Direito sucessório e a filiação socioafetiva

Resumo: O presente artigo científico busca estudar o reconhecimento do instituto da filiação socioafetiva em nosso ordenamento jurídico, bem como analisar a possibilidade de enquadramento da socioafetividade no direito sucessório.

Palavras-chave: Socioafetividade. Posse de estado de filho. Direito sucessório.

Abstract: This article aims to study the recognition of the institute of socio-affective affiliation in our legal system, as well as to analyze the possibility of framing socio-affectivity in inheritance law.

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Keywords: Socio-activity. Possession of child status. Inheritance law.

Sumário: Introdução. 1. Da filiação. 1.1. Conceito. 1.2. Visão Histórica. 1.3. Reconhecimento do vínculo parental. 2. Da filiação socioafetiva. 2.1. Conceito. 2.2. Posse do estado de filho. 3. Do direito sucessório. 3.1. Conceito. 3.2. Ordem de vocação hereditária. 3.3. Da sucessão dos descendentes. 3.4. Da sucessão socioafetiva. Conclusão. Referências.

Introdução

O direito de família, em especial, com relação ao reconhecimento da filiação, passou por diversas alterações dentro do ordenamento jurídico brasileiro.

Até a promulgação em 1988 da nossa atual Constituição Federal, que declarou inconstitucional o texto trazido pelo então Código Civil de 1916, havia o tratamento discriminatório na identificação dos filhos quando havidos ou não na constância do casamento.

Em 2002, todavia, com a vinda do atual Código Civil, este passou a reforçar a proibição de qualquer tipo de diferenciação trazido pelo texto Constitucional, que prevê em seu artigo 227, § 6º que “todos os filhos são iguais”.

Nesse sentido, não havendo diferenciação no tratamento entre os filhos, biológicos ou não, a eles são inerentes todos os direitos e deveres, inclusive com relação ao direito sucessório.

1. Da filiação

1.1. Conceito

Segundo Silvio Rodrigues[1] “Filiação é a relação de parentesco consanguíneo, em primeiro grau e em linha reta, que liga uma pessoa àquela que a geram, ou a receberam como se a tivesse gerado”.

O atual conceito de filiação destoa daquele enfrentado anteriormente à promulgação da Constituição Federal de 1988, que distinguia os filhos fruto da relação do casamento, daqueles gerados fora a união conjugal do casal.

A relação de filiação é regida pelo princípio da igualdade entre os filhos, trazido pela Constituição Federal, em seu artigo 227, § 6º, reforçado pelo artigo 1.596 do Código Civil.

Atualmente, o conceito de filiação está totalmente relacionado à condição socioafetiva da paternidade, sendo este gênero dos quais são espécies a paternidade biológica e a não biológica.

1.2. Visão histórica

Até o advento da Constituição Federal de 1988, o Código Civil de 1916 tratava de forma discriminatória a identificação dos filhos havidos ou não na constância do casamento.

Os filhos eram classificados em legítimos, ilegítimos e legitimados. Os legítimos eram aqueles advindos da relação de casamento dos genitores. Quando não houvesse casamento, denominavam-se ilegítimos e sua classificação era subdividida em naturais ou espúrios. Naturais, quando entre os pais não houvesse impedimento para o casamento e, espúrios, quando a lei proibia a relação conjugal dos genitores, podendo os espúrios serem classificados, ainda, em incestuoso ou adulterinos, sendo aqueles quando decorrentes do parentesco próximo e, estes, por ocasião de um ou ambos os genitores já serem casados. Por fim, aos legitimados eram conferidos os mesmos direitos dos filhos legítimos, e sua classificação advinha como um dos efeitos do casamento, como se o filho houvesse sido concebido após as núpcias do casal.

Naquela época, havia manifesta necessidade da preservação do núcleo familiar, ocasião em que a situação conjugal do casal refletia diretamente na identificação dos filhos. Se, por exemplo, uma criança fosse fruto de adultério – o que naquela época era considerado um crime – esta não teria direito ao reconhecimento de sua filiação.

Em 1942 e 1949, por meio do Decreto Lei 4.737/1942 e da edição da Lei nº 883/1949, passou a ser possível o reconhecimento do filho havido fora do casamento, desde que após a dissolução do matrimônio do genitor e, ainda assim, a diferenciação no ato do registro da filiação permanecia, uma vez que estes eram registrados como filhos ilegítimos, tendo a investigação da paternidade, que tramitava sob segredo de justiça, objetivo exclusivo na busca de alimentos e, no direito sucessório, se comprovada a filiação, este teria direito apenas à metade da herança que viesse a receber o filho legítimo ou legitimado.

Desta forma e, como dito, esse posicionamento somente foi derrubado pela Constituição Federal, que proibiu o tratamento discriminatório quanto à filiação, assegurando os mesmos direitos e qualificação aos filhos nascidos ou não da relação do casamento e, também, aos havidos por adoção (CF 227 § 6º).

No mesmo sentido, o artigo 1.596 do Código Civil de 2002 passa a prever que “os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”, seguindo, assim, o princípio da igualdade entre os filhos.

Assim, novos conceitos surgiram para tratar do tema filiação, passando a ser reconhecido não apenas aquela derivada do parentesco genético, mas também do parentesco psicológico, tais como a filiação social, filiação socioafetiva, estado de filho afetivo etc.

1.3. Reconhecimento do vínculo parental

Didaticamente, para reconhecimento do vínculo parental, podemos subdividir o tema em 3 (três) critérios:

a) Critério jurídico, previsto no artigo 1.597 do Código Civil, que estabelece esta presunção como pater is est, expressão romana, segundo o qual é presumida a paternidade do marido no caso de filho gerado por mulher casada, independentemente da correspondência ou não com a realidade;

b) Critério biológico, aquele existente entre pessoas que mantêm entre si um vínculo de sangue, por terem origem do mesmo tronco comum. O filho havido fora do casamento, por exemplo, não é beneficiário da presunção legal de paternidade que favorece aqueles. Embora haja entre ele e seu genitor vínculo biológico, lhe falta vínculo jurídico, o qual poderá ser satisfeito pelo reconhecimento judicial por meio de ação de investigação de paternidade, quando não foi realizado voluntariamente pelo genitor; e,

c) Critério socioafetivo, fundado no melhor interesse da criança e na dignidade da pessoa. Segundo este critério, o vínculo parental se dá pelo exercício da função de pai, ainda que não haja vínculo biológico

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2. Da filiação socioafetiva

2.1. Conceito

A filiação socioafetiva pode ser conceituada como a relação construída entre pai e filho, a convivência, ao sentimento projetado entre eles. Trata-se da paternidade fictícia decorrente da presunção de paternidade (CC 1.597), sem qualquer relevância à verdade biológica. Aqui prevalece a verdade social.

Segundo Belmiro Welter[2], “a verdadeira filiação só pode vingar no terreno da afetividade, da intensidade das relações que unem pais e filhos, independentemente da origem biológico-genética”.

Embora a filiação socioafetiva não possua previsão legal expressa, pode ser interpretada e reconhecida por meio dos artigos 1.593 e 1.605, inciso II do atual Código Civil, que assim preveem:

“Artigo 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem.

Artigo 1.605. Na falta, ou defeito, do termo de nascimento, poderá provar-se a filiação por qualquer modo admissível em direito:

I – quando houver começo de prova por escrito, proveniente dos pais, conjunta ou separadamente;

II – quando existirem veementes presunções resultantes de fatos já certos.”

Veja que, o texto trazido pelo artigo 1.593 supracitado, preceitua a relação de parentesco sanguíneo, ou parentesco natural, e também o de vínculo civil, quando resultar de outra origem, como a adoção, afinidade, vínculos parentais decorrentes de reprodução assistida e, por fim, o socioafetivo, decorrente da posse de estado de filho, que se perfilha ao longo da convivência afetiva e do mútuo reconhecimento da paternidade entre quem exerce o papel de genitor e filho[3].

2.2. Posse do estado de filho

A posse do estado de filho nada mais é do que uma construção social e afetiva. Possui estado de filho aquele que é tratado como tal e reconhece aquele como seu genitor. A relação deve, ainda, ser reconhecida pela sociedade como verdadeira, independente do conhecimento ou não da origem biológica entre eles.

A posse do estado de filho é reconhecida pela doutrina pela caracterização da presença de 3 (três) elementos:

“a) Tractus – quando a pessoa é tratada pela família como filha;

b) Nomem – quando a pessoa usa o sobrenome da família; e,

c) Fama (ou reputatio) – quando a pessoa é reconhecida pela sociedade como filha.”

De acordo com José Bernardo Ramos Boeira[4], o fato de o filho nunca ter usado o sobrenome da família não o exclui da condição de posse do estado de filho, desde que presentes os outros aspectos, essenciais a tal reconhecimento.

Assim, tem-se que a filiação socioafetiva está calçada no reconhecimento do estado de filho por um parentesco psicológico decorrente da crença da condição de filho fundada em laços de afeto.

3. Do direito sucessório

3.1. Conceito

Direito sucessório, restrito à condição decorrente de morte (ou mortis causa), nada mais é do que o conjunto de normas que disciplinam a transferência do patrimônio, seja ativo e passivo, do morto.

O direito sucessório possui respaldo jurídico legal no artigo 1.786 do Código Civil, subdividindo-se em sucessão legítima e testamentária.

A sucessão legítima é aquela decorrente de lei, ou seja, a ordem de vocação hereditária prevista no ordenamento jurídico deve ser garantida, presumindo a vontade do autor da herança.

Sendo esta sucessão também conhecida como ad intestato, por inexistir testamento prevendo a divisão da herança de forma diversa, abre-se margem para a segunda modalidade de sucessão, a testamentária.

A sucessão testamentária é aquela originada pelo ato de última vontade do morto, por testamento, legado ou codicilo.

Tal direito está embasado não apenas no direito de propriedade e na sua função social, previstos no artigo 5º, incisos XXII e XXIII, como também na valorização da dignidade humana, nos termos dos artigos 1º, inciso III e 3º, inciso I, todos da Constituição Federal.

3.2. Ordem de vocação hereditária

Com o advento do falecimento de uma determinada pessoa, seus bens, direitos, encargos e obrigações devem ser transmitidos a outra pessoa.

O princípio da saisine, previsto no artigo 1.784 do Código Civil, dispõe que a herança se transmite aos herdeiros no momento da morte, quando é aberta a sucessão.

O Código Civil prevê, em seu artigo 1.829 a ordem de vocação hereditária, indicando os legitimados para receber a herança. Há a preferência, segundo o citado artigo, pela transmissão de todos os ônus e bônus preferencialmente aos parentes em linha reta, ou seja, aos descendentes e ascendentes (CC 1.591).

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“Artigo 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;

II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;

III – ao cônjuge sobrevivente;

IV – aos colaterais.”

Assim como os descendentes e os ascendentes, os cônjuges e companheiros, são considerados herdeiros necessários (CC 1.845), fazendo jus ao que se chama de legítima, ou seja, a pelo menos metade da herança deixada pelo morto.

Os parentes colaterais, ou herdeiros facultativos, por sua vez, somente herdarão do morto se não existirem herdeiros necessários, nem testamento a terceiros.

3.3. Da sucessão pelos descendentes

Aos descendentes é priorizado, em face dos demais herdeiros necessários, o direito sucessório dos bens, direitos, encargos e obrigações da pessoa falecida.

Pode haver, ainda, a sua concorrência com cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares.

Equipara-se para todos os fins, ao cônjuge, o companheiro, nos termos do recente posicionamento proferido pelo Supremo Tribunal Federal, em julgamento dos Recursos Extraordinários nº 878.694, que aborda a equiparação entre cônjuges e companheiros, e nº 646.721, que trata das uniões estáveis entre homossexuais e heterossexuais, determinando a não discriminação entre os direitos de herança e sucessões entre cônjuges e companheiros, inclusive para relações homossexuais.

O conceito de descendente abrange todas as espécies de filiação admitidas, tais como:

a)    Consanguínea ou natural, decorrente da verdade biológica;

b)    Civil, quando decorre de adoção;

c)    Socioafetiva, constituída a partir da posse do estado de filho; e,

d)    Social, decorrente de técnicas de reprodução assistida;

Qualquer que seja a espécie de filiação, o herdeiro descendente terá preferência à herança, segundo a ordem vocacional prevista no já citado artigo 1.829 do Código Civil, podendo se dar, ou não, em concorrência com o cônjuge o ou companheiro sobrevivente.

Cumpre ressaltar, ainda, que, segundo dispõe o artigo 1.833 do Código Civil, entre os descendentes, os em grau mais próximo excluem os mais remotos, salvo o direito de representação.

3.4. Da sucessão socioafetiva

Por ausente a expressa previsão legal acerca da sucessão socioafetiva, o tema é abordado pela doutrina e jurisprudência, que reconhece de forma majoritária o direito à sucessão, como herdeiro necessário, eis que descendente, com base no princípio da igualdade entre os filhos, trazido pela Constituição Federal, em seu artigo 227, § 6º, reforçado pelo artigo 1.596 do Código Civil.

A tutela jurídica dada à afetividade se torna maior do que a disponibilizada para o direito consanguíneo.

O reconhecimento da filiação socioafetiva produz todos os efeitos pessoais e patrimoniais que lhe são inertes, segundo o Enunciado 6 do IBDFAM, que prevê que “do reconhecimento jurídico da filiação socioafetiva decorrem todos os direitos e deveres inerentes à autoridade parental”.

Neste sentido e, ainda de forma bastante cautelosa, vem sendo proferidas recentes decisões sobre o tema, concedendo aos herdeiros socioafetivos igualdade no direito sucessório. É o que se observa dos julgados abaixo citados:

APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO DE FAMÍLIA. DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA POST MORTEM. INEXISTÊNCIA DE PAI REGISTRAL/BIOLÓGICO. EXISTÊNCIA DE RELAÇÃO PATERNO-FILIAL QUE CARATERIZA A PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. INCLUSÃO DO NOME PATERNO. ANULAÇAO DE ESCRITURA PÚBLICA DE INVENTARÁRIO E PARTILHA. RECURSOS CONHECIDOS E NÃO PROVIDOS. SENTENÇA MANTIDA. 1. Os apelantes pretendem a modificação da r. sentença da instância a quo para que seja julgado improcedente o pedido de reconhecimento de paternidade socioafetiva e, por consequência seja declarada a legalidade da partilha dos bens anteriormente registrada. 2. Os adquirentes dos direitos sobre o imóvel, objeto do pedido de anulaçãoda Escritura Pública de Inventário e Partilha, alegam, em sede preliminar, a ilegitimidade passiva, sob entendimento de não ser possível incluir o espólio no pólo passivo, mas somente os herdeiros. A preliminar não merece prosperar em virtude da superveniência defato modificativo do direito que pode influir no julgamento da lide, conforme art. 462 do Código de Processo Civil, com a possibilidade da ocorrência da evicção. 3. Apaternidade socioafetiva é construção recente na doutrina e na jurisprudência pátrias, segundo o qual, mesmo não havendo vinculo biológico alguém educa uma criança ou adolescente por mera opção e liberalidade, tendo por fundamento o afeto. Encontra guarida na Constituição Federal de 1988, § 4º do art. 226 e no § 6º art. 227, referentes aos direitos de família, sendo proibidos quaisquer tipos de discriminações entre filhos. 4. A jurisprudência, mormente na Corte Superior de Justiça, já consagrou o entendimento quanto à plena possibilidade e validade do estabelecimento de paternidade/maternidade socioafetiva, devendo prevalecer a paternidade socioafetiva para garantir direitos aos filhos, na esteira do princípio do melhor interesse da prole. 5. No caso dos autos resta configurado o vínculo socioafetivo entre as partes, que se tratavam mutuamente como pai e filho, fato publicamente reconhecido por livre e espontânea vontade do falecido, razão pela qual deve prevalecer o entendimento firmado na sentença quanto à declaração do vinculo paterno-filial, resguardando-se os direitos sucessórios decorrentes deste estado de filiação, e respectiva anulação da Escritura Pública de Inventário e Partilha anteriormente lavrada. 6. Recursos conhecidos e não providos. Sentença mantida integralmente.”[5]

RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. FILIAÇÃO. IGUALDADE ENTRE FILHOS. ART. 227, § 6º, DA CF/1988. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. VÍNCULO BIOLÓGICO. COEXISTÊNCIA. DESCOBERTA POSTERIOR. EXAME DE DNA. ANCESTRALIDADE. DIREITOS SUCESSÓRIOS. GARANTIA. REPERCUSSÃO GERAL. STF. 1. No que se refere ao Direito de Família, a Carta Constitucional de 1988 inovou ao permitir a igualdade de filiação, afastando a odiosa distinção até então existente entre filhos legítimos, legitimados e ilegítimos (art. 227, § 6º, da Constituição Federal). 2. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 898.060, com repercussão geral reconhecida, admitiu a coexistência entre as paternidades biológica e a socioafetiva, afastando qualquer interpretação apta a ensejar a hierarquização dos vínculos. 3. A existência de vínculo com o pai registral não é obstáculo ao exercício do direito de busca da origem genética ou de reconhecimento de paternidade biológica. Os direitos à ancestralidade, à origem genética e ao afeto são, portanto, compatíveis. 4. O reconhecimento do estado de filiação configura direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, que pode ser exercitado, portanto, sem nenhuma restrição, contra os pais ou seus herdeiros. 5. Diversas responsabilidades, de ordem moral ou patrimonial, são inerentes à paternidade, devendo ser assegurados os direitos hereditários decorrentes da comprovação do estado de filiação. 6. Recurso especial provido.”[6]

A dificuldade enfrentada pelos Tribunais refere-se à ausência de comprovação do vínculo socioafetivo havido entre o pretenso herdeiro (socioafetivo) e o autor da herança.

A busca pelo reconhecimento da filiação socioafetiva, quando realizada post mortem, o torna mais dificultoso, face à ausência de provas ou preenchimento dos requisitos Tractus, Nomem e Fama. Vejamos:

APELAÇÃO CÍVEL. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA CUMULADA COM PETIÇÃO DE HERANÇA E ANULAÇÃO DE PARTILHA. AUSÊNCIA DE PROVA DO DIREITO ALEGADO. INTERESSE MERAMENTE PATRIMONIAL. Embora admitida pela jurisprudência em determinados casos, o acolhimento da tese da filiação socioafetiva, justamente por não estar regida por lei, não prescinde da comprovação de requisitos próprios como a posse do estado de filho, representada pela tríade nome, trato e fama, o que não se verifica no presente caso, onde o que se perceve é um nítido propósito de obter vantagem patrimonial indevida, já rechaçada perante a Justiça do Trabalho. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME.”[7]

Assim, “o princípio da boa-fé objetiva e a proibição de comportamento contraditório referendam o prestígio de que desfruta a filiação socioafetiva, que dispõe de um viés ético”[8], por essa razão a cautela empenhada pelos Tribunais.

Conclusão

No presente estudo, foi abordado de forma geral o direito sucessório nos casos de filiação socioafetiva, segundo o princípio da igualdade entre os filhos, trazido pela Constituição Federal, em seu artigo 227, § 6º, reforçado pelo artigo 1.596 do Código Civil.

Trata-se de uma relação construída pelo vínculo desenvolvido entre pai e filho, ainda que ausente herança genética-biológica. Este vínculo gera o parentesco socioafetivo.

Estando presente o que se chama de posse de poder de filho, restará reconhecida a relação de parentesco socioafetivo. A posse de estado consolida o vínculo parental, ainda que não assentados na realidade natural, ou biológica, possuindo relevância jurídica para todos os fins de direito, nos limites da lei civil.

Não há diferenciação entre os filhos, biológicos, adotivos, socioafetivos ou decorrentes de reprodução assistida. Assim, “a consagração da afetividade como direito fundamental subtrai a resistência em admitir a igualdade entre filiação biológica e a socioafetiva”[9].

Ainda que na lei existam diversas lacunas sobre o tema, a doutrina e jurisprudência vêm se aperfeiçoando no reconhecimento desta modalidade de filiação, garantindo àqueles que efetivamente preenchem os requisitos de posse do estado de filho a transferência de bens, direitos, encargos e obrigações, quando da abertura da sucessão, no caso de enquadramento como herdeiro, conforme ordem de sucessão hereditária.

 

Referências
DIAS, Maria Berenice. Filhos do Afeto: Questões Jurídicas. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 11ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito de Família. 26ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
GONÇALVEZ, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 6ª ed. Rio de Janeiro: Método, 2016.
 
Notas
[1] RODRIGUES, Silvio apud. GONÇALVEZ, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 320.

[2] WELTER, Belmiro Pedro apud. DIAS, Maria Berenice. Filhos do Afeto: Questões Jurídicas. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 45.

[3] JEFET, Danilo Haddad apud. DIAS, Maria Berenice. Filhos do Afeto: Questões Jurídicas. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 47.

[4] BOEIIRA, José Bernardo Ramos apud. DIAS, Maria Berenice. Filhos do Afeto: Questões Jurídicas. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 49.

[5] Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios TJ-DF – Apelação Cível: APC 20110210037040. Órgão Julgador: 1ª Turma Cível. Julgamento: 16/09/2015. Publicação: 06/10/2015. Relator: Rômulo de Araújo Mendes. Disponível em: https://tj-df.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/240324998/apelacao-civel-apc-20110210037040

[6] Superior Tribunal de Justiça STJ – Recurso Especial nº 1618230 RS 2016/0204124-4. Órgão Julgador: 3ª Turma. Julgamento: 28/03/2017. Publicação: 10/05/2017. Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/465738570/recurso-especial-resp-1618230-rs-2016-0204124-4

[7] Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul TJ-RS – Apelação Cível: APC 70016362469. Órgão Julgador: 7ª Câmara Cível. Julgamento: 13/09/2006. Relator: Luiz Felipe Brasil Santos. Disponível em: https://tj-se.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/4871616/apelacao-civel-ac-2007206103-se/inteiro-teor-11422195

[8] Superior Tribunal de Justiça STJ – Recurso Especial nº 1383408 RS 2012/0253314-0. Órgão Julgador: 3ª Turma. Julgamento: 15/05/2014. Relator: Ministra Nancy Andrighi. Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/339963282/recurso-especial-resp-1500999-rj-2014-0066708-3/relatorio-e-voto-339963323

[9] WELTER, Belmiro Pedro apud. DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 11ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 402.


Informações Sobre o Autor

Karina Peres Arruda

Advogada. Pós-graduada em Direito e Processo do Trabalho pela Escola Paulista de Direito. Pós-graduanda em Direito e Processo Civil pela Faculdade Legale. Conveniada à Defensoria Pública de São Paulo


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