Resumo: É inconteste o caos em que se encontra o sistema penitenciário brasileiro. As facções criminosas como verdadeiras empresas que se tornaram empreendem de uma forma absurda ao ponto de transformar o local onde o Estado deveria ressocializar em um verdadeiro centro de captação para o crime organizado. O Estado não possui formas de executar o "jus puniendi" porque tratou como qualquer coisa quem deveria ressocializar, e os chefes de facções enquanto isso fornecem alimento, advogado e proteção em um lugar que mais parecia um inferno. Hoje temos a certeza de que a prisão não é e nunca foi a forma mais eficiente de prevenir a conduta criminosa, e sim um investimento em educação, saúde e promoção de empregos. Contudo, a sociedade ainda não conseguiu visualizar isso, e os magistrados por vezes acabam decidindo conforme o clamor público, e não a lei, e não ao que vêem reiteradamente nas unidades prisionais.
Palavras-Chave: Custódia, Prisão, Liberdade, Cautelares, Constituição.
Abstract: The chaos in which the Brazilian prison system is found is undisputed. The criminal factions as true companies that have become absurdly undertake to the point of transforming the place where the state should resocialize in a true center of capture for organized crime. The state has no way of executing the "jus puniendi" because it treated as anything who should resocialize, and the faction chiefs meanwhile provide food, counsel and protection in a place that looked more like hell. Today we are sure that imprisonment is not and has never been the most efficient way to prevent criminal conduct, but rather an investment in education, health and job promotion. However, society has not yet been able to visualize this, and magistrates sometimes decide according to the public outcry, not the law, and not what they see repeatedly in the prison units.
Keywords: Custody, Prison, Liberty, Precautionary, Constitution.
Sumário: Problematização. Introdução. Desenvolvimento. Conclusão. Referência
PROBLEMATIZAÇÃO
Conforme o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infonpen), divulgado no dia 08 de dezembro de 2017, mas com base em dados atualizados até junho de 2016, o Brasil tem uma população carcerária assustadora, com aproximadamente 726.712 (setecentos e vinte e seis mil setecentos e doze) presos. Mais de 40% dela formada por presos provisórios.
De acordo com o relatório, 89% da população prisional encontram-se em unidades superlotadas. São 78% dos estabelecimentos penais com mais presos que o número de vagas. Se compararmos os dados do levantamento do Infonpen de dezembro de 2014 com os de junho de 2016, o déficit de vagas passou de 250.318 (duzentos e cinquenta mil e trezentas e dezoito) para 358.663 (trezentos e cinquenta e oito mil seiscentos e sessenta e três). Ou seja, nosso sistema penitenciário é um caos, encontra-se falido, com estrutura desumana, servindo não para ressocializar, mas para alimentar facções criminosas.
A Lei 12.403/2011, que alterou dispositivos do Código de Processo Penal, relativos à prisão processual, como fiança, liberdade provisória, demais medidas cautelares, não conseguiu mudar a política de encarceramento enraizada em nossa sociedade, e basicamente não vem sendo aplicada. Esquecem que a prisão é última ratio e a aplicam ignorando demais institutos previstos em Lei. Eis a problematização: a cultura do encarceramento, a antecipação da pena, a renúncia à aplicação de medidas diversas da prisão ao ignorar as diversas soluções apresentadas pelo nosso ordenamento jurídico.
Diante da situação caótica em que a segurança pública em especial no sistema carcerário se encontra, pretende-se abordar o porquê exatamente de nada funcionar quando a iniciativa é diminuir a população carcerária, ainda que isso seja mais benéfico para a sociedade.
INTRODUÇÃO
No Brasil chama-se de audiência de custódia o ato de apresentar o preso provisório ao juiz. Esse procedimento teve origem em diversos tratados internacionais de direitos humanos, dentre eles, a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), popularmente conhecida por Pacto de San José da Costa Rica ou Convenção Interamericana de Direitos Humanos (CIDH); o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e; a Convenção Europeia de Direitos Humanos. Todos dizem uma mesma coisa, que: toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais.
A nossa Constituição Federal, no art. 5º, inciso LXI, desde 1988, já determina que ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente. No inciso, LXII consta a determinação de que a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre deve ser comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou a pessoa por ele indicada.
De fato a Constituição Federal não faz menção expressa e direta à audiência de custódia a um juiz. Mas em seu o art. 22, I, encontra-se estabelecido que é competência privativa da União legislar sobre direito processual, sendo certo que o, o art. 5º, §§ 2º e 3º, da CF/88, destacam a força normativa dos tratados internacionais que versam sobre direitos humanos, dos quais o Brasil seja signatário. O § 2º diz que os direitos e garantias, expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos Tratados Internacionais em que a República Federativa do Brasil faça parte. O parágrafo § 3º, a seu turno, inclusive, dá aos Tratados que versem sobre Direitos Humanos, status de Emenda Constitucional, conforme consta da dicção desse dispositivo que dispõe que “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às Emendas Constitucionais (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)”.
O Código de Processo Penal também não menciona a audiência de custódia, porém o art. 1º desse diploma legal diz que o processo penal reger-se-á, em todo o território brasileiro, por este Código, ressalvados os tratados, as convenções e regras de direito internacional.
Portanto, é plenamente cabível a imediata aplicação das normas previstas nos pactos internacionais que preveem as audiências de custódia. No entanto, apesar de intensa cobrança do Conselho Nacional de Justiça, uma grande parcela dos magistrados é contra a implementação desse instrumento procedimental, sob diversos argumentos, dentre eles o custo, a falta de estrutura e uma suposta desnecessidade. As perguntas que ficam são: uma pessoa que não precisaria ficar presa, e assim está em razão da morosidade do judiciário, quanto ela custa? A unidade prisional possui estrutura adequada? Isso também merece ser analisado para a efetiva e eficaz aplicação da lei penal.
A malograda tentativa de se desafogar o sistema penitenciário por meio da Lei 12.403/2011, hoje se vê empoderada graças à implementação das audiências de custódia por meio da Resolução 203 de 2015 do Conselho Nacional de Justiça. Isso porque a presença física do preso e de seu defensor obrigará o magistrado ao menos a olhar para as medidas cautelares diversas da prisão as quais vem ignorando desde quando foram publicadas.
Ora, evidentemente que a audiência de custódia foi criada e defendida com a mesma intenção que a lei 12.403/2011, que é diminuir a população carcerária, tirando do cárcere aquele cidadão ou cidadã com condições de responder o processo sem custar tão caro ao Estado, vez que, atualmente, o custo mínimo de um preso é de R$ 3.000,00 (quatro mil reais) por mês. Contrariamente ao que muitos pensam, não se pretende “soltar bandidos”, apenas aqueles indivíduos que possuam condições de responder a um processo em liberdade, sem facções criminosas capitaneá-los.
Por enquanto, o que se vê realmente é que a audiência de custódia tem trazido tanto resultado quanto a Lei 12.403/2011, isso porque a política do encarceramento permanece enraizada na cabeça de muitos magistrados.
Outrossim, a necessidade de regulamentação por lei federal da audiência de custódia é medida urgente a ser tomada, antes que esse grande número de Resoluções elaboradas em cada Tribunal, traga à tona a irremediável insegurança jurídica, e mais uma vez a sociedade perca a oportunidade de experimentar medidas preventivas e punitivas que não seja somente a prisão, principalmente no modo em que ela é instaurada hoje em nosso país.
DESENVOLVIMENTO
Conforme mencionado ao norte, no ano de 2011 foi publicada a Lei 12.403/2011 com a previsão de medidas diversas das cautelares, com a finalidade de diminuir a população carcerária, que na prática não funcionou.
Em 2015 o Conselho Nacional de Justiça publicou a Resolução 230 de 15 de dezembro de 2015, com a finalidade também de diminuir a população carcerária. Tem funcionado? Ainda é cedo para emitir um parecer, mas na realidade, tem tido um funcionamento tímido demais.
Quando o legislador criou as medidas diversas da prisão, e quando o CNJ recomendou aos Tribunais acolhessem as audiências de custódia, não se intentava “colocar bandido na rua”, e jamais se pensou em colocar a sociedade em risco.
Quando se fala em diminuir a população carcerária, estar-se a considerar as situações como a de um hipossuficiente que não tem dinheiro para pagar a fiança de um crime de menor potencial ofensivo, não ficar preso por até mesmo meses, sugando, desnecessariamente, cerca de R$4.00,00 (quatro mil reais) dos cofres públicos no mês; se fala de um detido primário com bons antecedentes, que cometeu ilícito sem violência ou grave ameaça não ficar recolhido e ser capitaneado por facções que dominam as nossas unidades prisionais, transformando jovens com potencial, em verdadeiros criminosos; se fala daquele primário, com profissão definida que uma única vez em sua vida talvez tenha praticado um crime, mas que toda a sua vida pregressa demonstra que uma noite na cadeia é o suficiente para nunca mais querer voltar a praticar um crime, ou sequer se envolver com quem o pratica.
A intenção não é soltar todos os presos, a intenção é rever quem deve realmente permanecer preso. Lembrando que a prisão é a última determinação e essa forma como boa parte da magistratura tem aplicado o artigo 310 do Código de Processo penal, nem de longe soa razoável.
Como já se mencionou, aqui, a lei 12.403/2011 sozinha não foi capaz de modificar a política de encarceramento que sempre dominou nosso país, e a população carcerária vem aumentando consideravelmente, tendo agora na audiência de custódia a oportunidade de fazer tal norma deixar de ser uma letra morta. Isso porque como bem sabemos, muito embora o magistrado cumpra o artigo 310 do Código de Processo Penal, parece que seus olhos se vendavam para o artigo 319 do mesmo diploma legal.
Assim sendo, é que a realização de audiência de custódia, com a defesa técnica presente, fica difícil não observar que existem medidas diversas da prisão e que a prisão só deve ser decretada em último caso, não somente pela dignidade da pessoa humana e seus direitos de liberdade, de presunção de inocência, mas também porque o Estado não suporta esse gasto, o Estado não investe em locais adequados e suficientes para essa política de encarceramento sustentada pela sociedade que pensa que prender ser humano em condições de flagrantes violações a todos os direitos inerentes à pessoa humana é fazer justiça.
Com a defesa técnica presente no momento de análise do artigo 310 do Código de Processo Penal fica mais difícil ainda não observar que tortura praticada por agentes do Estado no momento da prisão de um criminoso, não faz de ninguém um justiceiro, faz dos agentes igualmente criminosos, quem sabe até pior do que aquele que foi preso. E, ainda, que crime interrompido ou descoberto com a prática de um outro crime, agora praticado pelo agente do Estado, torna todo o procedimento nulo. Eis que o nosso ordenamento jurídico é quem fundamenta o sistema de nulidades, onde as provas ilícitas não devem ser utilizadas e ainda contaminam todo o processo e procedimento.
A Lei 12.403/2011 não foi feita em vão, a implementação de audiências de custódia determinada nos mais diversos tratados dos quais o Brasil faz parte, também não foi feita em vão. O Brasil está em colapso no que diz respeito ao sistema penitenciário, a sociedade está revoltada com o aumento da criminalidade, porém ninguém se atenta para o fato de que o próprio sistema penitenciário é quem tem formado bandidos, através das facções criminosas criadas com a anuência e omissão do Estado, e por culpa da resistência não de todo o judiciário, mas de alguns julgadores resistentes à aplicação de medidas diversas da prisão.
Não dá para continuarmos achando que a prisão é a solução porque não é. Ela não é eterna, no entanto é cruel e o que ela faz não é ressocializar é criar marginais. Temos colocado atrás das grades e doado pessoas com grande potencial humano às facções, ignorando sobremaneira a essência do nosso direito.
O país precisa debater acerca da desumana e desnecessária política do encarceramento que precisa ser desmistificada, voltando-se os olhos para a essência do nosso ordenamento jurídico, inclinando-se para a aplicabilidade da lei 12.403/2011 em especial na própria audiência de custódia, de modo que se faça finalmente prevalecer a dignidade da pessoa humana, os dogmas constitucionais, tornando a nossa sociedade muito melhor. Afinal, desse pensamento retrógrado de que o mal se paga com o mal, nunca se obteve comprovação de resultado efetivo e eficiente, sem contar que tal pensamento é negativa ao Estado Democrático de Direito.
Alguns autores chegaram a pesquisar os índices de pessoas presas, o avanço desses números e a real necessidade de se criar mecanismos de solução, como Salo de Carvalho que pondera o seguinte:
“Estabeleçam a necessidade de estudos prévios e acompanhamento do impacto político criminal das leis penais e processuais penais, devendo ser apresentados os possíveis efeitos econômicos, possibilidade orçamentária e objetiva.’ (CARVALHO, Salo, 2010, p. 43-44).
Débora Regina Pastana e Leonardo Mendonça Davi, autores do artigo Encarceramento em Massa no Brasil: um estudo de caso na cidade mineira de Uberlandia, concluem:
‘É possível constatar uma verdadeira política de encarceramento em massa. Reforça esse entendimento o diagnóstico feito pelo conselheiro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, em que pontua que o que existe hoje é uma política nefasta, errada, de encarceramento em massa. Uma vez presas, essas pessoas não têm acesso à justiça’. (Encarceramento em Massa no Brasil: um estudo na cidade mineira de Uberlândia, Revista da Ajuris, junho de 2014, p. 160)
O Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias INFOPEN – 2016 constatou que o total de pessoas encarceradas no Brasil chegou a 726.712 (setecentos e vinte e seis mil setecentos e doze) em junho de 2016. Sendo que em dezembro de 2014, era de 622.202 (seiscentos e vinte e dois mil duzentos e doze). Houve um crescimento de mais de 104.000 (cento e quatro mim) pessoas. Cerca de 40% são presos provisórios, sendo que a metade dessa população é de jovens de 18 a 29 anos e 64% são negros. De acordo com o relatório, 89% da população prisional estão em unidades superlotadas, são 78% dos estabelecimentos penais com mais presos que o número de vagas. Comparando-se os dados de dezembro de 2014 com os de junho de 2016, o déficit de vagas passou de 250.318 (duzentos e cinquenta mil trezentos e dezoito) para 358.663 (trezentos e cinquenta e oito mil seiscentos e sessenta e três). A taxa de ocupação nacional é de 197,4%.
Tássia Louise de Moraes Oliveira escreveu sobre o insucesso e a banalização das medidas cautelares implementadas pela Lei 12.403/2011, teceu comentários acerca de cada probabilidade prevista nos incisos do então artigo 319 do Código de Processo Penal, afirmando sobre o poder da sociedade de modificar as leis, e não das leis mudar a sociedade. E isso nos faz agora refletir de o porquê da Lei 12.403/2011 não ter surtido efeito, e o porquê dela necessitar e vibrar com a implementação das audiências de custódia. Agora existe uma chance da Lei 12.403/2011 ser observada na fase do artigo 310 do Código de Processo Penal, principalmente quando de uma atuação de defesa técnica e combativa.
O brilhante trabalho realizado no XXV Congresso do CONPEDI -CURITIBA, que resultou num belíssimo estudo, constatou índices relevantes de manutenção de prisões preventivas com base em mera fundamentação abstrata ou mesmo sem qualquer fundamentação. Mais do que isso, demonstrou o amplo uso da fundamentação baseada na garantia de ordem pública. Um tipo bastante abstrato e que é objeto de controvérsia jurídica uma vez que é bastante difícil mensurar o que seja “ordem pública” e como a prisão processual de um indivíduo pode ser necessária para a sua garantia.
CONCLUSÃO
De fato não foi localizado material de estudos conclusivos a respeito da Política de Encarceramento perpetrada no Auto de Prisão em Flagrante pela Autoridade Judicial, como fator preponderante para a superlotação carcerária e alimentação de facções criminosas. No entanto, da análise isolada de artigos como os mencionados ao norte, em outra conclusão não se pode chegar. O ápice do caos no nosso sistema penitenciário é essa cultura de na dúvida encarcerar, de não aplicar medidas diversas da prisão, e de o magistrado sem perceber acabar aplicando lei de talião: olho por olho, dente por dente.
Informações Sobre o Autor
Gabriela Moura Fonseca de Souza
Advogada Especialista em Direito Penal e Processo Penal proprietária do Escritório GM Advocacia com sede em Palmas-TO