Resumo: Drogas, assunto antes tratado hegemonicamente pela perspectiva da repressão e das implicações negativas de seu comércio ilegal no âmbito da segurança pública, mais recentemente vem sendo abordado por outra perspectiva, a da descriminalização e legalização de seu uso e comércio, inclusive no âmbito do Poder Legislativo. O presente artigo, por meio de uma (rara) visão imparcial, objetivando contribuir com os debates atuais em torno do tema legalização das drogas, partindo da premissa de que é necessário torná-lo algo menos mistificado e sim mais claro e conhecido, analisa um dos importantes fenômenos em torno do assunto, a Marcha da Maconha brasileira, trabalhando a possibilidade de sua classificação como ato de desobediência civil, tendo como principal referência o artigo sobre desobediência civil de autoria de Hannah Arendt, publicado na revista The New Yorker, em 1970.
Palavras-chave: Marcha da Maconha. Desobediência Civil. Legalização de Drogas.
Sumário: Introdução. 1. Desobediência Civil. 2. Marcha da Maconha Brasileira como exemplo de desobediência civil. Considerações finais.
Introdução
Drogas, assunto antes tratado hegemonicamente pela perspectiva da repressão e das implicações negativas de seu comércio ilegal no âmbito da segurança pública, mais recentemente vem sendo abordado por uma outra perspectiva, a da descriminalização e legalização de seu uso e comércio.
Tal ganho de expressividade dessa nova perspectiva pode ser facilmente demonstrado (I) pela opção legislativa de promover a extinção da pena de prisão para a conduta de porte de drogas para uso próprio, ocorrida em 2006, por meio da chamada Nova Lei de Drogas, Lei 11.343; (II) pelo provimento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 187 – ADPF 187, ação judicial de controle abstrato de constitucionalidade julgada pelo Supremo Tribunal Federal em 2011, que considerou legítima a realização da Marcha da Maconha em todo o território nacional; (III) pelo lançamento, ocorrido também em 2011, do filme/documentário Quebrando o Tabu, que explicitamente contesta a política de “guerra às drogas” e aborda a legalização como possível alternativa, contando com a participação de personalidades como Fernando Henrique Cardoso, Bill Clinton, Jimmy Carter, Drauzio Varella e Paulo Coelho; (IV) o advento da legislação uruguaia, em 2014, que cuidou de legalizar a produção, comercialização e distribuição de maconha em seu território; (V) a posição explícita do candidato do Partido Verde, na eleição presidencial brasileira de 2014, pela legalização da maconha, que certamente contribui para introduzir o incômodo tema na pauta dos debates eleitorais; (VI) ainda em 2014, o ingresso na Câmara dos Deputados de dois projetos de lei (PL 7.270/2014 e PL 7.187/2014) no sentido de legalizar o uso da maconha e, ainda no mesmo ano, a admissão no Senado Federal, por meio do portal e-Cidadania, de sugestão de iniciativa popular em igual sentido, motivando a realização de diversas audiências públicas na Comissão de Direitos Humanos a respeito do tema.
Antes de tudo isso, desde 1999, a discussão de políticas públicas que envolvem a (des)criminalização já era tema do evento mundial intitulado Marcha da Maconha. Segundo o advogado e professor Salo de Carvalho (2010, p. 258): “Realizada anualmente a partir de 1999 em várias cidades do planeta, a Marcha da Maconha é caracterizada por série de eventos de apoio às políticas antiproibicionistas e de redução de danos. Em festividades realizadas no primeiro sábado do mês de maio, considerado o Dia Mundial pela Descriminalização da ‘Cannabis’, são organizados encontros, passeatas, fóruns de debates, festas, concertos e festivais. Idealizada e coordenada por organizações civis e públicas não-governamentais, a Marcha objetiva realização de manifestações pacíficas, performances culturais e atos de livre expressão para informação e discussão de políticas públicas que envolvem a (des)criminalização da ‘cannabis’. Segundo os organizadores, a ideia principal do evento é a promoção de debate sério sobre as políticas públicas que envolvem as drogas, sendo os participantes incentivados a não fazer uso de qualquer tipo de droga, lícita ou ilícita, especialmente o álcool, durante as manifestações. Constitui-se, portanto, como movimento social espontâneo, reivindicatório e de livre exposição do pensamento”.
Considerando a atualidade e a relevância do tema legalização e descriminalização da maconha, com a premissa de que é necessário torná-lo menos mistificado e sim mais claro e conhecido, o presente artigo, a partir de uma visão imparcial sobre se se deve ou não legalizar o comércio de maconha, analisa a possibilidade de classificação da Marcha da Maconha brasileira como ato de desobediência civil, tendo como principal referência o artigo sobre desobediência civil de autoria de Hannah Arendt, publicado na revista The New Yorker, em 1970.
1. Desobediência Civil
Hannah Arendt, no seu artigo sobre desobediência civil, trás importante reflexão político-filosófica sobre a participação direta dos cidadãos na democracia representativa. Por meio de uma visão crítica da democracia representativa, em especial a democracia estadunidense, Arendt procura inserir a desobediência civil no sistema jurídico-político, tratando-a como forma legítima de participação política direita dos cidadãos.
Segundo Helton Adverse (2012, p. 413), professor do Dep. de Filosofia da UFMG, para Arendt, “[…] a democracia moderna em geral – e a democracia representativa em particular – apenas pode se manter viva se estiver assegurada a possibilidade de uma ação política autêntica, como é exemplificada pela desobediência civil”.
Com isso, a desobediência civil deve ser vista como forma válida e necessária de participação política, que, nas palavras de Arendt (2006, p. 68-69), “[…] aparece quando um número significativo de cidadãos se convence de que, ou os canais normais para mudança não funcionam, e que as queixas não serão ouvidas nem terão qualquer efeito, ou então, pelo contrário, o governo está em vias de efetuar mudanças e se envolve e persiste em modos de agir cuja legalidade e constitucionalidade estão expostos a graves dúvidas […]. Em outras palavras, a desobediência civil pode servir tanto para mudanças necessárias e desejadas como para preservação ou reestruturação necessárias e desejadas do status quo […]”.
A desobediência civil, portanto, leva em consideração que a falibilidade das instituições exige a preservação de instrumentos de participação direta, mesmo em democracia de regime representativo, com a premissa de que os cidadãos não esgotam a sua participação política no ato de eleição de seus representantes, de modo que não estão impedidos de se organizarem para atuar diretamente.
Na construção de Arendt, a legitimidade da desobediência civil decorre de uma reflexão político-filosófica, especialmente à luz do processo de formação do Estado americano. Pensando a legitimidade do instituto no Brasil, ao menos a princípio, é possível confirmar sua legitimidade a partir de uma reflexão jurídico-política, tendo como fundamento o conteúdo normativo do art. 1º da Constituição Federal, notadamente por dizer que todo poder emana do povo e por estabelecer a cidadania e o pluralismo político como fundamentos da República, além, é claro, do conteúdo normativo que se extrai do espírito democrático e republicano do Estado brasileiro.
Outros instrumentos de participação política direita, só que estes com previsão expressa na Constituição Federal, são o plebiscito, o referendo e o projeto de lei de iniciativa popular. De acordo com Bernardo Gonçalves Fernandes (2011, p. 347), professor de Direito Constitucional da UFMG: “Fato é que a Constituição de 1988, conseguiu articular tanto o plano de democracia direta quanto da indireta, criando uma figura semidireta de cunho participativo. Assim, além da possibilidade de eleição dos representantes políticos, o texto constitucional contempla as modalidades de plebiscito (art. 14, I), referendum (art. 14, II) e a iniciativa legislativa popular (art. 14, III, regulada pelo art. 61, § 2º). O propósito aqui é criar condições para desenvolvimento de uma cidadania plena e inclusiva, com livre exercício das liberdades públicas”.
Vale evidenciar, contudo, a existência de ao menos duas diferenças substanciais entre o instituto desobediência civil e os demais (plebiscito, referendo e iniciativa popular de lei), embora todos pertençam a um só gênero, o dos instrumentos de participação política direta. Uma delas consistente no fato de que estes servem essencialmente para salvaguardar os interesses da maioria, ao passo que ela, a desobediência civil, se vincula precipuamente à defesa das minorias; a outra diferença refere-se à existência de previsão normativa expressa para o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular, ao passo que a desobediência civil tem fundamento extralegal/pré-jurídico.
Sobre esse último aspecto da desobediência civil, o advogado Mateus Augusto Silva Amaral (2013, p. 92), em sua dissertação de mestrado em desenvolvimento social, esclarecesse que “A política se caracteriza por ser pré-jurídica, ou seja, acontece da realidade da vida e é anterior ao direito, já que a ele funda. Neste contexto, a desobediência civil se situa inquestionavelmente na esfera da ação política, sendo, portanto, extralegal, […] sendo ato legal por natureza, baseando-se na nova legalidade pretendida. Vê-se que este caráter da ação política e da desobediência civil não é só relevante como necessário ao funcionamento da democracia. Ora, onde as normas não podem ser questionadas e modificadas, não há democracia, mas ditadura das leis, o que inverte a posição da origem do Estado, do poder e de seu instrumento, o direito. O sistema político democrático é um instrumento de exercício do poder do povo, assim, quando este instrumento apresenta defeitos, deve ser repensado para se adequar ao povo, e não o povo se adequar ao sistema político”.
Enfim, o voto, a despeito de ser o instrumento-mor de participação política da democracia representativa, não faz dos cidadãos indivíduos subjugados a toda e qualquer vontade/atuação dos representantes, como que se os eleitores passassem à condição de súditos perante os eleitos, havendo a necessidade de ser resguardado o direito ao exercício do dissenso, que pode se dar via atos de desobediência civil.
2. Marcha da Maconha Brasileira como exemplo de desobediência civil
Embora seja imperioso o reconhecimento de legitimidade à desobediência civil, dada sua incorporação ao sistema jurídico-político, há que se ter cautela na eleição dos atos que são passíveis de tal classificação, considerando seu caráter excepcional, sob pena de se anular o sistema representativo, colocando em seu lugar o sistema direto.
Afinal, a Marcha da Maconha brasileira é ato de desobediência civil?
No Brasil, o movimento Marcha da Maconha é conhecido pela realização das passeatas anuais. As Marchas chamam a atenção por sua organização a partir de agrupamento espontâneo de cidadãos, em número significativo e com certa expressão nacional, com o intuito comum de reivindicar alterações legislativas e oferecer resistência aos atos estatais de cerceamento da exposição pública de suas ideias, que sabidamente são de caráter contramajoritário, valendo-se de razões relevantes, o que induz sua classificação com ato de desobediência civil.
No Brasil, a passeata anual conhecida por Marcha da Maconha é organizada por grupos de pessoas que contam com organizadores locais (da cidade em que ocorrerá), organizadores nacionais, apoiadores e colaboradores em geral. As passeatas são consideradas de responsabilidade dos organizadores locais, embora tenham o apoio de uma espécie de núcleo nacional, o grupo autointitulado Coletivo Marcha da Maconha Brasil. Segundo consta no site mantido pelo Coletivo (2015): “O Coletivo Marcha da Maconha Brasil é um grupo de indivíduos e instituições que trabalham de forma majoritariamente descentralizada, com um núcleo-central que atua na manutenção do site marchadamaconha.org e do fórum de discussões a ele anexado. Apesar de existir tal núcleo, todo o trabalho é realizado de forma horizontal e coletiva entre uma rede de colaboradores, no qual os textos, artigos e todo tipo de trabalhos são compartilhados de acordo com as necessidades, disponibilidades e engajamento de cada um. Ainda atendido esses critérios, todos somos apenas membros. Organizadores Locais, Organizadores Nacionais, Apoiadores, Colaboradores, sejam instituições ou indivíduos todos são membros do que atualmente se mantém existindo justamente graças à existência de uma rede de relacionamento entre instituições, profissionais, pesquisadores, ativistas, redutores de danos e membros da sociedade em geral engajados na questão. Mas todos somos membros desse Coletivo. Não temos líderes, coordenadores, caciques, nem presidentes. Muito menos presidentes honorários. Gostaríamos tornar público que as responsabilidades do Coletivo Marcha da Maconha Brasil restringem-se às atuações de manter o site, o fórum e dar apoio na divulgação dos eventos locais. As responsabilidades pelas edições de cada cidade são dos organizadores locais, ainda que o Coletivo apóie essas edições com material de divulgação, procure orientar a melhor forma de realizá-las e ajude no diálogo entre as instituições e indivíduos. Em contrapartida, os créditos também são dos organizadores locais e o Coletivo entre apenas como apoiador dos eventos. Os objetivos principais do Coletivo são: Criar espaços onde indivíduos e instituições interessadas em debater a questão possam se articular e dialogar; Estimular reformas nas Leis e Políticas Públicas sobre a maconha e seus diversos usos; Ajudar a criar contextos sociais, políticos e culturais onde todos os cidadãos brasileiros possam se manifestar de forma livre e democrática a respeito das políticas e leis sobre drogas; Exigir formas de elaboração e aplicação dessas políticas e leis que sejam mais transparente, justas, eficazes e pragmáticas, respeitando a cidadania e os Direitos Humanos. O Coletivo Marcha da Maconha Brasil reafirma que suas atividades não têm a intenção de fazer apologia à maconha ou ao seu uso, nem incentivar qualquer tipo de atividade criminosa. As atividades do Coletivo respeitam não só o direito à livre manifestação de idéias e opiniões, mas também os limites legais desse e de outros direitos (grifos nossos)”.
Até o advento do julgamento da ADPF 187, a realização da Marcha da Maconha foi considerada por diversas decisões de órgãos judiciários de primeira instância, inclusive chegando à confirmação por órgãos de segunda instância, como atos ilegítimos, ensejando repressão policial, notadamente por sua suposta apologia ao crime, vez que a comercialização e o uso de drogas são tidos como espécies de ilícitos penais, mesmo após a Nova Lei de Drogas, Lei 11.343.
Vale registrar, a título de exemplo, que a realização da Marcha foi proibida por decisões do Poder Judiciário, no ano de 2008, nas cidades de Curitiba (PR), São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ), Belo Horizonte (MG), Brasília (DF), Cuiabá (MT), Salvador (BA), João Pessoa (PB) e Fortaleza (CE); no ano de 2009, ainda a título de exemplo, o mesmo evento foi vedado por decisões judiciais nas cidades de Curitiba (PR), São Paulo (SP), Americana (SP), Juiz de Fora (MG), Goiânia (GO), Salvador (BA), Fortaleza (CE) e João Pessoa (PB).
Todas essas proibições deram ensejo à propositura da ADPF 187 pelo Ministério Público da União, no ano de 2009, requerendo a liberação da realização dos eventos em todo o território nacional com fundamento no direito constitucional à liberdade de expressão, ação que apenas foi julgada em 2011, após a veiculação na imprensa de incidentes de conflito violento, ocorridos em São Paulo, entre manifestantes e policiais militares incumbidos de levarem a cabo ordem judicial que vedava a realização do evento.
Fato é que, a despeito das ordens judiciais proibitivas e da repressão policial, várias passeatas ocorreram, nas quais os manifestantes expunham a crença na ilegitimidade da repressão sofrida e na necessidade de oferecer resistência como meio de exercício do direito constitucional à liberdade de expressão. Ilegitimidade esta que, em 2011, veio a ser confirmada pelo Supremo Tribunal Federal (2011, p. 1-2). Eis um resumo da ementa do acórdão da ADPF 187: “‘MARCHA DA MACONHA’ – MANIFESTAÇÃO LEGÍTIMA, POR CIDADÃOS DA REPÚBLICA, DE DUAS LIBERDADES INDIVIDUAIS REVESTIDAS DE CARÁTER FUNDAMENTAL: O DIREITO DE REUNIÃO (LIBERDADE-MEIO) E O DIREITO À LIVRE EXPRESSÃO DO PENSAMENTO (LIBERDADE-FIM) – A LIBERDADE DE REUNIÃO COMO PRÉ-CONDIÇÃO NECESSÁRIA À ATIVA PARTICIPAÇÃO DOS CIDADÃOS NO PROCESSO POLÍTICO E NO DE TOMADA DE DECISÕES NO ÂMBITO DO APARELHO DE ESTADO – CONSEQUENTE LEGITIMIDADE, SOB PERSPECTIVA ESTRITAMENTE CONSTITUCIONAL, DE ASSEMBLEIAS, REUNIÕES, MARCHAS, PASSEATAS OU ENCONTROS COLETIVOS REALIZADOS EM ESPAÇOS PÚBLICOS (OU PRIVADOS) COM O OBJETIVO DE OBTER APOIO PARA OFERECIMENTO DE PROJETOS DE LEI, DE INICIATIVA POPULAR, DE CRITICAR MODELOS NORMATIVOS EM VIGOR, DE EXERCER O DIREITO DE PETIÇÃO E DE PROMOVER ATOS DE PROSELITISMO EM FAVOR DAS POSIÇÕES SUSTENTADAS PELOS MANIFESTANTES E PARTICIPANTES DA REUNIÃO […] – A LIBERDADE DE EXPRESSÃO COMO UM DOS MAIS PRECIOSOS PRIVILÉGIOS DOS CIDADÃOS EM UMA REPÚBLICA FUNDADA EM BASES DEMOCRÁTICAS – O DIREITO À LIVRE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO: NÚCLEO DE QUE SE IRRADIAM OS DIREITOS DE CRÍTICA, DE PROTESTO, DE DISCORDÂNCIA E DE LIVRE CIRCULAÇÃO DE IDEIAS […] – A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL À LIBERDADE DE PENSAMENTO COMO SALVAGUARDA NÃO APENAS DAS IDEIAS E PROPOSTAS PREVALECENTES NO ÂMBITO SOCIAL, MAS, SOBRETUDO, COMO AMPARO EFICIENTE ÀS POSIÇÕES QUE DIVERGEM, AINDA QUE RADICALMENTE, DAS CONCEPÇÕES PREDOMINANTES EM DADO MOMENTO HISTÓRICO-CULTURAL, NO ÂMBITO DAS FORMAÇÕES SOCIAIS – O PRINCÍPIO MAJORITÁRIO, QUE DESEMPENHA IMPORTANTE PAPEL NO PROCESSO DECISÓRIO, NÃO PODE LEGITIMAR A SUPRESSÃO, A FRUSTRAÇÃO OU A ANIQUILAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS, COMO O LIVRE EXERCÍCIO DO DIREITO DE REUNIÃO E A PRÁTICA LEGÍTIMA DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO, SOB PENA DE COMPROMETIMENTO DA CONCEPÇÃO MATERIAL DE DEMOCRACIA CONSTITUCIONAL – A FUNÇÃO CONTRAMAJORITÁRIA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO – INADMISSIBILIDADE DA “PROIBIÇÃO ESTATAL DO DISSENSO” – NECESSÁRIO RESPEITO AO DISCURSO ANTAGÔNICO NO CONTEXTO DA SOCIEDADE CIVIL COMPREENDIDA COMO ESPAÇO PRIVILEGIADO QUE DEVE VALORIZAR O CONCEITO DE “LIVRE MERCADO DE IDEIAS” […] – COMO ELEMENTO FUNDAMENTAL E INERENTE AO REGIME DEMOCRÁTICO […] – A IMPORTÂNCIA DO CONTEÚDO ARGUMENTATIVO DO DISCURSO FUNDADO EM CONVICÇÕES DIVERGENTES – A LIVRE CIRCULAÇÃO DE IDEIAS COMO SIGNO IDENTIFICADOR DAS SOCIEDADES ABERTAS, CUJA NATUREZA NÃO SE REVELA COMPATÍVEL COM A REPRESSÃO AO DISSENSO E QUE ESTIMULA A CONSTRUÇÃO DE ESPAÇOS DE LIBERDADE EM OBSÉQUIO AO SENTIDO DEMOCRÁTICO QUE ANIMA AS INSTITUIÇÕES DA REPÚBLICA […] (grifos nossos)”.
A força normativa deste julgado, que tem caráter erga omnes, impõe uma leitura bastante ampla do direito à liberdade de expressão, dada sua relação direita com a ideia de democracia material, possibilitando ativa participação dos cidadãos nas questões políticas, inclusive garantindo-lhes o direito de reivindicar “[…] mudanças necessárias e desejadas como para preservação ou reestruturação necessárias e desejadas do status quo […]” (ARENDT, 2006, p. 68-69), objeto próprio da desobediência civil, conforme pontuado alhures.
Obviamente, na medida em que o Supremo reconheceu a legitimidade das Marchas da Maconha, contrariando decisões judiciais de outros órgãos, elas perderam seu caráter de desobediência civil, sendo que só há que se falar em desobediência quando até mesmo o judiciário é incapaz de compreender e atender aos anseios dos cidadãos/desobedientes.
Com efeito, “O judiciário apresenta-se como instrumento ordinário de defesa contra os atos estatais ilegítimos, todavia, que se revela insuficiente isoladamente para resolver todos os casos, mormente aqueles envolvendo elementos excepcionais onde os membros do judiciário também se encontram infectados pela paranoia consensual ou mesmo tiveram seus poderes suprimidos pelo poder executivo num verdadeiro estado de exceção. Fechada a porta judiciária, a próxima alternativa possível é a atuação direta no espaço político em busca do reconhecimento da ilegitimidade arguida, e esta possibilidade está na essência do sistema democrático” (AMARAL, 2013, p. 87).
Ademais, é importante ressaltar que somente se pode pensar a Marcha da Maconha como ato de desobediência civil se reconhecida a alta qualidade do seu discurso.
O discurso da Marcha envolve fundamentos de ordem “prática” e fundamentos de ordem jurídica, sendo que os argumentos de ordem jurídica envolvem especialmente a questão da descriminalização do uso de drogas, já os argumentos de ordem prática dizem mais especificamente da legalização.
A questão envolvendo a descriminalização teve boa parte das discussões sanadas com o advento da extinção da pena de prisão para a conduta de porte de drogas para uso próprio, ocorrida em 2006, por meio da chamada Nova Lei de Drogas. Todavia, o fato da legislação ainda prever a possibilidade de intervenção judicial e policial para a conduta de porte de drogas para uso próprio é algo bastante negativo, sobretudo por implicar na estigmatizarão dos usuários como criminosos e dificultar a implantação de políticas de redução de danos.
Convém listar os principais argumentos em prol da legalização: (I) a grande ineficácia, nacional e internacional, da política de proibição; (II) o exemplo estadunidense negativo da política contra o álcool (lei seca); (III) os danos gerados à saúde dos usuários, que não sabem o que estão consumindo; (IV) o comércio clandestino gera violência e corrupção; (V) há exemplos de experiências de políticas públicas alternativas que foram bem sucedidas em outros países; (VI) a legalização geraria aumento da arrecadação de tributos; (VII) os problemas envolvendo o uso abusivo da maconha envolvem a minoria dos usuários; (VIII) os efeitos danosos à saúde são menores que os causados por outras drogas consideradas lícitas, como álcool e tabaco, se levando em consideração a substância pura e não a que é comumente comercializada como se pura fosse; (IX) o uso de drogas pelo homem para fins recreativos é milenar.
Sobre a legalização, o especialista em segurança pública Luiz Eduardo Soares (2014, p. 50) afirma: “Eu sou favorável à legalização, que é mais que a descriminalização. A discussão está mal colocada quando nos perguntamos se as drogas devem ou não ser proibidas. Eu desafio qualquer interlocutor a me dizer em qual lugar do Brasil e do mundo ocidental democrático a proibição está em vigência na prática. O acesso existe. A pergunta é: em que político-institucional nós queremos que esse acesso ocorra? Se a verdadeira questão fosse o mal causado pelas drogas, nós estaríamos antes de tudo o cigarro e o álcool. O álcool produz 15 milhões de alcoolistas no Brasil e um número de mortes incomparável em relação às outras drogas. E é objeto de propaganda na TV. Houve grande sucesso na redução do consumo de cigarro, e o caminho foi difusão, campanha, educação. Ou seja, limitação do uso sem criminalizar o fumante. Criar uma lei significa viabilizar o convívio apesar dos dilemas e conflitos. O que existe hoje na área das drogas ilícitas é a anarquia. Um mercado controlado por máfias poderosas e violentas que se associam aos interesses das armas ilegais provocando massacres, e com muito dinheiro, o que significa também uma capacidade de corrupção imensa de autoridades. As sociedades mais saudáveis, do ponto de vista da drogadição, são aquelas que integram as drogas e não as excluem. Integrar significa regular, dar limites”.
Com todo esse bloco de argumentos, se sustenta que os efeitos da proibição são muito piores que os do uso em si, o que é bastante plausível e confere inquestionável doze de razão ao discurso dos manifestantes da Marcha da Maconha. Fato é que o tema merece atenção e espaço nos debates públicos, sobretudo no âmbito legislativo e acadêmico, a fim de que se analise a validade de todos estes argumentos.
Considerações Finais
Tanto a partir de uma visão político-filosófica quanto de uma visão jurídico-política é possível compreender a desobediência civil como legítima forma de atuação política, instrumento para que o próprio cidadão faça valer sua opinião ainda que sob a égide do regime representativo. Afinal, o voto não transfere o poder de decisão do cidadão para o seu representante de modo absoluto.
Com a manifestação do Supremo Tribunal Federal reconhecendo explicitamente a legitimidade da Marcha da Maconha, afastando seu caráter antijurídico outrora atribuído por diversos julgados, conferindo-lhe uma espécie de salvo-conduto, por óbvio, afastou-se a possibilidade de sua classificação como ato de desobediência civil, mas permanece sua relevância enquanto meio de expressão política para comunicação das ideias de seus participantes.
Recente notícia veiculada na mídia, de que um cidadão foi preso por usar uma camisa com a folha da maconha, faz lembrar que a decisão do Supremo ainda está longe de ser absorvida e dá ideia dos obstáculos que envolvem o debate sobre o tema da descriminalização e legalização da maconha, evidenciando a importância de veículos que tratam sobre o tema.
Informações Sobre o Autor
Ícaro Fellipe Alves Ferreira de Brito
Advogado e Pós-Graduado em Direto Público pela Faculdade Legale