Resumo: O Código Penal de 1940 foi o primeiro a prever um título que dispõe sobre os crimes contra a organização do trabalho. Os códigos anteriores não eram alheios ao tema trabalhista, mas as previsões diziam respeito apenas dos crimes contra a liberdade de trabalho, tratando da greve e das relações privadas no âmbito laboral. A inovação legislativa do Código de 1940 foi de acordo com os acontecimentos sociais da época e conforme o pensamento pós-liberalismo econômico, trazendo interesses coletivos relacionados às relações trabalhistas e que mereciam atenção do Direito Penal. O estudo de cada um dos delitos previstos Título IV do Código Penal abordou também o interesse maior do Estado em relação a cada tipo penal, passando por questões sociais, doutrinárias e jurisprudenciais relevantes ao tema. Tal compreensão deu-se a partir do estudo histórico-legislativo, que mostrou a evolução das leis penais e das constituições paralelamente, considerando fatores sociais e econômicos importantes para as alterações legislativas ocorridas.
Palavras-chave: Crime. Trabalho. Histórico-legislativo. Direitos sociais. Organização do trabalho.
Abstract: The Criminal Code of 1940 was the first to provide a title that deals with crimes against labour organization. The previous codes were not unrelated to the labour issue, but the predictions concerned only crimes against freedom of work, dealing with the strike and private relations in the labour sphere. The legislative innovation of the 1940’s Code was in accordance with the social events of the poriod and according to the post-liberal economic thought, bringing collective interests related to labour relations and that deserved the attention of the Criminal Law. The study of each of the crimes provided in Title IV of the Criminal Code also considered the State's greater interest in relation to each criminal type, including social, doctrinal and jurisprudential issues relevant to the subject. This understanding came from the historical-legislative study, which showed the evolution of criminal laws and constitutions in parallel, considering important social and economic factors for legislative changes.
Key-words: Crimes. Labour. Historical-legislative. Social rights. Labour organization.
Sumário: Introdução. 1. Evolução-histórico legislativa dos crimes contra a organização do trabalho. 2. Crimes contra a organização do trabalho. 2.1. Formas especiais de constrangimento ilegal. 2.2. Crimes que tratam da realização de greve e lockout ilícitos. 2.3. Sabotagem e a invasão de estabelecimentos empresariais. 2.4. Frustração de direitos trabalhistas e de lei sobre a nacionalização do trabalho. 2.5. Aquele que exerce atividade estando impedido de fazê-lo por decisão administrativa. 2.6. Aliciamento de trabalhadores. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
A compreensão dos crimes contra a organização do trabalho passa por diversos ramos do direito, desde constitucionais até os mais específicos, sempre considerando fatores históricos, que nos dão mais clareza de quais caminhos o legislador construiu até chegarmos nos tipos penais que temos hoje.
Inicialmente foi feito um estudo histórico-legislativo de modo a analisar a evolução legal em torno do tema. O surgimento das relações trabalhistas, o sistema de produção capitalista e questões sociais relevantes também tiveram seu reflexo na legislação pátria, de forma que o direito penal precisou ter previsões que dizem respeito às relações trabalhistas de forma mais ampla, abrangendo a organização do trabalho como um todo e não apenas liberdades laborais. A busca da tutela penal, nos crimes contra a organização do trabalho, foi além de relações privadas ou liberdades individuais para comtemplar interesses sociais, econômicos e nacionais, além de preservar a moralidade nas relações laborais, sendo o Código Penal de 1940 verdadeiro alterador do pensamento social na época de sua publicação, pois foi o primeiro a prever um título que dispõe sobre os crimes contra a organização do trabalho. Os códigos anteriores não eram alheios ao tema trabalhista, mas as previsões diziam respeito apenas dos crimes contra a liberdade de trabalho, tratando da greve e das liberdades laborais.
Especificamente sobre os crimes contra a organização do trabalho, a análise foi feita partindo de questões mais relevantes e polêmicas de cada um dos tipos penais previstos nos artigos 197 a 207. Desta feita, o estudo buscou esclarecer pontos que a doutrina e jurisprudência tendem a divergir, a fim de elucidar essas questões consoante fatores sociais, históricos e trabalhistas. Em alguns casos, porém, em que não havia correntes doutrinárias e jurisprudenciais distintas, a intenção maior foi explicitar o bem jurídico protegido e o interesse maior do Estado em tutelar o tipo penal.
1. EVOLUÇÃO HISTÓRICO-LEGISLATIVA DOS CRIMES CONTRA A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO
Os crimes relacionados ao trabalho tiveram a primeira aparição com o Código Criminal do Império, em 1830, que previu, o crime de reduzir pessoa livre à escravidão, em seu artigo 179[1], na Parte Terceira – Dos crimes particulares, Título I – Dos crimes contra a liberdade individual. Antes, contudo, as previsões relacionadas ao trabalho escravo diziam respeito aos delitos cometidos por escravos, como pode ser visto no Código de Dom Sebastião, IV Parte, Título V, e nas Ordenações Filipinas, Livro V, Título XLI. Os crimes contra a organização do trabalho não existiam.
O artigo 179 do Código do Império é condizente com o momento histórico, pois a prática da escravidão ainda não era proibida, ilegal ou criminosa. Ademais, tal dispositivo estava diretamente relacionado à proibição do tráfico de escravos, isso porque o bem jurídico protegido era pessoa livre ou em posse de sua liberdade, mas não dizia respeito a quem já era escravo[2]. Vicente Alves de Paula Pessoa, em seu código do império anotado observa que:
“Por portaria de 21 de maio de 1831 mandou-se processar os que introduzissem por contrabando no Brazil africanos, e punir os usurpadores de sua liberdade com as penas deste artigo.
O art. 20 da Lei de 7 de novembro de 1831, diz: os importadores de escravos no Brazil incorrem na pena corporal deste artigo do Código e na multa de 200$000, por cabeça de cada um dos escravos importados, além de pagarem as despezas da reexportação para qualquer porto da África. (…) A Lei de 4 de setembro de 1850, preceitua ao art. 4º que continuam os criminosos de importação de africanos sujeitos a estas penas.
As embarcações apprehendidas e todos os barcos empregados no desembarque, occultação ou extravio de escravos, serão vendidos com toda a carga encontrada a bordo, e o seu producto pertencerá aos apresadores, deduzindo-se um quarto, para o denunciante, se houver. (…) Tratamos desta espécie, como curiosidade histórica, e não na suposição de que jamais haja necessidade de punir tal crime neste paiz; pela impossibilidade de commette-lo, mesmo pela oposição e repugnância geral relativamente a elle.” (PESSOA, Vicente Alves de Paula, 1877, p. 293-295)”
No que tange às regulamentações propriamente trabalhistas, especialmente após a abolição da escravatura, em 1888, elas tiveram maior relevância e deram ensejo à produção de mais leis para proteger as relações de trabalho. Trata-se de uma época que além de o País contar com trabalhadores livres, a variação das atividades aumentou especialmente após a Revolução Industrial.
A Constituição da República de 1891 em seu artigo 34, nº 28, modificado pela Emenda Constitucional de 1926, atribuiu a competência privativa do Congresso Nacional para a legislatura sobre o trabalho. Os sindicatos rurais e urbanos foram regulamentados em 1903 e 1907, respectivamente, e o Decreto nº 1.313, de 1891, regulamentou o trabalho dos menores de 15 anos nas fábricas da capital federal. A partir de 1930, o direito do trabalho teve maior expansão legislativa: foi criado o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio; a Carteira Profissional e diversas leis nacionais regulamentando as relações trabalhistas[3]. Em 1º de maio de 1943, as leis trabalhistas foram consolidadas, através do Decreto-Lei nº 5.452.
No âmbito criminal, o Código Penal Republicano de 1890, não mais considerou a redução de pessoa livre ou em posse de sua liberdade à escravidão como crime, mas teve inserido o capítulo Dos Crimes Contra a Liberdade de Trabalho, nos artigos 204 a 206[4]. Tais delitos, evitavam especialmente a realização de greves ou interrupção das fábricas, que, segundo Amauri Mascaro Nascimento, a partir de 1890 as greves foram ficando mais intensas anualmente, com seu ápice na greve de 12 de junho de 1917, que contou com vinte mil grevistas e a luz, os bondes, o comércio e as indústrias de São Paulo ficaram paralisados[5].
A Constituição de 1934 instituiu a Justiça do Trabalho no artigo 122. Porém, os Tribunais do Trabalho e das Comissões de Conciliação não eram regidos da mesma forma que a Justiça Comum, tinham seus membros eleitos, metade pelas associações representativas dos empregados e metade pelas dos empregadores, sendo o presidente de livre nomeação do Governo. Também garantiu direitos mínimos aos trabalhadores no artigo 121, tais como o salário mínimo, as férias anuais remuneradas, descanso semanal, jornada diária máxima de oito horas, proibição de diferença salarial no exercício de um mesmo trabalho, em razão de sexo, idade, nacionalidade ou estado civil; proibição de trabalho a menores de 14 anos, de trabalho noturno a menores de 16 e, em indústrias insalubres, a proibição aos menores de 18 anos e às mulheres, além da indenização por dispensa sem justa causa.
A Consolidação das Leis Penais de Vicente Piragibe de 1932, manteve o capítulo Dos Crimes Contra a Liberdade de Trabalho, do Código Penal Republicano, permanecendo apenas o artigo 204, com a inserção de dois parágrafos que remetiam ao disposto nos antigos artigos 205 e 206[6], tratava de previsão que protegia a liberdade de iniciativa e de trabalho, condizente com as ideias liberais da época.
A Constituição de 1937, também previu a Justiça Trabalhista, mas dispôs de forma distinta, prescrevendo que para dirimir os conflitos oriundos das relações entre empregadores e empregados, reguladas na legislação social, é instituída a Justiça do Trabalho, que será regulada em lei e à qual não se aplicam as disposições da Constituição relativas à competência, ao recrutamento e às prerrogativas da Justiça Comum. A greve e o lock-out são declarados recursos antissociais nocivos ao trabalho e ao capital e incompatíveis com os superiores interesses da produção nacional[7], reflexo do autoritarismo do Estado Novo. Manteve os direitos mínimos dos trabalhadores, previstos na Constituição de 1934 e incluiu o adicional noturno, no artigo 137.
O Projeto do Código Criminal de Alcântara Machado, após intensas modificações pela comissão revisora, é aquele que passaria a ser o Código Penal de 1940. Todavia, as discussões que antecedem a publicação do Código de 1940 são relevantes ao tema. Alcântara Machado, ao discorrer sobre seu projeto e a condução da reforma penal como um todo, afirmou que:
“Durante os sessenta anos de sua vigência a nossa primeira codificação de leis sofreu, como era natural, várias amputações e acréscimos numerosos. Chegando o último quartel do século XIX, tamanho era o número de leis extravagantes, que Joaquim Nabuco resolveu se apresentar à Camara dos Deputados, em 4 de outubro de 1888, este projeto constante de um só dispositivo: ‘Fica autorizado o Ministro da Justiça a mandar fazer uma edição oficial das leis penais do Império, de acordo com a lei de 13 de maio de 1888, e intercalando as disposições esparsas’. Julgada objeto de deliberação, foi a proposição mandada, na sessão de 8 outubro, às comissões de constituição e legislação e da fazenda, que não lhe deram andamento.” (MACHADO, Alcântara, 1941, p. 5-6)
É de se observar que tal discussão aconteceu antes da publicação do Código Republicano, porém com as críticas a ele, houveram outras três propostas de reforma e o projeto foi realmente colocado em prática em 1934, após a Revolução de 1930[8]. Tal preocupação em adaptar tanto as leis trabalhistas, quanto as penais, ao momento posterior à abolição da escravatura de 13 de maio de 1888 é significativa e compreensível. As estruturas de trabalho foram alteradas, as formas de produção ficaram mais diversificadas e novas relações sociais e antissociais se formaram.
O Código Penal de 1940 previu, já com a prática da escravidão abolida e as leis trabalhistas prestes a serem consolidadas, o crime da redução de qualquer pessoa à condição análoga à de escravo, em seu artigo 149, no Capítulo VI – Dos crimes contra a liberdade individual, Seção I – Dos crimes contra a liberdade pessoal; e os crimes contra a organização do trabalho receberam o Título IV, contando com onze artigos, do 197 ao 207.
Cumpre esclarecer que o crime de redução à condição análoga à de escravo, tipificado no Código de 1940, se manteve no Código de 1969 e perdura até hoje com o Código de 1940 alterado, especialmente pelas Leis 10.803/2003 e 13.344/2016, que dispõe sobre prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas.
Os crimes contra a organização do trabalho tiveram poucas alterações desde o Código de 1940, algumas penas foram aumentadas, no caso do crime de frustração de direito trabalhista e aliciamento para o fim de emigração, bem como foram estabelecidas majorantes em delitos específicos. As leis que alteraram este título do código são a Lei nº 8.683/93 e a Lei nº 9.777/98.
Do ponto de vista constitucional, algumas constituições sucederam a de 1937, tivemos a de 1946, a de 1967 e a atual Constituição de 1988.
A Constituição de 1946 estabeleceu, em seu artigo 94, inciso V, que o Poder Judiciário é também exercido pelos Juízes e Tribunais do Trabalho, não sendo mais diferenciada da Justiça Comum, como ocorreu em 1934 e 1937. Assim, faz parte da justiça trabalhista o Tribunal Superior do Trabalho, os Tribunais Regionais do Trabalho e as Juntas ou Juízes de Conciliação e Julgamento, sendo que em locais em que não houvesse a Junta de Conciliação e Julgamento, os Juízes de Direito cumpririam tal função.
No título que dispõe sobre a ordem econômica e social, o artigo 157 dispôs os direitos trabalhistas mínimos. Foi reconhecido o direito de greve e a associação profissional e sindical, em ambos os casos, pendente de regulamentação legal.
A Constituição de 1967, autoritária, tinha muita relação com a Constituição de 1937. Manteve a Justiça Trabalhista e os Juízes do Trabalho[9]. Aumentou o rol dos direitos trabalhistas mínimos, no artigo 158, e estabeleceu a valorização do trabalho como condição da dignidade humana e como princípio da ordem econômica[10].
Finalmente, a Constituição de 1988, ampliou muito o rol dos direitos sociais, que agora contam com trinta e quatro incisos, sendo que antes eram dezessete. Também, os direitos sociais não mais estão vinculados à ordem social e econômica, apesar de delas fazer parte, tendo capitulação própria.
2. DOS CRIMES CONTRA A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO
A atual Constituição tem como um de seus fundamentos o valor social do trabalho e da livre iniciativa. Nela, a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, assim como a ordem social tem por base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais[11].
No item 67 da Exposição de Motivos da Parte Especial, Francisco Campos, ao discorrer a respeito do novo título inserido no Código Penal, justifica a saída de tais delitos dos crimes contra a liberdade individual para um título próprio, afirma que:
“A proteção jurídica já não é concedida à liberdade do trabalho, propriamente, mas à organização do trabalho, inspirada não somente da defesa e no ajustamento dos direitos e interesses individuais em jogo, mas também, e principalmente, no sentido superior do bem comum de todos. Atentatória, ou não, da liberdade individual, toda ação perturbadora da ordem jurídica, no que concerne ao trabalho, é ilícita e está sujeita a sanções repressivas, sejam de direito administrativo, sejam de direito penal. Daí o novo critério adotado pelo projeto, isto é, a trasladação dos crimes contra o trabalho, do setor dos crimes contra a liberdade individual, para uma classe autônoma.” (CAMPOS, Francisco, 1940, p. 145)
Na época chegou-se a afirmar que o entendimento de Francisco Campos era de índole fascista, porque abandona a concepção liberal da liberdade de trabalho como bem jurídico individual. Heleno Cláudio Fragoso afirma que o direito penal moderno se orienta no da força laborativa como bem individual, a ser tutelada em sua liberdade, afirma ele que “é bem duvidosa a extensão em que a lei penal deve assumir a tutela desse bem jurídico, tendo em vista as normas gerais que incriminam os atentados à liberdade individual” [12].
Tal concepção não é sem fundamento, com o liberalismo econômico, do Código Penal Republicano de 1890 até a Consolidação das Leis Penais de Vicente Piragibe de 1932, o que se protegia era a liberdade de trabalho, considerada individualmente. Os crimes contra a liberdade de trabalho, ficavam inseridos no título dos crimes contra o livre gozo e exercício dos direitos individuais.
Inclusive, é de se observar que o direito do trabalho teve origem no direito civil. Em 1521, as Ordenações Manuelinas, previam a locação de serviços no âmbito residencial e a possibilidade de o empregador ingressar com ação em face de seu empregado, no Título XXII – Livro IV, que dispunha a respeito do direito civil e do comércio, ao prever a hipótese do amo que demanda do mancebo. O mesmo aconteceu nas Ordenações Filipinas também no livro que dispunha das relações civis, Livro IV, Títulos XXXIV e XXXV.
Assim, os contratos de trabalho que eram tratados individual e livremente pelas partes, cujas garantias se limitavam à liberdade de ofício, passaram por maior intervenção do Estado com o positivismo e progressivamente as constituições foram garantindo direitos mínimos aos trabalhadores. Sendo a ordem econômica e social de interesse do Estado, o direito do trabalho e a organização do trabalho também deveriam ser, ampliando o conceito de relações individuais.
Nesse sentido o Código Penal de 1940 foi importante alterador da sociedade à época ao priorizar os interesses sociais e estabelecer uma nova cultura em relação às leis trabalhistas e seu cumprimento efetivo. Isso porque devem ser protegidos bens jurídicos que são valiosos para o contexto social e sua ocorrência abala a estrutura da sociedade como um todo, em especial um Estado de Direito, e não apenas as liberdades individuais. Os preceitos da Constituição de 1988, acabaram por trazer com mais força a necessidade de o Estado regular as relações de trabalho e observar o devido cumprimento legal, não se tratando de um contrato civil apenas, pois a violação da organização do trabalho gera grave dano social em todos os aspectos, culturais, sociais, econômicos e educacionais, devendo ser protegida pelo Código Penal em título próprio.
O movimento positivista também pode ser percebido em relação aos direitos trabalhistas, com a publicação da Consolidação das Leis Trabalhistas, em 1943, consagrando que esses direitos vão além de um contrato civil. Ao dispor a respeito da saúde e segurança do trabalho, por exemplo, a Consolidação das Leis Trabalhistas tem como preocupação principal a saúde pública em si e não as relações individuais.
O atual Título IV do Código Penal conta com onze artigos, do 197 ao 207[13], que tutelam tanto relações individuais de trabalho quanto coletivas, são eles: atentado contra a liberdade de trabalho, atentado contra a liberdade de contrato de trabalho e boicotagem violenta, atentado contra a liberdade de associação, paralisação de trabalho, seguida de violência ou perturbação da ordem; paralisação de trabalho de interesse coletivo, invasão de estabelecimento industrial, comercial ou agrícola; frustração de direito assegurado por lei trabalhista, frustração de lei sobre a nacionalização do trabalho, exercício de atividade com infração de decisão administrativa, aliciamento para o fim de emigração, aliciamento de trabalhadores de um local para outro do território nacional.
Tais artigos, todavia, como observado por André Estefam, poderiam ter sido divididos em capítulos. Isso porque os artigos 197 a 199 são modalidades especiais de constrangimento ilegal. Os crimes previstos nos artigos 200 e 201 tratam da realização de greve e lockout ilícitos. O artigo 202 traz figuras que tipificam a sabotagem e a invasão de estabelecimentos empresariais, com o intuito de impedir o exercício da atividade desenvolvida pela vítima. Já, os artigos 203 e 204 tratam da frustação de direitos trabalhistas e de lei sobre a nacionalização do trabalho. O artigo 205 refere-se àquele que exerce atividade estando impedido de fazê-lo por decisão administrativa. Finalmente, os artigos 206 e 207 definem o aliciamento de trabalhadores[14]. A capitulação proposta determina com mais clareza o que o título pretende proteger, conforme a situação.
Cumpre esclarecer que os artigos dispostos no Capítulo dos Crimes Contra a Organização do Trabalho protegem os direitos individuais e coletivos dos trabalhadores. Assim, em que pese o artigo 109, inciso VI, da Constituição Federal, prever que compete aos juízes federais o julgamento dos crimes contra a organização do trabalho, sem estabelecer qualquer distinção, a jurisprudência ainda hoje utiliza a Súmula 115[15] do extinto Tribunal Federal de Recursos para determinar a competência material de julgamento de tais delitos.
2.1. Formas especiais de constrangimento ilegal
Nos crimes dos artigos 197 a 199 há três formas especiais de constrangimento ilegal, que são materialmente cumulativas com a pena corresponde à violência.
No artigo 197 o constrangimento está relacionado à liberdade de trabalho, tanto do trabalhador, quanto do produtor, comerciante ou industrial. O mesmo acontece em relação àquele que é constrangido a abrir ou a fechar seu estabelecimento ou a participar de greve ou paralisação econômica, sempre mediante violência ou grave ameaça. O valor protegido, nesse caso, é a liberdade individual e, de forma secundária, a organização do trabalho.
Já o artigo 198 pune aqueles que constrangem, mediante violência ou grave ameaça, as pessoas a contratarem no âmbito laboral e aqueles que constrangem violentamente outros a não realizarem sua atividade econômico-produtiva. No caso do constrangimento para celebrar o contrato de trabalho, a hipótese inversa, obrigar a pessoa a encerrar o contrato de trabalho, mediante violência ou grave ameaça, constitui crime apenas de constrangimento ilegal ou aquele previsto no artigo 197, I. Na segunda hipótese, que trata da boicotagem violenta, o crime está em constranger alguém a não fornecer ou não adquirir de outrem matéria-prima ou produto industrial ou agrícola. Nesse caso, os sujeitos passivos são dois, quem sofre a coação e quem sofre a boicotagem. O bem jurídico protegido deste tipo penal também é a liberdade individual de contratar na esfera das relações laborais e de produção e, secundariamente, a organização do trabalho.
O artigo 199 pune quem constrange alguém a participar ou deixar de participar de determinado sindicato ou associação profissional, liberdade garantida pelo texto constitucional, em seu artigo 8º, inciso V. Assim, a tutela jurídica protege a liberdade de associação a entidade de classe ou sindical, mas também de forma secundária, a organização do trabalho.
2.2. Crimes que tratam da realização de greve e lockout ilícitos
Os crimes dos artigos 200 e 201, que tratam da greve ilegal ou lockout, protegem juridicamente a organização do trabalho como um todo e, remotamente, a liberdade de trabalho. Todavia, há controvérsia na doutrina sobre esse entendimento. Há quem entenda que estes delitos protejam juridicamente a liberdade de trabalho e não a organização do trabalho.
Julio Fabbrini Mirabete e Damásio de Jesus entendem que o bem jurídico protegido é a liberdade de trabalho. Para os doutrinadores, “o crime é praticado, em regra, por pessoas que tencionam manter a paralisação do trabalho, para tanto lançando mão de meios violentos, com graves prejuízos para a segurança do corpo social. Mas o que tem em mira o legislador, imediatamente, não é esta tranquilidade (que, na verdade, é o objeto jurídico de qualquer delito), mas sim a liberdade de trabalho.” (JESUS, Damásio. 1999, p. 35), “O dispositivo em estudo, visa, ainda proteger a liberdade de trabalho.” (MIRABETE, Julio Fabbrini. 2006. p. 376)
Dentre os que entendem que o bem jurídico protegido é a organização do trabalho, posição que também adotamos, estão Cezar Roberto Bitencourt e André Estefam, afirmam eles que “O bem jurídico protegido, a exemplo do artigo anterior, não é a liberdade de trabalho. Greve e lockout não são exercício do direito de trabalhar, mas sua negação, ou seja, é seu não exercício; greve é o não-trabalho. O bem jurídico são a regularidade e moralidade das relações trabalhistas, especialmente aquelas relacionadas a obras públicas ou serviços de interesse coletivo; são a correção e a moralidade que devem orientar os contratos de trabalho, o que vênia concessa, não se confundem com liberdade de trabalho.” (BITENCOURT, Cezar Roberto. 2011, p. 421), “[valor protegido] Cuida-se da organização do trabalho e, mediatamente, do patrimônio e da integridade física das pessoas.” (ESTEFAM, André. 2017, p. 638)
Partindo dessa concepção, no caso do artigo 200, que trata da greve ilegal, o bem jurídico protegido secundariamente é a integridade das pessoas ou da coisa a que se pratica a violência com o fim de suspender ou abandonar o trabalho coletivamente. É indispensável que os empregados hajam em concurso, com o mínimo de três pessoas, para que o abandono seja coletivo. Especificamente em relação aos empregadores, no caso do lockout ou suspensão violenta, não é preciso o concurso de três empregadores, pois o parágrafo único apenas trata dos empregados. A violência, ademais, deve ser utilizada durante a suspenção ou paralisação do trabalho, pois se utilizada anteriormente, para obter a paralisação, o tipo legal é aquele previsto no artigo 197, inciso II. Assim, para que o delito seja praticado é necessário cometer ato violento durante a paralisação ou suspensão do trabalho, pois a participação não violenta de tais atos não enseja em qualquer ilícito[16], ressalvado o previsto no artigo 201.
O artigo 201 trata da paralisação de trabalho de interesse coletivo. Embora a greve seja um direito assegurado pela Constituição, no artigo 9º, ressalva foi feita em seu parágrafo primeiro, ao dispor que, a lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade. Ainda, prevê que os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei. Assim, nos casos em que a lei dispõe a respeito dos serviços e atividades essenciais[17], havendo greve com abuso ela será punida criminalmente. Nesse caso pune-se a greve pacífica ilegal, pois a punição provém do abuso da paralisação total de serviços essenciais às necessidades da população em geral.
Quanto a este dispositivo, há quem entenda que a punição deva ser apenas administrativa, não necessitando da proteção penal, pois pune-se a greve pacífica e sem violência, apenas em razão da atividade exercida. Heleno Cláudio Fragoso argumenta que:
“A incriminação da greve pacífica é totalmente injustificável.
As hipóteses de violência são as únicas que justificam a incriminação e, mesmo assim, a tendência atual é no sentido de circunscrever o círculo dos responsáveis, evitando-se que a representação possa atingir a massa dos grevistas, em relação à qual as medidas punitivas são odiosas (Pedrazzi, Lo Sciopero nella Legge Penale, Riv. It. Dir. Proc. Penale, 1963, 1066)”. (FRAGOSO, Heleno Claúdio. 1995. p. 396)
A validade ou não deste dispositivo pela interpretação da atual Constituição Federal, em conjunto com a lei de greve, Lei nº 7.783/89, ainda é objeto de discussão na doutrina, não havendo entendimento pacífico.
Em acórdão[18] recente da 5ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais do Rio Grande do Sul, ao julgar o Sindicato dos Trabalhadores em Empresa de Transporte Metroviários e Conexas do RS – SINDIMETRÔ, por ocasião da paralisação dos metroviários em 21 de maio de 2012, o Juiz Federal Andrei Pitten Velloso teceu considerações a respeito do delito e concluiu que o artigo 201 não foi revogado pela lei de greve, punindo o abuso ao direito de greve nos casos em que tratar de serviços essenciais à sociedade, afirma o magistrado que:
“Se, de um lado, a doutrina é convergente à atipicidade da greve pacífica, ainda quando praticada pela categoria prestadora de serviços tidos como essenciais, o art. 11 da Lei n.º 7.783/1989 estatui uma obrigação legal, vinculante aos empregadores e trabalhadores, de não-interrupção (leia-se: vedação à paralisação total) dos serviços essenciais, de cuja prestação dependa a satisfação das necessidades inadiáveis da comunidade.
Lado outro, o art. 15 da Lei de Greve, verdadeira cláusula assecuratória da disciplina grevista, impinge ao Ministério Público o poder-dever de promover a repressão dos ilícitos penais porventura cometidos no contexto da interrupção dolosa de serviço de interesse coletivo, hipótese em que, a depender do caso concreto, restaria descaracterizado o regular exercício de um direito constitucional.
Nessa linha de pensamento, ressoa contrário à lógica sistemática do ordenamento jurídico e à superveniência cronológica da Lei de Greve em relação ao Código Penal, cogitar de que a sanção do art. 15 da primeira deixe de encontrar resguardo no art. 201 do segundo. Valho-me, a título de complemento argumentativo, da observação colhida das contrarrazões da própria defesa (EVENTO 94, CONTRAZ1, fl. 11): o fato de a Lei nº 7.783/1989 não albergar, em seu corpo normativo, tipo penal algum reforça o entendimento de que a remissão feita ao final do art. 15 (‘segundo a legislação trabalhista, civil ou penal’) só poderia mesmo dizer respeito ao Código Penal. (…)
Volto a repetir: não se trata de criminalizar o direito social de greve, mas sim de emprestar eficácia à própria lei, mormente o art. 15 da Lei n.º 7.783/1989, que estabelece balizas ao seu exercício e confere concretude ao mandamento constitucional de punição dos abusos porventura cometidos (art. 9º, § 2º, CRFB/88).
Sob esse ponto de vista, ressoa inequívoco que os contornos do tipo inscrito no art. 201, CP – sobre promoverem a tutela penal do art. 9º, § 1º, CRFB/88 – tornam-se perfeitamente nítidos, iluminados pelos arts. 8º e 14 da Lei de Greve, quando é a própria Justiça do Trabalho que decreta a ilicitude da paralisação total dos serviços essenciais”. (APELAÇÃO CRIMINAL Nº 5021799-61.2012.404.7108/RS, 5ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais do Rio Grande do Sul, Rel. Andrei Pitten Velloso, Julgamento 24.06.2014)
O Supremo Tribunal Federal também decidiu, em recurso extraordinário, que o delito do artigo 201 do Código Penal continua vigente ao evitar a greve abusiva de setores essenciais da sociedade:
“(…) IV. DO DELITO DE PARALISAÇÃO DO TRABALHO DE INTERESSE COLETIVO Consta dos inclusos autos de inquérito policial que os denunciados (…), previamente ajustados e com unidade de desígnios, nos dias 07, 08 e 09 de abril de 2003, nesta cidade e subseção judiciária, participaram de abandono coletivo de trabalho, provocando a total interrupção do serviço de transporte coletivo urbano, serviço público de interesse coletivo e essencial (assim definido pelo art. 10, inciso V, da Lei Federal nº 7.783, de 28 de junho de 1989).
Nos termos do art. 11, caput, do mesmo diploma legal, ‘nos serviços ou atividades essenciais, os sindicatos, os empregadores e os trabalhadores ficam obrigados, de comum acordo, a garantir, durante a greve, a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade’.
Os denunciados, todavia, dolosamente deixaram de atender ao preceito legal ao ordenarem a paralisação total do serviço.
De fato, até a manhã do dia 09 de abril de 2003, a liberdade de locomoção de cerca de 3,5 milhões de usuários do serviço foi cerceada, pois não havia um ônibus sequer trafegando na cidade.
A participação dos denunciados no delito consistiu na organização do movimento paredista e no induzimento e prestação de auxílio material a ‘militantes’ armados, contratados para impedir, a qualquer custo, a circulação de coletivos durante a paralisação do serviço essencial.
Assim agindo, incorreram os denunciados no delito tipificado no art. 201 c.c. o art. 29, ambos do Código Penal brasileiro (…).” (RE/599943 – RECURSO EXTRAORDINÁRIO – SÃO PAULO, Rel. Min. Carmem Lúcia, 1ª Turma, julgamento em 8 de junho de 2010)
Assim, ainda que o direito de greve seja válido para todas as categorias profissionais, aquelas que a lei de greve entende como serviços essenciais à sociedade, não podem ter a paralisação total, de modo a prejudicar outros interesses sociais. A lei penal, em verdade, não incrimina o delito de greve dos serviços essenciais à sociedade, mas seu abuso, caracterizado com a paralisação total do serviço essencial, que prejudica a toda população.
2.3. Sabotagem e a invasão de estabelecimentos empresariais
O artigo 202 traz o delito de sabotagem e a invasão de estabelecimentos empresariais, com o intuito de impedir o exercício da atividade desenvolvida pela vítima. São duas condutas previstas, a de invadir o estabelecimento da vítima a fim de impedir ou embaraçar o curso normal do trabalho e a de danificar o estabelecimento ou coisas nele existentes, também com o fim de impedir ou embaraçar o curso normal do trabalho. Em ambos os casos o bem jurídico protegido é a organização do trabalho e seu regular desempenho, remotamente, protege-se os bens dos proprietários das máquinas ou estabelecimento comercial. O fim da invasão, ocupação ou sabotagem deve ser praticado especificamente para impedir ou embaraçar o curso normal do trabalho. Caso contrário, o delito cometido seria o de invasão de domicílio, esbulho possessório ou crime de dano.
2.4. Frustração de direitos trabalhistas e de lei sobre a nacionalização do trabalho
Os artigos 203 e 204 tratam da frustação de direitos trabalhistas e de lei sobre a nacionalização do trabalho, respectivamente. O artigo 203 protege igualmente a organização do trabalho e a liberdade individual ou coletiva de ter assegurado os direitos trabalhistas, sendo dois os bens jurídicos protegidos. Trata de norma penal em branco, pois os direitos trabalhistas estão assegurados na Constituição e nas leis trabalhistas. É imprescindível que a frustração de direito trabalhista ocorra por meio de fraude ou violência, caso contrário a frustração do direito trabalhista poderá ser solucionada na justiça laboral ou administrativamente.
Estão equiparadas ao artigo 203 as condutas previstas no § 1º. Assim, coagir o empregado a utilizar mercadorias de determinado estabelecimento, para impossibilitar o desligamento em virtude de dívidas, ou impedir que alguém se desligue do emprego por meio de coação ou retenção dos documentos, também caracterizam o delito de frustação de direitos trabalhistas. São ações que tratam de condutas que podem ser cometidas por qualquer pessoa, mas o empregador ou seu preposto, em geral, são os sujeitos ativos. No caso no sujeito passivo, é o empregado o titular do direito assegurado por lei. O § 2º prevê a majorante no caso de a vítima ser menor de dezoito anos, idosa, gestante, indígena ou portadora de deficiência física ou mental.
De se notar que a previsão do artigo 203, § 1º, II, do Código Penal, qual seja, a de impedir alguém de se desligar de serviços de qualquer natureza, mediante coação ou por meio da retenção de seus documentos pessoais ou contratuais, tem prescrição semelhante à do artigo 149, § 1º, II, crime de redução à condição análoga à de escravo. Todavia, como bem ressalta Julio Fabrinni Mirabete, para que a conduta caracterize um crime ou outro depende do estado de submissão da vítima, em decorrência do qual se encontre privada de sua liberdade:
“(…) Válidas permanecem para essas formas de conduta as considerações quanto à necessidade, para a configuração do crime de um estado de submissão da vítima, em decorrência do qual se encontre privada de liberdade de locomoção, não se caracterizando o delito, igualmente, por um único ato do agente, mas pela permanência, durante certo tempo, da condição cerceadora imposta ao trabalhador. A conduta, porém, que não atende às exigências, pode configurar o crime de retenção de documentos previsto no art. 203, § 1º, inciso II”. (MIRABETE, Julio Fabrinni. 2006. p. 174).
O artigo 204 trata da frustração, mediante fraude ou violência, de obrigação legal relativa à nacionalização do trabalho. Alguns autores entendem que o delito previsto no artigo 204 não teria sido recepcionado pela atual Constituição, afirmando que as obrigações legais relativas à nacionalização do trabalho se tornaram inócuas ante a previsão constitucional do artigo 5º, caput, que garante a igualdade perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País[19].
Porém, a Consolidação das Leis Trabalhistas, já alterada pela Lei nº 13.467/17, prevê em seus artigos 352 a 371 normas que regulam a nacionalização do trabalho e dizem respeito, especialmente, sobre o estabelecimento da proporção mínima de empregados brasileiros e sobre a garantia da igualdade salarial. Ainda, há leis esparsas que também vedam o trabalho de estrangeiros, um exemplo é a Lei nº 7.102/83, que dispõe sobre segurança para estabelecimentos financeiros e estabelece normas para constituição e funcionamento das empresas particulares que exploram serviços de vigilância e de transporte de valores, prevendo[20] a vedação da propriedade e da administração das empresas especializadas a estrangeiros.
De se observar que as leis referentes à nacionalização do trabalho não estão dispostas contra os estrangeiros, mas sim em favor dos trabalhadores brasileiros. Ademais, a própria Constituição Federal não amplia a igualdade aos estrangeiros de forma indiscriminada. Faz ela distinção entre estrangeiros e brasileiros ao dispor sobre a ocupação de cargos públicos, direitos políticos ou garantias de não extradição, entre outros.
Assim, é plenamente possível considerar a recepção do artigo 204 do Código Penal pela atual Constituição Federal, pois a violação da disposição legal prevista na legislação do trabalho é pontual ao dispor que algumas atividades sejam exercidas apenas por brasileiros, visando especialmente a segurança e soberania nacional, além de favorecer trabalhadores brasileiros quando estabelece proporções entre brasileiros e estrangeiros, na razão de dois terços de brasileiros para um terço de estrangeiros.
Ademais, o tratamento dado aos trabalhadores estrangeiros não é diferente daquele dado aos brasileiros, têm eles todas as garantias asseguradas aos trabalhadores brasileiros, restando garantida a igualdade prevista na Constituição. O que há é apenas a observância a uma proporção que deve ser respeitada, sendo pontuais os casos em que o trabalho pode ser exercido apenas por brasileiros natos ou naturalizados, como supradito.
Adalberto Martins, ao discorrer sobre o artigo 358 da Consolidação das Leis Trabalhistas, defende a validade das normas referentes à nacionalização do trabalho quando afirma que “Trata-se de dispositivo legal inserido no capítulo destinado à ‘Nacionalização do Trabalho’, com vistas a proteger o trabalhador brasileiro, o qual poderia ser discriminado em face de estrangeiros, mormente em empresas estrangeiras instaladas no Brasil. E, por isto, ao contrário do afirmado por Roberto Barreto Prado, não vemos antinomia entre o disposto na alínea ‘a’ e o § 1º do art. 461 da CLT.
Em verdade, o disposto no art. 461 traduz proteção de caráter geral; e o art. 358 objetiva a proteção do trabalhador nacional”. (MARTINS, Adalberto. 2003. p. 214/215)
Na atualidade as justificativas relacionadas à nacionalização do trabalho estão nos mais diversos campos, tais como: segurança nacional, escassez de oferta de emprego e soberania nacional, envolvendo questões de poder, econômicas e sociais, favorecendo os trabalhadores brasileiros. No caso das restrições ao exercício de determinada atividade por estrangeiro, parece razoável o interesse de salvaguardar o País de ofensivas militares ou da dominação ideológica que pode ser imposta pelos meios de comunicação. Nesse sentido compreende-se, nos limites da finalidade para a qual foram estabelecidas, as restrições de propriedade navio ou aeronaves nacionais; empresa jornalística ou de radiodifusão e exploração de recursos minerais e hidráulicos. O mesmo se diz quanto às restrições à propriedade e administração de empresas privadas de segurança armada, bem como à atividade de prático de barras, portos, rios, lagos e canais, que demandam conhecimento estratégico do território, e a prestação de assistência religiosa às Forças Armadas[21].
Cristiane Maria Sbalqueiro Lopes, observa que a proporção de um terço de estrangeiros para dois terços de brasileiros ultrapassa a quantidade de estrangeiros residentes no país, sendo plenamente razoável a previsão celetista e criminal, ambas recepcionadas pela Constituição de 1988.
“Nessa perspectiva, a proporcionalidade dos 2/3 é razoável, senão vejamos: a população estrangeira residente no Brasil não chega a 1% da população total. A CLT permite que as empresas mantenham em seus quadros até 33,33% de estrangeiros (1/3). Logo, as empresas têm uma margem de discricionariedade, na contratação de estrangeiros, de 30 vezes o percentual geral de estrangeiros disponíveis para o trabalho. Essa proporção, ainda, pode ser elidida ou majorada caso haja insuficiência de mão de obra brasileira no setor específico de atividade. Como se nota, a regra não está, em absoluto, dirigida aos trabalhadores estrangeiros individualmente.
Trata-se de norma cuja eficácia deve ser medida em termos macroeconômicos, como medida de polícia da estabilidade do mercado de trabalho. Assim, eventual revogação das medidas de proporcionalidade atenderia prioritariamente o interesse de grandes corporações internacionais, sem qualquer contrapartida para os Estados por elas utilizados.
Ademais, vale lembrar que a presença desproporcionada de estrangeiros laborando no Brasil quase nunca decorre de movimentos espontâneos de população. Ao contrário, as empresas aliciam trabalhadores no exterior com o objetivo de instituir verdadeiros principados, nos quais não se pretende observar a legislação trabalhista nem recolher os encargos necessários a custear o sistema de seguridade social que, a propósito, será utilizado pelo estrangeiro em casos de emergência, dada a sua característica de universalidade. Assim, entendemos que a regra dos 2/3 é plenamente compatível com a Constituição Federal e é também um valioso instrumento para lutar contra uma forma específica de precarização das relações de trabalho: a substituição da mão de obra nacional pela estrangeira”. (LOPES, Cristiane Maria Sabalqueiro. 2012. p. 57/58)
Observação especial deve ser feita quanto ao tipo, pois o Código Penal de 1969, previa, no artigo 228 o mesmo delito, com a seguinte redação: “frustrar obrigação legal relativa à nacionalização do trabalho”, sem a necessidade de ser mediante fraude ou violência, o que, na prática, faz com que a norma seja mais eficaz, pois frustrar a lei sobre a nacionalização do trabalho não depende da ação ser cometida mediante fraude ou violência[22]. Porém, com a atual redação, não havendo fraude ou violência, a frustação de obrigação legal relativa à nacionalização do trabalho enseja em infração administrativa ou laboral.
2.5. Aquele que exerce atividade estando impedido de fazê-lo por decisão administrativa
O artigo 205 prevê o delito de exercício de atividade com infração de decisão administrativa. O bem jurídico protegido nesse caso é a organização do trabalho e a eficácia das decisões administrativas. De se ressaltar que, caso haja infração à decisão judicial, o sujeito ativo pratica a conduta prevista no artigo 359, que é a de exercer função, atividade, direito, autoridade ou múnus, de que foi suspenso ou privado por decisão judicial. Assim, é essencial que, para cometer o delito previsto no artigo 205, o agente esteja impedido de exercer a atividade por decisão administrativa.
A mera desobediência à ordem legal de funcionário público enseja no crime previsto no artigo 330 e o exercício ilegal da medicina no artigo 282. No caso deste último, deve-se observar que se um médico, devidamente inscrito no conselho regional, tiver sua atividade suspensa por decisão administrativa incorre no artigo 205, porém, se formado e não inscrito no conselho regional, incorre no artigo 282, o mesmo aconteceria se uma enfermeira atuasse como médica. Por fim, o exercício de função pública antes de satisfeitas as exigências legais, ou continuar a exercê-la, sem autorização, depois de saber oficialmente que foi exonerado, removido, substituído ou suspenso, dá ensejo à prática do delito previsto no artigo 324.
Quanto ao delito de exercer atividade com infração de decisão administrativa, ele se consuma com a prática de qualquer ato próprio da atividade que o agente está impedido[23]. Todavia, há discussão doutrinária em relação à necessidade da reiteração de atos para a caracterização do delito. De acordo com José Henrique Pierangeli, “Alguns autores não vislumbram neste crime a habitualidade, e para estes, como para nós, a tentativa é perfeitamente admissível. Assim pensam Magalhães Noronha, Heleno Fragoso e Paulo José da Costa Júnior. Em posicionamento contrário, entre outros, alinhamos Julio Fabrini Mirabete, Luiz Régis Prado, Celso Delmanto, Álvaro Mayrink da Costa, Guilherme de Souza Nucci, Jorge Severiano Ribeiro”. (PIERANGELI, José Henrique. 2005. P. 707/708)
Dentre os que também entendem tratar de crime habitual estão Cezar Roberto Bitencourt e Rogério Grecco. Por outro lado, André Estefam acredita tratar de crime instantâneo, bastando apenas o exercício da atividade a que está impedido uma única vez, sendo possível a tentativa, posição com a qual concordamos, pois a norma não faz qualquer alusão à habitualidade ou mesmo à prática reiterada, prescrevendo apenas “exercer atividade, de que está impedido por decisão administrativa”. Contudo, como visto, o entendimento majoritário da doutrina é no sentido de se que trata de crime habitual. A jurisprudência, no entanto, é dividida quanto à habitualidade:
“EMENTA: – DIREITO CONSTITUCIONAL, PENAL E PROCESSUAL PENAL. EXERCÍCIO DE ATIVIDADE COM INFRAÇÃO DE DECISÃO ADMINISTRATIVA (ART. 205 DO CÓDIGO PENAL): COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL (ART. 109, INCISO IV, DA C.F.). CONDENAÇÃO: LIMITES DA DENÚNCIA. TIPICIDADE. PRESCRIÇÃO. “HABEAS CORPUS”. 1. A conduta imputada ao paciente e pela qual foi condenado é exatamente a prevista no art. 205 do Código Penal: “exercer atividade com infração de decisão administrativa”. 2. Era competente a Justiça Federal para o processo e julgamento, por se tratar de crime, senão contra a organização do trabalho propriamente dita (art. 109, inc. VI, da C.F.), ao menos em detrimento de interesses de autarquia federal, como é o Conselho Regional de Medicina, que impusera ao réu a proibição de exercer a profissão (inc. IV do mesmo art. 109 da C.F.). 3. A conduta típica prevista no art. 205, por ser específica, exclui a do art. 282, que trata do exercício ilegal de medicina. E, no caso, o que houve foi o exercício da profissão, já obstado, anteriormente, por decisão administrativa, que vem a ser descumprida. 4. Também não se cogita da desobediência genérica a ordem legal de funcionário público (art. 330), pois não há simples ordem a ser cumprida, mas decisão administrativa de cassação de registro, que antes possibilitava o exercício da medicina, mas que com ela se tornou eficaz. 5. Igualmente não se trata da desobediência a decisão judicial, de que cogita o art. 359 do C.P. 6. Basta um ato de desobediência à decisão administrativa, para que se configure o delito em questão (art. 205). (…)”. (grifamos) (STF – HC 74826 / SP – SÃO PAULO HABEAS CORPUS, Relator(a): Min. SYDNEY SANCHES, Julgamento 11/03/1993, Órgão Julgador Primeira Turma, Publicação DJ 29-08-1997 PP-40217 EMENTA VOL-01880-02 PP-00216).
“HABEAS CORPUS. EXERCÍCIO DE ATIVIDADE PROFISSIONAL COM INFRAÇÃO DE DECISÃO ADMINISTRATIVA. ALEGADA ATIPICIDADE DA CONDUTA IMPUTADA À RECORRENTE. INEXISTÊNCIA DE DECISÃO ADMINISTRATIVA CASSANDO O SEU REGISTRO PROFISSIONAL. DESNECESSIDADE. DECISÃO PROFERIDA PELA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL DEFERINDO O PEDIDO DE CANCELAMENTO DA INSCRIÇÃO DA RECORRENTE. CARACTERIZAÇÃO DO DELITO PREVISTO NO ARTIGO 205 DO CÓDIGO PENAL. 1. Da leitura do tipo previsto no artigo 205 do Código Penal, percebe-se que o crime nele disposto caracteriza-se com a simples prática habitual de atos próprios da atividade que o agente se encontra impedido de exercer por força de decisão administrativa. 2. Ao contrário do que aventado nas razões do presente reclamo, o crime em análise não pressupõe a cassação do registro profissional do agente, mas apenas que este exerça atividade que estava impedido de praticar por conta de decisão administrativa. 3. Havendo nos autos a informação de que a recorrente estava impedida de exercer advocacia por força de decisão da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB que deferiu o cancelamento de sua inscrição, e não tendo o seu patrono anexado ao recurso ordinário em apreço qualquer documentação que evidencie que ela estaria apta a advogar quando da ocorrência dos fatos narrados na denúncia, não se pode falar em atipicidade da conduta que lhe foi imputada. (…)” (grifamos) (STJ – HC 29435 / RJ RECURSO ORDINARIO EM HABEAS CORPUS 2010/0218257-4, Relator(a) Ministro JORGE MUSSI, Órgão Julgador T5 – QUINTA TURMA, Data do Julgamento 18/10/2011, Data da Publicação/Fonte DJe 09/11/2011).
2.6. Aliciamento de trabalhadores
O artigo 206 trata do aliciamento de trabalhadores, mediante fraude, com o fim levá-los para território estrangeiro e o 207 trata do aliciamento de trabalhadores com o fim levá-los para uma outra localidade do território nacional.
A redação original do artigo 206 tratava apenas do aliciamento de trabalhadores com o fim de emigração. A Lei nº 8.683/93 acrescentou a exigência de fraude como elemento objetivo do tipo. Assim, recrutar trabalhadores para o fim de emigração, sem que haja a fraude, não dá ensejo ao ilícito penal.
O bem jurídico protegido é o Estado, que tem interesse em manter os trabalhadores brasileiros no Brasil, partindo-se da presunção de que essa evasão de trabalhadores é danosa à economia nacional e à organização do trabalho[24]. Mediatamente é protegida a boa-fé nas relações contratuais.
De se observar que não são poucos os casos em que brasileiros emigram acreditando que terão um bom trabalho em outro país, mas, muitas vezes, não é o que ocorre na prática. Algumas grandes empresas têm seus nomes utilizados por fraudadores, que pedem alguns pagamentos adiantados a fim de conseguir a documentação necessária para a obtenção de visto de trabalho e em outros casos há a oferta de vagas que não existem, também mediante o pagamento adiantado de valores para a documentação e obtenção do visto. A prática tem sido tão comum que as empresas Exxon Mobil e Shell têm em seus sítios da internet avisos sobre a possibilidade de fraude com a utilização dos nomes das companhias e esclarecem como realmente fazem a contratação de seus empregados[25].
O artigo 207 dispõe sobre o aliciamento de trabalhadores, com fim de levá-los para outra localidade do território nacional. Na figura típica foram inseridos os parágrafos 1º e 2º, em 1998, pela Lei nº 9.777. O § 2º inseriu a forma qualificada para os casos em que a vítima seja menor de dezoito anos, idosa, gestante, indígena ou portadora de deficiência física ou mental. O § 1º estabeleceu que incorre na mesma pena quem recrutar trabalhadores fora da localidade de execução do trabalho, dentro do território nacional, mediante fraude ou cobrança de qualquer quantia do trabalhador, ou, ainda, não assegurar condições do seu retorno ao local de origem. De se observar que a previsão do caput do artigo 207 não prevê que o aliciamento de trabalhadores ocorra mediante fraude, bastando que o fim seja levá-los para outra localidade do território nacional.
O bem jurídico protegido pelo tipo previsto no caput é evitar o êxodo das populações de zonas menos desfavorecidas do país para outros centros, ocasionando o desajuste econômico nas diversas regiões, criando uma situação em que determinadas regiões fiquem muito despovoadas em relação a outras, rompendo o equilíbrio necessário à ordem econômica e social. De se observar que a transferência pacífica de trabalhadores não é punida, mas sim quando ocorre o aliciamento, a sedução, suborno dos trabalhadores para mudarem de localidade. Heleno Cláudio Fragoso observa que por localidade entende-se qualquer vila, cidade ou município, que deve tratar de local distante, de forma que a transferência possa atingir o interesse que a lei tutela[26].
O § 1º pune o recrutamento de trabalhadores fora da localidade de execução do trabalho, mediante fraude ou cobrança de qualquer quantia do trabalhador, ou, ainda, quando não assegurar condições do seu retorno ao local de origem. Trata de tipo penal distinto daquele previsto no caput. Enquanto um pune o aliciamento de trabalhadores, o outro pune mediante a condição de o recrutamento ocorrer mediante fraude ou com a cobrança de qualquer quantia, ou mesmo nos casos em que o trabalhador não tenha assegurado seu retorno ao local de origem.
De acordo com André Estefam, o tipo previsto no caput “não se trata de objeto jurídico que merece a proteção do Direito Penal, sob pena de se violar seu caráter subsidiário, cuja raiz assente-se no princípio constitucional da proporcionalidade”[27]. Entende o autor que o caput deve ser lido conforme o § 1º, cujos meios executórios são a fraude ou a cobrança de quantia antecipada do trabalhador ou não assegurar as condições para o retorno do trabalhador.
Contudo, como bem observado por Julio Fabbrini Mirabete, “A conduta típica é o aliciamento de trabalhadores. (…) Não havendo aliciamento, não há crime. Não pratica o ilícito penal aquele que, por exemplo, simplesmente transporta os trabalhadores de uma região para outra.” (MIRABETE, Julio Frabbrini. 2006. p. 387).
De fato, o verbo aliciar é diferente do verbo contratar. Aliciar trabalhadores implica em seduzir, atrair, subornar, fazendo a ação prevista no caput digna de proteção do Direito Penal. Isso porque é de interesse do Estado que as diversas regiões do País se desenvolvam e ofertem condições de trabalho, sem que uma fique em desajuste em relação à outra, do ponto de vista econômico e social. José Henrique Pierangeli foi claro ao discorrer sobre os efeitos econômicos e sociais da ocorrência de tais delitos no País: “Tal como no crime anterior, não é punível a transferência ou sua mudança de uma localidade para outra, porque o Estado reconhece e assegura sem restrições ao nacional o livre trânsito em todo seu território. Punível é o aliciamento por terceiros, que pouco ou nada se importam com o destino das pessoas que são por eles seduzidas e enganadas, e que ficam entregues à própria sorte, sem recursos e até espoliados diante da miserável situação em que são colocadas, desprovidos de recursos até para o retorno aos seus pagos, isto é, para o local de onde provieram. Pensamos que, na atualidade, a interpretação acerca da tutela jurídica só pode levar à conclusão de que ela recai sobre o Estado e sobre o obreiro enganado”. (PIERANGELI, José Henrique. 2005. p. 715)
Quanto aos meios executórios previstos no tipo do § 1º, a ocorrência de fraude e a cobrança de valores do trabalhador são formas de fácil constatação e imediatas. Todavia a ausência da garantia de retorno ao lugar de origem do trabalhador, faz com que o iter criminis fique mais difícil de ser definido, pois se é condição para a ocorrência do delito, este restará caracterizado apenas quando o obreiro não puder ou tiver condições de retornar ao seu local de origem[28]. Assim, deve-se considerar o final do contrato de trabalho, ainda que por tempo indeterminado, o que ocorreria com a rescisão do contrato. Desta feita, tem o trabalhador o direito de exigir do empregador que lhe forneça as condições indispensáveis ao seu retorno; se não for atendido, configura-se o ilícito penal[29].
CONCLUSÃO
O estudo dos crimes contra a organização do trabalho passa por diversos ramos do direito, desde constitucionais até os mais específicos, sempre eivados de fatores históricos que nos dão mais clareza de quais caminhos o legislador construiu até chegarmos nos tipos penais que temos hoje.
De fato, o legislador brasileiro dedicou maior atenção em proteger criminalmente as relações de trabalho após a ocorrência de dois fatos marcantes. A abolição da escravatura, tendo primazia nos direitos fundamentais de primeira geração, e a vinda da ideia de que as relações de trabalho ultrapassam as relações privadas, sendo interesse do Estado, consagrando os direitos fundamentais de segunda geração.
Com a abolição da escravatura, as relações de trabalho precisaram de maior regulamentação, tanto no âmbito trabalhista, quanto no criminal e, em ambos os casos, o maior interesse era o de evitar abusos do empregador e do empregado e, ao mesmo tempo garantir a liberdade de trabalho e produção. Posteriormente, viu-se a maior necessidade de regular com mais minúcia as relações de trabalho, estabelecendo o salário mínimo, prevendo a fonte de custeio para a previdência, definição da jornada de trabalho, adicional noturno, regulamentação idade mínima para o trabalho, entre outros. Tais previsões deram ensejo a uma preocupação maior do Estado em salvaguardar pelo direito penal ações no âmbito das relações de trabalho que abalam a estrutura social de forma mais gravosa.
Assim, ainda que haja sanção administrativa e da justiça laboral, há situações que merecem a tutela penal, pois ferem diretamente a organização do trabalho como um todo, afetando não apenas relações individuais, mas todo o sistema social.
Nos crimes contra a organização do trabalho, o Código Penal prevê hipóteses que afetam a moralidade das relações trabalhistas, ações que atingem a liberdade de trabalho e de livre concorrência, ações que ferem os interesses sociais e nacionais, de forma a manter o equilíbrio social e econômico em todo o território nacional, e ações que ultrapassam o âmbito privado das relações de trabalho, afetando a coletividade em geral.
Por fim, o Código Penal atual, ao conter o Título IV, tratando apenas da organização do trabalho e não mais da liberdade de trabalho, foi verdadeiro alterador da sociedade, que ainda tinha a ideia de que as relações de trabalho deveriam ficar restritas à esfera privada, e trouxe para si uma tutela de um interesse do Estado, não apenas relativo às relações individuais. Tal fator ocorreu contemporaneamente à Consolidação das Leis Trabalhistas de 1943, que também passaram a regulamentar as relações laborais com maior cautela, informando as situações que devem ter maior proteção e regulamentação do Estado. Assim, os crimes contra a organização do trabalho mostram, além da preocupação do Estado na manutenção de relações laborais conforme a legislação trabalhista, preocupações de cunho social provenientes das relações de trabalho e que afetam o Estado como um todo, do ponto de vista econômico, social e moral. Não à toa, o trabalho e a livre iniciativa são base ordem social e econômica, que tem por fim assegurar a todos uma existência digna, sendo, no mundo atual, o trabalho uma forma de construção da cidadania do ser humano.
Informações Sobre o Autor
Mariana Vieira Helene
Graduada em Direito pela PUC-SP, especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, mestranda em Direito Penal pela PUC/SP, sob orientação do Prof. Dr. Antônio Carlos da Ponte – Professor dos Programas de Graduação e Pós-Graduação da PUC-SP, Livre Docente em Direito Penal. Na graduação recebeu bolsa de iniciação científica pela PIBIC-Cep e prêmio de menção honrosa. http://lattes.cnpq.br/9034826275173733