1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Já se tornou lugar-comum descrever as transformações que os avanços da Biotecnologia e do desenvolvimento das pesquisas genéticas podem acarretar. Pode-se mesmo afirmar que a persona pós-moderna ressoa além da pessoa física do Estado Liberal, que desconhecia aspectos que hoje assumem papel fundamental na constituição de sua personalidade. Este é o caso do patrimônio genético humano, que se elevou como o bem jurídico que mais graves conseqüências trazem para a pessoa humana.
Enquanto a Genética avança rapidamente, o Direito persegue, sofregamente, seus passos. No Brasil, há um Projeto de Lei, ainda em tramitação, que pretende tipificar as condutas ilícitas de discriminação genética – o Projeto de Lei n. 149, de 1997 –, mas que não encontrou apelo político suficiente para ir a Plenário.
Até há pouco tempo, trabalhos jurídicos envolvendo Genética restringiam-se ao tema da clonagem humana, em razão da perplexidade das conseqüências do uso de sua técnica. Todavia, muitas são as vertentes que podem ser trabalhadas sob o enfoque da manipulação genética. No Brasil, o assunto ganhou mais relevo durante o processo de elaboração e votação da Lei de Biossegurança, embora seu texto final tenha se revelado extremamente limitado.
A proteção jurídica dos dados genéticos é tema fundamental para a reconstrução da teoria dos direitos de personalidade no Estado Democrático de Direito. Seu tratamento e interpretação jurídicos envolvem amplas discussões, que poderão modificar por completo a relação do Direito com a Ética e com a Medicina.
É claro, portanto, que o conhecimento da técnica de mapeamento e manipulação genética envolve riscos e, neste ponto, a proteção jurídica dos dados genéticos deve resguardar a dignidade da pessoa humana.
Este trabalho pretende abordar tão-somente os aspectos introdutórios para localização dos dados genéticos humanos no ordenamento jurídico e antever formas de proteção. Para tanto, iniciaremos com uma exposição do Projeto Genoma Humano, seguiremos no encalço da legislação pertinente e finalmente adentraremos na proteção dos dados genéticos como direitos de personalidade.
2 PROJETO GENOMA HUMANO
Em meados do século XVII, a criação do microscópio lança a pesquisa científica rumo à menor unidade da vida. O microcosmo descoberto abre à Medicina as fronteiras da citologia.
Muito se evoluiu da teoria celular à genética clássica. Mendel (1822-1884) bem representa essa passagem à genética científica, descrevendo que as características do indivíduo são-lhe transmitidas hereditariamente, com fatores do pai e da mãe, combinados pelas células sexuais (GUÉRIN-MARCHAND, 1999, p. 20).
A descoberta dos cromossomos por Wilhem Waldeyer, em 1888, e a descrição do funcionamento e estrutura do DNA, em 1953, por James D. Watson e Francis H. C. Crick foram eventos determinantes no desenvolvimento da genética.
Desde 1980, a França trabalhava com seqüenciamento genético. Em 1984, Robert Sinsheimer idealizou a criação de um instituto que pudesse fazer o seqüenciamento do genoma humano. No entanto, sua idéia não se consolidou como ele idealizara, mas foi amadurecida por outros pesquisadores e, em 1986, o Departamento de Energia dos Estados Unidos organizou um encontro científico, em Santa Fé, para discutir questões concernentes à pesquisa do genoma humano. Seu principal interesse no mapeamento genético era a busca de uma melhor compreensão de como se dão os “efeitos da radiação sobre os seres humanos e seus genes”. (ALBANO, 2004, p. 24) Outros órgãos e instituições se interessaram pela pesquisa, pois apesar de demandar tempo e dinheiro, este seria o maior projeto desenvolvido na área biológica.
O tema apresentado à comunidade de pesquisadores prosperou, e foram calorosos os debates. Sua importância era óbvia e, constatando-a, os Institutos Nacionais de Saúde decidiram tomar a dianteira das pesquisas.
Em 1988, com o intuito de aprofundamento das pesquisas criou-se a organização conhecida como HUGO (Human Genome Organization), sob a direção inicial de James Watson, e contando com a participação de pesquisadores de diversos países. Esse período também é marcado pelo crescente interesse dos países em realizar a pesquisa internamente, ganhando espaço, além dos Estados Unidos, no Japão, no Canadá, na Grã-Bretanha, na Alemanha, na França e na Itália. Todavia, oficialmente, o Projeto Genoma Humano (PGH) teve início em 1990, com a participação inicial de Canadá, Estados Unidos, França, Inglaterra, Itália e Japão. Aos poucos, mais de 50 Estados ingressaram no Projeto, inclusive o Brasil.
O PGH consiste no mapeamento, seqüenciamento e descrição do genoma humano.
Realizar o mapeamento genético significa representar graficamente o posicionamento dos genes no genoma humano. Este processo de mapeamento implica em fragmentar o DNA, catalogar as seis bilhões de bases que o compõem e reconstituir sua seqüência original.
Após a determinação da posição e do espaçamento dos genes, tem início o seqüenciamento, isto é, desfazer-se a dupla hélice de DNA, colocando as bases químicas (adenina, timina, citosina e guanina) em seqüência para que possa ser lida a informação contida no cromossomo.
Por fim, decifram-se e interpretam-se as informações obtidas, relacionando-as ao fenótipo, definido como as características visíveis e não visíveis do ser humano.
Em 2000, cinco anos antes do previsto, as primeiras fases do PGH estavam concluídas.
Interessante perceber o conflito econômico que permeia a discussão da liberação de informações sobre o seqüenciamento genético. Cientistas franceses e americanos divergiram, desde o início, sobre a reserva de patentes de seqüenciamentos.
Conta Moser que, antes do Projeto Genoma Humano, outros projetos com objetivos semelhantes, mas sem cooperação internacional, foram instituídos. A França largou na frente, em 1980, ao criar o Centro do Polimorfismo Humano (CEPH), com finalidade de decifrar o genoma e localizar genes defeituosos. Em 1988, através de empreendimentos privados, foi criado, na França, o Généthon, laboratório de pesquisa que tornaria público os resultados da pesquisa, sem reserva de patentes. Em 28 de outubro de 1992, a CEPH repassou dois mil seqüenciamentos à UNESCO. (MOSER, 2004, p. 21-30)
De forma diversa ocorreu nos EUA. Em 1987, começou a funcionar o US Genome Project, com claro objetivo de patentear as informações obtidas.
“En 1991, el Dr. Craig Venter, a la sazón en los NIH, presentó a la Oficina de Patentes norteamericana (USPTO) una solicitud de patentes para 337 secuencias parciales de genes humanos, obtenidas mediante transcripción inversa (por acción de la reverso transcriptasa sobre los ARNm correspondientes). En 1992 la solicitud se ampliaba a 2700 nuevos fragmentos, que por su manera de obtención se denominaron en general de expressed sequence tags (EST), marcas o etiquetas de secuencias expresadas, porque cada una corresponde a unos cuantos cientos de pares de bases de la versión funcional del gen, es decir aquella que una vez transcrita en ARN primario (por la ARN-polimerasa), madura hasta ARNm por eliminación de los intrones (secuencias intercaladas en la versión genómica del gen, que son escindidas durante el proceso de corte y empalme o splicing)[1].” (IÁÑEZ PAREJA, 2000)
Divergências, sobre a patenteabilidade de seqüências genéticas, entre Craig Venter e James Watson levaram este a deixar a direção da HUGO e, mais tarde, Venter fundou uma empresa privada objetivando a obtenção de seqüências genéticas[2].
Importante destacar que, embora se tenha concluído o seqüenciamento do genoma humano, ainda é desafiadora a compreensão de quais genes são ativos e a determinação de como e quando são ativados. Também não se sabe a influência dos genes sobre as proteínas que são por eles codificadas.
As dúvidas parecem maiores quando se analisa a função das seqüências de DNA que não codificam proteínas – os íntrons[3].
“a maioria dos biólogos moleculares os considera sobras evolucionárias, ou DNA-lixo. Os íntrons foram considerados remanescentes de uma época anterior à evolução da vida celular, quando fragmentos de informações codificadoras de proteínas se reuniram nos primeiros genes”. […]
“Em termos simples, a charada é esta: menos de 1,5% do genoma humano codifica proteínas, mas a maioria dele é transcrita em RNA. Ou o genoma humano (e o dos outros organismos complexos) está cheio de transcrição inútil, ou esses RNAs desempenham alguma função inesperada.” (MATTICK, [200-], p. 20)
Assim, o anúncio do fim do Projeto Genoma Humano é apenas o primeiro passo na compreensão da complexa arquitetura do ser humano. Há um longo e desconhecido caminho a trilhar, mas as poucas e incertas informações decifradas já são capazes de revolucionar a visão que o homem tem de si mesmo.
3 OS DADOS GENÉTICOS HUMANOS
Vê-se que o surgimento de novas tecnologias genéticas tem promovido conflitos e dúvidas no âmbito jurídico que não encontram respaldo no aparato legislativo para sua resolução.
Não há legislação específica no Brasil que aborde a temática dos dados genéticos. Por essa razão, o estudo partirá de documentos internacionais – em especial a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, aprovada na 29ª Conferência Geral da UNESCO, em 11 de novembro de 1997; e a Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos, aprovada na 32ª Conferência Geral da UNESCO, em 16 de outubro de 2003 – e, em seguida, passará à análise sucinta de algumas legislações sobre o tema.
3.1 Declarações internacionais
Vários são os documentos internacionais que recomendam procedimentos e práticas nas pesquisas envolvendo seres humanos. Pode-se regredir historicamente ao Código de Nuremberg, de 1947, que cuidou das experimentações com seres humanos, estabelecendo as bases do consentimento informado.
Entidades de classe também elaboraram documentos relevantes como a Declaração de Helsinque, aprovada na 18ª Assembléia Geral da Associação Médica Mundial (WMA) e emendada em outras Assembléias da Associação até seu texto atual, de outubro de 2000. Essa Declaração, mais detalhada que o Código de Nuremberg, também se dedica ao consentimento e ao procedimento investigativo envolvendo seres humanos, mas reconhece a vulnerabilidade dos pesquisados (art. 8) e a necessidade de avaliação da pesquisa por um comitê independente de ética (art. 13); regula a pesquisa com incapazes (art. 24, 25 e 26); e estabelece cuidados médicos adicionais, que, independentemente dos resultados da pesquisa, devem ser utilizados para prevenção, diagnóstico e terapia (art. 28 a 32).
Citem-se, ainda, a Declaração de Inuyama, aprovada em 1990, no Japão, pelo Conselho da Organização Internacional de Ciências Médicas, sobre mapeamento genético, experimentação genética e terapia gênica; e a Declaração de Bilbao sobre o Direito ante o Projeto Genoma Humano, de 1993. Esta última menciona a intimidade como patrimônio pessoal e afasta a utilização dos dados genéticos com fins discriminatórios.
Em abril de 1997, foi elaborada em Oviedo a Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, proposta pelo Conselho da Europa. A Convenção, em vigor desde 1º de dezembro de 1999, trata de quaisquer intervenções na área de saúde, incluindo tratamentos e investigações científicas. Vários artigos são dedicados à manifestação do consentimento para as intervenções. Seu Capítulo IV refere-se ao genoma humano, havendo artigos que regulam a não discriminação em virtude do patrimônio genético (art. 11º); os testes preditivos de doenças genéticas ou propensão a elas (art. 12º); intervenções modificativas do genoma humano (art. 13º) e a proibição de seleção de sexo em reprodução humana assistida (art. 14º).
Devido à importância, influência e especificidade, destacam-se a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, de 1997, e a Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos, de 2003. Ambas foram aprovadas em conferências gerais da UNESCO e centram-se no respeito à dignidade humana e na proteção dos direitos humanos, quando da coleta, tratamento, utilização e conservação de dados genéticos humanos e de amostras biológicas.
Passa-se à análise da Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos.
Logo no art. 1º, o genoma humano, expresso como a base da unidade fundamental da espécie humana, é classificado como patrimônio da humanidade. Fica a advertência de Galán Juárez:
“Por el momento se acordó que el genoma humano, que atañe a todos los seres humanos hoy existentes ya los que existirán, es patrimonio de la humanidad. En este sentido no puede quedar exclusivamente en manos de la iniciativa privada, ni deberá explorarse comercialmente. Sin embargo, la investigación que se haga a partir de él no es patrimonio de la humanidad: aquí radica el peligro.” (GALÁN JUÁREZ, 2005, p. 230)
Preocupada com possíveis discriminações, essa Declaração estabelece a necessidade de se garantir o respeito à dignidade e aos direitos humanos, independentemente das características genéticas do indivíduo. Tais características não representam a totalidade do homem, ser único e irrepetível, e que não pode ser representado apenas biologicamente.
Quanto às características do genoma humano, o documento cita a evolutividade e a extracomercialidade. É evolutivo, pois submetido a mutações e reputa-se res extra commercium, devendo ser proibida sua transação financeira.
Para investigação, tratamento e diagnóstico que intervenha no genoma humano, o art. 5º incorpora os princípios da beneficência e da autonomia, determinando a avaliação prévia dos riscos e benefícios da intervenção, bem como da necessidade do consentimento prévio, livre e esclarecido das pessoas envolvidas.
Ninguém deve ser submetido a discriminação com base em suas características genéticas. Além disso, os dados genéticos que possam identificar o indivíduo deverão ser mantidos em sigilo. E qualquer dano sofrido em razão da intervenção no genoma, é passível de reparação de caráter indenizatório. (art. 6º, 7º, 8º)
O artigo 9º deve ser analisado com cautela, visto que restringe os princípios do consentimento e da confidencialidade:
“Com vistas a proteger os direitos humanos e as liberdades fundamentais, qualquer restrição aos princípios de consentimento e confidencialidade só poderá ser estabelecida mediante lei, por razões imperiosas, dentro dos limites estabelecidos no direito público internacional e a convenção internacional de direitos humanos”. (UNESCO, 1997)
Interessante perceber que a Declaração abre caminho para a intervenção do Estado no mais íntimo bem do ser humano – sua personalidade. Assim, em nome do denominado “interesse público”, abre-se mão do consentimento e da confidencialidade.
Rememore-se que a autonomia pública, princípio fundante da democracia, é constituída pelo exercício de plurais “autonomias privadas”. Assim, como alerta Daniel Sarmento, há interdependência entre interesse público e interesse privado:
“Portanto, o quadro que se delineia diante dos olhos é muito mais o de convergência entre interesses públicos e particulares do que o de colisão. Tal situação, repita-se, não constitui a exceção, mas a regra. Na imensa maioria dos casos, a coletividade se beneficia com a efetiva proteção dos interesses dos seus membros. Até porque, o interesse público, na verdade, é composto pelos interesses particulares dos membros da sociedade, razão pela qual se torna em regra impossível dissociar os interesses públicos dos privados.” (SARMENTO, 2007, p. 83-84)
Permitir que a necessidade de consentimento seja afastada tendo em vista um pretenso “interesse público” é um procedimento típico de Estado totalitário e não de um Estado que pretende a proteção da diferença e do pluralismo.
O acesso aos resultados da pesquisa é garantido no art. 12, a: “Toda pessoa deve ter acesso aos progressos da Biologia, da Genética e da Medicina em matéria de genoma humano, respeitando-se sua dignidade e direitos”. (UNESCO, 1997)
Ainda sobre o acesso, mas tendo como base outros Estados, preocupa-se, a Declaração, em promover a cooperação internacional quanto ao tratamento de pessoas portadoras de doenças genéticas, incentivos às pesquisas referentes ao genoma humano. O “Capítulo E” enfatiza a necessidade da cooperação dos países desenvolvidos àqueles que estão em desenvolvimento, quanto aos estudos e resultados.
Por fim, incentiva os Estados a adotarem os princípios estabelecidos e a promoverem sua divulgação.
Adentra-se, agora, na Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos, de 2003. Mais específica que a Declaração anterior, esta é dividida em 27 artigos, distribuídos em sete capítulos.
O primeiro capítulo estabelece disposições gerais, informando os objetivos e alcances da Declaração, a definição de certos termos, tais como dados genéticos, teste genético, rastreio genético e aconselhamento genético.
Dados genéticos humanos são definidos como as “informações relativas às características hereditárias dos indivíduos, obtidas pela análise de ácidos nucléicos ou por outras análises científicas” (art. 2º, I, UNESCO, 2003). São, concomitantemente, informações de um indivíduo e de um grupo, por caracterizarem toda uma descendência.
O art. 3º admoesta que as características genéticas não são capazes de descrever por completo a identidade pessoal, que é composta por fatores complexos.
Os dados genéticos podem indicar predisposições genéticas dos indivíduos; podem ter para a família conseqüências importantes que se perpetuam durante gerações; podem conter informações cuja relevância não se conheça no momento de extrair as amostras biológicas e também podem ser importantes do ponto de vista cultural para as pessoas ou grupos (art. 4º).
Os dados genéticos têm a capacidade de identificar indivíduos, revelar futuras enfermidades e fornecer informações sobre parentesco, uma vez que englobam quaisquer informações genéticas, desde as mais gerais às mais específicas. Assim, pode-se dizer que possuem as características de serem únicos, preditivos, estruturais, probalísticos e geracionais. (HAMMERSCHMIDT, 2005, p. 17)
Os dados genéticos são únicos porque apresentam informações genéticas do ser humano enquanto espécie, sendo, nesse sentido, patrimônio da humanidade. São estruturais por guardarem características especiais de um indivíduo diferenciando-o dos outros, tornando-o singular. São probabilísticos por apresentarem, de forma aproximada, as possibilidades do desenvolvimento de alguma enfermidade. E, por fim, são geracionais por informar a herança genética do indivíduo e a sua interligação genética com seus parentes. (HAMMERSCHMIDT, 2005, p. 17-20)
O segundo capítulo preconiza sobre o fornecimento e a retirada de consentimento pelo indivíduo que se submeterá ao tratamento e como proceder para obter consentimento caso os envolvidos sejam incapazes ou menores.
Cabe ao investigado escolher se quer ou não conhecer os resultados da investigação. Daí a importância do aconselhamento genético,
“que consiste em explicar as conseqüências possíveis dos resultados de um teste ou de um rastreio genético, suas vantagens e seus riscos e, se for caso disso, ajudar o indivíduo a assumir essas conseqüências a longo prazo. O aconselhamento genético tem lugar antes e depois do teste ou do rastreio genético além de assessoramento profissional na hipótese de conseqüências importantes para a saúde da pessoa”. (art. 2º, XIV, UNESCO, 2003)
Os Estados devem adotar medidas que promovam o acesso de seus titulares aos dados genéticos e proteômicos e mantenham a privacidade daqueles dados, coibindo o fornecimento a companhias de seguro, empregadores e instituições de ensino. (art. 13º, 14º e 15º)
Os dados genéticos podem ser utilizados como prova em procedimentos judiciais ou para fins de medicina legal, mas devem ser destruídos assim que se tornem desnecessários (art. 12º e 21).
Por fim, destaca-se a necessidade de divulgação da Declaração, cooperação internacional nas pesquisas e partilha dos benefícios dos testes e exames realizados.
4 DADOS GENÉTICOS COMO DIREITOS DE PERSONALIDADE
Os dados genéticos humanos compõem a complexa estrutura de identificação de um indivíduo, apresentando informações a partir da análise de seu DNA. Essas informações genéticas determinam o funcionamento de todo o organismo, mas, como já alertava o citado art. 3º da Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Humanos, são apenas um componente da identidade.
Para melhor compreensão dos dados genéticos, será exposto um pouco do funcionamento e estrutura dos genes.
Em organismos complexos, eucariontes, o material genético está confinado no núcleo celular. Este material genético é o cromossomo, que, nos seres humanos, são em 23 pares. O cromossomo constitui-se de ácido desoxirribonucléico (DNA) e proteínas. Setores específicos do DNA, referentes a informações específicas, são chamados genes.
Cada cromossomo possui uma grande quantidade de genes, responsáveis pela transmissão das características hereditárias. Nos 23 pares de cromossomos há, aproximadamente, 25 mil genes. (MATTICK, [200-], p. 20)
Há muito que se especulava ser a molécula de DNA, no interior do cromossomo, que explicaria a transmissão das características de geração a geração.
Somente com a descoberta, em 1950, da estrutura do DNA, a Genética pôde solucionar muitas de suas inquietações.
A estrutura molecular do DNA consiste em dois filamentos entrelaçados, formando uma dupla hélice. Cada filamento de DNA é composto de diferentes seqüências de nucleotídeos: adenina, guanina, timina e citosina. O nucleotídeo é a subdivisão do filamento de DNA que contém um desses quatro componentes químicos. Cada nucleotídeo de um filamento une-se a outro específico do outro filamento por ligações químicas, denominadas pontes de hidrogênio.
O DNA codifica diferentes aminoácidos[4] a partir das variadas seqüências de nucleotídeos possíveis. Estes, por sua vez, em razão da sua seqüência, originam proteínas diversas. E, por fim, são estas proteínas a matéria-prima do corpo humano.
A interpretação dessas seqüências permite avaliar a propensão a doenças genéticas e até corrigi-las por meio da inserção de novo material genético, alterando a antiga estrutura. Essa intervenção médica de modificação genética, conhecida por terapia gênica, só se tornou possível após o conhecimento dos dados genéticos.
Dados genéticos são, portanto, informações obtidas, ou passíveis de se obter, do DNA e RNA humanos. A proteção jurídica não se faz presente apenas quando o material genético é transformado em informação; a mera potencialidade de se converter em informação já produz efeitos jurídicos. Assim, não é necessário que alguém tome conhecimento da informação, a simples potencialidade dela existir pode, no caso concreto, ser juridicamente relevante. Por esta razão protege-se a intimidade genética ou se garante ao indivíduo a possibilidade de recusar a análise genética.
Dessa forma, dado genético e material genético não são coincidentes; aquele é o resultado da transformação deste em informação ou, ao menos, a potencialidade de transformar o material genético em informação.
Essa informação, segundo Aitziber Emaldi Cirión (2007, p. 201), pode traduzir-se em: a) Predição do futuro, pois diagnostica não somente doenças existentes, mas também predisposições a doenças; b) Informação secundária, “quando se investiga em um paciente a relação de um ou vários polimorfismos com a resposta a um medicamento” (EMALDI CIRIÓN, 2007, p. 201); c) Informação sobre a família biológica, determina a ascendência genética a partir da comparação de perfis genéticos.
Já se afirmou que os direitos de personalidade congregam os diversos aspectos da pessoa humana, consistentes em bens que guarnecem a própria personalidade. São direitos considerados tradicionalmente como necessários, vitalícios, indisponíveis, extrapatrimoniais e intransmissíveis.
Há perfeita correspondência entre os dados genéticos, a definição e as características dos direitos de personalidade. Aqueles são informações vitais para o desenvolvimento da vida humana; são necessários, já que toda a matéria viva é regida, biologicamente, pelas informações de seus genes; são vitalícios, pois se constituem em bens que acompanham o curso da vida humana; são indisponíveis e intransmissíveis, pois sua disposição ou transmissão implicaria na cessação da vida de seu titular; e, por fim, são extrapatrimoniais, devido à impossibilidade de avaliação econômica, por isso são considerados bens fora do comércio.
Se os direitos de personalidade são bens definidores da própria pessoa, por isso projeção jurídica do ser, os dados genéticos encaixar-se-iam perfeitamente nessa categoria.
Logo, a proteção oferecida aos direitos de personalidade deve ser utilizada também na garantia das informações genéticas humanas. E, pela gravidade e extensão da ofensa, deve-se sempre preferir a tutela inibitória, isto é, a tutela preventiva pela qual se evita a concretização de um ato ilícito que ainda se encontra em potência. É a proteção da mera ameaça a direito e que, no que se refere aos dados genéticos, pode se dar de maneiras variadas.
Imaginemos a situação de um empregador que noticia um processo seletivo para admissão de novos empregados e coloca, dentre os requisitos para o candidato, “boa saúde genética”, que seria verificada por meio de exames.
Primeiro, não é válida a discriminação com base em informações genéticas. Segundo, a mera predisposição genética a uma doença não implica necessariamente no posterior desenvolvimento da mesma. Terceiro, os dados genéticos são pessoais e sigilosos, não podendo ser exigidos por outros como requisito para obtenção de qualquer vantagem.
Sobre este assunto, saliente-se, por fim que existe em tramitação o Projeto de Lei do Senado n. 149, de 1997, de autoria do Senador Lúcio Alcântara, que em seu art. 6º proíbe qualquer restrição ao acesso ao trabalho em empresas públicas ou privadas devido às características genéticas, e ainda penaliza quem transgride essa regra:
Art. 6º Recusar, negar ou impedir inscrição em concurso público ou em quaisquer outras formas de recrutamento e seleção de pessoal com base em informação genética do postulante, bem como, com base em informações dessa natureza, obstar, impedir o acesso ou a permanência em trabalho, emprego, cargo ou função, na Administração Pública ou na iniciativa privada.
Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa.” (BRASIL, 1997)
Há, ainda, a possibilidade de se tutelar os dados genéticos por intermédio de ações ressarcitórias, seria a tutela indenizatória. No caso em exame, raras seriam as hipóteses em que esta tutela conseguiria atingir a própria finalidade da responsabilidade civil – a reparação integral. Retornar ao estado anterior à lesão ou ofensa, mostra-se, no mais das vezes, impossível. Assim, nestas hipóteses o Direito se contenta com a compensação do dano da forma mais ampla possível.
Percebe-se, pois, que o advento da Biotecnologia modificou a concepção de espaço privado. A intimidade adentrou-se, também, para o nível genético. Estes novos problemas e searas requerem a reconstrução da categoria de “direitos de personalidade”. Não mais como direitos inerentes ao ser humano, pois tal predicação recobra a rigidez jusnaturalista, e mesmo juspositivista, de direitos ex ante, previstos pelo legislador, mas fora da situação concreta.
O Direito é fato histórico em constante reconstrução. Os direitos de personalidade também se caracterizam dessa historicidade, que os faz flexíveis ao tempo, mas em constante transformação.
Informações Sobre os Autores
Bruno Torquato de Oliveira Naves
Doutor e Mestre em Direito Privado pela PUC Minas; Coordenador do Curso de Especialização em Direito Civil da PUC Minas; Professor dos Cursos de Graduação e Especialização em Direito na PUC Minas
Aline Maria Pollom Franco Naves
Bacharela em Direito pela PUC Minas