Resumo: O presente trabalho apresenta algumas informações a respeito do surgimento da Lei no 9.099/95, especificamente sobre os Juizados Especiais Criminais. Colaciona-se também alguns trechos que revelam o pensamento jusfilosófico do Marquês de Beccaria, com o intuito de evidenciar que a Lei no 9.099/95, ao contrário de ser uma “revolução” na doutrina do Direito Processual Penal brasileiro, trata-se mais de uma relegitimação de um Direito Penal ultrapassado, de matriz iluminista, que se mostra ineficaz em relação à resolução de conflitos intersubjetivos. Elabora-se uma crítica ao termo “despenalização” utilizado por alguns dogmáticos e conclui-se que a referida lei permite uma maior eficiência estatal no exercício do seu monopólio da violência (ius puniendi). [1]
Palavras-chave: Juizados Especiais Criminais; relegitimação do sistema penal; iluminismo.
Sumário: Introdução; 1. Inspiração legislativa para o surgimento dos Juizados Especiais Criminais; 2. O surgimento dos Juizados Especiais Criminais; 3. Aspectos controvertidos da Lei dos Juizados Especiais Criminais; Conclusão.
INTRODUÇÃO
O presente ensaio tem por intento apresentar uma breve abordagem a respeito do surgimento da Lei no 9.099/95, especificamente a que deu origem aos chamados Juizados Especiais Criminais, uma vez que estes foram criados para aplacar uma crise institucional do Poder Judiciário na efetivação do ius puniendi em relação às contravenções penais e crimes de menor gravidade, como já estava sendo discutido durante a elaboração da Constituição de 1988, e não como uma adequação do discurso jurídico-penal brasileiro a um programa de “despenalização”, como comumente afirmado por vários dogmáticos que tratam do assunto. Ao que tudo indica, ocorreu uma readaptação do discurso jurídico penal brasileiro, do final do século XX, ao discurso jusracionalista do Marquês de Beccaria da segunda metade do século XVIII, como será visto adiante.
1. Inspiração legislativa para o surgimento dos Juizados Especiais Criminais
Inicialmente salienta-se que a questão contemporânea sobre o acesso à justiça é, sobretudo, um assunto pertinente ao Direito Processual, visto que este aponta os diversos tipos de procedimentos que devem ser adotados na instância formal do Estado de Direito para a resolução de seus conflitos intersubjetivos, tanto na área do Direito Público quanto do Direito Privado. Certamente que pouco serve às pessoas um Ordenamento Jurídico ornamentado de declarações de Direitos, nos moldes da teoria do iluminismo jusracionalista e da técnica juspositivista, se não existirem estruturas estatais capazes de garantir a eficiência das leis nos casos concretos.
Diante da necessidade de se reestruturar a prestação jurisdicional no Brasil, durante a década de 80, do século XX, o Legislador brasileiro editou a Lei no 7.244 de 07 de novembro de 1984[2], criando os “Juizados Especiais de Pequenas Causas”, com competência para as causas cíveis de valor não superior a 20 (vinte) salários-mínimos[3] e orientados pelos princípios instituídos no artigo 2o, que prescrevia: “O processo, perante o Juizado Especial de Pequenas Causas, orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando sempre que possível a conciliação das partes.”
A mencionada lei foi considerada um sucesso total, sendo aplaudida, especialmente pelos magistrados, que viram milhares de causas (cíveis) serem resolvidas por intermédio da conciliação entre as partes e “desafogando” muitos cartórios judiciais pela forma célere e eficaz de resolução dos conflitos através do consenso entre as partes.[4] Parecia que o Legislador brasileiro – orientado pela Ciência Jurídica – havia descoberto que uma das formas mais eficazes de resolução dos conflitos é permitir o consenso direito entre as partes. E isso através das leis! Faltava, todavia, levar os princípios da informalidade e do consenso para a esfera do Processo Penal; e isso ocorreu com a promulgação da Lei no 9.099, de 16 de setembro de 1995.[5]
Comentou o Desembargador do Estado de São Paulo, Antônio Carlos Viana dos Santos, durante um ciclo de palestras em 1995, que foi na Associação Paulista de Magistrados “[…] que nasceu a origem da Lei 9.099, por volta de 85/86, enquanto ainda se desenvolvia o processo legislativo constituinte.”[6] Michel Temer, Deputado Constituinte e autor do Projeto original da Lei 9.099/95, parece confirmar essa origem dos Juizados Especiais Criminais:
“Como surgiu a lei federal? Em 1989, logo após editada a Constituição de 1988, eu cuidei de reunir aqui em São Paulo vários juízes, promotores, tive o concurso da profa. Ada Pellegrini Grinover, que me auxiliou muito nessa tarefa, e acabamos formalizando um projeto que instituía ou que definia as chamadas causas de menor potencial ofensivo. Portanto, disciplinei com meu projeto (fui o veículo desse projeto) o chamado Juizado Especial Penal.”[7]
De fato, com a promulgação da Constituição Federal de 05 de outubro de 1988, institui-se que:
“Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão:
I – juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumariíssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau; […].”
Nota-se que a Lei de 1984, que dispunha sobre os Juizados Especiais de Pequenas Causas, tinha competência para as ações cíveis, mas, com o advento da Constituição Federal de 1988, havia a previsão para a criação de juizados especiais para tratar de infrações penais de menor potencial ofensivo. Restou a pergunta: O que é uma “infração penal de menor potencial ofensivo”?
2. O surgimento dos Juizados Especiais Criminais
Passados praticamente sete anos da promulgação da Constituição Federal de 1988, o então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, sancionou a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995, que “dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências.” Esta Lei, do artigo 1o ao 59 dispõe sobre o procedimento civil e do artigo 60 ao 92 dispõe sobre o procedimento criminal. Nas disposições gerais da parte criminal, na época de sua publicação, merecem destaque os artigos 60 e 61, in verbis:
“Art. 60. O Juizado Especial Criminal, provido por Juízes togados ou togados e leigos, tem competência para a conciliação, o julgamento e a execução das infrações penais de menor potencial ofensivo.
Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 1 (um) ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial.”
Como revelou Michel Temer sobre a competência dos Juizados Especiais Criminais: “Ao definir quais seriam essas causas, dissemos que contravenções penais seriam atribuíveis a esse Juizado Penal, aquelas questões que envolvessem apenação até um ano de pena seriam julgadas pelo Juizado Penal.”[8] Assim, o Legislador de 1995 definiu que “menor potencial ofensivo” seria a infração para a qual a Lei Penal prevê uma aplicação de “pena” privativa de liberdade (prisão simples ou detenção) e/ou multa, sendo consideradas, para tanto, todas as contravenções penais e dezenas de crimes previstos no Código Penal e Leis extravagantes.
Merece nota o fato que, se o objetivo do legislador brasileiro fosse resolver os conflitos intersubjetivos entre as pessoas e não aplicar as sanções advindas de uma legislação penal, deveria o Poder Legislativo reduzir amplamente o rol das infrações penais. Todavia, não foi isso que aconteceu, pois não ocorreram alterações nos tipos penais[9], mas tão somente uma flexibilização em determinados princípios do Direito Processual, objetivando a celeridade processual e aplicação de penas não privativas de liberdade aos infratores, representando uma tão propalada revolução[10] no Processo Penal. Os princípios que regem o Juizado Especial Criminal estão previstos no artigo 62:
“Art. 62. O processo perante o Juizado Especial orientar-se-á pelos critérios da oralidade, informalidade, economia processual e celeridade, objetivando, sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade.”
Com tal dispositivo processual, tem-se a impressão de que a vítima foi “redescoberta” pelo legislador do final do século XX, e surgiram vários elogios para a inovação dada pela Lei no 9.099/95, visto que a tradicional pena privativa de liberdade para os infratores da lei penal estaria proscrita e a inovação legislativa permitiria a extinção da punibilidade por intermédio do consenso entre as partes envolvidas em um conflito criminal.
Não podemos olvidar, todavia, que em se tratando de Direito Penal a vítima constante é o próprio Estado, que teve as sua lei penal violada.[11] Nesse sentido, já havia anunciado o iluminista Marquês de Beccaria, em sua famosa obra Dos delitos e das penas:
“Com efeito, no caso de um delito, há duas partes: o soberano, que afirma que o contrato social foi violado, e o acusado, que nega essa violação. É preciso, pois, que haja entre ambos um terceiro que decida a contestação. Êsse terceiro é o magistrado, cujas sentenças devem ser sem apêlo e que deve simplesmente pronunciar se há um delito ou se não há”.[12]
Tal postulado jusfilosófico encontra respaldo no artigo 100, caput, do Código Penal brasileiro, sendo que a grande maioria das infrações penal de nosso Ordenamento Jurídico-penal é de ação penal pública incondicionada, ou seja, com a Lei dos Juizados Especiais Criminais o Estado se “redescobriu” como vítima de infrações de menor potencial ofensivo.
Nessa perspectiva, como o infrator das leis continua sendo a pessoa que viola uma norma penal soberanamente editada pelo Estado, percebe-se que a grande inovação da Lei dos Juizados Especiais Criminais foi permitir a informalidade para o início do ius persequendi[13] para efetivar com maior celeridade o ius puniendi. O fato é que o Poder Judiciário pôde, a partir da referida Lei, formalizar e punir pequenas infrações que o Estado há tanto tempo vinha desprezando por falta de estrutura.
A estratégia legislativa inaugurada pela Lei no 9.099/95, neste ponto, também parece encontrar orientação jusfilosófica na obra Dos delitos e das penas:
“Às vezes, a gente se abstém de punir um delito pouco importante, quando o ofendido perdoa. É um ato de benevolência, mas um ato contrário ao bem público. Um particular pode bem não exigir a reparação do mal que se lhe fêz; mas o perdão que êle concede não pode destruir a necessidade do exemplo. O Direito de punir não pertence a nenhum cidadão em particular; pertence às leis, que são o órgão da vontade de todos. Um cidadão ofendido pode renunciar à sua porção dêsse direito, mas não tem nenhum poder sôbre a dos outros.[sic]”[14]
Nesse sentido, interessante comparar tal pensamento do Marquês de Beccaria com as palavras do magistrado Marco Antônio Marques da Silva, que durante um ciclo de palestras realizadas em São Paulo, alguns meses após a promulgação da Lei no 9.099/95, salientou:
“Então, sem dúvida, estamos em face de um novo Direito Penal. Volto a insistir, ainda que com o princípio da autoridade mitigado, a autonomia da vontade reduzida é um começo. Talvez seja um começo para toda uma reforma do Direito Penal que cria a verdadeira ressocialização.” […] “Se pudéssemos fazer uma comparação, eu diria que com a mudança dos costumes fomos perdoando aqueles pecados veniais, os pecados pequeninos, aqueles do dia-a-dia que não precisariam de uma grande penitência, e depois chegamos às portas até de permitirmos pecados mortais. Eu diria que no campo criminal foi assim, nos fomos desprezando as pequenas infrações, aquelas que aconteciam todo dia mas também não faziam tanto mal à gente. […] Eu acho que é isso que os juizados vêm trazer para nós: a intenção de uma mudança, de tomada de posição, uma prestação jurisdicional mais rápida, mais imediata, algo que não nos traz de novo a via crucis que nós temos no processo penal.”[15]
Por sua vez, no mesmo evento, o então membro do Ministério Público e Deputado Estadual paulista Dráusio Barreto exprimiu:
“Não há dúvida alguma que os Juizados Especiais, tanto no cível quanto o criminal, trazem um conteúdo revolucionário, no bom sentido, para a nossa justiça, justiça que há muito tempo vem sendo criticada, justiça que sofre por parte da opinião pública, por parte da sociedade, um desgaste intenso na sensação de que ela não se materializa, que não acontece, de que é morosa, de que não é acessível, de que não é igualitária, de que ela trata os iguais de forma desigual. Essa lei federal, a 9.099, seguramente traz esse conteúdo de levar a justiça à nossa sociedade, especialmente à parcela mais carente do nosso povo, que não tem nenhum contato com nossa justiça. Ouvimos dizer de justiça gratuita no nosso país e no nosso Estado, mas sabemos que as coisas na prática não são bem assim, sabemos da dificuldade da nossa população em ter qualquer questão sua submetida ao Judiciário, a ausência de advogados, a ausência de procedimentos mais dinâmicos. E tudo isso, seguramente, pode tornar-se uma nova realidade através do funcionamento desses Juizados Especiais”.[16]
Diante de tais opiniões, pode-se perceber que a Lei dos Juizados Especiais Criminais foi apresentada à sociedade como sendo uma inovação avançada em relação ao Direito Penal contemporâneo. Entretanto, se comparadas tais opiniões com o discurso do Marquês de Beccaria, do século XVIII, pode-se afirmar que ocorreu uma relegitimação do Direito Penal – simbólico e ultrapassado[17] –, permitindo ao Poder Judiciário formalizar e punir os “delitos de menor potencial ofensivo”, que historicamente escapavam à jurisdição do Estado constituindo a “cifra negra da delinqüência”[18].
Deveras, a inspiração para a criação dos Juizados Especiais Criminais parece ter sido a estrutura precária do Poder Judiciário, e não uma consciência do legislador de que o Direito Penal contemporâneo deve adequar-se ao princípio da intervenção mínima. Nas palavras de Michel Temer:
“Eu começo, portanto, dizendo aos amigos um pouco a respeito da origem dos chamados Juizados Especiais, tanto cíveis para julgamento das causas cíveis de menor complexidade. Diz o Art. 98 da Constituição, quanto aos Juizados Penais para julgamento, diz a Constituição, das causas penais de menor potencial ofensivo. Apenas para rememorar, quero dizer que durante a Constituinte de 88 havia uma grande preocupação com a chamada morosidade do Poder Judiciário, havia uma preocupação extraordinária em fazer do Poder Judiciário um poder mais rápido, mais veloz, mais ágil. O que era buscado como exemplo naquela oportunidade era a experiência dos chamados Juizados de Pequenas Causas criados em nível infraconstitucional, em nível legal. E ao lado dos Juizados de Pequenas Causas também os chamados Juizados Informais de Conciliação. Criaram-se, paralelamente aos Juizados de Pequenas Causas, esses juizados que visavam única e simplesmente à conciliação entre partes envolvidas num conflito de natureza civil. Este exemplo foi levado para a Constituinte com o objetivo de criar alguns instrumentos na Constituição que tornassem mais ágil a prestação jurisdicional.” [sic] [19]
A Lei no 9.099/95, portanto, surgiu com a necessidade de se “desafogar” o Poder Judiciário e, ao mesmo tempo, aprimorar o poder simbólico do ius puniendi pelo Estado, isto é, ampliar de maneira sutil e discursiva a capacidade institucional de aplicação de sanções formais, inclusive em conflitos penais de menor potencial ofensivo, efetivando, de maneira simplificada e mais célere, o controle seletivo da sociedade de maneira paternalística; e não com o intuito amplamente declarado de se evitar a aplicação de pena privativa de liberdade ou “humanizar” o Direito Penal, que continua intacto.
3. Aspectos controvertidos da Lei dos Juizados Especiais Criminais
Cumpre verificar que parte da dogmática processual penal brasileira afirma que a Lei no 9.099/95 promoveu uma “despenalização” no Direito Penal. Nesse sentido, Ada Pellegrini Grinover e outros, ao comentar a lei em questão, salientam:
“O Poder político (Legislativo e Executivo), dando uma reviravolta na sua clássica política criminal fundada na crença dissuasória da pena severa (déterrance), corajosa e auspiciosamente, está disposto a testar uma nova via reativa ao delito de pequena e média gravidade, pondo em prática um dos mais avançados programas de ‘despenalização’ do mundo (que não se confunde com ‘descriminalização’)”[20]
Com a devida vênia aos autores supra referidos, parece inadequado falar-se em “despenalização” em relação à Lei no 9.099/95, pois esta tão somente preconiza a possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade pela aplicação imediata de pena de multa ou outras penas restritivas de liberdade[21]; isto é, a capacidade do Estado aplicar uma “pena” efetiva aumentou consideravelmente e, por isso, não há que se falar em não aplicação de sanção penal (despenalização).
Não se descura, todavia, que a “reparação dos danos sofridos pelas vítimas” (artigo 74); a “transação penal” (artigo 76); a “aplicação de pena não privativa de liberdade” (artigo 62); a “suspensão (condicional) do processo” (artigo 89); e a exigência de representação nos crimes de lesão corporal leve e lesão corporal culposa (artigo 88 da Lei no 9.099/95 c/c artigo 129, caput e § 6o, do Código Penal) – tornando-os crimes de ação penal pública condicionada à representação do ofendido –, podem ser considerados como um avanço no sentido de evitar a aplicação e execução de pena privativa de liberdade; mas não podem ser confundidos com “despenalização”, pois o legislador não alterou as leis penais, tanto que o critério de competência para o Juizado Especial Criminal é o quantum de pena previsto em cada tipo prescrito no Ordenamento Jurídico.
Quanto à questão da “informalidade”, nota-se que, mesmo em se tratando da possibilidade de conciliação entre o infrator (autor do fato) e a vítima, na forma dos artigos 72 e 74 da Lei no 9.099/95, esse tipo de resolução dos conflitos entre as partes não pode, em hipótese alguma, ser considerada “informal”. Ao revés, com a flexibilização dos procedimentos pertinentes ao Processo Penal o que ocorre é uma possibilidade de extinção do ius puniendi com base nos princípios incólumes da ação penal, previstos no artigo 100, caput e parágrafos, do Código Penal; mas não a instituição de resolução de conflitos de maneira informal.
Ademais, sobre a formalidade no processo penal, salientam Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco:
“No processo penal, não há possibilidade de conciliação fora do processo. Mesmo para a transação anterior ao oferecimento da denúncia, facultada pelo art. 72 e ss. da lei n. 9.099/95, haverá sempre necessidade de controle jurisdicional: trata-se de conciliação extraprocessual por natureza, mas endoprocessual pelo momento em que pode ser efetivada (audiência preliminar).”[22]
Mesmo na fase da Transação Penal (artigo 76 da Lei no 9.099/95), onde o Ministério Público pode propor uma pena não privativa de liberdade ao suposto autor do fato, como alternativa ao dever/poder de promover a ação penal pública (artigo 129, inciso I, da Constituição Federal), evidentemente o Estado teve por objetivo aumentar a sua capacidade de aplicar uma punição formal através de um “procedimento informal” ao infrator de suas normas penais[23]; em especial nas condutas de menor potencial ofensivo, que correspondem aos fatos mais frequentes que ocorrem no cotidiano das pessoas e que, por falta de estrutura do próprio Estado, constituíam a “cifra negra da criminalidade”. Nesse sentido, Maria Lúcia Karam expõe:
“No Brasil, não muito depois da criação dos juizados especiais criminais, já se percebia esta “economia” funcional ao agigantamento do sistema penal. Em matéria publicada na imprensa em 1997, registrava-se que a criação dos juizados especiais criminais havia aumentado significativamente a imposição de penas alternativas no país, mas não implicara redução da população carcerária. Um dos entrevistados, embora entusiasta do suposto caráter liberalizante do Lei 9.099/95, reconhecia que as punições haviam aumentado sobre uma população de infratores, que antes não recebia punição efetiva. Era a constatação, no Brasil, no pouco tempo de aplicação da então nova lei, do que Pavarini menciona como “ampliação da rede de controle penal, para inclusão na área da criminalização secundária do que, de fato, antes lhe escapava”.”[24]
Os métodos informais de resolução de conflitos penais entre os próprios envolvidos na infração penal, que antes da Lei no 9.099/95 fugiam da esfera de vigilância do Estado e muitas vezes eram obtidos através de acordos fora do Poder Judiciário – inclusive dentro das Delegacias, onde autoridades e agentes policias admoestavam as partes para não entrarem na aventura de uma ação penal e faziam acordos “informais” entre as pessoas –, ganharam um ambiente estatal formal para efetivar, de maneira célere, o Direito Penal construído historicamente como um instrumento de centralização política e controle de cada indivíduo para torná-lo um súdito/cidadão obediente ao discurso oficial do Estado soberano.[25]
Ainda, motivado pela necessidade de demonstrar maior eficiência estatal por intermédio do controle de um maior número de infrações penais, o Poder Legislativo, por intermédio da Emenda Constitucional no 22, de 19 de março de 1999, acrescentou ao artigo 98, da Constituição Federal de 1988, o parágrafo único:
“Art. 98. […]
Parágrafo único. Lei federal disporá sobre a criação de juizados especiais no âmbito da Justiça Federal.”
Assim, permitido Constituição, o Poder Legislativo editou a Lei no 10.259, de 12 de julho de 2001, aumentando a competência dos Juizados Especiais Criminais (inclusive no âmbito estadual), como pode ser observado no seguinte artigo:
“Art. 2o Compete ao Juizado Especial Federal processar e julgar os efeitos de competência da Justiça Federal relativos às infrações de menor potencial ofensivo.
Parágrafo único: Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, ou multa.”
Com tal estratégia, o Estado flexibilizou ainda mais a sua capacidade de aplicar penas de maneira “informal” e célere aos infratores, oferecendo o “benefício” de uma pena não privativa de liberdade em troca da submissão do suposto autor dos fatos a uma pena mais indulgente; ressaltando-se sempre que as infrações penais que possibilitam a extinção do processo entre os próprios envolvidos no conflito penal – ação penal privada e ação penal pública condicionada à representação do ofendido – são de porcentagem extremamente reduzida em comparação às infrações que são submetidas diretamente ao Ministério Público para a aplicação de pena imediata não privativa de liberdade, como dispõe a Lei dos Juizados Especiais Criminais.
Embora a Lei no 10.259/01 fosse amplamente aplicada – por analogia – nos Juizados Especiais Criminais na esfera da Justiça Estadual, em 28 de junho de 2006 foi editada a Lei no 11.313, que estabeleceu definitivamente a competência dos Juizados Especiais Criminais no Brasil, sendo que qualquer infração penal cuja pena não seja superior a 2 (dois) anos de pena privativa de liberdade ou multa, são entendidos como delitos de “menor potencial ofensivo”.
Tal estratégia evidentemente indica a preocupação estatal em punir mais e melhor as condutas criminosas menos graves e, como já salientava Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria no século XVIII:
“Como os homens não se entregam, a princípio, aos maiores crimes, a maior parte dos que assistem ao suplício de um celerado, acusado de algum crime monstruoso, não experimentam nenhum sentimento de terror ao verem um castigo que jamais imaginam poder merecer. Ao contrário, a punição pública dos pequenos delitos mais comuns causar-lhes-á na alma uma impressão salutar que os afastará de grandes crimes, desviando-os primeiro dos que o são menos.”[26]
CONCLUSÃO
Enfim, com o presente ensaio, pode-se notar que embora tenham se passado mais de dois séculos da famosa obra Dos delitos e das penas, do Marquês de Beccaria, ao que tudo indica o Direito Penal e Processual Penal continuarão reproduzindo o saber jusracionalista iluminista legalista e centralizador, pois, ao contrário de se tentar resolver os conflitos intersubjetivos das pessoas e pacificar a sociedade do século XXI, o Estado continua tentando capilarizar cada vez mais seu poder simbólico na sociedade, mesmo que para isso tenha que continuar impondo a todos os indivíduos uma legislação penal pautada em “informalidade” e “celeridade” para aprimorar e alargar o exercício do monopólio da violência (ius puniendi).
Informações Sobre o Autor
Alexandre Ribas de Paulo
Professor Assistente da Universidade Estadual de Maringá (UEM), lecionando na matéria de Direito Processual Penal. Advogado Criminalista. Mestre em Direito, Estado e sociedade pelo Curso de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (CPGD/UFSC). Doutorando em Direito pelo CPGD/UFSC.