INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu, através do seu art. 98, inc. I, a criação dos Juizados Especiais para o julgamento de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, o que foi regulamentado pela Lei 9.099/95 que criou os Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito Estadual e posteriormente a Lei 10.259/2001 criando os Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito Federal.
O tema de interesse deste artigo, como sugere o título, se restringirá aos Juizados Especiais Criminais (Estaduais e Federais), em virtude das alterações promovidas pela Lei 11.313/2006, que somente tem incidência na parte criminal das Leis 9.099/95 e 10.259/2001.
DA LEI 9.099/95
A Lei nº 9.099/95, que regulamentou os Juizados Especiais Criminais Estaduais, definiu o que seria crime de menor potencial ofensivo, no seu art. 61, da seguinte forma:
Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 1 (um) ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial. (negritei)
A partir daí, todos os delitos que não possuíssem procedimento especial para julgamento e com pena máxima não superior a 01 (um) ano, bem como as contravenções penais, seriam julgados pelos Juizados Especiais Criminais, seguindo o rito o sumaríssimo, inovação na referida lex.
A doutrina passou a criticar o dispositivo, sob o argumento de que o legislador ordinário não poderia ter excluído da competência dos Juizados Especiais Criminais o julgamento dos crimes com pena não superior a um ano que possuíssem procedimento especial, sob pena de ofender os princípios constitucionais da igualdade (art. 5) e do juízo natural (art. 5º, XXXVII), uma vez que estabelecia foros diferenciados para crimes com o mesmo limite de pena, afrontando o caráter absoluto da competência estabelecida no art. 98, inc. I da Constituição.[1]
Antes disso, discutia-se qual seria o critério para se definir crimes de menor potencial ofensivo estabelecido no art. 98, inc. I da Carta Magna. Alguns entendiam que deveria ser os crimes de pouca insignificância na lesão, outros a quantidade de pena e outros a relevância do bem jurídico tutelado[2].
Optou o legislador, com a Lei 9.099/95, pelo critério objetivo, qual seja, pena não superior a um ano (menor ou igual a um ano). Ressaltando que não se deve confundir crime de menor potencial ofensivo com delito de pequena bagatela (crime insignificante), o que para uns seria causa de atipicidade (não há crime), enquanto que no crime de menor potencial ofensivo, o crime existe e há, também, uma lesão ao bem jurídico tutelado, só que por se tratar de crimes sem muita repercussão no meio social, preferiu o legislador dar tratamento mais benéfico quanto ao julgamento e imposição de sanções, estabelecendo medidas alternativas, penas restritivas de direitos, implantando ainda os institutos da conciliação, transação penal e sursis processual, vale dizer: evita-se o máximo o encarceramento do delinqüente.
Faltava então a criação dos Juizados Especiais Federais para julgar os crimes de menor potencial ofensivo, cuja competência fosse da Justiça Federal, o que foi solucionado através da Lei 10.259, de 12 de julho de 2001.
DA LEI 10.259/2001
A Lei 10.259/2001, que criou os Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal, acabou por introduzir uma drástica mudança no conceito de crime de menor potencial ofensivo, que foi feito através do art. 2º, parágrafo único, da seguinte forma:
Art. 2o Compete ao Juizado Especial Federal Criminal processar e julgar os feitos de competência da Justiça Federal relativos às infrações de menor potencial ofensivo.
Parágrafo único. Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa. (negritei)
O Art. 20, da Lei 10.259/2001, previu expressamente a não aplicação dos dispositivos da referida Lei no juízo Estadual, causando no meio jurídico uma divisão de pensamento, pois enquanto para uns a Lei 10.259/01 derrogou o conceito de menor potencial ofensivo previsto na Lei 9.099/95[3], para outros a Lei 10.259/01 seria inconstitucional[4] e para uma terceira corrente, os dispositivos da nova Lei (10.259/01) poderia conviver harmoniosamente com os dispositivos da Lei 9.099/95, sem ferir o princípio da isonomia.[5]
Prevaleceu o entendimento de que não poderia vingar no ordenamento jurídico brasileiro dois conceitos de crimes de menor potencial ofensivo, um para a Justiça Estadual e outro para a Federal. Admitir tal situação levaria o absurdo jurídico de, como exemplo, aplicar os benefícios da Lei 9.099/95 (transação penal, sursis processual) ao individuo que desacatasse um policial federal e vedá-los quando o desacato fosse praticado contra um policial estadual (civil ou militar). Isso porque o desacato tem pena máxima in abstrato de dois anos e na primeira hipótese seria de competência da Justiça Federal.
A Lei 10.259/2001 ao contrário da Lei nº 9.099/95, não previu a exclusão dos crimes julgados através de procedimento especial.
Outra questão digna de destaque é que o legislador ao editar a Lei 9.099/95, foi omisso em relação aos crimes punidos com pena de multa de forma isolada, cumulativa ou alternativamente com pena de privativa de liberdade, se poderia ou não ser considerados de menor potencial ofensivo. O entendimento que se deu é que os crimes punidos só com pena de multa seria de menor potencial ofensivo, assim como aqueles punidos com pena de prisão até 01 (um) ano, cumulado com a pena de multa, ou de forma alternativa com a pena pecuniária (multa).
A problemática apresentada foi resolvida através da Lei 10.259/2001, que, além de aumentar o limite temporal da pena de prisão, como critério para definir crimes de menor potencial ofensivo, também previu expressamente a pena de multa no conceito de crime de menor potencial ofensivo.
Neste diapasão, passou-se a interpretar a referida lei, entendendo-se como crime de menor potencial ofensivo, aqueles punidos com pena máxima de dois anos, de forma isolada ou cumulada com pena de multa, aqueles punidos apenas com a pena de multa.
Questão controvertida é quanto aos delitos punidos com pena de prisão superior a dois anos, de forma alternativa com a pena de multa. Neste caso, o melhor entendimento é aquele que considera como crime de menor potencial ofensivo, levando-se em consideração não a pena de prisão (superior a dois anos), mas a pena de multa, ou seja, mesmo que o crime preveja uma pena privativa de liberdade superior a dois anos, mas de forma alternativa com a pena de multa, deve ser considerado como de menor potencial ofensivo. Neste sentido já se manifestou o professor Denival Francisco da Silva:
“Assim, o conceito atual de infração penal de menor potencial ofensivo abarca as contravenções penais, os crimes cuja pena máxima em abstrato não ultrapasse a dois anos e, ainda, os crimes, mesmo com pena privativa de liberdade em abstrato superior a dois anos, conquanto, que traga como alternativa a pena de multa, para cuja constatação basta a presença da conjunção “ou” entre a descrição destas penas quando da cominação legal”.[6] (sublinhei)
Felizmente, uma análise minuciosa no Código Penal, revelou que apenas um delito punido com pena de prisão superior a dois anos, prevê a pena de multa de forma alternativa, qual seja o delito do art. 280 do CP, que dispõe:
Art. 280 – Fornecer substância medicinal em desacordo com receita médica: Pena – detenção, de um a três anos, OU multa. (destaquei)
Assim, apesar de controvertido o posicionamento acima descrito, o melhor conceito dado ao crime de menor potencial ofensivo é aquele dado pelo o professor Denival, abaixo colacionado:
“Infração de menor potencial ofensivo compreende todos os delitos cuja pena máxima em abstrato não exceda a 02 (dois) anos, ou mesmo acima deste patamar, desde que traga a pena de multa como sanção alternativa, não se excluindo qualquer infração, ainda que haja previsão na lei de procedimento especial.” [7]
A competência dos Juizados Especiais Criminais nas hipóteses de conexão ou continência, entre crimes de menor potencial ofensivo e infrações de competência do Juízo Comum, também é bastante controvertida na doutrina e jurisprudência, tendo surgido dois posicionamentos: a) o Juízo comum seria o competente para julgar ambos os crimes (posição minoritária); b) as infrações devem ser julgadas separadamente, uma pelo Juizado Especial Criminal e a outra pelo Juízo comum (posição majoritária).[8]
O primeiro posicionamento se deu em face da interpretação do Código de Processo Penal quanto às regras de conexão ou continência, que define regras modificadoras de competência, em razão da prorrogação do foro ou diante da necessidade de se decidir simultaneamente condutas delituosas.
No ensinamento de Tourinho Filho, “conexão existe quando duas ou mais infrações estiverem entrelaçadas por um vínculo, um nexo, um liame que aconselha a junção dos processos, propiciando, assim, ao julgador perfeita visão do quadro probatório e, de conseqüência, melhor conhecimento dos fatos, de todos os fatos, de molde a poder entregar a prestação jurisdicional com firmeza e justiça”.[9] Já, por continência, deve-se entender quando um crime estiver contido em outro, fazendo-se presumir uma única conduta, entretanto com mais de um resultado, a exemplo do concurso formal de crimes, onde o agente com uma só ação pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não (art. 70 do CP).
A atração ou prorrogação nestes casos (continência ou conexão) se justifica como um facilitador processual, permitindo que tais delitos sejam julgados por um único juízo, que, de plano, tem acesso a todas as informações, evitando-se, inclusive, decisões contraditórias. Mesmo assim, isso não é a regra, pois a atração ou prorrogação de competência encontra limites nas hipóteses de competência absoluta, sendo pacífico que a competência dos Juizados Especiais Criminais é absoluta, em razão da matéria. Ademais trata-se de competência constitucional, conforme posto no art. 98, inc. I da CF/88, conforme já manifestou Nereu José Giacomolli:
“Considerando que a regra da unidade de processo, nos casos de conexão e/ou continência, não é absoluta; que a Constituição Federal, no artigo 98, I, institui os juizados especiais criminais, outorgando-lhes competência para apreciação das infrações de menor potencial ofensivo, pensamos que deverá preponderar a leitura constitucional sobre a processualística ordinária, instituída nos idos de 1941”.[10]
Daí o motivo de ter prevalecido o segundo posicionamento, no sentido de impor a separação dos processos, quando houver conexão ou continência entre delito de menor potencial ofensivo e delito a ser julgado por juízo comum.
Ocorre que, para a surpresa de todos, o legislador ordinário repentinamente e contrariando o posicionamento majoritário quanto a separação dos processos nos casos de conexão ou continência entre crimes de menor potencial ofensivo e crimes da competência do juízo comum, editou a Lei nº. 11.313, de 28 de junho de 2006, publicada no D.O.U. de 29.6.2006, alterando os art. 60 e 61 da Lei nº 9.099/95, assim como o art. 2º da Lei 10.259/01, da qual passamos a discorrer.
DA LEI Nº 11.313, DE 28 DE JUNHO DE 2006.
As alterações promovidas pela Lei nº 11.313, de 28 de junho de 2006, nos arts. 60 e 61 da Lei nº 9.099/95 e no art. 2º da Lei 10.259/01, estão relacionadas com o conceito de crime de menor potencial ofensivo, assim como a problemática sobre competência, nos casos de conexão e continência entre crimes de menor potencial ofensivo e delitos de competência do juízo comum, senão vejamos:
Art. 1º Os arts. 60 e 61 da Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995, passam a vigorar com as seguintes alterações:
Art. 60. O Juizado Especial Criminal, provido por juízes togados ou togados e leigos, tem competência para a conciliação, o julgamento e a execução das infrações penais de menor potencial ofensivo, respeitadas as regras de conexão e continência. Parágrafo único. Na reunião de processos, perante o juízo comum ou o tribunal do júri, decorrentes da aplicação das regras de conexão e continência, observar-se-ão os institutos da transação penal e da composição dos danos civis.
Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa. (negritei e sublinhei)
Art. 2º O art. 2º da Lei no 10.259, de 12 de julho de 2001, passa a vigorar com a seguinte redação:
Art. 2º Compete ao Juizado Especial Federal Criminal processar e julgar os feitos de competência da Justiça Federal relativos às infrações de menor potencial ofensivo, respeitadas as regras de conexão e continência.
Parágrafo único. Na reunião de processos, perante o juízo comum ou o tribunal do júri, decorrente da aplicação das regras de conexão e continência, observar-se-ão os institutos da transação penal e da composição dos danos civis. (negritei)
[…]
Será que andou bem o legislador em ter promovido as referidas alterações? Havia necessidade dessas alterações? A exclusão da competência dos Juizados Especiais Criminais, em face das regras de conexão ou continência, promovida pelo legislador ordinário, não é inconstitucional?
Quando tratamos das Leis nº 9.099/95 e 10.259/01, restou claro que andou mal o legislador ordinário ao promover, sem necessidade, as alterações nas respectivas leis, visto que a doutrina e a jurisprudência já estavam alinhadas quanto à interpretação dos referidos diplomas legais.
Ademais, ao alterar o conceito de crime de menor potencial ofensivo previsto no art. 61 da Lei nº 9.099/95, poderia ter aproveitado a oportunidade e acrescentado ao respectivo conceito, os crimes que previssem pena privativa de liberdade superior a 02 (dois) anos, e que também tragam a pena de multa de forma alternativa, cuja constatação se afere através da conjunção alternativa “OU” entre a descrição das penas, no preceito secundário do tipo penal, a exemplo do art. 280 do CP, que prevê a punição a pena privativa de liberdade de detenção por um a três anos, OU multa, para aquele que fornecer substância medicinal em desacordo com receita médica.
Certamente, também será alvo de crítica ou até mesmo de ADIN o fato do legislador ordinário ter limitado a competência dos Juizados Especiais Criminais, excluindo-se da sua competência as hipóteses de crimes de menor potencial ofensivo em conexão ou continência com delitos de competência do juízo comum ou Tribunal do Júri.
Vamos imaginar a seguinte problemática: crime de tráfico de entorpecentes (art. 12) em conexão com o crime de porte de entorpecente (art. 16), ambos tipificados na Lei nº 6.368/76 e praticados por duas pessoas diferentes (conexão intersubjetiva). Ao traficante será imposta a prisão em flagrante, enquanto que ao usuário-portador será lavrado o Termo Circunstanciado, e, ambos os procedimentos serão encaminhados ao Juízo comum ou serão distribuídos em juízos diferentes? Pela lei, ambos os crimes seria de competência do juízo comum.
Ressalte-se que a competência em razão da conexão ou continência é relativa, podendo ser prorrogada se não argüida em tempo oportuno, o que não ocorre com a competência dos Juizados Especiais que é absoluta, por se tratar de competência em razão da matéria e também competência constitucional, a exemplo do Tribunal do Júri.
Por fim, e, por uma questão obvia, dispôs o legislador que nos casos de reunião de processos no juízo comum ou no Tribunal do Júri, por força da conexão ou continência, deve ser observada a aplicação dos institutos da transação penal e da composição dos danos civis, previstos na Lei nº 9.099/95. Assim, se a lei vingar, deverá o Ministério Público, nos casos de continência ou conexão, entre delitos de menor potencial ofensivo e os de competência do juízo comum, oferecer denúncia em relação a este e em relação ao crime de menor potencial ofensivo, propor a transação penal, nos termos do art. 76 da Lei nº 9.099/95.
Ressalte-se que em se tratando de concurso formal de crimes (art. 70), onde o agente mediante uma só ação pratique um crime de maior potencial ofensivo (pena superior a dois anos) e outro de menor potencial ofensivo, a regra da exasperação da pena (aumento de um sexto a metade) ficará prejudicada, em virtude da possibilidade da transação penal, do sursis processual, em face do delito de menor potencial ofensivo, inclusive com a necessidade de desmembramento do processo, pois como suspender o processo em relação a um delito e dar prosseguimento no julgamento do outro crime?
CONCLUSÃO
Ante o exposto, e sem esgotar o tema, pode-se dizer que as alterações promovidas pelo legislador através da Lei 11.313/06, diante do pacífico (ou quase) posicionamento da jurisprudência ou da doutrina brasileira, acerca do conceito de crime de menor potencial ofensivo, bem como sobre a competência dos Juizados Especiais Criminais, sejam no âmbito federal ou estadual, foram feitas de forma precipitada e sem necessidade, vale dizer, andou mal, mais uma vez o legislador.
Certamente referida Lei será alvo de críticas e até mesmo de Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADIN, levando-se em consideração que o legislador ordinário não deveria ter limitado a atuação dos Juizados Especiais Criminais, que são competentes para julgar crimes de menor potencial ofensivo, conforme art. 98, inc. I da Constituição, que deixou ao legislador ordinário apenas a incumbência de definir o conceito de crime de menor potencial ofensivo. A exceção “respeitadas as regras de conexão e continência”, trazida pelo novel diploma legal, não encontra guarida no texto constitucional.
Notas
Informações Sobre o Autor
Valdinei Cordeiro Coimbra
Especialista em Direito Penal e Processo Penal pelo ICAT/UNIDF.
Professor de Direito Penal na UNIDF.
Delegado de Polícia Civil do Distrito Federal.