Análise das ferramentas de cooperação jurídica internacional em face da tipologia da lavagem de dinheiro

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Resumo: O presente trabalho visa estudar as ferramentas de cooperação jurídica internacional constantes do ordenamento jurídico pátrio, de modo a conhecer a estrutura de sua consubstanciação. Será necessário, também, entender o iter criminis do crime de lavagem de dinheiro, desvelando suas fases e consequências à sociedade. Por fim, far-se-á uma análise comparativa dos mais relevantes modelos normativos de cooperação internacional, a fim de selecionar os princípios e técnicas que podem contribuir positivamente para o aperfeiçoamento da persecução penal em matéria de branqueamento de capitais.[1]

Palavras-chave: Cooperação Jurídica Internacional; Lavagem de dinheiro; Direito Penal.

Abstract: The present text aims to study the tools of international legal cooperation in the legal order of the country, in order to know the structure of its consubstantiation. It will also be necessary to understand the iter criminis of the crime of money laundering, revealing its phases and consequences to society. Finally, a comparative analysis of the most relevant normative models of international cooperation will be carried out, in order to select the principles and techniques that can contribute positively to the improvement of criminal prosecution in the field of money laundering.

Keywords: International Legal Cooperation; Money Laundering; Criminal Law.

Sumário: 1. Introdução. 2. Da cooperação jurídica internacional. 2.1. Classificação. 2.2. Fontes. 2.3. Mecanismos de cooperação jurídica internacional. 2.3.1. Carta rogatória. 2.3.2. Auxílio direto. 2.3.3. Outros mecanismos de cooperação penal internacional. 2.4. Alterações trazidas pela EC n° 45/04 e pela Resolução n° 9/05. 3. Da lavagem de dinheiro. 3.1. Aspectos históricos. 3.2. Fases do tipo penal. 3.3. Alterações trazidas pela Lei 12.683/12. 4. Particularidades do crime de lavagem de dinheiro. 4.1. Correlação entre lavagem de dinheiro e crime organizado. 4.2. Razões da recente priorização na repressão da prática. 4.3. Dano social causado pelo crime. 4.4. Instrumentos utilizados na consecução delituosa. 5.. Modelos normativos de cooperação penal internacional. 5.1. Modelo da ONU. 5.2. Modelo da União Européia. 5.3. Modelo do Mercosul. 6. Do aperfeiçoamento da cooperação jurídica internacional. 6.1. Definição da lei aplicável. 6.2. Exigência de dupla incriminação. 6.3. Princípio da especialidade. 6.4. Arrolamento das garantias incidentes sobre a atividade probatória. 6.5. Definição da iniciativa. 6.6. Definição dos procedimentos. 6.7. Definição dos fundamentos para a recusa. 7. Considerações finais. Referências.

1. INTRODUÇÃO

Assim como se desenrola, célere e inevitável, o curso do desenvolvimento histórico e tecnológico, trazendo consigo cada vez mais transformações e informações, assim também se procede o aperfeiçoamento das práticas delituosas, de modo a lograr maior êxito no crime e menor rastro na conduta. Nesse interim, é mister incrementar o ordenamento jurídico a fim de obstar a impunidade daqueles que com pujante requinte, conquanto atualizem-se diariamente em seu métier, desrespeitam as leis penais.

Diante disso, verifica-se a importância da constante atualização dos meios de repressão à criminalidade, simplificando-os e, por conseguinte, agilizando-os. Entretanto, realizar unicamente a reformulação da legislação pátria não mais se mostra suficiente, pois o caráter transnacional ao qual se imiscuiu o crime organizado, origina a necessidade de cooperação entre os Estados, com o intuito de absorver informações.

Essa complementaridade é demonstrada na medida em que fixa os limites em que o operador do Direito pode executar os atos processuais sem extrapolar os princípios da dignidade humana. Seria impensável admitir que o Estado, sob o pretexto de vigiar e punir, possuísse a prerrogativa autoritária de ignorar os direitos previstos na maioria das Consituições dos países ocidentais. Assim, a transnacionalidade do crime de lavagem de dinheiro dificulta a ação repressora do Estado, haja vista a comparação entre a rapidez com que um particular pode efetuar uma transação financeira internacional e a morosidade com a qual a Justiça tem de lidar para realizar diligências. A burocracia nesse caso poderia inviabilizar toda a ação penal, tendo em conta a facilidade dos grandes white collar em burlar a eficácia do poder punitivo estatal, procedendo impunemente suas operações.

Em contrapartida, há de se dizer, a lavagem de dinheiro, a despeito da recente criminalização, é praticada desde tempos longínquos da civilização, de modo que se afigura como a forma pela qual se financia boa parte de todas as atividades criminosas. Logo, evidente é a correspondência entre este e todos os outros crimes organizadamente executados. Uma organização criminosa estabelecida na América Latina pode armanezar ativos na Suíça e investí-los na Itália. Cada um dos países envolvidos não conseguiria per se frustrar o desencadeamento total do iter criminis.

Portanto, o trabalho aqui desenvolvido versará a respeito das ferramentas já existentes no ordenamento jurídico brasileiro, perpassando toda a matéria atinente à tipificação da lavagem de dinheiro, concluindo com a seleção dos principais itens presentes nos principais modelos normativos de cooperação jurídica internacional de ordem regional e global.

2. DA COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL

Pode-se conceituar a cooperação jurídica internacional como ferramenta para solicitar a outro país alguma medida judicial, investigativa ou administrativa, necessária para um caso concreto em andamento, de acordo com a definição do Ministério da Justiça e Cidadania do Governo Federal (2011). Há de se salientar o caráter de solicitação da cooperação internacional, tendo em conta a inexistência de jurisdição e competência no território de outro Estado. Tal característica sobrepõe a importância da reciprocidade nas relações interestatais, como se verá mais adiante.

O instituto da cooperação é sintetizado por Raul Cervini (2000, p. 51) como:

“o conjunto de atividades processuais (cuja proteção não se esgota nas simples formas), regulares (normais), concretas e de diverso nível, cumpridas por órgãos jurisdicionais (competentes) em matéria penal, pertencentes a distintos Estados soberanos, que convergem (funcional e necessariamente) em nível internacional, na realização de um mesmo fim, que não é senão o desenvolvimento (preparação e consecução) de um processo (principal) da mesma natureza (penal), dentro de um estrito marco de garantias, conforme o diverso grau e projeção intrínseca do auxílio requerido.”

Etimologicamente, tem-se que o termo “cooperação jurídica internacional” possui abrangência não restrita à cooperação jurisdicional ou judicial, englobando, pois, a cooperação administrativa, entre órgãos investigatórios, os quais produzem também efeitos jurídicos (Soares, 2002, p. 136). Cumpre citar que, para a solicitação de cooperação jurídica, não se exige que o crime cometido seja de natureza internacional ou transnacional[2]. Exige-se, sim, que o ato a ser praticado seja transnacional.

Rege-se o Direito Internacional e o contexto das relações internacionais, de modo que os padrões normativos ou os acordos bilaterais e multilaterais determinarão requisitos e procedimentos de cooperação internacional.

A cooperação jurídica internacional se caracteriza pela expressão do valor solidariedade[3], partindo do princípio de que se reconheça a realidade do outro e a assunção de que seus problemas são capazes de receber uma resolução através da intervenção dos poderes públicos. Desta forma, se reduzem as dificuldades que afetam o processamento da assistência, mediante a mutualidade das relações (Silva, 2006, p. 803). Entretanto, sustenta-se a existência de uma interação processual-funcional internacional, de modo que os Estados sofreriam a influência determinante dos tratados internacionais, multilaterais e bilaterais, submetendo-se, assim, a esta ordem jurídica comum. Haveria, portanto, não um procedimento restrito aos Estados, considerando-se assim o indivíduo dotado de direitos e garantias que possam, eventualmente, ser afetados pela realização das diligências e gestão das mesmas.

2.1. CLASSIFICAÇÃO

Pode-se classificar a cooperação jurídica internacional utilizando três critérios distintos: iniciativa da solicitação; qualidade de quem coopera; finalidade e procedimento (Bechara, 2011, p. 33). Em primeiro lugar, distingue-se a cooperação ativa da cooperação passiva. Na primeira, o Estado solicita a assistência, enquanto que, na segunda, o Estado é solicitado. Existe também a hipótese da comunicação espontânea, em que a própria autoridade estrangeira se propõe a comunicar outro Estado, cuja qualificação não se adstringe à cooperação ativa nem passiva.

Em segundo, é feita a diferenciação entre a cooperação entre autoridades judiciais e autoridades não-judiciais. No primeiro caso, de acordo com Irineu Strenger (2003, p. 248), ocorrem três capítulos: 1) a atribuição ou distribuição da competência internacional entre as judicaturas dos distintos Estados; 2) o cumprimento extraterritorial de medidas processuais ditadas pela judicatura de um Estado; 3) o reconhecimento e a execução extraterritorial de sentença proferida pelos juízes de um Estado estrangeiro. No segundo caso, há a cooperação jurídica administrativa.

2.2. FONTES

No Direito, existem as fontes materiais e formais. Estas se constituem no ordenamento jurídico vigente; aquelas, no entanto, são os acontecimentos históricos, políticos, sociais e econômicos que originam um processo de normatização (Terra, 2012, p. 8). A criação da Cruz Vermelha no século XIX, por exemplo, e as duas guerras mundiais no século seguinte desencadearam a evolução e o aperfeiçoamento do instituto da cooperação jurídica internacional, na medida em que representaram a busca da comunidade internacional por meios que viabilizassem a paz mundial e o respeito aos direitos humanos. São, pois, fontes materiais da cooperação internacional. Já as fontes formais situam-se nos tratados internacionais, em matéria de Direito Internacional, assim como a Constituição Federal e a legislação infraconstitucional vigente, no âmbito do Direito Interno (Cervini, 2000, p. 53).

Segundo Bechara (2000, p. 35), “a cooperação jurídica internacional pode decorrer tanto da promessa de reciprocidade por um Estado a outro, qualificando-se verdadeira cortesia, como também de um acordo formal ou de um costume internacional”. A respeito disso, inclusive, a Convenção de Viena de 1969 define o tratado como “um acordo internacional concluído entre Estados em forma escrita e regulado pelo Direito Internacional, consubstanciado em um único instrumento ou em dois ou mais instrumentos conexos qualquer que seja a designação específica”.[4]

No Direito brasileiro, além dos dispositivos constitucionais já oportunamente citados, a Lei de Introdução às Normas do Direito brasileiro, o Estatuto do Estrangeiro, o Código de Processo Civil e o Código de Processo Penal também tratam da cooperação internacional. A LINDB define as regras concernentes à aplicação de lei estrangeira, notadamente nos artigos 13 e 17.[5] O Estatuto do Estrangeiro institui, dentre outros, o processo de extradição.

O Novo CPC inovou em máteria de cooperação internacional em relação ao CPC de 1973. O Título II do dispositivo legal trata sobre o tema, estabelecendo, dentre outros, o respeito às garantias do devido processo legal no Estado requerente, a igualdade de tratamento entre brasileiros e estrangeiros, a publicidade processual e a existência de uma autoridade central. Trata, ainda, dos institutos do auxílio direto e da carta rogatória. O CPP, por sua vez, dispõe nos artigos 780[6] e seguintes a respeito do procedimento de homologação das sentenças estrangeiras e da carta rogatória.

2.3. MECANISMOS DE COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL

2.3.1. CARTA ROGATÓRIA

A carta rogatória é o modo pelo qual se solicita a prática de diligência à autoridade central estrangeira, geralmente utilizada a fim de comunicar atos processuais. Faz-se necessário no sentido de auxiliar a instrução processual, requisitando a produção de provas ou outros termos processuais. O artigo 6º da resolução 9 do Superior Tribunal de Justiça estipula a obrigatoriedade de que a exequatur da Carta Rogatória deve manter perante a ordem pública e da soberania do Estado requerido. Há, portanto, de se realizar uma análise prévia do pedido, com a devida verificação de eventuais problemas atentórios à soberania do pólo passivo da cooperação internacional.

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De acordo com o Ministério da Justiça (2012), existem dois modelos de Cartas Rogatórias: a realizada pela via diplomática e a que, por sua vez, é baseada nos tratados internacionais. Esta se realiza mediante a estrita convenção do tratado internacional assinado. Desse modo, a Autoridade Central deve observar todos os requisitos do pedido contido para, após a aprovação, colher e remeter todas as provas colhidas à Autoridade Central estrangeira, cuja incumbência será a de apreciar a solicitação. No modelo diplomático, entretanto, inexiste a convenção de tratado. Assim, o pedido segue pela representação diplomática, a qual encaminhará ao órgão competente para cumprir o pedido. No Brasil, a Carta Rogatória geralmente é de competência do Ministério da Justiça, com exceção de alguns casos em que cabe à Secretaria Especial de Direitos Humanos e à Procuradoria-Geral da República.[7]

2.3.2. AUXÍLIO DIRETO

O auxílio direto se constitui como a assistência relacionada a meros atos administrativos. Caracteriza-se, segundo Rômulo Rhemo (2010, p. 6), pelo funcionamento delimitado pelo que foi convencionado nos tratados, assim como a capacidade de propor abertura de novas ações em outras jurisdições, além da dispensabilidade do juízo de deliberação por parte do STJ.[8]

2.3.3. OUTROS MECANISMOS DE COOPERAÇÃO PENAL INTERNACIONAL

Há outros mecanismos menos utilizados, não obstante serem tão importantes quanto os instrumentos supracitados. Quais sejam, a transferência de presos e processos, a homologação de sentença estrangeira e a extradição (Ministério da Justiça e Cidadania, 2011).

Na primeira, nota-se a subdivisão em transferência de presos e transferência de processos. Nesta, revela-se a importância da observação de todos os procedimentos judiciais realizados, vinculando-os ao ordenamento jurídico do Estado requerido, a fim de verificar a possibilidade de tramitação neste. Naquela, por sua vez, ocorre uma decisão conjunta em que o condenado, se assim desejar, pode transferir a execução de sua pena para outro país. Já a homologação de sentença estrangeira é utilizada com o propósito de de tornar efetiva determinada decisão judicial transitada em julgado em Estado estrangeiro.

Enfim, a extradição se define pela cooperação por meio da qual se requer a localização, busca, aprisionamento e devolução de pessoa processada e julgada pelo Estado requerente. Para tanto, toma-se por base o disposto em tratados bilaterais ou multilaterais, além, é claro, na promessa de reciprocidade de tratamento nas relações interestatais. Analisa-se, pois, se há o preenchimento de todos os requisitos ou se existe alguma causa discricionária ou diplomática que torne inviável o procedimento.

2.4. ALTERAÇÕES TRAZIDAS PELA EC N° 45/04 E PELA RESOLUÇÃO N° 9/05

O Brasil, tendo em vista a complexidade dos processos em investigar, processar, julgar e punir os grupos criminosos organizados, carecia de um avanço no tema da cooperação jurídica internacional. Embora fosse signatário de diversos tratados e convenções internacionais, o país era incapaz de prover e obter assistência internacional.

Nesse sentido, seria oportuno citar um caso ocorrido no Brasil a esse respeito, o qual é narrado pelo Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional no Manual de Cooperação Jurídica Internacional e Recuperação de Ativos (2012, p. 28):

“Há menos de oito anos, o Judiciário brasileiro tinha uma interpretação no sentido de que as cartas rogatórias não podiam ser utilizadas para quebrar sigilos legais, tais como dados bancários, a menos que houvesse previsão em tratado ou decisão final judicial.

Em uma carta rogatória, recebida em 2003, a autoridade judiciária na Suíça pediu cooperação à autoridade judiciária brasileira para investigar tráfico de mulheres brasileiras para a Suíça. Já sabíamos que o tráfico de seres humanos, principalmente de mulheres, abduzidas e escravizadas no seio do mundo que se considera civilizado, é dos mais abomináveis, execráveis e odiosos crimes que tomam proveito da incapacidade da efetiva Cooperação Jurídica Internacional entre os Estados. Pretendiam os suíços obter informações de contas bancárias localizadas no Brasil e o sequestro de bens dos acusados – medidas essenciais para o desmantelamento daquela organização criminosa.

Não obstante a severidade do caso, indeferimos o fornecimento das pretendidas informações bancárias, sob o fundamento de que as ‘diligências de sequestro de bens e quebra de sigilo de dados, além de atentar contra a ordem pública, possuem caráter executório, o que inviabiliza a concessão de exequatur’. Assim, por uma inexplicável lógica interpretativa, somente atribuível a um territorialismo exarcebado, considerávamos que a prestação de informações bancárias essenciais à investigação, em outro país, de crimes como o tráfico de seres humanos atenta contra a ordem pública.”

Dentre as alterações[9], há contribuições positivas, como a possibilidade do exequatur de medidas executórias em cartas rogatórias ter por objeto atos decisórios e não decisórios, a tutela antecipada em homologação de sentenças estrangeiras, o auxílio direto nos casos de inadequação de delibação da decisão estrangeira e a autorização de medida executória em carta rogatória sem prévia oitiva da parte interessada. As medidas supracitadas inovam no sentido de flexibilizar as ferramentas da cooperação internacional, tornando-as mais práticas e funcionais ao processo, em razão da dispensa de grandes solenidades.

3. DA LAVAGEM DE DINHEIRO

3.1. ASPECTOS HISTÓRICOS

A prática da lavagem de dinheiro remonta a tempos longínquos, já que comerciantes na China há mais de 3000 anos, na tentativa de proteger seus bens contra os detentores do poder a faziam. Nos EUA a edição de uma lei em 1919, cujo conteúdo proibia estritamente o transporte, venda ou produção de qualquer tipo de bebida com teor alcoólico superior a 0,5%, desencadeou uma espécie de mercado clandestino e, por conseguinte, imenso fortalecimento do crime organizado (História do Mundo, 2010). Em 1933, a despeito da revogação da Lei Seca, com o direcionamento da máfia a outras atividades igual ou superiormente rentáveis, a prática da lavagem de dinheiro passou a ampliar-se, tanto no tocante a valores, quanto no que tange ao requinte do modus operandi. Nesse interim, o governo americano, primeiramente em 1970, estipulou que as transações superiores a dez mil dólares deveriam ser comunicadas pelas instituições financeiras, a fim de estabelecer o caminho por onde o dinheiro passava; em 1986, finalmente, houve a real criminalização da prática, com sua tipificação. Mais adiante se verá detalhadamente o modo como o crime organizado nos EUA se fortificou e, mais que isso, criou técnicas de branqueamento de capitais utilizadas e combatidas até hoje.

Na Itália, a máfia dominava as ações criminosas, no período que ficou conhecido como os “anos de chumbo”. As Brigadas Vermelhas, um dos grupos mais conhecidos, sob forte influência marxista-leninista, realizaram uma série de sequestros com o propósito de enfraquecer o Estado. (Storie d'Italia, 2013). Em 1978, porém, com o sequestro de Aldo Moro, influente político e iminente presidente italiano, e a consequente comoção nacional e repercussão internacional, o governo edita o Decreto-lei nº 59, por meio do qual se introduziu no Código Penal o artigo 648 bis. Dispunha este que a substituição de dinheiro ou de valores provenientes de roubo qualificado, extorsão qualificada ou extorsão mediante sequestro por outros valores ou dinheiro constituía crime.

No Brasil, tem-se a assinatura da supracitada Convenção de Viena, em 1998, e a aprovação da Lei 12.683, que tipifica o crime de lavagem de dinheiro, revogou o rol taxativo de crimes antecedentes necessários, resultando disto que todos os tipos penais previstos no Código Penal serão considerados crimes antecedentes.

3.2. FASES DO TIPO PENAL

Doutrinariamente, se estabelecem três fases na prática do crime de lavagem de dinheiro (Galvão, 2014, p. 11). São elas a ocultação, a dissimulação e a integração. Na primeira, o dinheiro é desvinculado de sua origem ilícita, mediante sua introdução no sistema financeiro. Tal colocação pode ser feita, de acordo com Rômulo Rhemo, “através das instituições financeiras tradicionais (como bancos e cooperativas), das instituições financeiras não-tradicionais (como casas de câmbio e cassinos) e por meio da introdução na economia diária (como em restaurantes, bares, hóteis e empresas aéreas) (Braga R. R., 2010, p. 11).

 Já na segunda, são efetuadas diversas transações e operações financeiras sucessivas, visando a dificultar o rastreamento do dinheiro e seu afastamento da fonte irregular. Opera-se dessa forma através de bancos internacionais, contas e diferentes tipos de investimento. Por fim, o dinheiro regressa aos criminosos, para que enfim haja o usufruto dos valores. A fim de não levantar suspeitas, os valores são investidos em luxo, investimentos imobiliários e aplicações em empresas. Entretanto, não obstante a doutrina classifique as ações em três fases distintas, tal divisão não é absoluta, podendo por vezes acontecer a conclusão de todo o iter criminis mediante uma única operação.

3.3. ALTERAÇÕES TRAZIDAS PELA LEI 12.683/12

A Lei 12.683/12, que altera a Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei 9.613/98), tornou mais eficiente a persecução penal no caso desses crimes.[10] A lei estabeleceu que mesmo que houvesse extinta a punibilidade do crime antecedente, pode se configurar a lavagem de dinheiro. Define, também, que o juiz poderá decretar medidas assecuratórias sobre os bens, direitos ou valores que sejam instrumento, produto ou proveito do crime de lavagem de dinheiro ou de infrações antecendentes, podendo estes estar em nome do investigado, do acusado ou de pessoas interpostas.

Nesse sentido, Márcio Adriano assim versa sobre a inovação legislativa:

“O arcabouço legislativo brasileiro, cujo primeiro diploma legal que tratou do tema é datado de 1998 (Lei nº 9613), foi objeto de reforma em 2012, por meio da Lei nº 12.863/2012), representando hoje um marco legislativo nacional que atende, em grande parte, às necessidades legislativas para o combate à lavagem de dinheiro, seja sob a perspectiva penal, processual penal (incluindo aí o importante tratamento da alientação antecipada), bem como medidas que permitam a estruturação do sistema nacional de prevenção à lavagem de dinheiro.”

Há, ainda, segundo o  COAF (Conselho de Controle das Atividades Financeiras, 2014), a inclusão de novos sujeitos obrigados, como, por exemplo, “cartórios, profissionais que exerçam atividades de assessoria ou consultoria financeira, representantes de atletas e artistas, feiras, dentre outros”. Logo, percebe-se a colaboração que a legislação deu ao incrementar dispositivos que fortalecem o combate ao crime de lavagem de dinheiro, tornando a investigação e o processamento dos criminosos mais célere e eficaz.

4. PARTICULARIDADES DO CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO

4.1. CORRELAÇÃO ENTRE LAVAGEM DE DINHEIRO E CRIME ORGANIZADO

Nos EUA, a Lei Seca contribuiu na construção do aporte do crime organizado no país. A clandestinidade aliada à desmoralização da lei, gerou um mercado de fornecimento que movimentava milhões de dólares, constituindo aumento no patrimônio e no poder das organizações criminosas que o exploravam (Carli, 2006, p. 75). Logo, a despeito de operar na ilegalidade, o crime organizado detinha sofisticação administrativa e logística. Entrementes, surge Al Capone[11]. Em 1931, Alphonse Capone acabou, no entanto, preso; e em 1933, a lei, revogada. Porém o crime organizado não interrompeu suas ações – simplesmente as redirecionou. Em busca de novas alternativas, as quais oferecessem grandes quantidades de dinheiro vivo rapidamente, o crime explorou as casas de jogos e o tráfico de substâncias entorpecentes. Nesse contexto, as lavanderias usadas pelos criminosos não mais se mostravam suficientes, haja vista a proporção que tomou o crime organizado (História do Mundo, 2010). A máfia criou, pois, seu próprio sistema financeiro, alheio aos controles fiscais e monetários. Tal ação foi proposta por Meyer Lansky, aliado de Al Capone. Lansky sabia da necessidade de adequar a prática da lavagem de dinheiro. Para tanto, iniciou uma forma de esconder e conduzir o fluxo de dinheiro no que hoje é denominado “offshore[12].

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Lansky, então, aperfeiçoou a técnica do loan-back – ou, emprestar de volta. Primeiro, se transferia o dinheiro para o exterior, através de títulos de propriedade nominada, títulos ao portador ou, simplesmente, passagens aéreas em branco. No exterior, os ativos eram mantidos em contas bancárias secretas. A Suíça, célebre paraíso fiscal, possuía rígidas leis de sigilo bancário. Era, pois, o destino dileto dos grupos criminosos. Deste modo, o iniciador do ciclo solicitava um empréstimo ao banco suíço, pagando juros – a ninguém menos que a si mesmo-, os quais seriam abatidos como custos do negócio, possibilitando, portanto, a regular declaração ao Fisco.

Aqui nota-se a importância que a configuração do processo de cooperação jurídica internacional possui sobre a persecução penal. A disforme legislação internacional de repressão aos crimes fiscais possibilitou o enriquecimento de grupos criminosos. Os lucros, por sua vez, incentivaram a ampliação do negócio. James Harmon Jr. (1999, p. 1), antigo Diretor Executivo e Conselheiro-chefe da Comissão Presidencial sobre o crime organizado, explica que

“com a significativa influência econômica doméstica e internacional exercida pelo crime organizado, a lavagem de dinheiro havia se tornado um elemento indispensável das atividades mafiosas. Sem a capacidade de movimentar e de esconder sua enorme riqueza, o crime organizado não teria jamais se convertido na ameaça que então representava. Os cartéis de drogas teriam podido operar apenas em níveis muito inferiores aos de então e com muito menos flexibilidade, caso não tivessem feito uso da lavagem do dinheiro. Além disso, a confluência de riqueza ilícita, misturando-se ao fluxo de comércio legítimo, havia criado uma elite de criminosos que se pensavam intocáveis.”

Semelhantes instrumentos são utilizados desde então até a atualidade. Desde a colaboração do banco britânico HSBS aos cartéis do México e da Colômbia, até o financiamento das ações terroristas do Isis, diversificando-se, dentre outros, entre depósitos de dinheiro em espécie e domínio de regiões petrolíferas, a lavagem de capitais possui relação intrínseca com o crime organizado.

No Brasil, o grupo Primeiro Comando da Capital (PCC) recorre a diversas formas de “lavar” o dinheiro obtido com o tráfico de drogas. Cita-se a movimentação intensa de valores entre R$ 500,00 e R$ 1.500,00 em contas bancárias abertas em nomes de parentes e “laranjas”. Os instrumentos, todavia, não se limitam a isso. O grupo se utiliza de lojas de carros e motocicletas para simular faturamentos, bem como em hotéis, postos de gasolina, linhas de micro-ônibus e no mercado imobiliário. Com os hotéis, diga-se, é comum declarar na contabilidade um número de hóspedes superior ao real. O Laboratório de Tecnologia contra a Lavagem de Dinheiro de São Paulo identificou, inclusive, negociações com integrantes da máfia japonesa Yakuza, mafiosos italianos, russos, libaneses suspeitos de ligação com ações terroristas (Jornal GGN, 2010).

Cabe salientar que, no crime cujo núcleo se define por “ocultar” e “dissimular”, qualquer base estatística torna-se, ao menos, duvidosa. Portanto, é de se presumir que o montante auferido pelo crime organizado tende a ser maior que o apurado. Torna-se, pois, inimaginável a proporção de riqueza que a lavagem de dinheiro rende a grupos criminosos que exploram a pobreza, a dependência química e a prostituição. Há de se salientar, portanto, que a repressão, tanto aos grupos criminosos quanto aos agentes financeiros  que colaboram com seu financiamento, deve ser enrigecida, trabalhando em conjunto com a adequada cooperação jurídica internacional. Isso somente poderá ser construído com a adoção de medidas de cooperação internacional que possibilitem a comunicação entre as autoridades persecutórias, a fim de compartilhar dados referentes à operações financeiras duvidosas, funcionalidade de grupos criminosos e afins.

4.2. RAZÕES DA RECENTE PRIORIZAÇÃO NA REPRESSÃO DA PRÁTICA

A história da criminalização da lavagem de dinheiro é constituída gradativamente, observado o critério do bem jurídico tutelado pela norma. Inicialmente, na Itália, a criminalização da conduta visava o combate à onda de sequestros, roubos e extorsões praticada pela máfia. Nos Estados Unidos, a seguir, a repressão se voltou ao tráfico de drogas, mancomunado ao crime organizado. Posteriormente, tratou-se de codificar a matéria em tratados internacionais e prosseguiu, de forma progressiva, se estruturando de forma igualitária em vários países (Braga J. T., 2007).

Por este caminho, seguiu evoluindo de modo a ampliar o rol de crimes antecedentes. Formou-se, pois a legislação de primeira geração, cujo antecendente era unicamente o tráfico de drogas. Após isso, houve a reformulação para o surgimento da legislação de segunda geração, a qual delimitou um leque de infrações antecedentes. Enfim, chega-se à legislação de terceira geração, em que não mais há referência a crimes antecedentes em espécie (Carli, 2006, p. 64).

A respeito da ampliação da margem de antecendência da lavagem de dinheiro, o juiz federal Sérgio Fernando Moro (2010, p. 36) assim se posiciona:

“A eliminação do rol apresenta vantagens e desvantagens. Por um lado facilita a criminalização e a persecução penal de lavadores profissionais, ou seja, de pessoas que se dedicam profissionalmente à lavagem de dinheiro. (…) Por outro lado, a eliminação do rol gera certo risco de vulgarização do crime de lavagem, o que pode ter duas consequências negativas. A primeira, um apenamento por crime de lavagem superior à sanção prevista para o crime antecedente, o que é, de certa forma, incoerente. A segunda, impedir que os recursos disponíveis à prevenção e à persecução penal sejam focados na criminalidade mais grave.”

Há, portanto, nítida preocupação em combater não determinada conduta do criminoso – mas em combater o lucro resultante de outras condutas criminosas. De acordo com as lições de Foucault, os malefícios de um crime à sociedade se manifestam na desordem que lhe acarreta: o mau exemplo, a impunidade que ao invés de desestimular incentiva (Foucault, 1987, p. 66). A punição, pelo que se segue, há de ter utilidade e ter em vista as consequências do crime. Na lavagem de dinheiro, por conseguinte, busca-se punir o crime que é altamente rentável e atrativo a quem o comete.

4.3. DANO SOCIAL CAUSADO PELO CRIME

O Fundo Monetário Internacional (FMI) estima que em 1998 cerca de 2 a 5% do PIB mundial possui relações com a lavagem de dinheiro (Fundo Monetário Internacional, 2001). Entretanto, a par do caráter do crime, é inviável crer na precisão desses números.

Pelo contrário: além dos lucros provenientes do crime, há também a sofistição pela qual é realizada a circulação de bens oriundos de ilicitudes, a inflitração de criminosos no âmago da máquina estatal, o domínio econômico dos meios de produção e, por fim, a transnacionalização das ações delituosas. Todos esses fatores concretizam  dano à estrutura da sociedade. Um relatório do Banco Interamericano de Desenvolvimento, relativo ao Progresso Social e Econômico na América Latina, estabelece quatro implicações fundamentais do crime de lavagem de dinheiro. Quais sejam: as distorções econômicas; o risco à integridade e à reputação do sistema financeiro; a diminuição dos recursos governamentais; e as repercussões socioeconômicas.

Em primeiro lugar, compreende-se que a lavagem de dinheiro, quando realizada por intermédio de investimento em determinada empresa ou setor de atividade, de forma alguma objetiva auferir lucros – objetiva, sim, disfarçar a fonte ilícita do capital. Desse modo, não raro o crime organizado direciona seus investimentos a atividades ineficientes e pouco atrativas a investidores reais. O que se segue é que essas empresas acabam oferecendo produtos a preços inferiores aos de mercado ou, mesmo, inferiores aos custos de produção, invalidando assim a livre concorrência. Tal distorção dos preços acarreta graves problemas macroeconômicos, tendo em vista a instabilidade monetária e a alocação dos recursos na economia (Banco Interamericano de Desenvolvimento relativo ao Progresso Social e Econômico na América Latina, 2006).

Em segundo, tem-se que com a transferência de grandes somas de dinheiro a um banco e seu rápido desaparecimento, o que se origina são problemas de liquidez e uma “corrida” aos bancos, cujo efeito pode ser o da quebra dos bancos, recessão e crises financeiras. Ademais, o envolvimento das instituições financeiras com a lavagem de dinheiro é extremamente negativo para a reputação dos bancos, o que ocasiona redução das oportunidades lícitas (e sedução por atividades delituosas). Em terceiro, a lavagem de dinheiro estorva a arrecadação tributária, haja vista a fraude na declaração dos rendimentos. Por um silogismo, portanto, por agir na clandestinidade, o crime organizado deixa de repassar os impostos devidos às transações realizadas, diminuindo assim a receita tributária do Estado.

Por fim, existe m repercussões socioeconômicas advindas da prática da lavagem de dinheiro. As hipóteses supracitadas, inclusive, são exemplos disso. Há, também, os custos do sistema penal na repressão ao crime, bem como as complicações sociais inerentes ao domínio do crime organizado. Existe, por sua vez, a ligação entre a lavagem de dinheiro e a corrupção – a cooptação de agentes políticos e financeiros, cujos efeitos são devastadores para um país. Some-se a isso a vulnerabilidade dos sistemas financeiros de países emergentes: a multiplicação da miséria torna-se iminente.

4.4. INSTRUMENTOS UTILIZADOS NA CONSECUÇÃO DELITUOSA

O Banco do Brasil (2017) classifica as “múltiplas operações financeiras e comerciais realizadas de forma articulada pelos lavadores de dinheiro”, quais sejam: a utilização de empresas de fachada ou fictícias, mesclando recursos ilícitos às receitas empresariais; operações financeiras fraudulentas, através de importações e exportações, compra de ativos, contrabando de moeda em espécie e transferências eletrônicas; ou, ademais, em circunstâncias mais simplórias, como a utilização de ‘laranjas’ ou cumplicidade de agentes internos.

Há de se salientar, existem ainda outras práticas de lavagem de dinheiro – a despeito de ainda outras que poderá se conhecer.

5. MODELOS NORMATIVOS DE COOPERAÇÃO PENAL INTERNACIONAL

5.1. MODELO DA ONU

O Escritório das Nações Unidas de Drogas e Crime elaborou um documento[13] que delimita a conceituação dos instrumentos de cooperação internacional, de modo a promover a sistematização global do ordenamento jurídico concernente à matéria.

Este documento tem conceitos como a autoridade central, o alcance da cooperação internacional, além do objeto da cooperação. Explicita, desta forma, as hipóteses cabíveis e os meios como elas serão feitas. Somado a isso, o documento define que a não solicitação mediante a autoridade central não invalida o pedido, possibilitando, mesmo, a comunicação espontânea através de autoridade competente. Indica, ainda, a lei do Estado requerente como lei aplicável, com exceção dos casos em que se desrespeitem os princípios fundamentais do Estado requerido (United States Office on Drugs and Crime, 2007).

Já quanto à recusa da solicitação, o documento classifica em recusa sem razões específicas e recusa fundada na preservação da soberania do Estado requerido. Ambas, há de se dizer, constituem-se evidentes anacronismos, tendo-se em mente a imprescindibilidade da cooperação jurídica internacional no combate ao crime organizado (Bechara, 2011, p. 162).

5.2. MODELO DA UNIÃO EUROPÉIA

No âmbito da União Européia, de acordo com Rosa Ana Moran Martinez (2003, p. 384),

“a cooperação judicial internacional sempre se mostrou pouco ativa, lenta e exclusivamente formalista. São muitos os fatores que dificultam a sua eficiência, tais como as implicações de soberania, as diferenças entre os sistemas penais e processuais dos distintos Estados, as barreiras idiomáticas e a lentidão dos tradicionais instrumentos de cooperação.”

Quanto a isso, a solução apresenta o princípio do reconhecimento mútuo, de modo que haja efetivamente a cooperação recíproca entre os Estados nas ações de investigação e processamento de criminosos. Assim, evita-se que os infratores não se refugiem em outro Estado, nem tampouco que as decisões tomadas por um Estado membro se tornem inférteis fora de sua jurisdição.[14] Todavia, há de se citar os parâmetros para a aplicação do princípio definidos pelo Conselho da Europa, em Nice em 2000 (Conselho Europeu de Nice, 2000). Quais sejam: a limitação do reconhecimento de determinadas resoluções a um número limitado referente a infrações graves e a manutenção da supressão do princípio da dupla incriminação como condição para o reconhecimento; o estabelecimento de mecanismos de proteção ao direito de terceiros, vítimas e suspeitos; a definição de normas comuns para facilitar a aplicação do princípio, como, por exemplo, em matéria de competência jurisdicional; a execução direta ou indireta da decisão e o estabelecimento de, em cada caso, procedimentos de validação; o estabelecimento de uma lista de motivos de recusa do reconhecimento ou execução, como a aplicação do princípio que veda o bis in idem; a determinação da responsabilidade dos Estados em caso de recusa ou em caso de prejuízos a terceiros, assumindo os gastos.

Insta ressaltar que a aplicação do princípio do reconhecimento mútuo contém a condicionante da correta observância dos direitos humanos. Dessa maneira, o respeito aos direitos do acusado e da vítima é imprescindível à colaboração jurídica internacional.

5.3. MODELO DO MERCOSUL

O Modelo normativo do Mercosul[15] explicita uma característica que o distingue da maioria dos modelos existentes: a não exigência da dupla incriminação. Portanto, mesmo que a conduta in casu não se configure em crime no Estado requerido. Tem-se, também, a delimitação do objeto da cooperação, que não raro se constituirá em notificação de atos processuais e na recepção e produção de provas necessárias (Cervini, 2000, p. 151).

No que se refere à recusa da assistência, cite-se mais uma distinção do modelo, a qual possibilita a denegação referente a crimes tributários. No mais, o modelo mantém muito do que caracteriza os outros modelos internacionais, em se tratando da forma e do conteúdo requisitados na solicitação de cooperação jurídica internacional. Por fim, a aplicação do princípio da especialidade, o qual estabelece que as informações e provas obtidas na investigação somente se poderão aplicar ao processo indicado na solicitação, a menos que o Estado requerido consinta previamente em contrário.

6. DO APERFEIÇOAMENTO DA COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL

Existem fatores que podem tornar o procedimento da cooperação jurídica internacional mais ágil e eficaz. A configuração de um padrão normativo universal concernente à matéria necessita da definição de elementos que a constituam.

6.1. DEFINIÇÃO DA LEI APLICÁVEL

No que tange à cooperação internacional, a definição da lei aplicável se refere à lei em sentido material e à lei em sentido formal. No sentido formal, contudo, apesar de o Código de Bustamante definir a aplicação da lei processual do Estado requerido, não a define como regra, possibilitando aos Estados a estipulação da forma oportunamente mais adequada. Porém, de modo a preservar a utilidade da prova, compreende-se mais indicada a orientação de que a assistência deve se pautar de acordo com os meios praticados pela lei do Estado em que se desenrola o processo, não obstante haver os limites principiológicos do Estado requerido (Bechara, 2011, p. 173).

6.2. EXIGÊNCIA DE DUPLA INCRIMINAÇÃO

A exigência de dupla incriminação consiste no requisito de que a conduta deve se configurar crime tanto no Estado requerente quanto no Estado requerido, a fim de que possa haver a cooperação jurídica internacional. Comumente, tal exigência é afastada na medida em que a solicitação de assistência não constitua ato coercitivo, tratando-se, com efeito, de garantia fundamental no âmbito da cooperação internacional. Logo, na requisição de provas, entende-se desnecessária a aplicação deste princípio, já que não afetados os direitos fundamentais do indíviduo[16].

6.3. PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE

As provas obtidas mediante cooperação internacional estão adstritas ao processo indicado na solicitação, salvo quando o Estado requerido consentir previamente em contrário. Eventual descumprimento do exposto pode acarretar a não-concessão de auxílio futuro. No entanto, pode-se classificar as provas em pessoais e documentais. No primeiro caso, a prova obtida mediante testemunho, por exemplo, caso utilizada em processo diverso daquele ao qual foi produzida, redundaria em não-observância dos princípios da ampla defesa e do contraditório, tornando o elemento probatório inútil. Já na prova documental, sua produção ocorreria alheia ao processo, possibilitando o exercício posterior do contraditório. Logo, tem-se que a anuência do princípio no caso de prova documental não tem o condão de desqualificá-la. Quanto à prova pessoal, pelo contrário, pode descaracterizá-la,  preservando esta apenas seu caráter informativo, mas não probatório.

6.4. ARROLAMENTO DAS GARANTIAS INCIDENTES SOBRE A ATIVIDADE PROBATÓRIA

A cooperação jurídica internacional não envolve somente o combate ao crime, mas também a possibilidade de defesa de determinado acusado e sua capacidade de possuir direitos nesse interim. Deste modo, a persecução penal deve respeitar um  marco delimitado de garantias, quais sejam: o direito à prova, no sentido de prover o processo de material probatório ou elementos de informação; a presunção de inocência, não excluindo o direito ao silêncio e princípio da não-incriminação; o contraditório, possibilitando às partes a participação na produção das provas testemunhais; a igualdade de armas, de modo que os instrumentos de cooperação internacional sejam utilizados tanto ao acusar quanto ao defender; o exercício do direito de defesa, salientando a imprescindibilidade da nomeação de defensor na produção de prova no exterior; o duração razoável do processo, a fim de agilizar – ou ao menos delimitar o curso temporal – o procedimento da atividade probatória desenvolvida no estrangeiro; a nomeação gratuita de intérprete; a exigência de previsão legal e controle judicial nas medidas restritivas à intimidade e à vida privada, de modo a resguardar as garantias anteriores, podendo ser efetivada mediante análise prévia ou revisão judicial posterior.

Pode-se, portanto, realizar o juízo de delibação limitando-se à verificação do respeito ao marco de garantias supracitado, afigurando-se desnecessária a apreciação de outros elementos.

6.5. DEFINIÇÃO DA INICIATIVA

No processo penal, o direito à prova assiste ao Estado, mediante a atuação do Ministério Público e pela autoridade policial, ao réu e à vítima, ambos representados por seus respectivos defensores ou, se for o caso, em caráter de assistente de acusação.

A iniciativa da cooperação internacional para fins probatórios, portanto, segue a mesma diretriz. Tem-se assim que o juiz utiliza da assistência jurídica como meio instrutório, porém não realiza a iniciativa de ofício, sob pena de quebra da inércia jurisdicional. Logo, consoante as palavras de Badaró, “o risco de perda da imparcialidade pelo juiz está na figura do juiz pesquisador, não se confundindo com a hipótese em que o juiz, diante da notícia de uma fonte prova, determina a produção do meio de prova necessário” (2015, p. 119).

6.6. DEFINIÇÃO DOS PROCEDIMENTOS

Os procedimentos da cooperação jurídica internacional definem-se de acordo com a natureza do ato instrutório a ser realizado, quais sejam, se meio de obtenção de prova, meio de prova ou elemento de informação (Toffoli, 2008, p. 10).

No primeiro caso, tem-se que caso haja restrição a direito fundamental, a produção de meios de obtenção de prova deve sofrer delibação judicial no Estado requerente, a fim de se verificar a necessidade e a possibilidade do feito, atendendo os requisitos da proporcionalidade. Nesses casos, a comunicação pode ser direta entre as autoridades judiciais, ou indireta através das autoridades centrais de cooperação jurídica. No segundo, há também a necessidade de delibação judicial, todavia nesta se infere tão-somente a pertinência e relevância do objeto em questão. O modo de comunicação é similar ao do item supracitado.

Finalmente, quando se tratar de elemento de informação, não é exigível qualquer intervenção judicial, haja vista a não qualificação do objeto como prova judicial no ordenamento processual penal.

6.7. DEFINIÇÃO DOS FUNDAMENTOS PARA A RECUSA

Para que haja efetiva cooperação jurídica entre os Estados, faz-se necessário que os fundamentos para a recusa estejam delimitados de forma clara, a fim de evitar arbitrariedade na apreciação das solicitações. Assim, tem-se que a recusa pode ser motivada pela violação a ordem pública ou da soberania nacional do Estado requerido.

No primeiro caso, a defesa da ordem pública, evidentemente, está vinculada aos fundamentos constitucionalmente estabelecidos pelo Estado. Não é admissível, por conseguinte, que se recuse a assistência devido à diversidade dos sistemas processuais, à indecisão quanto à lei aplicável ou ao caráter executório da solicitação.

No segundo caso, há de se levar em conta a interdependência entre os Estados, de modo que inexiste violação da soberania nacional quando coexiste tratado internacional assinado pelo país. Há, portanto, um padrão normativo universal, o qual disciplina as relações, possibilitando ampla comunicação entre as autoridades centrais de cooperação jurídica, afastando-se assim o fundamento arbitrário da soberania nacional.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O francês Voltaire, personagem máxime do Iluminismo do século XVII, preconizou sabiamente que ‘devemos julgar um homem mais pelas suas perguntas que pelas suas respostas’. Nesse sentido, surge a oportunidade de ressaltar que o presente estudo não visa, de forma alguma, esgotar a matéria, vide sua amplitude. Pelo contrário: nosso objetivo principal é o de ampliar, cada vez mais, os debates acadêmicos, cujo resultado é o aperfeiçoamento contínuo dos instrumentos processuais, porque entende-se que a busca por novas formas de se operar o Direito perpassa necessariamente pelos caminhos da dialética. Portanto, o estudo aprimora a prática.

Pode-se neste ponto propor soluções que agreguem maior eficácia e celeridade ao procedimento da cooperação jurídica internacional. A definição do marco de garantias individuais em assistência internacional, do objeto, da iniciativa, dos procedimentos e da recusa afiguram-se extremamente importantes para a constituição de um padrão normativo. Este, inclusive, pode globalizar seus métodos a fim de uniformizar a matéria. Havendo a adequada normatização dos dispositivos de cooperação internacional, diminui-se a margem de discricionariedade das autoridades na concessão de auxílio a países solicitantes. Logo, dá-se maior segurança jurídica ao instituto, de modo a evitar a existência de Estados “nebulosos”, como os paraísos fiscais, em que os grupos criminosos encontram ampla possibilidade de disseminar os ativos advindos de atividades ilícitas.

Fez-se, no presente, a apresentação dos aspectos fático-históricos do crime de lavagem de dinheiro, porquanto a interpretação da tipificação penal somente seria suficientemente possível na medida em que se demonstrassem os itens historicamente relevantes da conduta. Ao analisar o tópico, nota-se o incontrolável aumento na prática da lavagem de dinheiro, configurando-se esta hodiernamente como o meio de financiamento e remuneração das atividades dos grandes grupos criminosos. Atualmente, a lavagem de capitais é essencial para o funcionamento dessas corporações, pois que sustenta seu patrimônio e dissimula sua origem, de forma que a compreensão acerca de suas fases torna-se crucial para a apreensão de suas finalidades.

O estudo sobre os danos sociais por ele ocasionados, os instrumentos rotineiros por ele utilizados, e, finalmente, sua estrita relação com os grupos criminosos organizados é essencial para que se delimitem os parâmetros da extensão contextual delituosa. Somente assim será viável a identificação da estrutura do crime e de suas consequências. Nesse sentido, vide os exemplos do Isis e dos cartéis de drogas: suas operações e suas receitas só são possíveis pelas vias da clandestinidade, sendo, portanto, o combate ao branqueamento de capitais fundamental para o combate desses mesmos grupos criminosos.

A utilização, por exemplo, das inovações na metodologia de comunicação entre autoridades interestatais facilita a difusão de informações importantes sobre as atividades dos grupos criminosos transnacionais. Ocorrendo a efetiva cooperação, os países tendem a simplificar as investigações, na medida em que a estrutura do crime de lavagem de dinheiro é essencialmente gradual, possuindo fases em diversos lugares e tempos. Portanto, a assistência por intermédio de comunicação eficiente complementa as investigações realizadas pelos diversos pólos do procedimento.

Houve, outrossim, a demonstração dos modelos normativos efetivamente aplicados nos mais influentes grupos interestatais, como a ONU, a União Européia e o MERCOSUL, já que a cooperação jurídica internacional necessita da interação de experiências que ofereçam o desenvolvimento das ferramentas aplicadas com eficácia. Assim, seguindo a metodologia comparativa, foram analisados os distintos padrões normativos que, possuindo pontos semelhantes, devem convergir para unificar as relações interestatais.

Conclui-se que a lavagem de dinheiro é transnacional e nuclear no âmago do crime organizado, do que se depreende que unicamente a concepção de métodos mais práticos e padrões normativos mais sólidos de cooperação jurídica internacional possuem o condão de suplantar sua estrutura e funcionalidade. Logo, a utilização de ferramentas mais céleres facilitará o combate ao crime e desmantelará o seio dos grandes grupos criminosos, enquanto a codificação de um padrão normativo de assistência internacional garantirá a segurança jurídica necessária ao procedimento.

 

Referências
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Notas
[1] Artigo orientado pelo Prof.  Me. Claudiney Xavier, Professor. Delegado de Polícia Civil/SP

[2] O primeiro em relação à violação de bens jurídicos universais com ação generalizada ou sistemática; o segundo pela violação de bens jurídicos de dois ou mais países.

[3]Com efeito, o artigo 3º, I,  da Constituição Federal brasileira define a construção de uma sociedade livre, justa e solidária como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. O artigo 4º, IX, ademais, destaca a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade no âmbito das relações internacionais.

[4] Em se tratando de Direito Internacional Público, tem-se como fontes da assistência jurídica internacional a Convenção Interamericana sobre Cartas Rogatórias de 1975 e o Protocolo Adicional de 1979, a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional de 2000, a Convenção das Nações Unidas de Mérida de 2003 e o Tratado Interamericano de 1947. Já no Direito Internacional Privado tem-se o Código de Bustamante de 1928 e os acordos bilaterais firmados entre os Estados

[5] O primeiro dispõe que “a prova dos fatos ocorridos em país estrangeiro rege-se pela lei que nele vigorar, quanto ao ônus e aos meios de produzir-se, não admitindo os tribunais brasileiros provas que a lei desconheça”; o segundo, mais adiante, reza que “as leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes”.

[6] Art. 780. Sem prejuízo de convenções ou tratados, aplicar-se-á o disposto neste Título à homologação de sentenças penais estrangeiras e à expedição e ao cumprimento de cartas rogatórias para citações, inquirições e outras diligências necessárias à instrução de processo penal.

[7] Em matéria penal, essas exceções podem ser exemplificadas pelos casos de auxílio mútuo com o Portugal e com o Canadá.

[8] Esta última particularidade, entende-se, é o ponto que a diferencia de todos os outros mecanismos de cooperação internacional. Há a desnecessidade de procedimento jurisdicional a ser deliberado, proporcionando ao Estado se abster de apreciar determinado direito, remetendo o ônus às Autoridades estrangeiras, para que elas realizem tal atividade. Faz-se, portanto, a remessa integral de determinado fato ao judiciário estrangeiro, cabendo a este não apenas a definição de uma sentença, mas sua efetiva execução baseado naquilo que foi decidido.

[9] Nesse contexto, há a entrada em vigor da EC nº 45/2004, cujo efeito foi transferir a competência originária para processar e julgar a homologação  de sentenças estrangeiras e a concessão de exequatur às cartas rogatórias do STF para o STJ. Concomitantemente, através da influência de Anteprojeto de Lei de Cooperação Internacional – Portaria nº 2.199, publicada no D.O. de 11/08/04 -, foi elaborada a minuta da Resolução nº 9, a qual consagrou procedimentos referentes ao tema.

[10] Antes, só era prevista a configuração do crime de lavagem de dinheiro caso houvesse a observância dos crimes antecendentes elencados num rol taxativo. Com a nova lei, além de se admitir a lavagem de dinheiro oriundo de contravenção penal, qualquer infração penal pode ser crime antecedente da lavagem de dinheiro.

[11] Tornou-se notório o caso do mafioso cuja vultuosa fortuna, angariada com a comercialização de bebidas ilegais, dominava o crime organizado em Chicago na década de 1920.

[12] A prática consiste em ocultar os rendimentos das ações criminosas, mediante o envio para centros financeiros com especial regulação (maior sigilo fiscal, poucos requisitos para a constituição de empresas e menor tributação), a fim de evitar a carga fiscal e dissimular o dinheiro de origem criminosa.

[13] “MODEL LAW ON MUTUAL ASSISTANCE IN CRIMINAL MATTERS”

[14] O princípio supracitado encontra respaldo no Convênio relativo à lavagem, acompanhamento, embargo e perdas dos produtos do crime, firmado no Conselho da Europa em 1990, e no Tratado de Amsterdã e na Cúpula de Tampere, ambos tratados no Espaço Judicial Europeu, respectivamente em 1998 e 1999.

[15] Protocolo de Cooperação e Assistência Jurisdicional em Matéria Civil, Comercial, Trabalhista e Administrativa (Protocolo de Las Leñas) – MERCOSUL; Decreto n° 2.067, de 12 de novembro de 1996.

[16] Lei 6.815/80, art. 77, II: “Não se concederá a extradição quando: (…) II – o fato que motivar o pedido não for considerado crime no Brasil ou no Estado requerente”.


Informações Sobre o Autor

Leonardo Damin Francisco

Advogado; Bacharel em Direito pela USF2017; Pós-graduando em Direito Público com ênfase em licitações e contratos


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