Juiz: aplicador ou criador do direito?

Repensando a atividade estatal no exercício da jurisdição

É indiscutível que a função jurisdicional do Estado vem, nos últimos tempos, renovando-se em importância. O juiz, ao aplicar a lei ao caso concreto, ultrapassa o simples exercício da atividade de interpretação para se transformar em agente de criação de norma jurídica, ainda que de aplicação específica à solução da lide submetida à análise judicial.

Já não convence a tese de que ao juiz cumpre a tarefa de ser o interlocutor entre previsão abstrata e genérica posta no ordenamento normativo e a perfeita subsunção do fato julgado àquela norma encontrada no sistema jurídico. Muito mais do que isso, a função jurisdicional interage, com muita proximidade, com a função legislativa estatal. Pode-se dizer que, em regra, complementa a atividade legislativa, sem deixar de considerar que, por vezes, ao judiciário, impõe-se, ao julgar, verdadeira feição de legislador.

Surge, pois, a necessidade de melhor conhecer a atual função jurisdicional e sua importância para a sociedade juridicamente organizada. A decisão judicial, no que se refere às fontes do direito, parece estar migrando de posição de fonte secundária para ocupar posição de primazia no sistema normativo. O momento de aplicação do direito parece estar se transformando em momento de produção do direito. Juízes, Tribunais e Cortes Constitucionais avançam, cada vez mais, na competência outrora reservada à função legislativa. O paradigma da separação constitucional de competências está sendo redimensionado.

Críticas ao positivismo jurídico

Por outro lado, a idéia de que o positivismo jurídico tudo pode resolver na criação de um sistema normativo também é questionável.

A norma positivada contém as características da generalidade e abstração, fixando premissas que deverão incidir sobre um número indeterminado de fatos, mas os fatos, quando concretizados, nem sempre se subsumem aos tipos legais antes previstos. O avanço e a dinâmica das relações sociais têm se mostrado, muitas e muitas vezes, mais complexo e amplo do que poderia antes ser imaginado pelo legislador que não consegue aproximar-se, como desejável, da realidade social. Tudo a exigir do juiz mais do que uma decisão baseada no silogismo, muito mais.

E, se na jurisdição para solução de casos concretos individuais a tarefa já se mostra complexa, muito maior a complexidade da perfeita identificação da natureza da atual função jurisdicional quando se pensa nas funções de interpretação da Constituição, especialmente quando as decisões, ainda que provenientes dos Tribunais, provocam repercussão generalizada, possibilitando-se, inclusive, a vinculação de outros órgãos e decisões. É o caso, no Brasil, das súmulas vinculantes, já aprovadas no plano constitucional e, recentemente, regulamentadas pelo legislador infra-constitucional. As decisões vinculantes do Supremo Tribunal Federal são verdadeiras normas que recebem, por expressa disposição constitucional, características de generalidade e abstração.

Talvez, as teorias do positivismo jurídico não respondam mais às necessidades da sociedade. Isso não significa, necessariamente, a consagração do direito natural como suporte de validade do sistema jurídico, pois, a racionalidade humana continua sendo imprescindível para a construção e desenvolvimento da sociedade contemporânea. As teorias sobre as quais sempre se assentaram as principais discussões sobre a natureza do próprio Direito enquanto ciência são, também, objeto de novas discussões.

Tais circunstâncias provocam, necessariamente, algumas reflexões. Estaríamos diante de um momento de quebra do paradigma da separação entre os poderes legislativo e judiciário? Estaria ocorrendo usurpação do poder legislativo pelo judiciário? O judiciário teria legitimidade, num Estado Democrático de Direito, para ditar normas, agindo como se legislador fosse? São muitas perguntas, ainda sem respostas, mas que desafiam aqueles que se dedicam ao estudo de tão importantes temas.

O fundamento de validade do sistema jurídico

A reflexão e a identificação do fundamento de validade do sistema normativo são necessárias. Se está na vontade do legislador o juiz assume a condição de intérprete e aplicador, a função estará ligada a hermenêutica. Se está na vontade da lei, surge espaço para atuação jurisdicional de primeiro grau, ou seja, ao identificar e dizer qual é a vontade da lei, poderá estar agindo como legislador.

O ponto central da discussão aqui referida está afeta à legitimidade da função jurisdicional quando transborda do âmbito de interpretação e aplicação do direito para a órbita da criação do direito. A discussão sobreleva-se, ainda mais, quando se trata da função de jurisdição constitucional, atribuída, no Brasil, a todos os órgãos do Poder Judiciário no controle de constitucionalidade difuso e ao Supremo Tribunal Federal, no controle concentrado, pois, ao “interpretar” a Constituição, atuam por meio de decisões que esbarram na função política estatal, muitas vezes com a característica da definitividade, especialmente quando a decisão afasta a aplicação de lei  por inconstitucionalidade, por violação de uma das cláusulas pétreas previstas, no caso brasileiro, no art. 60, § 4º da Carta Política.

Já não é possível distinguir, como seria desejável, uma decisão de inconstitucionalidade de uma decisão política. A jurisdição constitucional não deve ter conotação de decisão política do país. Questões políticas não têm as mesmas características das questões que envolvem a constitucionalidade das leis. As primeiras devem ser reservadas ao parlamento, com legitimação pela maioria, para delas tratar. As segundas tocam à função jurisdicional do Estado, normalmente atribuída ao Judiciário que recebe, nesse particular, a competência para negar validade à lei agressora da própria Constituição.

Contudo, a função legislativa de negativa, de negar validade à lei inconstitucional, tem dado lugar à função legislativa positiva que leva o Tribunal a decidir por uma determinada interpretação, conforme a Constituição, rechaçando qualquer outra, assumindo a condição de verdadeira legislador ordinário, ou quando, forçando um interpretação discutível, manipula a decisão num determinado sentido, dissociado de um argumento plausível.

Nesses casos, evidencia-se a usurpação das funções legislativas pelo Judiciário, com risco de falta de legitimidade para tais decisões de cunho político, causando insegurança jurídica e manifesta violação ao princípio da separação entre os poderes, cuja aplicação garante a limitação do próprio poder estatal.

Pelo que se nota, a Constituição do Estado tem sido colocada no centro de todas as discussões aqui referidas. Como ponto fundamental de estruturação do sistema normativo. Como decisão proveniente da soberania popular, aponta os máximos valores de regência social e institucional. Registra a organização estatal com previsões dos direitos considerados, pela correspondente sociedade, como direitos fundamentais. Preocupa-se, diante de tão importantes decisões, em se colocar no patamar hierárquico superior, imunizando-se contra eventuais decisões tomadas pelo legislador infra constitucional. Surge, assim, a idéia de constituição rígida, que não tolera qualquer previsão a ela contrária, ressalvando-se, unicamente, aquelas provenientes de um processo especial e rigoroso de produção normativa, entre nós, o reservado para edição de emendas constitucionais, cuja aprovação depende de quórum especial, em dois turnos de votação, com proposta a poucos reservada.

È nesse ambiente de constituição rígida que a discussão sobre as funções legislativa e judiciária tomam corpo. A quem, afinal, foi atribuída a atividade de implementar a “vontade da constituição”. Intuitivamente, a resposta deveria apontar para o legislador, com legitimação bastante para implementar os comandos constitucionais, mas, o que se percebe é que o próprio Judiciário, no intuito de aplicar a constituição, minimiza decisões legislativas para, rechaçando-as com a declaração de inconstitucionalidade, indicar a forma de aplicação da constituição. Esse fato provoca a indagação: em que sede está a criação do direito, no palco legislativo ou judiciário?

A atuação política estatal sempre esteve ligada à função legisferante, com intensa participação do Poder Executivo, seja na iniciativa, seja na intervenção no parlamento pelos membros que sustentam o governo, seja ainda na possibilidade de veto aos projetos aprovados pela Casa Legislativa. O Judiciário, na função jurisdicional, deveria atuar na solução dos litígios, interpretando e aplicando a lei, agindo, pois, secundariamente em relação à criação do direito. Não deveria criar o direito, mas aplicá-lo, ainda que necessário o esforço interpretativo e a utilização de métodos criados e previstos também pelo legislador, como a analogia, os princípios gerais do direito e a eqüidade.

Contudo, muitas decisões judiciais mostram-se além dos limites da interpretação do direito. Invadem a área reservada à atuação discricionária das decisões políticas, aproximando-se muito ou confundindo-se com a função originária do direito.

A decisão judicial como fonte do direito

Se a lei é a fonte única do Direito e se as decisões judiciais são construídas a partir do fenômeno da subsunção, o ideal de segurança jurídica estaria atingido, mas sabe-se que essa idéia está superada. O juiz cria direito ao decidir o caso concreto, cria o direito , ainda que na função de legislador negativo, ao negar validade à lei declarada inconstitucional, cria o direito quando, agindo como legislador positivo, cria norma a ser observada de modo geral, destinada indistintamente a todos. Mas o perigo de arbitrariedade está presente, com sensação de insegurança jurídica e de possíveis injustiças, o que certamente seria verificado ante a inconstância jurisprudencial a respeito de determinados temas.

Se se admite a função jurisdicional com a característica de ser inovadora da ordem jurídica, imprescindível, em contraponto, o desenvolvimento de meios de controle e correção das decisões judiciais. A legitimação da decisão judicial deve estar ligada à demonstração de sua correção, decorrente de valores consentidos e compartilhados pelo corpo social. Não se justifica a liberdade no julgamento para atribuir ao julgador poder ilimitado. A limitação do poder estatal, qualquer que seja ele, é necessária em face da liberdade das pessoas que integram a sociedade. O autoritarismo deve ser evitado em qualquer local em que se manifeste o poder ilimitado. Daí a necessidade de pautar o comportamento da função jurisdicional, sem retirar-lhe a liberdade que pode estar ligada à escolha de uma entre as alternativas possíveis e na escolha do argumento a ser desenvolvido para se chegar à solução.

O sistema normativo, nesse sentido, deve dispor de mecanismos que garantam a responsabilidade e seriedade da função dos juízes, entre eles a imposição do dever de fundamentar todas as decisões. Vale dizer, a motivação de toda e qualquer decisão judicial é imprescindível.

Ademais, parâmetros positivados pelo legislador são necessários. A função típica do legislador é a produção de leis, cujos efeitos devem ser perseguidos pelo juiz nas suas decisões. A inaplicação da lei não pode ser considerada como regra, mas exceção, bem fundamentada, na função decisória do juiz. A sentença não pode se elevada á condição de fonte principal do direito, mas mantida, preferencialmente, como fonte secundária e, nem por isso, menos importante, da produção normativa.

Outro mecanismo de controle e vinculação da atividade jurisdicional está ligado ao respeito aos precedentes. Decisões anteriores que resolveram questões semelhantes devem ser consideradas nas ações decisórias subseqüente. E, ainda que não se imponha a obrigatoriedade de seguir o precedente na nova decisão, deve restar ao julgador, na hipótese de se afastar do precedente, maior esforço argumentativo para bem demonstrar as razões de fato e de direito que determinaram a decisão divergente. Desse modo, estar-se-ia inibindo a ação desvinculada de qualquer parâmetro objetivo, cercando-se o ambiente de maior credibilidade da função jurisdicional estatal.

Assim, alguma vinculação pode ser exigida em nome da segurança jurídica, ao ser possível ao menos um prognóstico do resultado com aumento do efeito social que deve ser conseqüência do sistema normativo vigente em determinado Estado.

Nem de longe pensa-se em retirar o juiz a possibilidade de interpretação. Não é o caso de trazer de volta o brocardo “in claris non fit interpretatio”. Jamais chegaremos ao tempo em que a função legislativa será capaz de prever todos os fatos sociais com suas conseqüências perfeitamente delineadas. A função interpretativa do juiz continuará sendo imprescindível.

Os textos legais utilizam-se de linguagem, signos que precisam ser compreendidos e aplicados ao caso concreto, com todas as suas características específicas.

A lei é vaga e muitas vezes, imprecisa, surgindo, pois, largo espaço para a interpretação judiciais como instrumento absolutamente necessário para a realização da justiça. A atividade interpretativa, desse modo, é inevitável e necessária.

Isso não significa que a interpretação atribui ao juiz o poder de arbítrio. Há regras de interpretação criadas pelo próprio conjunto normativo estatal que exigirão do juiz uma demonstração racional da correção de sua decisão. É necessário conter a atividade de decidir aleatoriamente para garantir a liberdade e igualdade como corolários de valores supremos de uma sociedade como a liberdade e igualdade.

Direito positivo x Direito natural

Assim, se o direito positivo como realidade pura, não é capaz de garantir total segurança jurídica, é sem dúvida, necessário para aproximação desse ideal. Por outro lado, tem-se a convicção de que o norma positivada sofre, no momento de sua criação e, depois, no de sua aplicação, direta interferência de princípios, referenciais axiológicos compartilhados por toda a sociedade e que, nem sempre são captados de modo preciso pelo legislador. Esses princípios, ainda quando não sejam bem identificados pela linguagem legislativa estarão presentes no sistema jurídico e contribuirão, sobremaneira, à aplicação do direito.

O Direito positivado nem sempre é suficiente para a solução das questões levadas à função jurisdicional que deve valer-se das inspirações principiológicas para decidir.  Esses valores que, utilizados pelo juiz para decidir, escapam ao Direito positivo, seriam decorrência da existência de direitos naturais? Existem independentemente de positivação? São referências que encontram justificativa na própria essência da natureza humana?

Atingimos outro dilema. O direito positivo precisa de complementos valorativos não captados expressamente por ele, mas que têm importância fundamental para garantir o ambiente de segunda jurídica numa sociedade. Contudo, ele próprio parece valer-se, cada vez mais, de valores que sobrepairam o conjunto de normas positivadas e que poderiam ser justificados como origem no direito natural.  Se escrever e registrar o texto legal é importante, também o é a utilização necessária de valores não escritos e que poderiam ser decorrência do “direito natural”.

A questão aqui colocada não é nova. Se as normas jurídicas são valores e esses são reconhecidos e aplicados mesmo sem expressa previsão é porque o direito prescinde de positivação, sendo encontrado dado pela natureza.

Se positivismo jurídico e jusnaturalismo parecem teorias inconciliáveis, ao menos alguns pontos de contato ou complementação podem ser encontrados, na medida em que alguns princípios, não positivados e mais próximos da natureza das coisas, tornam-se necessários para o exercício da função jurisdicional. Vale dizer, pautas de direitos não formalizados nos registros escritos são consideradas como argumentos justificadores de decisões. Os postulados éticos são, cada vez mais, importantes como balizadores da atividade judicial, ainda que não positivados expressamente.

Há, sem dúvidas, antes do direito positivado, alguma força capaz de impor aplicação aos comandos decorrentes do sistema normativo. Referida força, com toda a certeza, não é decorrência, por si, do direito positivo. Essa força (norma hipotética fundamental, regra de reconhecimento, regra matriz) que irriga o sistema jurídico com fundamento de validade não é norma positivada.

Conclusão

O juiz se vale tanto da norma escrita como de pressupostos éticos, morais e principiológicos não se limitando, em sua função, a ser seguidor cego do positivismo jurídico, nem praticante do jusnaturalismo como pressuposto único da sua atividade. O direito é decorrência da razão, seja ela posta, seja ela pressuposta, donde a adoção do positivismo jurídico não implica na negativa do direito natural,

Importante, em qualquer caso, a justificação argumentativa de qualquer decisão judicial, com oferecimento da atividade estatal de jurisdição com transparência, como resultado de ação séria e responsável, evitando-se decisões aleatórias, teratológicas, injustas e incompreensíveis dentro de um ambiente de racionalidade sistêmica.

O juiz, ainda que se reconheça, no momento da decisão, a função criativa de produção do direito, deve agir com argumentos responsáveis, desenvolvidos a partir de construção lógica e sistemática, o mesmo que se exige do legislador quando da edição das leis. Sem essa preocupação, a função jurisdicional estará se aproximando, perigosamente, de uma atividade arbitrária, sem qualquer respaldo de legitimidade.

Considere-se, também, como fator importante para que chegássemos a esse momento tormentoso, a falta ou ineficiência da função legislativa estatal. Quanto mais lacunoso e imperfeito for o sistema normativo, maior o âmbito de ação jurisprudencial.

O sistema normativo, como resultado da invenção humana não pode desconhecer a dinâmica da sociedade. As questões sociais devem ser consideradas na elaboração das leis, facilitando-se, o quanto possível, a solução dos litígios que, num segundo momento exigirão do Estado a função jurisdicional, cujas decisões, com natureza de escolhas jurídicas, objetivas e referenciadas por normas jurídicas, estarão afastadas das decisões políticas, marcadas pela subjetividade e pela ausência de parâmetros normativos, ainda que se reconheça que o direito não é apenas um conjunto de normas postas.

Neste trabalho não há, evidentemente, a intenção de apontar soluções ou fechar questões a respeito dos temas abordados, mas apenas suscitar a discussão sobre problemas sempre atuais na área da ciência do Direito. Restam, ao cabo de que foi exposto, mais dúvidas do que respostas. Importante, penso, no trabalho que se volta conhecimento de uma ciência é forçar constantes momentos de reflexão.


Referências bibliográficas:

GUASTINI, Riccardo. Das Fontes às Normas. Quatier Latin, São Paulo, 2005.

KAUFMANN, Arthur – Hassemer, Winfried (org). Introdução à Filosofia do Direito e à Teoria do Direito Contemporâneas. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2002.

LAPORTA, Francisco J.Constitución: problemas filosóficos. Centro de Estudos Políticos e Constitucionais, Madrid, 2005.

PALOMBELLA, Gianluigi. Filosofia do Direito. Martins Fontes, São Paulo, 2005.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Ricardo Pinha Alonso

 

Mestre em Direito das Relações Públicas (UNIMAR), Doutorando em Direito do Estado (PUC-SP), professor da Faculdade de Direito das Faculdades Integradas de Ourinhos, Coordenador da graduação e pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da Alta Paulista, Procurador do Estado de São Paulo.

 


 

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