Arrependimento posterior: pessoalidade na reparação do dano ou restituição da coisa

Resumo: O Arrependimento posterior apresenta grande relevância em nosso ordenamento jurídico, tendo em vista a possibilidade de atenuação de uma sanção eventualmente imposta ao autor de uma infração praticada sem violência ou grave ameaça. Este trabalho, elaborado com base na legislação, doutrina e jurisprudência pátria, procura explanar que a voluntariedade instituída no art. 16 do Código Penal não se erige como sinônimo de pessoalidade para concessão da causa geral de diminuição da pena (arrependimento posterior). Aquele que se revela arrependido, mesmo que por atuação de um terceiro, deve se beneficiar com o instituto, pois outro não seria o sentido da norma.

Palavras-chave: Arrependimento posterior. Direito penal. Sanção.

Abstract: Subsequent repentance is of great relevance in the legal system, in view of the possibility of mitigating a sanitary condition imposed on the perpetrator of an infraction committed without violence or serious threat. This work, elaborated on the basis of legislation, doctrine and jurisprudence, tries to explain that the voluntariness instituted is not an art. 16 of the Criminal Code does not apply as a synonym of personalities for the general provision of punishment (later repentance). He who reveals himself repentant, even if by a third, should be a beneficiary with the institute, on the other would not be the meaning of the norm.

Keywords: Subsequent repentance. Criminal law. Sanction.

Sumário: Introdução. 1.1 Evolução Histórica. 1.2 Dispositivo Legal. 1.3 Natureza Jurídica. 1.4 Ratio Legis. 1.5 Requisitos exigidos para caracterização do Arrependimento Posterior. 1.6 Arrependimento Posterior e a pessoalidade na reparação do dano ou restituição da coisa. 1.7 Considerações finais. Referências.

INTRODUÇÃO

O arrependimento posterior é causa obrigatória de redução de pena, tendo sido instituído na parte geral do CP sob fundamento eminentemente político.

Passível de infindáveis tergiversações, este benefício (causa pessoal de redução da pena) pode diminuir a sanção imposta ao agente infrator de um a dois terços. No entanto, para auferi-lo faz-se necessária a constituição de determinados requisitos mencionados no texto legal: crime cometido sem violência ou greve ameaça, reparação do dano até o recebimento da denúncia ou queixa e voluntariedade do ato de reparação/restituição.

Diante da celeuma acerca da exigência, ou não, da pessoalidade na reparação do dano ou restituição da coisa para configuração do Arrependimento posterior, foi que este trabalho desenvolveu-se. A ideia de pesquisar acerca do tema suscitado adveio com detidas leituras realizadas na excelente obra de Direito Penal do autor Rogério Greco: Curso de Direito Penal – Parte Geral.

O presente trabalho, longe de buscar esgotar o tema, objetiva esclarecer o instituto Arrependimento posterior, diferenciando-o de conceitos afins, bem como pugnar que voluntariedade instituída no art. 16 do CP não se erige como sinônimo de pessoalidade muito menos configurando exigência insuperável para concessão da causa geral de diminuição da pena.

1.1 Evolução histórica da reparação do dano e origem do arrependimento posterior

Apesar de a origem história do Direito Penal no Brasil remeter-se às Ordenações do Reino, não se pode deixar de lado a ideia de Direito Penal presente entre os índios, ainda que somente na seara dos costumes.

A ideia de Direito Penal tribal infere-se dos costumes, detectando-se, em suma, a vingança e a lei de talião, haja vista que, objetivamente, não se pode afirmar pela existência de um Direito constituído, posto. Nesse âmbito, a extensão do dano produzido era a razão e o objeto da repressão, esta se confundindo com a satisfação. (COSTA, p.7-8 apud GARCIA, 1997, p.24).

Nas Ordenações do Reino que vigoravam no Brasil observa-se a exacerbação das penas, característica das legislações da época; porém, como exposto por Waléria Garcelan Loma Garcia, no Código Filipino, mesmo que de maneira imprecisa, é possível firmar pela existência da ideia de reparação do dano (GARCIA, 1997, p.26). Como exemplo, o título LXXXVI – Dos que põem fogos.

No Código Criminal do Império, já figurava de maneira precisa a reparação do dano, consubstanciando-se em artigos exclusivamente destinados a tratar Da Satisfação. Nesse código também se dissociou a pena da indenização; entretanto, apesar do cunho civil, o ressarcimento do dano era estimado e mandado cumprir por determinação do Tribunal do Júri.

Em 1890 adveio o Código Penal da República, nesse compêndio foi inserido o Título III que tratava da Responsabilidade criminal; das causas que dirimem a criminalidade e justificam os crimes. No seu Título V era prevista – Das penas e seus efeitos, da aplicação e modo de execução -, a obrigação de indenizar o dano como efeito da condenação.

Já no Código Penal de 1940 (antes da reforma de 1984), o legislador estabeleceu várias circunstâncias (entre elas a reparação do dano pelo agente) que, uma vez presentes, determinavam ao juiz que operasse a atenuação da pena. Como exemplo os dispositivos: art.48, inciso IV e art. 74, I.

Por sua vez, o Código de 1969 disciplinava em diversos artigos, tanto da parte geral como da especial, a reparação do dano. É o que se vê nos artigos: 37, § 3º; 58, III, b; 70; 74; 72, III; 90, I; na parte especial: 164, § 2º; 183, § 3º; 187, § 3º, e 195, parágrafo único.

Revogado o Código de 1969, o legislador buscou uma reforma setorizada do Código de 1940 (GARCIA, 1997, p.40). Em 1980, foi designada comissão para elaboração de um anteprojeto de lei de reforma da Parte Geral do Código Penal de 1940. Uma vez aprovado e sancionado o projeto, este se converteu na Lei nº. 7.209 de 11 de julho de 1984. Neste texto foi mantida a reparação do dano antes do julgamento como causa genérica de redução da pena, bem como foi criada a figura do arrependimento posterior.

No mais, com a referida reforma ainda se mantiveram os demais dispositivos relativos à reparação inseridos no CP de 1940.

Quanto ao surgimento do Arrependimento posterior, é veiculado pela maioria da doutrina que ocorrera em virtude da relevância dada pelos tribunais ao pagamento do cheque emitido sem provisão de fundos até o recebimento da denúncia, fazendo com que fosse afastada a possibilidade de ação penal no crime previsto no art. 171, § 2º, VI, do Código Penal.

Também atribuindo à jurisprudência a gênese do art.16 do CP, dentre outros: Júlio Fabrini Mirabete, Alberto Silva Franco e Paulo José da Costa Júnior.

Mas não somente à atividade pretoriana deve-se a origem desse instituto. O Código Penal de 1969, a legislação penal especial, além da legislação estrangeira, orientaram o legislador de 1984. Com efeito, não cabe atrelar a aparição do Arrependimento posterior exclusivamente ao fruto da atividade jurisdicional.

1.2 Dispositivo legal

O arrependimento posterior foi introduzido com a Lei 7.209 de 11 de julho de 1984, ocasião em que se operava a reforma da Parte geral do CP. Dentre várias inovações inseridas destaca-se a do art.16, in verbis:

“Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços.”

A inserção deste dispositivo foi ao encontro da evolução do Direito Penal – outrora excessivamente repressor – admitindo, agora, uma suavização para aqueles que reparassem o dano acometido à vítima.

1.3 Natureza jurídica

O arrependimento posterior é causa obrigatória de redução da pena, prevista na parte geral do Código Penal.

Não obstante haver posições divergentes, é sedimentado o entendimento de que este dispositivo constitui causa obrigatória de redução da pena, haja vista a utilização da expressão “será”, determinando ao juiz que, presente os requisitos, reduza a pena do ofensor.

1.4 Ratio legis

Primeiramente é necessário esclarecer um conceito muito utilizado, e que é a razão legal da instituição do arrependimento posterior.

"A Política Criminal é a ciência ou a arte de selecionar os bens (ou direitos) que devem ser tutelados jurídica e penalmente e escolher os caminhos para efetivar tal tutela, o que iniludivelmente implica a crítica dos valores e caminhos já eleitos" (ZAFFARONI, 1999, p.132).

Assim, a decisão de selecionar os bens a serem protegidos juridicamente e as medidas necessárias a essa tutela constituem ciência, ou seja, conhecimento baseado em método científico bem como o conjunto sistematizado de conhecimentos obtido através de pesquisas. Pois bem, a par do conceito de política criminal, pode-se definir que o existir do arrependimento posterior é exclusivamente político.

Ademais, assim é previsto na Exposição de Motivos da Parte Geral do Código Penal estabelece em seu item de nº. 15:

“O Projeto mantém a obrigatoriedade de redução de pena, na tentativa (art. 14, parágrafo único), e cria a figura do arrependimento posterior à consumação do crime como causa igualmente obrigatória de redução de pena. Essa inovação constitui providência de Política Criminal e é instituída menos em favor do agente do crime do que da vítima. Objetiva-se, com ela, instituir um estímulo à reparação do dano, nos crimes cometidos ‘sem violência ou grave ameaça à pessoa.”

Com efeito, a decisão do legislador em conceder esse benefício é fruto da percepção de que o estímulo ao agente fornece efeitos muito mais vantajosos do que a repressão em si. Isso, aliás, é reflexo da tendência da política criminal da época:

“A partir dos anos cinquenta ressurge na Europa a política criminal redescoberta em função da crise da dogmática. Reestuda-se Von Liszt – para quem o Direito Penal é o termômetro da liberdade política”. (COSTA JÚNIOR, p.54, citado por GARCIA, 1997, p. 61)

Os tipos, as penas, os bens juridicamente tutelados pelo Direito Penal são expressões sociais em que se dá produção legislativa. A forma como que uma determinada conduta é reprimida passa por um crivo social, onde se hierarquizam os bens e as condutas mais ou menos relevantes para a manutenção do convívio coletivo. A evolução das expressões criminosas merece atenção especial do legislador, assim como a reprimenda, de sorte que antes mesmo da pena deve-se instituir incentivos para que, uma vez lesado o bem, o status quo possa ser restabelecido, e o prejuízo minorado.

O legislador foi sensível a uma nova forma de repreensão, e a figura do sujeito passivo foi elevada a um grau maior de importância em detrimento do que se tinha anteriormente: penas excessivas que, em si mesmas, consubstanciavam a própria reparação, atendendo, sempre, ao clamor das “massas” imbuído do prisco instinto de vingança.

 Nesse sistema excessivamente repressivo, deixava-se de observar que o diretamente lesado em nada “ganhava” com pena imposta, além do mais, os institutos repressores pouco obtiveram quanto ao desestímulo de condutas semelhantes posteriores.

1.5 Requisitos exigidos para caracterização do arrependimento posterior

A ilação que se faz do art. 16 do CP é que a redução da pena do agente somente se efetuará caso se verifiquem alguns requisitos.

Nos subtítulos que seguem será efetuada uma análise sobre as exigências legais para caracterização e reconhecimento do arrependimento posterior, ressalvando que o último capítulo será destinado ao que diz respeito à pessoalidade do ato do agente para reparar o dano ou restituir a coisa.

1.5.1 Crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa

Para o agente ser beneficiado com a causa de diminuição da pena é necessário que o crime seja cometido sem violência ou grave ameaça (o legislador deixa claro que a ameaça deve ser grave, ou seja, de um mal considerável à vítima).

Da premissa acima, conclui-se que em todos os crimes em que não houver sido praticada violência ou grave ameaça contra pessoa, o arrependimento posterior restará reconhecido. Consequentemente, é cediço na doutrina que se o agente emprega violência contra a coisa o arrependimento posterior não será afastado.

Ressalta-se, por fim, que apenas quando definitivamente determinada a natureza da infração é que se apreciará a existência, ou não, de violência contra a pessoa; destarte, o oferecimento da denúncia ou queixa não é o momento adequado para se verificar se presentes os requisitos para o reconhecimento do arrependimento posterior, mesmo, porque, o juiz deve atrelar-se aos fatos, não às definições jurídicas elencadas na peça inicial. 

1.5.2 Reparação do dano ou restituição da coisa

Este é outro requisito estipulado no art. 16. Em um primeiro contato com o dispositivo, equivocadamente, associa-se a causa de diminuição a crimes patrimoniais, entretanto, pela expressão “reparação do dano” pode-se perceber que o beneficio alberga todos os tipos de delitos dos quais sobrevenha dano à vítima.

Como consequência, não só as lesões patrimoniais como até aquelas que acarretam dano moral devem ser reparadas. Assim, ainda que o delito cause apenas dano moral o agente também deverá beneficiar-se, logo o intérprete não poderá restringir o alcance da norma prejudicando o réu.

O dano moral reparado dar ensejo ao reconhecimento do benefício aqui tratado, haja vista a previsão genérica – reparação do dano – e o Princípio do Favor Rei:

“O princípio do favor rei, também conhecido como princípio do favor inocentiae, favor libertatis, ou in dubio pro reo, podendo ser considerado como um dos mais importantes princípios do Processo Penal, pode-se dizer que decorre do princípio da presunção de inocência”.

O referido princípio baseia-se na predominância do direito de liberdade do acusado quando colocado em confronto com o direito de punir do Estado, ou seja, na dúvida, sempre prevalece o interesse do réu. O mencionado princípio deve orientar, inclusive, as regras de interpretação, de forma que, diante da existência de duas interpretações antagônicas, deve-se escolher aquela que se apresenta mais favorável ao acusado (grifo nosso)” (BRAMBILLA, 2009).

No cotejo entre valores como a liberdade e o direito de punir do Estado aquele deve prevalecer, de forma que apenas quando, indubitavelmente, puder concluir-se pela existência e autoria de um delito é que a sanção será imposta, não havendo espaço para presunção de culpa.

Damásio de Jesus, Alberto Silva Franco e Heleno Cláudio Fragoso informam que a reparação do dano deve ser integral (GARCIA, 1997, p.88). Na mesma esteira Zaffaroni:

“A reparação completa deve abranger, além daquilo que o ofendido perdeu, também o que deixou de lucrar, incluindo-se, pois, os prejuízos efetivos e os lucros cessantes, na forma do que estabelece o Código Civil (arts. 1059 e 1060). Quanto à restituição, deve ela ser integral, sendo, pois, insuficiente a restituição parcial, ou seja, de um ou de alguns dos objetos materiais.” (ZAFFARONI, p.117, citado por GARCIA, 1997, p.88).

Entretanto, data vênia, tal entendimento fulmina outras circunstâncias que também seriam capazes de caracterizar o instituto previsto no art.16 do CP. Da forma como estabelecido no trecho supracitado, desconsidera-se o posicionamento da vítima diante de uma eventual reparação parcial, bem como as condições econômicas em que se encontra o causador do dano.  Como exemplo, o caso daquele que furta R$ 100.000,00 (cem mil reais) e, por ter sido obrigado a custear um tratamento de saúde de sua filha (acometida após o delito), arrependido, devolve apenas R$ 60.000,00 (sessenta mil reais), tendo o lesado, sensibilizado, aceito a devolução. Pergunta-se: o infrator não deverá, mesmo, ter o benefício reconhecido?

 É evidente a caracterização da causa de diminuição da pena. Posicionamentos assim renderam várias críticas ao instituto do arrependimento posterior, por vezes alcunhado de discriminatório e elitista.

 Reitera-se que a confecção da causa de diminuição da pena foi estabelecida “mais em favor da vítima”, consequentemente, uma vez aceita a reparação, o infrator gozará da redução da sanção.

Corroborando, a integralização do ressarcimento para reconhecimento da benesse é questão já enfrentada pelo STF. No deferimento do Habeas Corpus nº. 98658, os ministros Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski indicaram que o arrependimento posterior deve sim ser reconhecido, ainda que não haja a integral reparação do dano, porquanto a concessão do benefício deve ser proporcional ao tempo e extensão da reparação operada. Ou seja, quanto mais rápido e mais próximo da integralização do quantum, maior será o benefício, tendo por limite máximo a redução de dois terços.

1.5.3 Ato voluntário do agente

Exsurge da abordagem desse requisito a celeuma a respeito da voluntariedadeespontaneidade do ato de reparação do dano ou devolução da coisa pelo agente.

Na jurisprudência há julgados exigindo a espontaneidade do ato do agente, confundindo-a com a voluntariedade:

“TJDF – APR: APR 191629820038070003 DF 0019162-98.2003.807.0003

ESTELIONATO – AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS -DOSIMETRIA – APLICAÇÃO DE CAUSA DE DIMINUIÇÃO – ARREPENDIMENTO POSTERIOR – IMPOSSIBILIDADE – SENTENÇA MANTIDA 1)- O AUTO DE APRESENTAÇÃO E APREENSÃO NOTICIA A DEVOLUÇÃO, PELO RÉU, DOS OBJETOS DE PROPRIEDADE DA VÍTIMA, QUE SE DEU POR DETERMINAÇÃO DO DELEGADO DE POLÍCIA, AUSENTE, PORTANTO, O REQUISITO CONCERNENTE À VOLUNTARIEDADE, RAZÃO DO NÃO RECONHECIMENTO DA CAUSA DE DIMINUIÇÃO RELATIVA AO ARREPENDIMENTO POSTERIOR. 2)- RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO.”

Como se vê, nesta decisão afasta-se a concessão da benesse tendo em vista não ter surgido da própria mente do autor do fato a ideia de reparação ou devolução. A determinação do Delegado, para a corte, afastou a voluntariedade do ato do agente e, consequentemente, a concessão do benefício.

Contrária ao entendimento jurisprudencial colacionado acima é a explanação, digna de aplausos, de Waléria Garcelan Loma Garcia (1997, p.93):

“É o próprio legislador penal quem difere ato voluntário de ato espontâneo, ora exigindo, em certos dispositivos, a presença da espontaneidade (art.65, III, b e d), ora a presença da mera voluntariedade (art. 15 e 16).”

O ato espontâneo reveste-se da qualidade de arrependimento; é um ato que nasce unicamente da vontade do agente (autodeterminação), sem qualquer interferência externa na ideia inicial.

Ato voluntário, por sua vez, é aquele despido de coação, no qual a ideia inicial pode não ter partido do agente, sendo indiferente o motivo que o impulsionou. O ato voluntário pode ser também espontâneo.

Assim, para incidência da causa de diminuição de pena é indiferente o motivo que impeliu o agente a atuar e seu ato pode, inclusive, ser resultado de compulsão externa, dispensável o desejo espontâneo de reduzir o dano que casou.

Portanto, e de acordo com a unanimidade da doutrina, é inexigível a espontaneidade da reparaçãodevolução para o reconhecimento do arrependimento posterior. Mais uma vez recorre-se à Exposição de Motivos da Parte Geral do Código Penal, onde se estabelece que a medida visa menos ao autor da infração do que à vítima; as tendências de política criminal, vigentes à época da gênese da causa de diminuição de pena, estavam voltadas para a figura do ofendido, preocupando-se mais em restituir o status quo anterior à infração do que infligir uma dura sanção ao ofensor, o que se confirma pela própria essência – de verdadeiro estímulo – do instituto.

1.5.4 Limite temporal

Esse aspecto não exige o cotejo de algumas doutrinas, a determinação legislava é clara, dispensando minúcias.

“Até o recebimento da denúncia ou da queixa”, este é o momento previsto na lei. Extrapolada essa determinação, o ato do agente poderá configurar-se apenas a circunstância atenuante do art.65, III, b, do CP.

1.6 Arrependimento posterior e a pessoalidade na reparação     do dano ou restituição da coisa.

O que acontece na hipótese de um terceiro restituir a coisa ou reparar o dano causado pela lesão?

A doutrina apresenta duas correntes. A primeira, mais literal, exige a pessoalidade do ato, não admitindo a redução da pena se a reparação do dano ou restituição da coisa for levada a efeito por terceira pessoa; a segunda, cuja interpretação é mais liberal, permite a aplicação da redução mesmo que a reparação ou devolução tenha sido feita por terceiro.

No diapasão da primeira corrente obtempera Rolf Koerner Júnior (p.15-22, apud GARCIA, 1997, p.94) que, se a restituição da coisa ou a reparação do dano se operou por ato de terceiro, não ocorrerá a redução da pena no caso concreto; vez que personalíssimo o instituto, estará desatendida a sua finalidade.

Ainda nesse sentido: Damásio Evangelista de Jesus, Júlio Fabrini Mirabete, Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangelli.

Damásio de Jesus (p.44, apud GARCIA, 1997, p.95) excepciona afirmando que o benefício pode ser admitido se a reparação ou restituição for efetuada por terceiro, a mando do agente, atuando aquele, como representante deste.

Com a devida máxima vênia, ousa-se discordar destes renomados autores.

 Pois bem, a maioria da doutrina pátria preceitua que a pessoalidade é requisito para o reconhecimento do arrependimento posterior. Para esses, o agente não deve beneficiar-se com a causa obrigatória de diminuição prevista no art. 16, não obstante, voluntariamente, ter consentido em uma reparação de dano ou restituição de coisa efetuada por um terceiro,

Apesar dessa manifestação doutrinária, o que se vê na norma não é tal exigência, não sendo prevista qualquer alusão à pessoalidade mencionada, in verbis: “reparado o dano ou restituída a coisa, (…) por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços”.

 Da expressão “ato voluntário” de reparaçãodevolução não se deduz a pessoalidade do mesmo, do contrário, ao incluir tal exigência, há uma extrapolação do sentido da lei, aplicável, aqui, a máxima Ubi lex non distinguir nec nos distinguere debemus. Vê que ato voluntário quer dizer livre, sem pressão ou qualquer coerção, não se constituindo, necessariamente, em ato fisicamente perpetrado por quem praticou a infração.

Portanto, e por não haver qualquer disposição expressa a exigir pessoalidade, conclui-se: o que se impõe é que voluntariamente seja alcançada a reparação ou restituição da coisa. Ou seja, quer por ato pessoal ou por ato de um terceiro, o infrator, para auferir a benesse, deve efetuar ou concordar livremente com o ressarcimento ou devolução. Aqui, ressalta-se, esta atendida a voluntariedade, pois o agente foi livre na efetuação (por suas próprias mãos) ou confirmação de um ato que se operou pela sua vontade (dispensada a originalidade da ideia).

Dessa forma, sempre que o agente, pessoalmente ou por terceiro, efetuar ou concordar com a reparaçãodevolução, deve ser reconhecido o benefício. Não interessa se quem o fez foi o agente pessoalmente ou outrem, havendo volição necessária em se reparar ou devolver, e preenchidos os outros requisitos, a norma restará obedecida, constituindo direito subjetivo do agente a diminuição da sanção. Aliás, refuta a lógica não se admitir a reparação efetuada por terceiro visto que a Exposição de Motivos da Parte Geral do CP é clara e objetiva (item 15), delimitando a ratio do instituto, o que mais uma vez pugna-se: foi instituído menos em favor do agente do que da vítima.

 Corroborando esse entendimento é a ilação trazida à baila: se o arrependimento posterior deverá ser reconhecido quando a vítima satisfizer-se com o quantum oferecido – ainda que a reparação não se tenha integralizado – com maior razão deve ser deferida a causa de diminuição no caso de a devolução ou ressarcimento ter-se operado integralmente por quem ressente o ofensor, visto que o ofendido beneficiar-se-á inexoravelmente (e isso é o que preceitua a norma).

Ora, com a ação de um terceiro em nenhum momento encontrar-se-á afastado qualquer requisito do art. 16 – a voluntariedade é atendida no momento em que o agente, voluntariamente (sem pressão, coerção) firma uma devolução ou ressarcimento operado por outrem. O que poderia obstar, na hipótese, o reconhecimento da causa de diminuição da pena seria a ausência de vontade do autor do delito, ou melhor, a vontade expressa em não ver ressarcido o dano ou devolvida a coisa.

Imagina a seguinte hipótese: um pai (com o consentimento do autor da infração) devolve a coisa furtada e ressarce completamente os prejuízos causados pelo seu filho antes do recebimento da denúncia; um infrator apenas devolve a res furtiva, entretanto essa já se encontra completamente sem valor tendo em vista a deterioração operada pelo agente, mas, mesmo assim, o ofendido se diz por satisfeito seja por benevolência ou pelo mero valor sentimental do objeto.  Seguindo o entendimento de autores alhures, in casu, apenas aquele que devolveu a coisa absolutamente desvalorizada (desde que satisfeita a vítima) terá a causa de diminuição reconhecida, e o delinquente, que por sua vontade anuiu na devolução e reparação efetuada pelo terceiro (seu pai) em nada se beneficiará.

Portanto, é contraditório aceitar, no caso de a reparação ter sido efetuada pelo pai, cônjuge ou irmão (ainda que estes não atuem em nome do agente ou mesmo que não haja um instrumento de mandato), que a voluntariedade não estará atendida, nesse toar arrebata Paulo Queiroz (2008, p.241):

“A doutrina considera que só a reparação feita pelo próprio agente, e não por terceiro (v. g. parente), pode ensejar a redução legal da pena. No entanto, se, como diz a Exposição de Motivos do Código, tal providência de Política Criminal é instituída menos em favor do agente do que da vítima (item 15), não faz muito sentido recusar idêntico tratamento, quando um terceiro, intervindo em favor do agente, restitua a coisa ou repare integralmente o dano.”

Pelo exposto, é evidente que a reparação ou devolução efetuada por um terceiro garante, desde que preenchidos os demais requisitos do art.16 do CP (crimes cometidos sem violência ou grave ameaça, ressarcimento/devolução até o recebimento da denúncia ou queixa), ao sujeito ativo do crime a redução da pena de um a dois terços.

Quanto ao assunto, a jurisprudência não é uníssona, entretanto o que mais se verifica, diante das razões expostas pelos tribunais e magistrados, é que estes órgãos atribuem ao termo “voluntariedade” sentido idêntico ao de pessoalidade – consequentemente não é admitido o arrependimento posterior quando o binômio reparaçãodevolução é perpetrado por terceiro.

“(…) Arrependimento Posterior – Descaracterização – Restituição do bem que se deu por terceira pessoa, independentemente da vontade do réu. (…) Não está caracterizado o arrependimento posterior se a restituição do bem se deu por terceira pessoa, independentemente da vontade do réu". (STJ – RT 792/601)

"O arrependimento posterior não se caracteriza quando o ressarcimento à vítima é feito por terceiro, já que neste caso não resulta de ato voluntário do próprio agente" (TACRSP – RJDTACRIM 25/59).

"Em se tratando de crime de furto, é impossível falar-se em arrependimento posterior se quem repara o dano não é o agente, mas sua irmã". (TACRSP – RJDTACRIM 24-69)

 Partindo do pressuposto que a voluntariedade instituída na norma, necessariamente, manifesta-se via ato personalíssimo do autor da infração, alguns órgãos investidos de jurisdição, com a devida vênia, confundem os conceitos. Não enxergam que a norma está a exigir apenas a voluntariedade na reparaçãodevolução, ou seja, livre manifestação volitiva que se perfaz seja por ato pessoal ou por ato de outrem. Sendo assim, é ato voluntário do agente corroborar uma reparação efetuada por outrem em seu benefício, consequentemente, a disposição normativa é atendida e a causa de diminuição de pena deve ser assegurada. Nesse diapasão é o pronunciamento do extinto TACrim. – SP:

“Ressarcimento do prejuízo que foi feito pelo genitor do agente – Irrelevância – Exigência de ato voluntário do agente, mas não pessoal do mesmo.

A causa obrigatória de redução de pena prevista pelo art. 16, com a redação da Lei nº. 7.209/84, exige ato voluntário do agente, mas não ato pessoal do agente, de modo a caracterizar arrependimento posterior a reparação do dano efetuado por quem o ressente”.

Conclui-se, então, ser desnecessária a exigência que propõe boa parte da doutrina e jurisprudência, pois o que se está a fazer é uma restrição onde a lei, em momento algum, impõe.

O Direito Penal, em uma visão mais liberal, deve suscitar, sempre, interpretações mais benéficas, pois antes mesmo de constituir-se uma manifestação social autorizativa de repressão e prevenção, reputa-se uma garantia inerente ao Estado de Direito e que tem como função resguardar o cidadão das arbitrariedades do Estado.

1.7 Considerações finais

O presente artigo, longe de buscar esgotar o tema, objetivou esclarecer o instituto Arrependimento posterior, diferenciando-o de conceitos afins, bem como pugnou que voluntariedade instituída no art. 16 do CP não se erige como sinônimo de pessoalidade muito menos configurando exigência insuperável para concessão da causa geral de diminuição da pena.

O aludido instituto, como foi demonstrado, está inserido no rol de causas de diminuição de pena, tendo sido instituído na parte geral do CP sob fundamento eminentemente político.

Como foi exposto, para se auferir o benefício faz-se necessária a constituição de determinados requisitos mencionados no texto legal: crime cometido sem violência ou greve ameaça, reparação do dano até o recebimento da denúncia ou queixa e voluntariedade do ato de reparação/restituição. Nessa esteira, várias questões controvertidas foram apresentadas, dando-se maior relevo a que diz respeito à exigência da pessoalidade na reparação do dano ou restituição da coisa para concessão da benesse.

Conforme foi advertido, não se pode confundir voluntariedade, espontaneidade e pessoalidade, pois o cotejo inadequado de tais expressões pode levar à incongruências jurídicas, cerceando direitos constituídos gradativamente em consonâncias com as tendências de Política criminal.

Ao final, depois de compreendido o Arrependimento posterior, dignou-se a expor a convicção de que a pessoalidade na devolução da coisa ou reparação do dano não é requisito erigido pela norma, o que se fez em consonância com a Exposição de Motivos do Código Penal por entender mais benéfico aos sujeitos envolvidos que se eleve a figura da vítima em detrimento do agente do ilícito.

Refuta-se, com a admissão da inexigência da pessoalidade, qualquer manifestação de um Direito Penal repressor, sancionador – que tanto clamam os ofendidos como a sociedade em que eles se inserem -, exaltando um ramo jurídico em que, uma vez violado o preceito normativo, o que se sobressai é a necessidade e conveniência de se restituir o status quo anterior à prática da infração, logicamente, quando isso for possível.

 

Referências
BARROS, Francisco Dirceu. Direito penal; parte geral. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2008.
BRAMBILLA, Leandro Vilela Portal LFG, Perguntas e Respostas, Direito Criminal, Em que consiste o princípio do Favor Rei? 2004.
GARCIA, Waléria Garcelan Loma. Arrependimento posterior. Belo Horizonte: Del Rey, 1997.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Rio de Janeiro: Impetus, 2008.
JESUS, Damásio E. Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2003.
NUCCI, Guilherme de Sousa. Código penal comentado. São Paulo: Revista dos tribunais, 2009.
PRADO, Luiz Régis. Curso de direito penal brasileiro; parte geral. São Paulo: Revista dos tribunais, 2002.
QUEIROZ, Paulo. Direito Penal; parte geral. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.
ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.


Informações Sobre o Autor

Carlos Rene Magalhães Mascarenhas

Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Piauí. Especialista em Direito Público pela Faculdade Damásio. Exerceu os cargos de Analista Judiciário e Oficial de Justiça. Assessor Jurídico Legislativo e Advogado


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