intervenção de quem o concebeu(a natureza)se mostra tão drástica, que passa a suscitar a preocupação do Direito Penal (ramo mais drástico do Direito).
A par disso, ainda na pesquisa de Maura Roberti, tem-se “Assim é que pensar em genética humana implica em mencionar as consequências sociais, éticas e legais dessa espécie de manipulação genética e, através dos mecanismos democráticos, garantir que os novos poderes gerados pelas descobertas cientificas não se voltem contra a humanidade” (Ib., p. 20).
Michael J. Sandel (2013, p. 19), preocupado com a ética na era da engenharia genética, divulga a questão:
“As descobertas da genética nos apresentam a um só tempo uma promessa e um dilema. A promessa é que em breve seremos capazes de tratar e prevenir uma série de doenças debilitantes. O dilema é que nosso recém-descoberto conhecimento genético também pode permitir a manipulação de nossa própria natureza – para melhorar nossos músculos, nossa memória e nosso humor; para escolher o sexo, a altura e outras características genéticas de nossos filhos; para melhorar nossas capacidade físicas e cognitiva; para nos tornar ‘melhores do que a encomenda’”.
A técnica, outrossim, adquiriu tamanha força que se desprendeu, como meio, dos fins que a guiavam. Antes o Homem produzia, inventava, instrumentalizava suas invenções por necessidades. Agora, percebe-se que a produção tecnológica assumiu independência: produz-se por produzir, porque se pode produzir, a ponto de criar necessidades artificialmente.
Zygmunt Bauman identificou que a tecnologia, hoje, conserva-se num sistema fechado, tendo o mundo a sua volta como ambiente propício para seu desenvolvimento, no qual ela “define suas próprias desventuras e ações falhas como efeitos de sua própria insuficiência, e os ‘problemas’ resultantes como exigências para dar mais de si mesma: quanto mais ‘problemas’ gera a tecnologia, tanto mais de tecnologia se precisa” (1997, p. 261).
Para o autor, “A própria disponibilidade de tecnológicos utilizáveis ainda que subempregados (…) exige sua aplicação; os recursos tecnológicos, por assim dizer, legitimam suficientemente suas consequências, tornando assim seu uso imperativo, quaisquer que sejam os resultados” (Ib., p. 262). Em resumo: “Se alguma coisa pode ser feita, deve ser e será feita” (Ib., p. 264).
Seguindo, Bauman anota, inclusive – e isso parece perigoso no sentido ético –, que o progresso tecnológico moderno não está preocupado com os fins, não possui um telos fora de si mesmo porquanto sua finalidade é a de desenvolver as capacidades do Homem de produzir mais, sem saber o quê e o porquê. E por isso concluiu que: “O ‘dilema tecnológico’ é, em penúltima análise, a declaração de independência dos meios dos fins; em última análise, o anúncio da soberania dos meios sobre os fins” (Ib., p. 264).
E ele percebe que a tecnologia fragmenta tudo no mundo, inclusive o ser humano, impedindo que se enxergue a totalidade do eu, do outro e da natureza: cada problema é separado e resolvido por uma técnica altamente especializada, e os problemas de sua aplicação, são resolvidos por outra técnica, e assim sucessivamente. As especificações e especializações são tão grandes que, para Bauman (Ib., p. 277), “O eu moral é a mais evidente e a mais importante das vítimas da tecnologia. O próprio eu moral não pode sobreviver e não sobrevive à fragmentação”, afirmando:
“O sujeito nunca age como “pessoa total”, apenas como portador momentâneo de um dos muitos “problemas” que pontuam sua vida; também não age sobre o Outro como pessoa, ou sobre o mundo como totalidade. Se o efeito da ação do sujeito alcançar para além do fragmento posto no momento em foco, isso seria explicado, com prontidão e confiança, com argumentos que o excluíssem como acidente”, “consequências não previstas”, como infeliz coincidência que ninguém queria que acontecesse – um evento que não lança nenhuma sombra sobre a integridade moral do agente. Além dos interesses parciais e das obrigações focalizadas, é provável que não se proponha nenhuma responsabilidade irresistível pelo Outro, ou pelo mundo”.
Para, enfim, chegar à conclusão de que a sociedade de risco vislumbrada por Ulrick Beck é causada pela desfragmentação do eu moral. Aliás, justamente “o conceito de sociedade de risco designa um estágio da modernidade em que começam a tomar corpo as ameaças produzidas até então no caminho da sociedade industrial” (PATTI JUNIOR, 2007, p. 25), cuja característica é a desobediência de fronteiras e classes sociais.
Daí porque se vislumbra a necessidade de tratar da ética na pós-modernidade especificamente voltada à precaução: se o Homem é capaz de destruir tudo o que lhe circunda e cuja existência lhe permite a vida, e, também, se o Homem é capaz de se destruir, causar mal a si próprio, tudo em razão do comportamento possibilitado pela técnica (tecnologia, ciência, tecnociência), é inegável que tal comportamento deve ser limitado pela ética. Se os meios mostram-se mais importantes que os fins, põe-se a perigo a própria humanidade, pois a técnica se desenvolverá livremente, tendente a um final, mais ou menos previsto e anunciado, que não agrada.
A própria ciência se mostrou carente de mecanismos para conter a si própria da possível extinção. Desse modo, algo que se encontra fora dela deve limitá-la, para que se evite o pior.
Nessa linha, como sustenta Alexandre Kiss, dois fatores podem indicar a constatação dessa necessidade. Um é psicológico, instintivo, do qual “a história é testemunha dos constantes esforços dos seres humanos para proteger não somente suas próprias vidas, mas também para garantir o bem-estar e melhorar as oportunidades para sua prole” (KISS, 2004, p. 3). O outro, é, precisamente, ético:
“Considerações ética reforçam e podem também expressar esses sentimentos instintivos. (…). para haver justiça, a riqueza que nós herdamos das gerações precedentes não deve ser dissipada para nossa própria conveniência e prazer, mas passada adiante, na medida do possível, para aqueles que nos sucederão. Certamente, não há nenhuma justificativa moral em privar o outro de receber o que recebemos sem esforço de nossa parte. A expressão equidade intergeracional foi utilizada para representar esse conceito. Expressa o reconhecimento do que devemos a nossos antepassados e nossa gratidão para com eles, assim como o que devemos à posteridade” (Ib.).
Ou seja, eticamente se deve enxergar um dever para com os pósteros, para com a geração do porvir. Dever de lhes assegurar as mesmas condições que a geração do presente teve para desenvolver sua vida. (Dever cujo reflexo não será um direito, mas outro dever dentro do Princípio responsabilidade de Jonas, o dever de se perpetuar a espécie humana, como se verá mais a frente.)
“Se, por um lado, a pesquisa científica e as inovações tecnológicas trazem promessas, por outro, também trazem ameaças ou, pelo menos, um perigo potencial. Nesse sentido, algumas indagações podem ser feitas: tudo o que é tecnicamente possível deve ser realizado?”. E justamente dessa indagação, que não é dogmática, mas filosófica, é que “o princípio da precaução surge, assim para nortear as ações” (SILVA, 2004, p. 77) tanto na relação humano-extra-humano, como na relação humano-humano.
3. Introduzindo o pensamento de Jonas: a limitação da ética “pré-moderna” e a necessidade de uma nova ética.
A base do presente estudo reconhece o acerto da constatação de Hans Jonas sobre as consequências coletivas da modernização amoral cada vez maior e cada vez mais rápida.
Buscando soluções éticas para o problema da pós-modernidade, Bauman assevera que Jonas “viu as raízes do problema nos extraordinários poderes da tecnologia moderna: a escala das possíveis consequências das ações humanas supera de longe a imaginação moral dos agentes” (1997, p. 303).
“A técnica moderna, investe as ações humanas de uma ordem de grandeza completamente distinta daquela com que se preocupava a tradição”, em verdade. A ação humana, “tecnologicamente potencializada, pode danificar crítica e irreversivelmente a natureza e o próprio ser homem” (GIACOIA JÚNIOR, 2014, p. 197).
Percebeu-se que o comportamento humano possibilitado e, de certa forma, ordenado pelos avanços tecnocientíficos, gera consequências globais (e não mais locais, territoriais, regionais), futuras (cujos efeitos persistiram por anos) e cumulativas (cuja soma de cada consequência desfavorece o ambiente e a essência humana).
“Isso constitui, para Jonas, o novum de uma ética da responsabilidade” – nos dizeres de Giacoia Júnior –. “A extensão, tanto espacial como temporal, da série causal da práxis tecnológica, aliada à nova ordem de grandeza, à irreversibilidade dos efeitos e ao caráter cumulativo dos mesmo, produz uma completa e radical transformação até mesmo do ponto de partida das éticas tradiconais” (Id. Ib.).
Bauman, na esteira de Jonas, percebeu que “A moralidade que herdamos dos tempos pré-modernos – a única moralidade de que dispomos – é um moralidade de proximidade e como tal infelizmente inadequada numa sociedade em que toda ação importante é ação a distância” (1997, p. 303).
Toda moral que se conhecia antes do recorte da pós-modernidade mostrou-se circunscrita à relação espaciotemporal vislumbrada pela capacidade do ser humano à época: territorial/local e atual. A ética não se preocupava com as consequências futuras e globais dos atos presentes e localizados, porque estes ainda não ressoavam para além do território e para além do presente(ou, pelo menos, ainda não se via/sentia esses efeitos). Mas quando se constatou que a técnica utilizada pelo Homem podia provocar efeitos globais (sem fronteiras), cumulativos e com repercussão no futuro (até pelo exame presente de consequências de atos passados), criou-se terreno fértil para que Jonas e outros pensadores sustentassem que a ética até então formulada não teria a capacidade de disciplinar moralmente a conduta humana baseada na profusão de meios disponibilizados pelo avanço tecnológico.
A incapacidade do ser humano enxergar os efeitos distantes de suas ações impediu a formulação de uma moral baseada na prudência.
A limitação humana de ver o futuro impede que se limite a realização presente de necessidades e desejos; “nossa consciência moral fica satisfeita uma vez tomada e executada a responsabilidade para com o perto e o caro”, diz Bauman. As repercussões para o futuro e para o todo não preocupavam porque eram invisíveis, ou se acreditava que eram cuidadas suficientemente por agências credenciadas, fato que isentava a todos de responsabilidade ética. “Tudo por tudo – afirma Jonas – não nos podemos apoiar na capacidade moral que temos para resolver a questão da responsabilidade por aquilo que nem vemos nem conhecemos, mas que realmente conta entre os resultados múltiplos próximos ou distantes, presentes ou futuros, de nossas ações” (Id. Ib.).
A excessiva racionalidade que adveio do projeto iluminista, maiormente no campo da ciência, conduziu a Humanidade ao presente estágio, em que as formulações morais não acompanham a realidade humana baseada nas possibilidades técnico-científicas, e não mais nas necessidades. A racionalidade científica abriu e continua a abrir um leque imenso (e cada vez maior) ao agir humano, e a incapacidade de idêntica racionalização quanto às suas consequências futuras e globais impede a remodelação da impulsão técnico-científicas.
A própria razão humana, então, é causa da necessidade de se repensar eticamente a responsabilidade do ser humano, à luz do princípio da precaução. Afinal, a incerteza científica não representará mote para o desacatamento de medidas de cautela em prol do meio ambiente e da essência humana, como constam das definições mais atuais do princípio em estudo.
Não a toa Jonas e Bauman, para iniciarem suas análises do momento ético da pós-modernidade, fazem, ambos, alusão à figura do “Prometeu desacorrentado”, que na mitologia grega representa alegoricamente o transporte da razão aos Homens que os emanciparam dos Deuses.[2]
Jonas (2006, p. 35-6, Cap. I, item II – “Características da Ética até o Momento Presente), em particular, constatou que o extra-humano, objeto da técnica em tempos anteriores (porque hoje o humano também é objeto da técnica), era eticamente neutro por uma razão fácil de entender: a intervenção humana na natureza não causava qualquer sequela duradoura, qualquer dano cujo poder de regeneração da natureza não dava conta de restaurar o equilíbrio ecológico.
A atuação do Homem sobre o extra-humano não requeria a formulação duma ética.
Outrossim, o Homem, antes, não possuía a capacidade de modificar sua própria essência, a ponto de colocar sob risco de extinção a própria espécie que resultara do evolucionismo amplamente aceito. Daí porque a atuação do Homem sobre sua própria essência não requeria a formulação duma ética (bioética).
O domínio ético da época limitava-se à relação humana privada, seja do Homem consigo mesmo (Moral e religião), seja do indivíduo para com seu semelhante. A ética era forma de regular as relações intersubjetivas no espaço privado.
E como o Homem não possuía a capacidade de alterar o cenário extra-humano, “O bem e o mal, com o qual o agir [ético] tinha de se preocupar, evidenciavam-se na ação, seja na própria práxis ou em seu alcance imediato, e não requeriam planejamento de longo prazo” (Id., Ib., p. 35). A preocupação ética foi sempre limitada pela imediatidade temporal e a limitação espacial.[3]
Nessa perspectiva, nenhuma consequência que ultrapassasse fronteiras ou produzisse efeitos duradouros era considerada como antiética, pois era visto como acaso, pertencente à esfera do moralmente neutro.
Não existia base valorativa, portanto, para se pensar no agir precautório, com vistas a evitar resultados futuros-negativos-possíveis. Não havia base valorativa para o princípio da precaução.
“Tudo isso se modificou decisivamente. A técnica moderna introduziu ações de uma tal ordem inédita de grandeza, com tais novos objetos e consequências que a moldura da ética antiga não consegue mais enquadrá-las”. Ou seja, a modificação é tão sentida que à ética que se aplica à esfera privada deve ser somada a outra ética, porque aquela, antiga, “torna-se ensombrecida pelo crescente domínio do fazer coletivo, no qual ator, ação e efeito não são mais os mesmos da esfera próxima. Isso impõe ética, pela enormidade de suas forças, uma nova dimensão, nunca antes sonhada, de responsabilidade” (Id., Ib., p. 35).
Enfim, constata-se a vulnerabilidade da natureza (do extra-humano e da própria essência humana) pela própria constatação dos danos já produzidos, o que modifica inteiramente a forma de encarar o comportamento humano e a relação do Homem com o restante do mundo que o cerca.
Bem ou mal, percebeu-se que o Homem é responsável pela natureza, porquanto ela se encontra sob sua esfera do agir. Jonas coloca a biosfera como uma totalidade sob a responsabilidade humana, porque sobre ela se tem e exerce poder. E isso representa uma novidade para as formulações éticas de até então.
Tem-se, então, base valorativa para se pensar no agir precautório, para se formular eticamente o princípio da precaução.
Superadas as delimitações de proximidade e simultaneidade das ações humanas, percebendo-se cada vez mais que uma dada atitude possui repercussão coletiva e de efeitos futuros, somado ao fato de que as sucessivas repercussões de cada ato são cumulativas e associativas, impõe-se a formulação de uma nova ética capaz de abranger esses novos fenômenos, a ponto de assegurar a existência de condições para a manutenção da vida que se conhece.
Mais a frente, concretizando essa exigência ética, chegar-se-á a sua instrumentalização, exsurgindo o princípio da precaução como mecanismo jurídico de contenção da aplicação irrestrita dos avanços tecnológicos, a partir de constatações dos riscos futuros, coletivos e cumulativos do emprego de cada avanço tecnológico.
“Sob tais circunstâncias, o saber torna-se um dever prioritário”, permitindo que se vislumbre as consequências do emprego de determinada tecnologia. “Mas o fato de que ele realmente não possa ter a mesma magnitude, isto é, de que o saber previdente permaneça atrás do saber técnico que confere poder ao nosso agir, ganha, ele próprio, significado ético” (Id., Ib., p. 41).
A formação do saber, especialmente o científico, contudo, não acompanha o grau de disponibilização da técnica, representando um desafio à nova ética do fazer coletivo, a ser vencido conjuntamente com sua formulação. “O hiato entre a força da previsão e o poder do agir produz um nova problema ético. Reconhecer a ignorância torna-se, então, o outro lado da obrigação do saber” (Id., Ib.).
Daí porque, a par de toda essa situação, Jonas chega à proposição da heurística do medo (que muito se identifica com a abordagem precautória).
4. A heurística do medo[4] e o princípio da precaução: uma ligação necessária.
Ora, se as consequências coletivas, futuras e cumulativas devem ser sopesadas responsavelmente antes do agir, sem que se possa ter plena certeza dessas consequências e suas dimensões (no momento contemporâneo), há de se apresentar algum fundamento que legitime a limitação das possibilidade humanas conferidas pelo estado avançado da técnica: se é possível fazer, por que não fazer?
Jonas consegue essa legitimação por meio de sua heurística do medo, a qual representa a base ética para o princípio da precaução.
É representativa sua assertiva segundo a qual “Em vista do potencial quase escatológico dos nossos processos técnicos, o próprio desconhecimento das consequências últimas é motivo para uma contenção responsável – a melhor alternativa, à falta da própria sabedoria” (JONAS, 2006, p. 64).
O desconhecimento do futuro mostra-se como fundamento bastante para a limitação do emprego da técnica do presente. E o ser humano possui medo do desconhecido, especialmente se esse desconhecido voltar-se contra o próprio Homem, atacando-o em sua existência e/ou em sua essência.
O ser Humano tem de reconhecer, com simplicidade, que suas potencialidades possuem um ponto de chegada indefinido e que muitas vezes se desenha como prejudicial, não só a ele próprio, mas,maiormente,às gerações futuras, à essência humana.
O conhecimento científico limita-se à técnica presente, mas não mede, ainda, seus efeitos, principalmente cumulativos.[5] Esses efeitos só serão conhecidos no futuro, quando os resultados negativos se revelarem.
A heurística do medo tenta responder à seguinte indagação: por que um problema eventual e longínquo deve frear as realizações possíveis do presente?
Em primeiro lugar, há de se estabelecer a premissa de que o continuum da Humanidade é objetivo comum. Jonas vai buscar o fundamento desse objetivo metafisicamente no conceito do próprio Ser (ontologia). Mas dessa premissa não se cuidara neste escrito, até porque, aqui, parte-se do pressuposto de que a continuidade do ser humano (como espécie) é desejado por ele próprio, não se acreditando que alguém busque, aceite ou tenha como aceitável o fim da espécie.
Em segundo lugar, então, deve-se perceber como o medo de que esse objetivo não seja alcançado interfere na formação ética da pós-modernidade que influenciará necessariamente o agir coletivo (o agir do indivíduo e do Estado com repercussões para a coletividade).
Claro que a expressão “desconhecido” utilizada há pouco não é empregada literalmente. “Desconhecido”, aqui, possui a significação de resultado possível (ainda que incerto,projetado com base no conhecimento atual).
Os avanços científicos de hoje são limitados para determinar os acontecimentos/resultados futuros com certeza científica. Contudo, não impossibilitam a formação de um prognóstico por meio do próprio conhecimento disponível até então.
Aliás, esse questionamento sobre o futuro com base no que se tem no presente não deixa de ser um exercício filosófico de prognóstico, especulativo, ainda que racional o suficiente (escapando da metafísica) para permitir a argumentação necessária para parear com a ciência.
“Portanto, esse saber real e eventual, relativo à esfera dos fatos (que continua sendo teórico), situa-se entre o saber ideal da doutrina ética dos princípios e o saber prático relacionado à utilização política”, como ressalta Jonas, para quem, ainda, “Há de se formar uma ciência de previsão hipotética, uma ‘futurologia comparativa’” (JONAS, 2006, p. 70).
Noutro escrito (Pensar sobre Deus e outros ensaios), Jonas nomeia esse raciocínio de “futurologia da advertência”, em contraposição à “futurologia do desejo imaginado” (cf. OLIVEIRA, 2014, p. 130).
Esse “descompasso entre a previsibilidade e o poder efetivo da ação se coloca, para Jonas, como um problema de relevância ética, impondo o reconhecimento do desconhecimento como contraface do dever de saber” (GIACOIA JÚNIOR, 2014, p. 198).
Jonas mostra o acerto desse raciocínio de forma sintética, prática e inescapável: só se conhece a sacralidade da vida por meio da morte; só se conhece a importância da verdade pelo desprezo da mentira; só de dá valor à liberdade conhecendo o desvalor de sua ausência.
Dessa forma, pois, a ciência hipotética por ele propugnada sobre as possibilidades da realização humana de efeitos negativos serve como parâmetro para a ética que se busca implantar: tenta-se revelar tempos ruins do porvir para se revelar, como consequência, o que se preza hoje, esperando que as gerações futuras gozem desse mesmo status quo (pelo menos).
Essa é a heurística do medo.
Pela “futurologia comparativa”se dá preferência ao “prognóstico negativo”, edaí “se chega ao princípio ético de que não podemos arriscar os interesses futuros como aposta no presente, tanto no que diz respeito à existência quanto ao modo dessa existência, da a ‘obrigação incondicional de existir’ (PR, p. 86) da humanidade” (OLIVEIRA, 2014, p. 131).
Deve-se provocar a “sublevação dos sentimentos” – como diz Jonas –, de modo a permitir ao Homem enxergar o valor cujo contrário o inquieta, repugna, amedronta, desestimula, cria-lhe escrúpulos, arrefece seus desejos, provoca a reflexão antes da ação: “Enquanto o perigo for desconhecido não se saberá o que há para se proteger e por que devemos fazê-lo” (JONAS, 2006, p. 70).
A investigação transcendental de Jonas sobre a natureza humana é irretocável. Em sua percepção, o Homem sabe aquilo que não quer antes daquilo que quer. Ele muito valoriza aquilo que não tem, especialmente aquilo que teve e pode perder. Por isso a filosofia da moral por ele traçada investiga primeiro o medo do que o desejo, e dá maior relevância ao mau prognóstico.
Seu raciocínio sobre a heurística do medo, acredita-se, pode ser resumido em dois “deveres” por ele próprio enunciados: (1) visualizar os efeitos de longo prazo; e (2) mobilizar o sentimento adequado à representação.
Aquilo que é profetizado como ruim com base no conhecimento limitado sobre as experiências tecnológicas irrefletidas do presente é o primeiro passo para a formação da ética da cautela. “Portanto, o malum imaginado deve aqui assumir o papel do malum experimentado”. E, “Como essa representação não acontece automaticamente, ela deve ser produzida intencionalmente” (Id., Ib., p. 72) pelo próprio ser humano moralmente preocupado com o cumprimento de seu dever de perpetuar a espécie humana.
Em segundo lugar, esse malum aludido deve ser voltado a cada individualidade humana,refletindo um agir coletivo, porquanto – parece que pelo próprio egoísmo humano – cada um não se comove ou procura se blindar contra a comoção daquilo que não lhe afeta diretamente, ainda que afete o outro.
Este segundo dever parece ser o de menos difícil compreensão, ainda que de dificílima justificação – para o qual Jonas reservou parte destacada em seu O princípio responsabilidade –, porquanto aqui se assume a perpetuação da espécie humana como premissa inabalável.
Vale dizer, de algum modo o prognóstico futuro ruim assume espaço no imaginário de cada ser humano individualizado, a tal ponto de provocar-lhe o exercício de reflexão ético de agir coletivamente com cautela para evitá-lo (o futuro ruim).
Assim, fica-se neste tópico com o primeiro dever; notadamente para demonstrar que a heurística do medo tratada acima é a representação filosófica do princípio da precaução.
Ainda segundo Hans Jonas, “um prognóstico de curto prazo, intrínseco a todas as obras da civilização técnica, não pode bastar para o prognóstico de longo prazo almejado na extrapolação requerida pela ética. A certeza de que desfruta a primeira, e sem a qual a empresa tecnológica inteira não poderia funcionar, encontra-se para sempre recusa à outra” (Id., Ib., p. 73).
O saber exigido para conhecer as consequências futuras do uso da técnica presente não é possível, alcançável, pela própria ciência que desenvolveu a técnica. De tal modo que esse saber, por conclusão lógica, não pode ser exigido para questionar, frear, criticar, diminuir e/ou evitar a prática de determinado “avanço” científico (que no futuro de avanço pode não ter nada).
Esse é o cerne da precaução, ora.
“A ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental” enunciada no princípio 15 da Declaração do Rio nada mais espelha do que a preocupação filosófica de Hans Jonas.
A impossibilidade de certeza científica por meio do estado de conhecimento do presente “não impede a projeção de efeitos finais prováveis ou apenas possíveis. E mero saber sobre possibilidade, certamente insuficiente para previsões, é suficiente para os fins da casuística heurística posta a serviço da doutrina ética dos princípios” (Id., Ib., p. 74).
É de se destacar:
“É à luz do “então”, que se apresenta à imaginação como possibilidade, como conteúdo e não como certeza, que pela primeira vez os princípios d amoral, até ali desconhecidos, porque antes desnecessários, podem tornar-se visíveis. Aqui, a simples possibilidade fornece a necessidade, e a reflexão sobre o possível, plenamente desenvolvida na imaginação, oferece o acesso à nova verdade. Mas essa verdade pertence à esfera ideal, ou seja, é tanto objeto do saber filosófico como o era aquela do primeiro princípio fundamental; e sua certeza não depende do grau de certeza das projeções científicas que lhe forneciam o material paradigmático” (Id., Ib.).
O problema enxergado por Jonas – e acredita-se, hoje mesmo vivido na experiência nacional e internacional – é a realização dessa filosofia ética no plano prático-político. A incerteza das projeções científicas como forma de projetar a essência humana, no cenário político, é fraco, porquanto, ainda, no mundo, não se quer renunciar a experiências possíveis na atualidade em nome de um futuro incerto, especialmente se interesses econômicos “recomendarem” a experiência.
Muito disso decorre da concorrência cada vez mais acirrada entre os países e empresas no atual estágio no capitalismo globalizado que se configurou até então – dentre outras razões que podem ser constatadas –. E isso cria um temeridade, porquanto o discurso político, especialmente se apropriado pelo mercado, pode abafar argumentativamente a filosofia ora defendida.
Daí o risco que deve ser superado pela primazia do mau prognóstico, que, numa esfera prática, dogmático-jurídica, ganha concretude no princípio da precaução.
O princípio da precaução mostra-se como uma ferramenta dogmático-jurídica muito útil para a especialização da ética de Jonas, mormente num Estado Democrático de Direito.[6]
Solange Teles da Silva (2004, p. 77) traduz essa constatação: “o princípio da precaução busca responder aos objetivos de segurança reforçada e à necessidade de regulamentação jurídica das dúvidas que advêm do desenvolvimento da ciência”.
Partindo das precisas constatações de Luís Roberto Barroso sobre a pós-modernidade, pós-positivismo e a valorização dos princípios como normas jurídica (BARROSO, 225: 5-37, jul./set. 2001),pode-se afirmar que o princípio da precaução corresponde à materialização da heurística do medo formulada por Jonas. É a sua ferramenta dogmático-jurídica de realização.
O fracasso do positivismo puro (legalismo) como modelo de aplicação do Direito exigiu a retomada da ética e da moral, sem, contudo, abandonar o grau de cientificismo alcançado com a superação do abstrativismo do jusnaturalismo (que, paradoxalmente, dera base filosófica para as revoluções liberais).
“Nesse contexto, o pós-positivismo não surge com o ímpeto da desconstrução, mas como uma superação do conhecimento convencional. Ele inicia sua trajetória guardando deferência relativa ao ordenamento positivo, mas nele reintroduzindo as idéias de justiça e legitimidade” (Id., Ib., p. 24).
E para a reintrodução da justiça como nota de legitimidade ao Direito, o valores foram condensados e abrigados em forma de princípios, ligando a filosofia ao mundo jurídico, à práxis.
“Os princípios constitucionais, portanto, explícitos ou não, passam a ser a síntese dos valores abrigados no ordenamento jurídico. Eles espelham a ideologia da sociedade, seus postulados básicos, seus fins”. “De parte [d]isto, servem de guia para o intérprete, cuja atuação deve pautar-se pela identificação do princípio maior que rege o tema apreciado, descendo do mais genérico ao mais específico, até chegar à formulação da regra concreta que vai reger a espécie”(Id., Ib., p. 25).
Os princípios, afinal, são normatizados, a tal ponto que a precaução, como princípio assumido especialmente no ordenamento internacional, torna-se norma a ser seguida pela sociedade e aplicada pelos juízes e Tribunais.
Daí porque se pode afirmar aqui que a heurística do medo, base para O princípio responsabilidade, traduz-se, concretamente, no princípio da precaução.
A precaução, como medida do comportamento, é inserida num papel de gestão de riscos, como condição mínima de aceitação social desses riscos, permitindo à sociedade gerir as incertezas, a partir de um modelo de antecipação, e não mais curativo (reparação) ou meramente preventivo (cf. SILVA, 2004, p. 80).
Enfim, a partir das lições de Solange Silva, com esteio em Mirra, tem-se que “A implementação do princípio da precaução pelos magistrados requer que seja assumida uma nova postura, visto que há ‘necessidade de decidirem com base em probabilidades – na noção de impedir, fazer cessar ou reparar degradações ambientais, abandonando-se o ideal de certeza na apuração da lesividade apontada’”, e que, com base em Antonio Gordillo Canas, para quem a constitucionalização dos valores e dos princípios deles derivados coloca os juízes no marco necessário de uma jurisprudência e se torna fundamento básico para o desenvolvimento do exercício do poder legislativo, “Cabe, portanto, aos magistrados assegurarem a concretização do princípio da precaução, para que seja assegurado a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado” (Id. Ib., p. 88-9).
5. Ausência de reciprocidade: a relação dever-dever.
Agora, a realização do princípio da precaução com base na heurística do medo, no Princípio responsabilidade de Jonas, não se dá de forma simples e imediata. Há de se superar paradigmas jurídicos que grassam na ciência jurídica ao longo dos tempos, especialmente com relação à estrutura que a Teoria Geral do Direito disponibiliza ao interprete.
Tradicionalmente, afirma-se ou se pressupõe que, quando se cuida de deveres (e a ética como regulação do comportamento impõe, necessariamente, deveres), está-se, automaticamente, a cuidar de direitos. A correspondência do direito é tratada como intrínseca ao conceito de dever (seriam lados da mesma moeda).
É exemplificativa da concepção tradicional a seguinte passagem de Norberto Bobbio (2010, p. 33-4) sobre o Direito como relação jurídica normativa (não só como instituição, e não só como relação intersubjetiva):
“A relação jurídica é, em outras palavras, uma relação direito-dever. E o que significa direito? Significa, como veremos melhor a seguir, te o poder de realizar determinada ação. Mas de onde deriva esse poder? Só pode derivar de uma regra, que no mesmo momento em que atribui a mim esse poder, atribuiu a um outro, a todos os outros, o dever de não impedir a minha ação. E o que significa ter dever? Significa sermos obrigados a nos comportar de determinado modo, quer essa conduta consista em um fazer, quer consista em um não fazer. Mas de onde deriva essa obrigação? Só pode derivar de uma regra, que determina ou proíbe. Em resumo, o direito nada mais é do que o reflexo subjetivo de uma norma autorizadora; e o dever nada mais é do que o reflexo subjetivo de um norma imperativa (positiva ou negativa). A relação jurídica, enquanto relação direito-dever, refere-se sempre a duas regras de conduta, sendo que a primeira atribui um poder, a outra atribui um dever”.
E a tradição parece se repetir dogmaticamente pela própria redação constitucional que introduz a proteção do meio ambiente, segundo a qual “Todos têm o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (…), impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defende-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” (art. 225).
Nessa redação os comentadores enxergam, entre outras coisas, a relação direito-dever entre geração presente (dever) e geração futura (direito), encaixando, principalmente, o conceito de desenvolvimento sustentável.
Para Clarissa Chagas Sanches Monassa e Samara Tavares Agapto das Neves, exemplificativamente, “Na sustentabilidade encontra-se evidente a reciprocidade de direito e dever, já que o homem tem o direito de se desenvolver e usufruir do planeta, mas também tem o dever de preservá-lo, pois suas condutas podem causar reflexos para as futuras gerações que o habitarão e não lhe é permitido comprometer a capacidade das gerações futuras para atender suas próprias necessidades” (2015, p. 52).
Essa perspectiva, contudo, no plano filosófico de legitimidade ética deve ser abandonada para se permitir o agir coletivo fundado no princípio da precaução (ainda que na práxis, dogmaticamente, seja efetiva para instrumentalizar o princípio da precaução).
Ainda que se possa sustentar e existência de direitos das gerações futuras no plano dogmático (até para seu manejo pelos Tribunais e demais atores jurídicos), o pano de fundo legitimador do Princípio responsabilidade e sua heurística do medo não se baseiam na relação binária direito-dever.
Conforme destaca Hans Jonas (2006, p. 89), o direito como figura jurídica deve ser reivindicado, mas só reivindica quem ou aquilo que existe. Quem ou aquilo que não existe não faz reivindicações:
“A reivindicação de existência só se inicia com o existir. Mas a ética almejada lida exatamente com o que ainda não existe, e o seu princípio responsabilidade tem de ser independente tanto da ideia de um direito quanto da ideia de uma reciprocidade – de tal modo que não caiba fazer-se a pergunta brincalhona, inventada em virtude daquela ética: ‘O que o futuro já fez por mim? Será que ele respeita os meus direitos?’”.
E as gerações futuras ainda não existem.
Aliás, quando se fala de reciprocidade, há representantes para “negociar” os termos da relação, mas, por óbvio, quem está porvir não possui qualquer possibilidade de representação.
E não há paradoxo algum a ser enfrentado e desmistificado aqui.
Partindo da premissa de que o Homem tem de dar continuidade à espécie humana em sua essência, é seu dever garantir no presente que as futuras gerações tenham as possibilidades de cumprir essa mesma obrigação, e não lhes retirar ou diminuir essa capacidade com escolhas que se apegam à incerteza científica.
Como afirma Jonas, “É de um dever desse tipo que se trata, no caso da responsabilidade em relação à humanidade futura. Em primeiro lugar, isso significa um dever para a existência da humanidade futura, independentemente do fato de que nossos descendentes diretos estejam entre ela; em segundo lugar, um dever em relação ao seu modo de ser, à sua condição” (2006, p. 90).
As condições da vida futura dependem das escolhas e práticas contemporâneas. “Portanto, para nós, contemporâneos, em decorrência do direito daqueles que virão e cuja existência podemos desde já antecipar, existe um dever como agentes causais, graças ao qual nós assumimos para com eles a responsabilidade por nossos atos cujas dimensões impliquem repercussões de longo prazo” (Id. Ib., p. 91-2).
A relação é de dever-dever.
Todos os seres humanos compartilham a obrigação aqui assumida de dar continuidade à espécie humana (ainda que, individualmente, não sejam obrigados a procriar). Dessa forma, aos presentes é dever sustentar e garantir as possibilidades de as gerações futuras cumprirem com esse mesmíssimo dever. A perpetuação da espécie humana como se a conhece, mantendo-se, inclusive, sua essência (que hoje corre o risco de ser modificada), depende das condições prático-ambientais que a permitam.
Por isso Jonas afirma que o crime das gerações presentes é o de impossibilitar que as gerações futuras cumpram satisfatoriamente com o seu dever de continuação do ser humano.
“Isso significa que temos de estar vigilantes não tanto em relação ao direito dos homens futuros (…), mas em relação ao dever desses homens futuros, ou seja, o dever de ser uma humanidade verdadeira” (Id., Ib., p. 92). E o descuido com o estado da técnica atual permite que esses deveres sejam inobservados: (1) o dever da geração presente garantir as condições de cumprimento do dever compartilhado pelas gerações futuras; e (2) o dever da geração futura de dar continuidade ao dever partilhado pelas gerações do passado.
Pode-se falar em direito, claro, no plano prático, como a outra face da moeda do dever imposto à geração presente, mas esse direito das gerações futuras será o de, num plano ético-filosófico, possuírem as condições materiais para cumprirem seu dever de dar continuidade à humanidade. E também se pode falar de outros direitos das gerações futuras, mas todos decorrentes do dever de perpetuação, e com a finalidade de, na prática, criar uma pretensão de exigência jurídica.
Respondendo a Günther Jakobs num debate com vários intelectuais, Jonas diferencia o conceito de responsabilidade cunhado na ética anterior, em que se pune, se sanciona, se responsabiliza atos passados, do novo conceito de responsabilidade que defende, o qual se volta não para atos praticados, mas, muito pelo contrário, volta-se para a possibilidade de se fazer alguma coisa (a existência da coisa depende da própria ação). Ou seja, se essa coisa for a sobrevivência da humanidade como espécie, volta-se para a obrigação de garanti-la(JONAS, 2013, p. 298-300).
A primeira regra da ética do princípio da responsabilidade, portanto, decorre do imperativo da existência; a tal ponto que “aos descendentes futuros da espécie humana não seja permitido nenhum modo de ser que contrarie a razão que faz com que a existência de uma humanidade como tal seja exigida” (JONAS, 2006, p. 94).
“Assim, em virtude desse primeiro imperativo, a rigor não somos responsáveis pelos homens futuros, mas sim pela ideia do homem, cujo modo de ser exige a presença da sua corporificação no mundo” (Id., Ib.).
O princípio da precaução, por sua vez, como princípio, assegurará um direito às gerações futuras na medida que, na Teoria Geral do Direito, ao se formular uma pretensão exigindo um determinado comportamento protegido juridicamente, está-se a exercer um direito. A dificuldade é eleger dentro de determinado ordenamento jurídico quem, na prática, exercerá/assegurará o direito de quem ainda existe, tendo o ordenamento nacional encontrado essa figura, principalmente, no Ministério Público, como “titular” dos direitos difusos.
Enfim, o princípio da precaução, na práxis, decorre valorativamente, ético-filosoficamente, em larga escala, do Princípio responsabilidade, da heurística do medo, e do agir ético por ele propugnado em terreno não dogmático.
6. Conclusão.
Mercê do que exposto, pode-se caminhar em direção a uma conclusão que relaciona o princípio da precaução com O princípio responsabilidade de Hans Jonas.
Claro que toda a premissa alçada por Jonas como fundamentadora de seu Princípio responsabilidade encontra-se num plano metafísico. Por isso é que ele gasta muita tinta para elaborar a doutrina do Ser. Contudo, aqui parte-se do pressuposto de que o continuum humano é inegável, pelo simples fato de que não se vislumbra o pessimismo máximo (segundo o qual o ser humano não tem a característica intrínseca da perpetuação como espécie) como um real problema a ser enfrentado hoje.
Dessa forma desenvolveu-se o trabalho para (tentar) explicitar as razões filosóficas do princípio da precaução, que hoje, no plano dogmático, adquire cada vez mais importância no cenário nacional e internacional, especialmente frente à ciência e seus defensores máximos que o acusam constantemente de impedir o desenvolvimento tecnológico.
Também Marie-Angèle Hermitte e Virginie David (2004, p . 94), que veem o princípio da precaução como consequência jurídica de quatro influências intelectuais,destacam que Jonas é responsável s”obre o principio moral de responsabilidade frente às futuras gerações, percebido, de acordo com J. Patocka, tanto como um mecanismo que revela o Estado, quanto um mecanismo que implica o cidadão-indivíduo”.
Especificamente sobre Jonas, concorda-se com Clarissa Monassa e Samara Neves(2015, p. 55) sobre a necessidade de uma nova formulação ética que inclua a cautela no agir coletivo, sobretudo em razão ao estado da técnica atual:
“A extensão das descobertas e a periculosidade decorrente da tecnologia exigem uma regulamentação das forças e do potencial envolvido no agir humano, implicando no plano ético da responsabilidade, pois a possibilidade dos avanços tecnológicos emergentes pode causar impactos naturais e biológicos tão fortes que seja impossível retroceder ao status anterior.
Os rumos tomados pelos descobrimentos tecnológicos e o risco que o ser humano está correndo devido à sua própria ganância fazem com que seja imperioso pensar sobre objetos não humanos na reformulação da ética, a fim de que ela possa nortear as discussões em âmbito estritamente científico e dos negócios envolvendo a tecnologia”.
Ainda que não se concorde que Jonas, em sua obra, estivesse a defender direitos das gerações futuras (entendendo que as autoras citadas indicam esse caminho: direito-dever);porque isso corresponde a uma construção dogmática já decorrente de sua filosofia, filosofia voltada, noutro giro, a deveres; dever da geração atual em garantir o cumprimento do mesmo dever por parte das gerações futuras, qual seja, a perpetuação da espécie humana.
Não obstante, compartilha-se de suas conclusões (Id., Ib., p. 57-9) no sentido de que, na chamada pós-modernidade, vive-se um momento de transição da ética tradicional limitada às relações interpessoais para a “ética de previsão e responsabilidade”, a qual passa a se preocupar com o agir coletivo direcionado à reflexão sobre atividades atuais e sua contenção baseadas em projeções futuras hipotéticas negativas, a heurística do medo de Jonas.
Como constatou-se, a tecnologia não se autolimita; ao reverso, retroalimenta-se num sistema autopoiético conduzindo-se a tragédias, a ponto de reclamar intervenção externa do campo da moral para se evitar o pior e, com isso, garantir-se o sobrevivência da espécie humana, maiormente no que se refere a sua essência.
Na heurística do medo, ao invés de se focalizar o bem, volta-se ao mal possível como mote fundamental para balizar a ética que regulamentará a ciência, o movimento tecnológico-desenvolvimentista.
O medo para Jonas mostra-se como virtude para impor limites a escolhas irrefletidas, irresponsáveis para com a espécie humana e a preservação de sua essência. Medo que deve fazer parte do aprimoramento do estágio civilizatório, como preferência pelo mal prognóstico, tendo em vista que o Homem não é só sujeito-ator do progresso científico, como também é objeto e sofre as consequências de seus atos amorais.
E com base nesse temor, nessa heurística do medo, justifica-se a superação do hiato entre previsão científica de resultados (certeza) futuros (sempre impossível no estágio inicial da técnica) e consciência de ganhos atuais com a tecnologia (sempre possível no estágio inicial da técnica) como escudo para aqueles que buscam e defendem o desenvolvimento tecnológico a qualquer custo, ainda que custe o meio ambiente e a essência humana.
A construção de Jonas é completa.
Sem embargo, seu Princípio responsabilidade não pode permanecer no campo filosófico, sem aplicação prática. Nesse sentido, dentro dessa filosofia da cautela, o princípio da precaução emerge como instrumento jurídico capaz de concretizá-lo no dogmatismo jurídico.
Especialmente no estágio dogmático atual, em que se abriu amplo espaço para os princípios como condensadores de valores, conferindo-lhes no movimento jurídico-intelectual que se convencionou chamar de pós-positivismo (ou neo-constitucionalismo em âmbito mais restrito da ciência jurídica constitucional) status de norma (cf. BARROSO, março/abril/maio 2007, online).[7]
O princípio da cautela, assim, assume papel relevante na aplicação/interpretação do direito quando da regulamentação e regulação da atividade social, comercial, empresarial, público-administrativa, esportiva, de engenharia, etc. E tudo a partir da heurística do medo analisada a partir do Princípio responsabilidade de Jonas.
O título espirituoso do trabalho que qualifica Jonas como ambientalista se sustenta na medida em que essa filosofia por ele criada se reflete num dos maiores marcos principiológicos que sustentam o moderno direito ambiental, tanto em âmbito nacional quanto em âmbito internacional.
Finalmente, só cumpre assinalar em retomada que todo esse desenvolvimento filosófico, particularmente em Jonas, não culmina com a criação de direitos às chamadas gerações futuras.
Num plano ético não se justifica essa formulação, ainda que dogmaticamente se vislumbre com mais facilidade prática a relação direito-dever (se a geração presente possui um dever para com as gerações futuras, pela outra face da moeda essas gerações futuras possuem um direito que pode ser exigido mediante pretensão veiculada num Tribunal).
No plano ético, pela filosofia da cautela, a geração presente não está moralmente obrigada ao cumprimento de um dever porque as gerações futuras possuem um direito. A geração presente está obrigada ao cumprimento do mesmo dever que as gerações futuras, o continuum da espécie humana. A geração presente está obrigada ao cumprimento de um dever porque ela não pode impedir ou dificultar o cumprimento desse mesmo dever por parte das gerações futuras.
Enfim, vislumbra-se um vínculo entre a ética pensada no plano filosófico sobre a responsabilidade que o ser humano tem sobre si próprio como espécie, dependente do meio ambiente, a partir da heurística do medo, e o princípio da precaução como instrumento jurídico que muito bem se encaixa na moderna dogmática que visa à proteção não só do meio ambiente, mas também da essência humana por meio da bioética, tornando-o legítimo controlador de afobações tecnológicas, muitas vezes capitaneadas pelo mercado, pelo interesse, pelo poder, sem qualquer preocupação com o Homem.
É evidente que tudo isso passa pela visão que se tem sobre o Direito em si, indicando-se aqui uma compreensão de que ele não é vazio de finalidade ou permeável por outros objetivos que sejam suficientemente fortes para diminuir o Homem e, notadamente, a natureza. Mas isso é tema para discussão em outra oportunidade.
Informações Sobre o Autor
Ricardo de Sant’Anna Valenti
Mestrando em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Defensor Público do Estado de São Paulo