A globalização e o direito penal

Resumo: O presente trabalho trata do fenômeno da globalização e suas consequências para a sociedade moderna, especialmente no que tange ao fenômeno da criminalidade. Verifica-se se a dogmática clássica do Direito Penal é adequada para combater a criminalidade organizada com caráter transnacional, apresentando diferentes linhas de política criminal que podem ser aplicadas.

Palavras-Chave: Globalização. Direito Penal. Crime Organizado Transnacional. Política Criminal

Abstract: The present work deals with the phenomenon of globalization and its consequences for modern society, especially with regard to the phenomenon of crime. It brings the problem if the classic dogma of criminal law is adequate to fight against organized crime which has a transnational character.

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Keywords: Globalization. Criminal Law. Transnational Organized Crime. Criminal Politics.

Sumário: Introdução – 1. A globalização – 2. O processo histórico – 3. O Direito Penal globalizado –  Conclusão.

Introdução

As mudanças ocorridas no mundo, em razão da globalização, influenciaram também as formas de criminalidade, a qual se mostra cada dia mais organizada, tornando seu combate extremamente difícil. Diante de tal situação, surgiram diferentes pensamentos acerca da política criminal que deverá ser adotada, face aos novos desafios apresentados pela criminalidade organizada.

1. A globalização

A globalização é um fenômeno, inicialmente, econômico, que marcou as sociedades pós-industriais.

No entanto, com o capitalismo tardio, o sistema econômico passou a demonstrar que não era mais capaz de resolver no campo da civilização as demandas relativas ao consumo, de modo que tais demandas migraram para o campo da cultura.

Como uma tentativa de conter a crise econômica que se alastrou pelo mundo, foi feito um choque de oferta, o qual ensejou a transnacionalização da produção. A ideia consistia em estabelecer uma economia de escala e, por meio do aumento do número de unidades produzidas, aumentar a oferta e, consequentemente, reduzir os preços.

Tal estratégia tinha o claro escopo de manter o debate no campo econômico, evitando que avançasse sobre o campo cultural, o que poderia ensejar uma instabilidade social.

Não há dúvida que o caráter conciliador das elites, aliado ao baixo grau de organização de uma sociedade, como por exemplo a brasileira, dominada por transnacionais e interesses de mercado, gerou uma violação reiterada de direitos.

Este fenômeno se impregnou pelo mundo.

Marcio Pugliesi ensina que “os países desenvolvidos que parecem capitanear essa globalização, de resto em andamento (com outros protagonistas) desde as grandes navegações, gerando globalizantes e globalizados, são vistos como núcleos difusores de cultura e o resto do mundo é enfocado como uma periferia utilizadora de tecnologia, quando o é, e simples receptora de influência cultural” (2015, p.241).   

Com o fenômeno da globalização, surgiram outras formas de dominação que em nada se relacionam com o território. Os objetos consumidos pelos homens perderam a territorialidade, de modo que no Brasil, por exemplo, são consumidos carros fabricados no Japão, Coreia e Europa.

No entanto, a globalização não impediu a concentração de riquezas e formação de oligopólios ao redor do mundo.

De acordo com a lição de Marcio Pugliesi, “cada ciclo de acumulação de capital começa com o investimento e acaba com a venda do produto, ainda que virtual, a mercadoria. Essa, a mercadoria, por força da segmentação, deve ser vendida globalmente para grupos específicos e isso acentua a exclusão, vez que os pobres de todo o mundo estarão unidos, não para desconstruir as estruturas, mas por essa exclusão crua e dura: os ricos de todo o mundo fruirão os prêmios da civilidade e para os excluídos – desse universal banquete – restarão a revolta e a violência” (2015, p.242).

Não há dúvidas que todas estas mudanças que atingiram o mundo, bem como as sociedades, cada vez mais marcadas pela desigualdade social, também ensejaram diversas transformações nas formas de atuação dos criminosos e, consequentemente, ocasionaram efeitos jurídico penais. A pergunta que resta é somente se a legislação penal está preparada e adequada para lidar com as novas formas de criminalidade.

2. O processo histórico

Certas são a importância do direito penal na história da humanidade, bem como as transformações sofridas ao longo do tempo, tendo em vista seu caráter de controle social.

José de Faria Costa ensina que “todos sabemos que nada nem ninguém para o caudal do rio da história e que o direito penal não é nem nunca foi margem desse rio, antes força vividora da torrente da vida, colectiva e individual, que os homens e as mulheres, ao longo de milênios, foram construindo e que, ao fim e ao cabo, coincide com a própria história. Todos sabemos, para o dizermos com as palavras insuperáveis de beleza e profundas de Camões, que “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades/muda-se o ser, muda-se a confiança/todo o mundo é composto de mudança/tomando sempre novas qualidades”. Deste turbilhão de mudanças não se pode escapar. Dele não escapa o direito penal” (2010, p.9).

Não há qualquer dúvida que o direito penal, além de ser parte da história da humanidade, possui sua própria história.

O problema não é a série de mudanças às quais o direito penal está suscetível, mas sim saber se a ideia que se tem de direito penal é compatível com a realidade atual. 

Inicialmente, é preciso ter em mente que o direito penal passa por uma grande alteração de paradigma.

José de Faria Costa ensina que “ninguém tem dúvidas de que o direito penal que, com todos os seus defeitos e virtudes, ainda hoje ilumina a doutrina, a jurisprudência e a legislação encontra uma das suas raízes principais no caldo cultural e filosófico que as várias Ilustrações nos deram” (2010, p.16).

Malgrado todas as críticas que possam ser feitas ao direito penal, inquestionável é a humanização que sofreu no transcorrer de sua história. Contudo, todo o processo histórico esteve marcado por duas claras coordenadas, uma de tempo e outra de espaço.

Nos dizeres de José de Faria Costa, “o direito penal que, desde o séc. XVIII até os dias que correm, nos tem servido é um real construído do pensamento que se realiza no tempo longo e no espaço limitado. Este, por conseguinte, o paradigma. Tempo longo em relação directa com o espaço limitado. O espaço limitado do Estado-nação” (2010, p.16). 

Como já foi dito anteriormente, tudo é mudança e diversas são as mudanças no mundo atual. Igual fenômeno ocorre com o direito penal, o qual passa por mudanças em uma de suas coordenadas básicas: a ideia de espaço.

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Inquestionável é que a noção de espaço para o direito penal passou por mudanças fortíssimas, de modo que a ideia original de espaço se mostra obsoleta frente a atual realidade mundial.

O conceito original de espaço limitado, que levava em consideração o território do Estado-nação deve ser abandonado, passando-se a pensar em um espaço ilimitado ou global.                               

Jesús-María Silva Sánchez ensina que “a integração gera uma delinquência contra os interesses financeiros da comunidade, produto da integração (fraude orçamentária – criminalidade alfandegária -, fraude às subvenções), ao mesmo tempo em que contempla corrupção de funcionários das instituições da integração. Além disso, gera a aparição de uma nova concepção de objeto do delito, centrada em elementos tradicionalmente alheios à ideia de delinquência como fenômeno marginal; em particular, os elementos de organização, transnacionalidade e poder econômico” (2011, p.103).  

Sendo assim, é preciso que o direito penal se ocupe da criminalidade que afeta o cotidiano da sociedade moderna, mostrando-se apto a combater especialmente a criminalidade que passou a ser chamada de organizada.

A criminalidade organizada possui como característica a existência de uma estrutura hierarquizada, de modo que, muitas vezes, o resultado lesivo se manifesta distante, tanto no tempo quanto no espaço, dos sujeitos mais importantes da organização. No entanto, este tipo de criminalidade possui uma grande força desestabilizadora de mercados, bem como de corrupção de agentes públicos.

Ainda, de acordo com as lições de Jesús-María Silva Sánchez, “ante a natureza econômica dos fenômenos da globalização e da integração, o Direito Penal é, obviamente, um produto político e particular, um produto dos Estados nacionais do século XIX, que adquire sua última conformação nas codificações respectivas. Dessa forma, assistimos à caracterização da maneira pela qual, de um Direito nacional, que aparece como último bastião da soberania nacional, afronta um problema transnacional. Com maior evidencia, os Direitos nacionais somente em algumas ocasiões apresentam semelhanças, e no mais as vezes expressam importantes divergências culturais ou de tradições jurídicas. Isso situa qualquer abordagem conjunta do problema da criminalidade da globalização ante importantes dificuldades adicionais” (2011, p. 104).  

A preocupação principal do Direito Penal na era da globalização deve ser a prática, de forma que os delitos com características transnacionais não restem impunes.

No entanto, apresentar uma resposta uniforme e harmônica aos crimes transnacionais não é fácil, pois sequer a uniformização das legislações, como por exemplo a Europeia, ou a celebração de Tratados, no que diz respeito aos crimes com caráter transnacional é suficiente para tanto, sendo necessário ir além e proceder a uniformização da parte geral do direito penal.

Saliente-se que o Direito Penal da globalização não diz respeito a todo o Direito Penal, mas sim aqueles crimes com características transnacionais, como os crimes econômicos e os de criminalidade organizada.

Jesús-María Silva Sánchez afirma que “a partir de tal constatação, depara-se com duas importantes alternativas: ou se acomete uma setorialização das regras da Parte Geral do Direito Penal, ou se assume que, devido à poderosa força atrativa da nova criminalidade, também as modalidades clássicas devam refletir a modificação das regras pelas quais vêm sendo regidas. A primeira, que viria a configurar o que de modo gráfico pode expressar-se como Direito Penal de duas velocidades, significa na realidade a renúncia à teoria do delito como teoria geral e uniforme do ilícito penal (e, nessa medida, aparentemente um retrocesso histórico); mas a segunda, por sua vez, supõe a desativação do sistema geral de regras configurado, com uma mais que óbvia vocação garantista, a partir da constatação da gravidade das consequências jurídico-penais, com referencia em particular ao homicídio” (2011, p.109).

Durante muitos anos, penalistas defenderam que o Direito Penal possui caráter transnacional, tendo em vista a existência de certos institutos, como culpabilidade e autoria. No entanto, é preciso analisar que tal pensamento conduz não à transnacionalidade do direito penal, mas sim a um caráter global.

Atualmente, contudo, tende-se a negar a possibilidade de construção de um sistema dogmático universal do Direito Penal, assentado em verdades imutáveis.

Não há dúvidas sobre a importância do ser para o direito penal, especialmente no que diz respeito ao conceito de pessoa e aos direitos fundamentais inalienáveis, de modo que, por óbvio, a construção dogmática não pode se opor a esta realidade.

No entanto, é preciso observar que a construção de um sistema dogmático vem se dando com base em um campo ontológico muito mais vasto.

Sobre o tema, ensina Jesús-María Silva Sánchez que “tende-se a construir o sistema, no seio de um campo ontológico que se estima bastante amplo, sobre a base de conceitos normativos. Estes adquiririam seu conteúdo concreto sob perspectivas teleológicas, conformadas a partir das finalidades político-criminais do Direito Penal. Umas finalidades político-criminais que não se reduzem a meras considerações utilitaristas-sociais de eficiência empírica, senão que compreendem de modo essencial considerações valorativas específicas que se trata de extrair de um princípio de respeito à dignidade humana e às garantias fundamentais do indivíduo (definitivamente, são culturais)” (2011, p.110).

Não há dúvida que o Direito Penal pode ter caráter universal se for baseado em estruturas lógico-objetivas, o problema surge quando se passa para o campo valorativo. Os valores fundamentais da sociedade ocidental não são os mesmos, por exemplo, do mundo islâmico.

Os penalistas podem se esforçar para criarem estruturas lógico-objetivas que possam ser aplicadas universalmente, mas é extremamente difícil pensar em soluções para os problemas que possam ser aplicadas de forma universal, pois tais soluções adentram no campo valorativo.

Sendo assim, o estabelecimento de valores de referência para o Direito Penal, bem como a realização de uma homogeneização valorativa, é um obstáculo de difícil transposição em virtude das diferenças culturais e da diversidade de tradições jurídicas. 

3. O Direito Penal globalizado

Certo é que, para o Direito Penal clássico, o paradigma sempre foi o crime de homicídio, de modo que todo o sistema, inclusive de garantias, foi construído levando em consideração este crime.

No entanto, com a globalização do Direito Penal, o paradigma passou a ser o delito econômico organizado.

Jesús-María Silva Sánchez ensina que “o paradigma do Direito Penal da globalização é o delito econômico organizado tanto em sua modalidade empresarial convencional como nas modalidades da chamada macrocriminalidade: terrorismo, narcotráfico ou criminalidade organizada (tráfico de armas, mulheres ou crianças)” (2011, p. 122).

Sendo assim, o Direito Penal da globalização é marcado pela prática de crimes econômicos, os quais, em geral, possuem penas brandas e, consequentemente, um sistema de garantias mais fraco, e de crimes tratados pela legislação “excepcional”, que lesionam gravemente bens jurídicos de grande importância, o que também enseja um enfraquecimento do sistema de garantias. 

Anabela Miranda Rodrigues afirma, ainda, que “desta nova criminalidade da globalização evidenciam-se as características da sua organização e internacionalização e o facto de ser uma criminalidade dos poderosos. Com efeito, do ponto de vista estrutural, esta é uma criminalidade organizada em sentido amplo. Nela participam normalmente conjuntos de pessoas estruturados hierarquicamente, quer seja na forma de empresas, quer na forma estrita de organização criminosa” (2006, p.282).  

Diante destas mudanças, o Direto Penal globalizado demanda uma reanálise de princípios clássicos, como o da legalidade, culpabilidade e proporcionalidade, trazendo uma ênfase especial na questão probatória. Tais mudanças podem ser constatadas pelo aumento no número de crimes de perigo abstrato nas legislações nacionais, bem como pela responsabilidade criminal da pessoa jurídica e relativização da legalidade estrita.  

Cumpre salientar, contudo, que a globalização não produz efeitos somente na macrocriminalidade, tendo impactado também na microcriminalidade. Conforme já foi dito anteriormente, a globalização não impediu a concentração de riquezas e, consequente, o surgimento de um enorme grupo de marginalizados, que não possuem acesso ao mercado de consumo.

Sobre este tema, Jesús-María Silva Sánchez afirma que “a globalização como fenômeno econômico não se limita, efetivamente, a produzir ou facilitar a atuação da macrocriminalidade. Também incide sobre a microcriminalidade de massas. Assim, os movimentos de capital e de mão de obra, que derivam da globalização da economia, determinam a aparição no ocidente de camadas de subproletariado, das quais pode proceder um incremento da delinquência patrimonial de pequena e média gravidade” (2011, p.127).

Ainda, importante observar o atual fluxo migratório na Europa, do qual participam nacionais de países que não são membros da União Europeia e que possuem culturas muito diversas. Em geral, tais pessoas vivem nos países europeus de forma ilegal, tornando-se subproletarios integrantes dos bolsões de pobreza, propensos a práticas delitivas.

Anabela Miranda Rodrigues ensina que “por força da imigração de pessoas procedentes de outros âmbitos sócio-culturais, a Europa do bem-estar converte-se numa sociedade pluriétnica e multicultural. Se, por um lado, tende à integração supranacional, e à homogeinização (macdonaldização), por outro, sofre um processo de atomização e diversificação ou multiculturalidade no seu interior. E, a tensão integração-atomização. Homogeneização-diversidade é criminógena” (2006, p. 285). 

A criminalidade estrangeira tornou-se uma realidade e, associada a um elevado temor e sensibilidade das sociedades ao risco, especialmente em virtude da ameaça terrorista, bem como ao choque cultural, ensejou um crescente clamor social pela aplicação da regra de “tolerância zero”, que se contrapõe ao minimalismo penal.

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De acordo com Alamiro Velludo Salvador Netto, “a sociedade de risco representa o modelo social da incerteza, na qual o conceito de risco apresenta-se, ao mesmo tempo, como um elemento existente (reflexividade) e vinculador do homem ao seu futuro (reflexão)” (2006, p. 15).

Não há dúvidas que a sociedade de risco gera a necessidade de novas formas de tutela penal, chamando o Direito Penal para intervir em áreas até então inimagináveis, como ambiental, consumerista e econômica. Ainda, surge a necessidade de tipos penais de perigo, o que faz com que a tipicidade penal fechada não se adeque mais à realidade do Direito Penal e, consequentemente, ceda espaço à tipicidade penal aberta.

O tipo penal fechado está estritamente relacionado ao princípio da legalidade, pois não deixa qualquer margem à interpretação do aplicador do Direito, vez que suas premissas são certas. Ocorre que o tipo penal fechado pressupõe uma sociedade extremamente estável, com baixa complexidade, o que não acontece numa sociedade globalizada. Ademais, por mais que o tipo penal seja fechado, sempre existirão divergências acerca da aplicação do direito.

Já os arquétipos de tipos abertos, nos dizeres de Alamiro Velludo Salvador Netto, “consistem naqueles formatos onde se permitiria a interpretação, ou seja, a conduta e o resultado não estariam sensorialmente ligados por um nexo de causalidade. Como formas inequívocas de modelos abertos inserir-se-iam os crimes culposos (violação do dever objetivo de cuidado), os crimes omissivos próprios (valoração do conceito de garante) e os crimes definidos por vocábulos não inferidos do universo exclusivamente penal (elementos normativos do tipo – jurídicos ou culturais)” (2006, p. 38).

Não há dúvidas que os tipos penais abertos se adequam melhor à realidade moderna, a qual vivencia constantes e rápidas transformações, enquanto o Direito Penal precisa dar respostas para eventuais comportamentos transviados.

No entanto, conforme ensina José Paulo Baltazar Junior, “a resposta a ser dada aos desafios da criminalidade contemporânea – admitido que tem ela algo de diferente – passa, necessariamente, por uma opção de política criminal, uma vez que o ponto de equilíbrio entre as necessidades de uma persecução criminal minimamente eficiente e o respeito aos direitos fundamentais não pode ser extraída, sem mais, do texto constitucional, cabendo a tarefa de dar a resposta adequada em primeira linha, ao legislador, e, posteriormente, também ao Poder Judiciário, que também é destinatário do dever de proteção dos direitos fundamentais” (2010, p. 85).

A política criminal pode ser considerada liberal, quando os direitos penal e processual penal são vistos somente como uma garantia do cidadão e uma forma de limitação ao poder estatal. De acordo com esta corrente, que defende o minimalismo penal, ao direito penal não incumbe o controle da criminalidade, pois esta possui outras causas.

Nesta linha, cumpre evidenciar o pensamento Winfried Hassemer, o qual, no livro Crítica al derecho penal de hoy, afirma que a política criminal moderna tiene como fundamento la idea de que el derecho penal es un instrumento normativamente aceptable y realmente efectivo de conducción y contraconducción, um médio más de política interna (seguridad, salud, economia, etc). Esta idea se há alejado de las tradicionales descripciones de objetivos: el derecho penal debe proporcionar protección jurídica y garantizar las libertades justamente también para quien viola el derecho[1] (1998, p. 54).

Para Hassemer, os problemas originários da criminalidade moderna devem ser solucionados por meio de um direito de intervenção, o qual deveria ter um caráter preventivo, de modo que os direitos penal e processual penal permanecessem com a roupagem clássica.

Contudo, mostra-se importante contrapor tal pensamento a ideia do funcionalismo racional-final, pois conforme ensina José Paulo Baltazar Junior, “na concepção de Roxin (zweckrationalen), o sistema penal não é determinado onticamente por objetos dados previamente (ação, causalidade, estruturas lógicas), mas sim pelos fins perseguidos. Quer dizer, o direito e o processo penal deveriam fazer frente a essa nova e inegável realidade social de crimes cometidos utilizando-se dos meios tecnológicos que a sociedade contemporânea oferece, por um conjunto de agentes e fazendo predominar a proteção do cidadão por meio do Estado na luta contra a criminalidade e não na proteção do cidadão contra o Estado como era da tradição dos princípios liberais do processo” (2010, p. 88).

Com base no funcionalismo racional-final, o direito e o processo penal não podem ser vistos de forma dissociada da realidade, como se integrassem um sistema fechado e independente.

Inquestionável é que o direito e o processo penal tem que levar em conta a realidade fática na qual serão aplicados, a fim de atender a finalidade a qual se destinam, no entanto, sempre observando os direitos fundamentais consagrados na Constituição.

Neste ponto, importante observar, ainda, o pensamento de Silva Sánchez acerca da existência de um direito penal de duas velocidades. Para o ilustre penalista, a expansão do direito penal não pode ser compreendida como uma tendência de punitivismo ou como uma resposta mais forte do direito penal à criminalidade ordinária, mas sim como a tutela do direito penal aos bens jurídicos que não existiam anteriormente, como o meio ambiente e a ordem econômica.

Diante da nova realidade do mundo moderno, Silva Sánchez trata da existência de um direito penal de duas velocidades, como uma maneira de dar uma resposta efetiva à criminalidade transnacional organizada.

Conforme ensina José Paulo Baltazar Junior, “como característica desse novo direito penal, de maior velocidade que o tradicional, podem ser apontadas a modificação das regras de imputação, com a ampliação dos delitos culposos e mesmo da possibilidade de responsabilização penal objetiva, como adotado, em alguns casos, no direito anglo-saxão, inexistência de distinção entre autoria e participação, relativização da legalidade estrita. No âmbito processual penal, são destacadas a possibilidade de avaliação de prova por critérios de probabilidade e a inversão do ônus da prova” (2010, p.90).

Há, ainda, que se evidenciar a existência de uma política criminal mais radical, caracterizada por um maior punitivismo, a qual possui como seu maior expoente Günther Jakobs.

De acordo com Manuel Cancio Meliá, segundo Jakobs, o Direito Penal do inimigo se caracteriza por três elementos: em primeiro lugar, constata-se um amplo adiantamento da punibilidade, isto é, que neste âmbito, a perspectiva do ordenamento jurídico-penal é prospectiva (ponto de referência: o fato futuro), no lugar de – como é habitual – retrospectiva (ponto de referência: o fato cometido). Em segundo lugar, as penas previstas são desproporcionalmente altas: especialmente, a antecipação da barreira de punição não é considerada para reduzir, correspondentemente, a pena cominada. Em terceiro lugar, determinadas garantias processuais são relativizadas ou inclusive suprimidas” (2015, p.90).

Portanto, para o Direito Penal do inimigo, coexistiriam a imposição de penas privativas de liberdade com a flexibilização de garantias do acusado, que poderiam até mesmo ser suprimidas, e regras diferenciadas de imputação.

Como se vê, a atitude que será tomada frente às mudanças ocorridas nas sociedades e, consequentemente, na criminalidade, depende de uma escolha de política criminal.

Conclusão

As mudanças ocorridas nas sociedades, em razão do fenômeno da globalização, são inquestionáveis, pois não se trata de um simples processo, mas de uma grande rede complexa, que instituiu uma nova ordem mundial.

Saliente-se que a nova ordem mundial originária da globalização não é homogênea, mas sim uma ordem extremamente fragmentada, na qual existem bolsões de miséria, ordenamentos jurídicos diversificados, instituições políticas frágeis, dentre outros problemas.  

Um dos sintomas desta série de problemas vivenciados pela sociedade moderna é, inquestionavelmente, a criminalidade.

Ocorre que não se trata da criminalidade clássica, aquela para a qual a teoria clássica do direito penal e do direito processual penal foram concebidos. Trata-se de uma criminalidade transnacional cometida por uma pluralidade de agentes, que se esconde atrás de estruturas organizacionais ou de aparatos organizados de poder.

Em razão destas mudanças, a dogmática clássica do direito penal e processual penal deixou de se mostrar eficaz no combate à criminalidade, sendo necessário que passe por alterações a fim de que atinja sua finalidade de proteção aos bens jurídicos consagrados pelo ordenamento.

Neste ponto, cumpre evidenciar que não se ignora que a criminalidade possui causas complexas e que sua solução é difícil, pois passa pela necessidade de diminuição da desigualdade social.

No entanto, não se pode simplesmente ignorar a nova realidade, por apego à dogmática clássica, considerando o direito penal e processual penal como um sistema fechado, que não pode sofrer qualquer influência do mundo fático, de modo a torná-lo ineficaz em sua finalidade de proteção dos bens jurídicos.

Durante um longo processo histórico, o direito penal e processual penal sofreram diversas modificações, acompanhando os avanços da sociedade, inclusive com uma maior humanização, não podendo neste momento ignorar as transformações advindas com a globalização.

Cumpre observar, contudo, que quando se fala em modificações no direito penal e processual penal, para torna-lo mais eficaz, não significa que a persecução penal deve ser feita a qualquer custo, seguindo a linha do Direito Penal do inimigo. A violação de direitos fundamentais é inaceitável num Estado Democrático de Direito.

Sendo assim, as transformações no direito penal e processual penal devem ser feitas para que estes ramos do direito se adequem à realidade fática, cumprindo, desse modo, a finalidade de tutelar os bens jurídicos, garantindo a segurança pública que é um dever do Estado e um direito dos cidadãos, conforme preceituam os artigos 5º e 144 da Constituição Federal, mas sempre observando as garantias e direitos do criminosos.

 

Referências
BALTAZAR Jr., José Paulo. Crime Organizado e Proibição de Insuficiência. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
COLEMAN, James William. A Elite do Crime: para entender o crime do colarinho branco. 5 ed., São Paulo: Manole, 2002.
COSTA, José de Faria. Direito Penal e Globalização: reflexões não locais e pouco globais. Coimbra: Coimbra Editora, 2010.
HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do Direito Penal. Tradução: Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 2005.
____________________. Crítica al derecho penal de hoy. Traducción: Patricia Ziffer. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 1998.
JAKOBS, Gunther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: Noções e Críticas. Organização e Tradução: André Luís Callegari e Nereu José Giacomoli. 6. ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.
PUGLIESI, Marcio. Teoria do Direito: Aspectos Macrossistêmicos. São Paulo: Sapere Aude, 2015.
RODRIGUES, Anabela Miranda. Globalização, democracia e crime. In: Costa, José de Faria; Silva, Marco Antonio Marques da Silva. Direito penal especial, processo penal e direitos fundamentaisVisão luso-brasileira. São Paulo: Quartier Latin, 2006.
SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo. Tipicidade Penal e Sociedade de Risco. São Paulo: Quartier Latin, 2006.
SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. A expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
 
Nota
[1] tem como fundamento a idéia de que o direito penal é um instrumento normativamente aceitável e realmente eficaz de condução e contracondução, mais um meio de política interna(segurança, saúde, economia, etc). Esta ideia alijou as descrições tradicionais de objetivos: o direito penal deve fornecer proteção legal e garantir a liberdade precisamente também para aqueles que violam a lei.


Informações Sobre o Autor

Camila Bonafini Pereira

Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestranda em Processo Penal pela PUC SP


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