A possibilidade de reivindicar direitos em Rousseau

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Resumo: Nossa intenção é mostrar o modo como Rousseau concebe o Estado Civil e, com isso, a possibilidade dos cidadãos reivindicar seus direitos caso o Estado, cuja razão de ser é garantir a paz social e a liberdade, negligenciar suas funções.


Introdução


Rousseau considera justa uma sociedade política se esta garantir a paz social e a liberdade de seus associados. Isto é possível se a implantação daquela for à expressão da “vontade geral”: o que cada homem quer em comum com todos os demais não reclamando para si mais do que ele pode querer ao mesmo tempo para todos os outros. Fruto da vontade geral, o Estado Civil apresenta-se como uma exigência racional. E, por ser a vontade geral, igual para todos, ela é uma “vontade justa”. Oriunda desta, o Estado Civil pode garantir a paz social e a liberdade de todos os seus membros.


Quando o Estado mostra-se incapaz de assegurar essa paz e essa liberdade cabe a cada membro da sociedade reivindicar seus direitos. Não direitos naturais, pois estes para Rousseau, cada homem os alienou ao fundar o Estado Civil. Reivindicá-los seria então ter a si mesmo como inimigo. Só resta ao homem, na concepção do filósofo, a possibilidade de reivindicar direitos civis. Esta é o objeto de nossa conclusão. 


Uma sociedade justa é aquela que garante a paz social e a liberdade de cada indivíduo. Esta sociedade é possível somente se, em seu ato fundador –pacto social- estiver contemplada a liberdade de todos, isto é, se este ato for a expressão da “vontade geral”. Esta, na linguagem de Roussseau, nada mais é do que os interesses que cada pessoa tem em comum com todos os outros.


Ao contrário do que pensa Hobbes, para quem a vontade de todos (vontade comum) é representada por alguém que personifica esta vontade e, por isso, dispõe dos recursos de todos os quais serão empregados para a segurança de todos segundo o julgamento do príncipe[1], Rousseau entende que, para que uma sociedade seja justa, é condição necessária que a liberdade de cada um seja preservada. Isto é possível somente se cada membro do Estado se submeter à vontade geral e não à vontade de um déspota.


A vontade geral, conforme aponta Joseph Moreau em seu artigo Du Droit Naturel, “não é a opinião da maioria; é o que os homens querem conjuntamente quando cada um não reclama para si mais do que ele pode querer ao mesmo tempo para todos os demais” (MOREAU, 1965, p.151). A vontade geral assenta-se sobre uma exigência racional e uma vez que ela é igual para todos é uma vontade justa, exprimindo-se, desse modo, na idéia de direito natural.


O pacto social estabelecido a partir da vontade geral produz “em lugar da pessoa particular de cada contratante, um corpo moral e coletivo, […], e que, por esse ato, ganha sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade” (ROUSSEAU, 1987, p.33). Por esse pacto social, cada membro do corpo político contrata consigo mesmo: “dando-se a todos não se dá a ninguém” (ROUSSEAU, 1987, P. 33). Com efeito, a vontade de cada um não é alienada na vontade de um só, isto é, não há, no pacto social de Rousseau, um representante da vontade coletiva, tal como é em Hobbes. A soberania é cada um dos membros que formam o corpo político. A soberania “não sendo senão o exercício da vontade geral, jamais pode alienar-se, e que o soberano, que nada é senão um ser coletivo, só pode ser representado por si mesmo” (ROUSSEAU, 1987, p.43-44).


A existência e a vida do corpo político é dada pelo pacto social. Porém, “o movimento e a vontade” desse corpo político são dados pela legislação, “o ato primitivo, pelo qual esse corpo se forma e se une, nada determina ainda daquilo que deverá fazer para conservar-se” (ROUSSEAU,1987, p.53). A legislação é o que garantirá a conservação do corpo político. É ela que sustenta uma sociedade justa. Ora, para que a justiça seja admitida por todos, ela deve ser “recíproca”. Há justiça na associação civil se a positivação dos direitos (leis) for a expressão da vontade geral. Somente assim, a liberdade de cada membro é preservada, dado que ao formar o corpo político cada membro aliena seus direitos naturais, não à vontade de um outro, mas a si mesmo como parte do todo. Essa é a condição da liberdade, da autonomia (NASCIMENTO, 2000, p.164). Obedecendo às leis, expressão da vontade geral, cada membro do corpo político obedece a si mesmo.


Se cada membro tem sua autonomia garantida no corpo político em movimento, o que caracteriza uma sociedade justa, é necessário garantir a justiça na relação entre eles. Mister se faz então encontrar um meio para que a justiça imponha respeito a todos. A reciprocidade da justiça é o meio que Rousseau aponta. A união dos direitos aos deveres faz com que reine a justiça nas relações entre os membros. Pois, se por ventura, alguém não visar à justiça em seus atos, esta poderá ser tida como um engodo para aquele que, em seus atos, for inspirado por ela. Sem unir os direitos aos deveres, a relação entre os homens é insustentável. Por isso mesmo, a justiça como recíproca garante a conservação do corpo político. “São, pois, necessárias convenções e leis para unir os direitos aos deveres, e conduzir a justiça a seu objetivo” (ROUSSEAU, 1987, p.54).


A necessidade de convenções deve-se ao fato de que, para Rousseau, na ausência da idéia de justiça não há direito. Aquela “vem de Deus, que é a sua única fonte” (ROUSSEAU, 1987, p.53). Como os homens não conseguem colhê-la das alturas, resta às convenções, as quais todos devem obedecer, levá-los, em suas ações, à própria razão de ser das leis: a justiça. Mas para que as convenções, as quais contemplam a idéia de justiça, tenham a força de lei, é necessário que o poder político –suposto pela própria necessidade do estabelecimento das convenções, emane da vontade geral, isto é, a adesão de todos à exigência racional de justiça (MOREAU,1965, p.154). O poder político, concebido assim, não é estranho à justiça, ao contrário, é posto ao serviço dela. A lei positiva (convenções) aparece então como requerida “para juntar direitos e deveres e referir a justiça ao seu objeto”. A lei aparece assim como meio para garantir a “justiça mútua”[2].


Dando vida e movimento ao corpo político (pelo pacto social e a legislação) resta saber qual é a tarefa do legislador –e a este a contribuição do escritor político, e a do príncipe (governo). O legislador “é o mecânico que inventa a máquina” e o governo “é o que a monta e a faz funcionar” (ROUSSEAU, 1987, p.57).


Diferentemente da tarefa do legislador, a tarefa do governo é de zelar pelo bem público. O governo não é o que detém o poder soberano tal como em Hobbes. O soberano é o povo. O governo é uma pessoa moral criada artificialmente pelo poder soberano como um “corpo intermediário” entre o Estado e o soberano. Sua razão de ser no Estado é a de “servir à comunicação entre o Estado e o soberano” (ROUSSEAU,1987, p.74). Seu poder, portanto, está subordinado ao poder soberano.


 “Inventor da máquina”, pois na formação do corpo político, o legislador é aquele que: “transforma cada indivíduo, que por si mesmo é um todo perfeito e solitário, em parte de um todo maior, do qual de certo modo o indivíduo recebe sua vida e seu ser; alterar a constituição física e independente, que todos nós recebemos da natureza, por uma existência parcial e moral. Em suma, é preciso que destitua o homem de suas próprias forças para lhe dar outras e das quais não possa fazer uso sem socorro alheio. Na medida em que tais forças naturais estiverem mortas e aniquiladas, mais as adquiridas serão grandes e duradouras, e mais sólida e perfeita a instituição, de modo que, se cada cidadão nada for, nada poderá senão graças a todos os outros, e se a força adquirida pelo todo for igual ou superior à soma de forças naturais de todos os indivíduos, poderemos então dizer que a legislação está no mais alto grau de perfeição que possa atingir” (ROUSSEAU, 1987, p.57). O cidadão aparece em Rousseau como aquele que aniquilou seu ser natural para assumir o corpo político, comprometido por aquilo que ele possui de comum com os demais membros deste corpo. Ora, a tarefa do legislador é exatamente a de transformar o homem do estado de solidão em cidadão. Isto implica em aniquilar as “forças naturais do homem”, ou seja, embora no corpo político o homem tenha sua liberdade natural, sua vontade particular, esta não deve prevalecer sobre a vontade geral e aquela sobre a liberdade política. Aniquilar o homem do estado de solidão é, portanto, criar os mecanismos visando impedir que o particular se sobreponha ao social. Este homem artificial, alterado em sua constituição física e independente, é tarefa do legislador preservar.


Mas para que o legislador “invente a máquina, o trabalho do escritor político, como aquele que “mantém viva a chama da liberdade”, é de tal monta que dele o legislador não pode prescindir. Diferentemente de Pascal, para quem o trabalho do escritor político é de “moderar a loucura dos homens”[3], Rousseau entende que seu trabalho é de delinear o quadro de um Estado que, mesmo não existindo em parte alguma, deve ser o horizonte que sirva para guiar as ações políticas, o quadro de princípios posto não somente para ser observado por aqueles que “fazem a política” (príncipe e legisladores), mas para que estes tenham um referencial, um quadro teórico para suas ações. Rousseau é ele mesmo um investigador de princípios políticos. “Perguntar-me-ão se sou príncipe ou legislador, para escrever sobre política. Respondo que não, e que por isso escrevo sobre política” (ROUSSEAU, 1987, p.21).


Conclusão


O Contrato Social é o “lugar” de julgamento de toda “cidade existente”, pois nesta obra Rousseau opõe as políticas existentes ao ideal político. Diante desse ideal político é possível reivindicar algum direito ou defender os direitos daqueles que os reivindicam?


No Estado Civil, o homem não é uma unidade monadológica sem relação uma com a outra, mas uma unidade relativa. Como membro da comunidade política, o homem faz parte do todo. E somente como parte do todo o homem pode ser considerado cidadão: aquele que em igualdade com todos os demais formula as regras gerais comuns por meio das quais organizam suas vidas no Estado. Ora, para que o cidadão se afirme com sua liberdade civil é preciso eliminar de si a liberdade natural, característica do homem no estado de solidão. “O que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto aventura e pode alcançar. O que ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui” (ROUSSEAU, 1987, p.36). A liberdade civil, de que fala Rousseau, é aquela “que se limita pela vontade geral” (ROUSSEAU, 1987, P. 36), isto é, como membro da comunidade política não é mais possível ao homem considerar somente sua pessoa, tal como no estado de natureza, mas considerar todos os associados. Não mais obedecer a seus apetites, mas às leis acordadas com todos os demais e que estatui a si mesmo. A liberdade civil é então a “única a tornar o homem verdadeiramente senhor de si mesmo” (ROUSSEAU, 1987, p.37). Assim não é mais possível ao homem reivindicar liberdade natural no Estado Civil, uma vez que esta ele alienou a si mesmo para colocar-se inteiramente sob a proteção da comunidade política. Reivindicá-la na cidade é fazer de si mesmo seu adversário.


Na cidade, gozando da liberdade civil, o homem possui “o direito de reivindicar direitos” [4]. Pois reivindicá-los é pedir que o Estado, isto é, a comunidade política faça justiça ao contrato originário. Este pedido traz explicitamente a exigência que as leis sejam respeitadas, a exigência do funcionamento do Estado, a exigência de que a justiça atinja seu objeto. Longe de ser uma “falta de bom senso” reivindicar direitos e defender os direitos daqueles que por eles clamam, é o que faz, na visão de Rousseau, com que o Estado funcione. E funcione em benefício de cada cidadão o que, aliás, é sua razão de ser.


Para Rousseau reivindicar direitos e defender aqueles que por eles clamam é a condição da paz no Estado. Assim, a possibilidade de reivindicar direitos (civis) decorre da própria constituição do Estado Civil.


 


Bibliografia

DENT, N.J.H.: Dicionário de Rousseau, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1996.

HOBBES: Leviatã, Os Pensadores, Nova Cultural, São Paulo, 1988.

MOREAU, J.: Du Droit Naturel, In: Les Estudes Philosophiques, PUF, Paris, n.2, 1965.

NASCIMENTO, M, M.: Figuras do Corpo Político, Tese de Livre Docência, São Paulo, 2000.

__________________: Opinião Pública e Revolução, EDUSP/ Nova Stella, São Paulo, 1989.

PARRAZ, I.: Pascal e a Política. Cadernos de Ética e Filosofia Política. 5. Dep. De Filosofia da USP. São Paulo. p. 105-118.

PASCAL: Pensamentos. Os Pensadores. Nova Cultural, São Paulo, 1988.

ROUSSEAU: Do Contrato Social, Os Pensadores, Nova Cultural, São Paulo, 1987.

 

Notas:

[1] Em Hobbes, o Estado Civil repousa sobre a constituição de uma vontade comum constitutiva de um poder comum. Este poder comum é impossível estabelecê-lo naturalmente, uma vez que os homens são inimigos por natureza. O único modo de estabelecê-lo “é confiar a força e o poder de cada homem a um homem, ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. O que equivale dizer: designar um homem ou uma assembléia de homens como representante de suas pessoas, considerando-se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que representa sua pessoa praticar ou levar a praticar, em tudo o que disser respeito à paz e segurança comuns; todos submetendo assim suas vontades à vontade do representante e suas decisões a sua decisão. Isto é mais do que consentimento ou concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens” (HOBBES, 1988, p. 105). A constituição artificial dessa vontade comum implica o reconhecimento das decisões e dos atos dessa vontade como sendo as próprias decisões e atos de cada indivíduo que contrata.

[2] A justiça é feita à pessoa moral –necessidade de cada pessoa de ser reconhecida e respeitada por todos como alguém que tem valor e dignidade sem depender de ninguém- “através de sua posição de igualdade no conjunto com as demais pessoas, como membro legislativo do corpo soberano, no qual ninguém está subordinado a outrem, e cada um funciona como indivíduo igualmente respeitado e investido de poder (DENT, 1996, P. 149).

[3] “Platão e Aristóteles […], se escreveram sobre política foi para pôr em ordem um hospício, e, se fizeram menção de falar dela como de uma grande coisa, é que sabiam que os loucos a quem falavam julgavam ser reis e imperadores, entravam nos seus princípios para moderar a loucura deles na medida do possível” (PASCAL, 1988, p. 119). Escrever sobre política é procurar por freios à loucura dos homens. Esta necessidade decorre do fato de que, nesse “hospital de loucos”, em que cada um vivendo em união com os outros não abre mão de seu egoísmo, julga ser “reis e imperadores”. (PARRAZ, 2002, p. 105-118).

[4] Em Hobbes o príncipe, que é o representante do povo, pois a ele foi transferido o direito de cada um, tem plenos poderes. Seu poder é então declarado pela própria questão da representação. A vontade comum outorga a ele tal poder. Diante disso, os súditos não têm a possibilidade de reclamar direito algum. Toda rebeldia é, no Estado concebido por Hobbes, ilegítima.


Informações Sobre o Autor

Ivonil Parraz

Professor de História da Filosofia Medieval e Moderna na Faculdade João Paulo II – Marília/SP e Professor de Filosofia Geral e Filosofia Jurídica das Faculdades Integradas de Ourinhos – Ourinhos /SP


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