Resumo: Partindo de uma análise crítica do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal na ação popular nº 3.388, que versou sobre a demarcação da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, analisa-se o modelo de justiça adotado pela Corte. Tomando como ponto de partida a base econômica comum à pluralidade das necessidades humanas, seja de índios ou não-índios, busca-se compreender se, sob uma perspectiva material, o modelo de reconhecimento identitário aplicado pela Corte brasileira foi capaz de promover a paridade participativa entre os indivíduos envolvidos no procedimento demarcatório.
Palavras-chave: Reconhecimento, identidade, justiça, paridade participativa, Amazônia, indígenas.
Abstract: From a critical analysis of the ruling of the Supreme Court in the popular action No. 3388, which was about the demarcation of the Raposa Serra do Sol, analyzes the model of justice adopted by the Court. Taking as its starting point the economic base common to the plurality of human needs, whether Indians or non-Indians, we seek to understand whether, from a material perspective, the identity model of recognition applied by Brazilian Court was able to promote participatory parity among individuals involved in the demarcation procedure.
Keywords: Recognition, identity, justice, participatory parity, Amazon, Indians.
Sumário: 1. O caso Reserva Raposa Serra do Sol no Supremo Tribunal Federal. 2. Alguns aspectos do caso Reserva Indígena Raposa Serra do Sol. 3. Reconhecimento, justiça e paridade participativa.
1. O caso Reserva Raposa Serra do Sol no Supremo Tribunal Federal.
No primeiro semestre do ano de 2009 o Supremo Tribunal Federal (STF), a mais alta corte judicial brasileira, prolatou decisão referente ao polêmico caso envolvendo a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, onde habitam aproximadamente dezenove mil índios aldeados nas tribos Macuxi, Wapixana, Taurepang, Ingarikó e Paramona – em julgamento paradigmático que estabeleceu uma série de conceitos e diretrizes válidas não só para o caso em questão, mas para todas as reservas indígenas demarcadas ou em processo de demarcação no Brasil. Resumidamente, tratava-se de ação popular proposta em maio de 2005 por dois cidadãos brasileiros residentes no Estado de Roraima, onde questionava-se o modelo de demarcação contínua das terras indígenas situadas nas regiões conhecidas como Raposa e Serra do Sol, sob diversos argumentos, entre os quais o de que tal feito traria consequências desastrosas para o Estado roraimense sob os aspectos comercial, econômico, social, ao não serem levados em conta os interesses dos ‘não-índios’ que habitam a região há anos, tornando a terra produtiva no curso das gerações. A região demarcada representa cerca de 7% do território roraimense, que possui 46% de seu território ocupado por outras reservas indígenas – o que, somadas às áreas de reserva ambiental, inviabilizaria a vida econômica na região, no entender dos autores populares. Os autores pleiteavam que o decreto fosse anulado, e que as regiões ocupadas por índios na reserva fossem demarcadas em um modelo de ilhas, possibilitando a permanência dos agentes econômicos já estabelecidos no local, e não de forma contínua como fazia o decreto presidencial. O processo, autuado em 51 e um volumes, foi finalizado em um acórdão de 752 laudas, sob relatoria do Ministro Carlos Ayres Britto, onde os ministros da Corte discorreram sobre diversos aspectos relacionados ao caso, como histórico da região, indigenato, segurança das fronteiras nacionais, acesso do poder público à região, entre outros, em um autêntico ‘leading case’ brasileiro que servirá de modelo para outros procedimentos demarcatórios de terras indígenas em curso. O presente estudo tem seu foco nos aspectos e efeitos econômicos da decisão, identificando os custos e riscos advindos do encontro entre a abstração típica dos discursos argumentativos de uma decisão judicial e a realidade concreta enfrentada pela localidade. Importante ressaltar que não se propõe a uma revisão legal da decisão proferida pelo Supremo, ou dos aspectos constitucionais lá invocados, e nem se trata de um trabalho a favor ou contra qualquer grupo de pessoas, sejam índios ou não-índios, mas sim um estudo científico focado na análise dos aspectos econômicos produzidos pelo direito, tomando-se por base o caso paradigmático Raposa Serra do Sol.
No acórdão, os ministros do Supremo Tribunal Federal decidiram pela legalidade da demarcação das terras indígenas de forma contínua, e não em ilhas conforme pretendiam os autores populares, sustentando uma série de considerações antropológicas consignadas no procedimento demarcatório promovido pela União, em que se demonstrava a ocupação tradicional dos índios na região Raposa/Serra do Sol – e que a presença dos ‘não-índios’ na região não lhes conferia direitos sobre as terras indígenas, tecendo uma série de considerações sobre o indigenato, sobre a criação do Estado de Roraima pelo artigo 14 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, bem como sobre o comportamento expansionista dos posseiros locais, documentados nos próprios registros imobiliários constantes dos autos, conforme observado no voto do ministro relator. Especificamente sobre o comprometimento econômico do Estado de Roraima, a posição majoritária da Corte foi a de que, em que pese a Reserva Indígena ocupe 7% do território roraimense e que somadas todas as reservas indígenas na região se atinja o percentual de 46% do território, a parte remanescente do Estado de Roraima é maior do que o território de muitos Estados economicamente ativos, como o Rio de Janeiro, Pernambuco, Espirito Santo, Alagoas – conforme o voto da Ministra Carmem Lúcia, a área remanescente equivale a seis vezes o território de Israel – o que, aliado ao fato de que Roraima é o estado menos populoso do país, seriam suficientes para demonstrar que a economia local não ficaria comprometida (o que será revisto criticamente na sequência). De acordo com a decisão, as populações indígenas foram sendo gradualmente empurradas para fora de suas terras pelos agropecuaristas locais, sob a conivência de um Estado personificado por grupos de poder oligárquico. O Ministro Eros Grau afirmou em seu voto que não se trata propriamente de uma disputa entre agentes econômicos e índios, pois as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios pertencem à União, e os agentes econômicos lá estabelecidos seriam invasores do bem público, sem qualquer direito. Além disto, conforme a posição majoritária da Corte, a demarcação contínua das terras seria necessária para a viabilização do modelo econômico tradicional dos índios, com seu sistema rotativo de plantio, conhecido por ‘coivara’, e sobretudo porque os índios ocupavam tradicionalmente as terras de forma contínua, e não em ilhas. De acordo com o voto majoritário, o desenvolvimento deve ser visto não só como categoria econômica e material, servida pelos mais avançados padrões, como também permeado de valores. O Ministro Joaquim Barbosa afirma em seu voto que as alegações de que a demarcação prejudicaria a economia do Estado de Roraima são de ordem meramente especulativa, embasando-se em dados da FUNAI para afirmar que a exploração agrícola na área não chega aos 1,75% do PIB de Roraima. A Ministra Ellen Gracie, acompanhando o voto do relator, afirma que é preciso que o Estado brasileiro “se mobilize no resgate dessa dívida histórica que temos com a população indígena”. A posição majoritária consigna ainda que Roraima é um estado que não se mantém sozinho, necessitando de constantes investimentos de recursos públicos.
O único voto divergente foi proferido pelo Ministro Marco Aurélio Mello, que se manifestou pela citação e intimação de todos os interessados (índios, proprietários, Estado de Roraima, municípios, Ministro da Justiça, Presidente da República, Ministério Público, etc), bem como pela necessidade de produção de prova pericial para averiguar as supostas nulidades do procedimento demarcatório alegadas pelos autores populares – o que no entender do Ministro, deveria ter sido feito de ofício. De todas as questões processuais levantadas no voto divergente – o qual aconselha-se uma detalhada leitura – extrai-se a constatação de que nem todas as partes envolvidas foram devidamente ouvidas durante o procedimento demarcatório, que sequer contou com produção probatória suficiente para desfazer as controvérsias entre os laudos técnicos fornecidos por diferentes órgãos públicos (FUNAI, Senado, Câmara dos Deputados). Usando um argumento inverso ao apresentado pelos outros ministros, ressaltou que o território destinado a cerca de dezoito mil índios equivale a onze vezes o tamanho da cidade de São Paulo, onde vivem onze milhões de pessoas. O Ministro destaca ainda o trabalho desenvolvido por Evaristo Eduardo de Miranda, doutor em ecologia e chefe-geral da Embrapa Monitoramento por Satélite, que atesta que a disponibilidade de terras para a ampliação da produção de alimentos e de energia, para a reforma agrária, o crescimento das cidades e instalação de obras de infraestrutura no Brasil, encontra-se comprometida pelo número significativo de terras destinadas à proteção ambiental e ao uso exclusivo de algumas populações, como os indígenas e os remanescentes de quilombolas – gerando uma limitação real, física, para o crescimento do Brasil. Contrariando os votos anteriores, conclama que “a visão romântica, calcada em dívida caduca – e por que não falar dos quilombolas – seja alijada deste julgamento”. O Ministro destaca ainda que não existiu consenso nem mesmo entre os indígenas sobre o modelo de demarcação, visto que somente os representantes da etnia Macuxi foram ouvidos, ficando de lado os representantes das etnias Ingarikó, Patamona, Wapixana e Taurepang (tal ausência no procedimento consta inclusive no voto do relator), que conforme o voto divergente atesta, estavam totalmente adaptados ao convívio com os não-índios, participando inclusive do cenário político nacional/regional, e se manifestaram diversas vezes pela manutenção dos não-índios no local. Desconsiderou-se, desta maneira, os interesses dos grupos indígenas que habitam a região, mas que não têm a intensão de viver da mesma forma como viviam seus ancestrais. Outro ponto importante do voto divergente chama a atenção para o fato de que o laudo antropológico que embasou a decisão foi elaborado por uma antropóloga da FUNAI, com a colaboração de representantes do Conselho Indígena de Roraima e do Conselho Indígena Missionário, ambos favoráveis à demarcação da reserva de modo contínuo. O Ministro destaca ainda a discussão sobre os efeitos econômicos para a região, destacando a importância da agropecuária para o desenvolvimento da economia roraimense, e a situação de instabilidade gerada pelas constantes ameaças de desapropriação de terras regularmente registradas perante os órgãos competentes, como foi o caso dos autos. Ainda de acordo com o voto vencido, o país já conta com cerca de 108 milhões de hectares de terras indígenas, 13,5% do território nacional destinados para cerca de 400 mil indivíduos em terras propriamente rurais. Por fim, destaca que a demarcação de reservas indígenas é prevista constitucionalmente, mas o modelo dessas demarcações não; além disso, destaca o direito de propriedade e o direito a um devido processo legal como direitos fundamentais também passíveis de proteção. Estranhamente, apesar do pedido de vista formulado com antecedência, os votos de sete ministros foram apresentados antes que o Ministro Marco Aurélio pudesse ter acesso aos autos e sem que o mesmo pudesse apresentar seu voto em conjunto com os demais ministros, como é de costume naquele colegiado – tal discussão inclusive ficou acaloradamente registrada na ata do julgamento. O resultado foi que a importante contribuição ventilada pelo voto divergente acabou sendo ignorada pelos demais membros da Corte.
A partir da leitura das 752 laudas do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal no caso, observa-se que os ministros basearam a concretização da norma constitucional atinente à proteção das comunidades indígenas nos aspectos antropológicos apresentados durante o processo demarcatório, sobretudo pelo laudo da FUNAI, e que o eixo orientador da decisão foi o de preservar os “usos e costumes tradicionais” dos índios brasileiros, propiciando-lhes terras suficientes para que preservem seu modo de produção, baseado em um sistema rotativo de plantio, e que cabe a eles, e somente a eles, decidirem livremente sobre o modo de vida que desejam adotar – a partir deste ponto, referiremos a este paradigma de promoção da justiça como modelo de reconhecimento identitário, por estar embasado no reconhecimento de uma construção identitária específica. A Corte demonstra-se evidentemente ciente de que a maior parte dos índios brasileiros passa por um processo de aculturação, mesclando costumes tradicionais e não-tradicionais – e ressalva que apesar do processo de aculturação, esses indivíduos permanecem sendo índios. A visão majoritária da Corte considerou haver uma espécie de dívida histórica com os índios e, por conta dessa suposta dívida, a produção realizada pelos índios em suas terras recebeu o benefício da isenção tributária. O posicionamento do Supremo embasou-se nas disposições constitucionais relativas à proteção das comunidades indígenas, operacionalizando-as com as dezoito proposições contidas no voto do Ministro Menezes Direito, de modo a estabelecer um modelo com a intensão de compatibilizar a demarcação das terras indígenas com a soberania nacional, o acesso do poder público, e as demais normas constitucionais. Em junho de 2009, uma operação conjunta da Polícia Federal e do Exército brasileiro, sob a supervisão do ministro relator, promoveu a retirada dos não-índios da região. Mas, sob uma perspectiva material, seria este modelo de reconhecimento identitário capaz de promover a paridade participativa entre os indivíduos envolvidos no procedimento demarcatório? É a esta questão que pretende-se elucidar com o presente trabalho.
2. Alguns aspectos do caso Reserva Indígena Raposa Serra do Sol.
Uma decisão do porte da que fixou a Reserva Indígena Raposa Serra do Sol gera diversos efeitos econômicos para os envolvidos, sejam índios ou não-índios, e também para a localidade, ao modificar as relações jurídicas dentro de uma estrutura social já estabelecida. Estes efeitos econômicos regionais são potencializados para escala nacional, pela intenção majoritária dos ministros em promover uma espécie de leading case a partir dos parâmetros estabelecidos no acórdão, tornando-os norteadores de casos semelhantes em processo de demarcação em todo Brasil. Para se ter um posicionamento definitivo sobre a eficiência econômica dos parâmetros estabelecidos pela decisão, tanto para os índios quanto para os não-índios, será necessário um maior transcurso de tempo, para que os efeitos econômicos se concretizem, estabilizando-se, e sejam tabulados em dados estatísticos. Contudo, a partir da argumentação desenvolvida pelos ministros pode-se vislumbrar o modelo de justiça idealizado pela corte, e sobretudo sua fundamentação filosófica, de modo a possibilitar uma investigação sobre os efeitos econômicos e os resultados práticos esperados. Neste sentido, vale ressaltar o componente retórico da fundamentação jurídica exposto nas teorias argumentativas de PERELMAN (1996): a maneira de justificar uma interpretação em detrimento de outra não consiste em uma demonstração coercitiva que aplica regras enumeradas previamente, mas numa argumentação de maior ou menor eficácia. Trata-se, desta maneira, de uma escolha razoável entre várias soluções possíveis, desde que não ultrapasse determinados limites. Deste modo, pretende-se primeiramente destacar os fundamentos retóricos utilizados pela Corte para fundamentar a decisão, promovendo-se, em seguida, uma análise sobre os efeitos possíveis do modelo de justiça adotado e seus desdobramentos no plano concreto.
Um dos pontos nevrálgicos da decisão está justamente no reconhecimento de que os índios aculturados continuam sendo índios, aliado à tentativa de preservação de um modelo de produção agrícola baseado na tradição indígena pré-colombiana em que prevalece a propriedade coletiva das terras e seu uso para plantio de forma rotativa, conhecido por ‘Coivara’. Para tanto, foi adotado um modelo de usufruto coletivo das terras indígenas, que são de titularidade da União. Conforme o voto majoritário, a demarcação das terras indígenas deve ter por base a preservação deste modelo identitário, como forma de preservação da cultura indígena e da capacidade de autodeterminação de seus membros, valores expressos constitucionalmente. Contudo, conforme ressaltado pelo voto divergente, o modelo adotado para a preservação da cultura indígena não é expresso na constituição, estando textualizadas apenas algumas diretrizes, e cabendo ao intérprete moldá-lo, e para tanto não podem ser deixados de lado os demais valores constitucionais, como a liberdade de iniciativa e a proteção à propriedade privada, que não foram postos em patamar inferior aos direitos dos indígenas.
Outro ponto que não pode ser deixado de lado é a real intensão das comunidades indígenas, que já passaram por séculos de aculturação, em manter-se comprometidos com um modelo tradicional baseado na propriedade coletiva. Caso intentem integrar-se ao ambiente cultural dos ‘não-índios’, regido pelo foco da propriedade privada, do mercado e do capital, será necessário que este modelo de produção seja capaz de gerar excedentes suficientes para prover recursos e possibilitar essa integração, ou os índios que não desejarem viver aldeados encontrarão dificuldades de se integrarem por suas próprias forças – resultando, em última análise, em um entrave à paridade participativa de todos os indivíduos. Partindo-se do pressuposto de que nem todos os índios desejam para si o modo de vida dos ‘não-índios’, há que se considerar também a perspectiva inversa: o direito dos índios que não desejam viver aldeados de se integrarem à sociedade e de se capacitarem para tanto – e sobretudo de contarem com meios materiais reais de tornar essa hipótese possível.
Ao assimilar culturas ‘não-tradicionais’ ao seu modo de vida, os índios passam a assimilar também a algumas necessidades produtivas alheias ao modo de produção de seus ancestrais – uma coisa não existe sem a outra, assim como não existe almoço gratuito. O que se pretende ressaltar não é específico a índios ou não-índios, mas à totalidade das relações humanas: em geral, para cada necessidade humana existe um custo e uma forma de custear sua realização, que pode ser representado de diversas maneiras, monetariamente ou não. As necessidades de um índio não-aculturado eram satisfatoriamente atendidas pelo modelo econômico tradicional indígena, antes da chegada das primeiras embarcações europeias. Contudo, passados mais de 500 anos de encontro entre culturas diferentes, não é certo que este modelo seja capaz de atender às necessidades dos índios atuais, familiarizados com os costumes dos não-índios e conscientes da existência de um mundo que se organiza sob outros parâmetros, a alguns quilômetros de distância de suas terras. Caso a resposta seja positiva e os índios consigam realizar plenamente suas necessidades econômicas através de terras de uso coletivo, sob um modo de plantio baseado na rotatividade das plantações, a Corte terá chegado a um modelo de sustentabilidade novo, possivelmente diverso do concebido dentro do modelo capitalista tradicional; caso a resposta seja negativa, chegaremos à inevitável conclusão de que a decisão judicial inviabilizou a sustentabilidade econômica da região, e que os indivíduos que lá habitam necessitarão de outros meios para suprir suas necessidades, em que pese as boas intensões da Corte em relação ao indigenato brasileiro. E se estes indivíduos não forem plenamente capazes de satisfazer às suas expectativas, ou buscarão outros meios para fazê-lo por si sós, adaptando-se, ou não serão realmente livres para auto-determinar seus modos de vida, pondo abaixo o eixo argumentativo em que se fundamentou a decisão.
Levando-se em conta que o presente artigo foi redigido alguns meses após a retirada dos não-índios da região, ainda não há disponibilidade de dados estatísticos capazes de embasar uma conclusão definitiva sobre a sustentabilidade da economia local. Contudo, com base na argumentação jurídica aduzida no acórdão estudado, bem como em notícias publicadas em alguns jornais de grande circulação nacional e em dados disponíveis sobre a economia de Roraima, podem-se demonstrar algumas peculiaridades capazes de evidenciar a necessidade de uma análise mais cuidadosa sobre a viabilidade econômica da operacionalização de ações afirmativas embasadas em um modelo de reconhecimento que altere as relações sociais já estruturadas e estabilizadas, sob pena de criar empecilhos à paridade participativa dos indivíduos envolvidos.
2.1.Modelo tradicional indígena e necessidades básicas.
O principal problema para esta questão é a definição do que seriam necessidades básicas, sobretudo o que seriam as necessidades básicas de índios aculturados. Conforme Amartya SEN, a concepção amplamente adotada é a de considerar como ‘necessidades básicas’ a representação da preferência de uma pessoa (2000, p. 87). Para os fins deste artigo esta definição parece adequada, sobretudo por ressaltar o pluralismo humano e a diversidade do que pode ser concebido como necessidades básicas para indivíduos diferentes. Sob este prisma, e levando-se em consideração que nem todos os índios da região participaram dos estudos e procedimentos realizados para a demarcação da reserva indígena, evidencia-se a existência de pluralidade substancial entre necessidades básicas que buscaram ser reconhecidas através da demanda judicial. Conforme ressalta o voto divergente, o laudo antropológico que embasou o voto majoritário foi elaborado com o auxílio dos índios favoráveis à demarcação das terras indígenas de forma contínua, e à exclusão dos não-índios da região, enquanto os demais índios (contrários às medidas) não fizeram parte do estudo. Independentemente de considerações sobre as formalidades processuais, o fato é que os grupos indígenas que não foram ouvidos eram justamente os que se manifestavam favoravelmente à permanência dos não-índios na região – e o mínimo que este fato demonstra é a existência de divergências entre os próprios índios sobre o assunto. Isto significa que um grupo de índios teve capacidade de organização suficiente para intervir no procedimento demarcatório da reserva, enquanto outro grupo de índios, com posicionamento divergente, por algum motivo não foi capaz de se organizar para contribuir com suas opiniões sobre o procedimento.
Necessidades básicas de índios que querem se integrar aos costumes de ‘não-índios’, são diferentes das necessidades daqueles que não querem – e privilegiar um modo de vida em relação ao outro é não promover a desejada isonomia entre os membros daquela comunidade. Da mesma maneira, o sistema agrícola tradicional dos índios, baseado na propriedade coletiva, também pode não ser capaz de suprir às necessidades básicas dos índios que desejam se integrar ao mundo que existe fora da reserva, com todos os seus conhecidos custos de vida. Isto porque o sistema de produção tradicional dos indígenas não precisava se preocupar com a complexa circulação de mercadorias existente nos dias atuais, e nem com os custos para adquirir tais mercadorias e, por consequência, não havia a necessidade de criação de excedentes ou a acumulação de capital nos mesmos moldes que ocorrem no mundo ‘não-índio’. Ignorar os interesses plurais existentes dentro da própria comunidade indígena, como se a todo índio só interessasse ser índio aldeado, protegido do convívio ‘não-índio’ dentro de uma reserva, pode não ser concretamente uma forma de inclusão, mas sim de manutenção da exclusão histórica experimentada pelas comunidades indígenas. Assim como em qualquer sociedade pluralista, naturalmente os grupamentos indígenas também experimentam o dissenso sobre os rumos que o grupo deve tomar. Contudo, os custos incertos que a aculturação promoveu na forma de vida dos índios, bem como a pluralidade de necessidades básicas internas àquela comunidade não foram levados em conta quando da demarcação da reserva.
Em que pese a falta de dados sobre a capacidade dos índios locais em suprir suas próprias necessidades, um indício importante pode ser antevisto pelos resultados da ‘Operação Escudo Dourado’, deflagrada pela Polícia Federal em conjunto com o Exército brasileiro em 12 de outubro de 2009, que segundo reportagem veiculada pela versão on line do jornal Folha de São Paulo em 24 de outubro de 2009, resultou na prisão de dez pessoas (dentre os quais cinco índios), e na localização de dez garimpos clandestinos. Ainda segundo a reportagem, o secretário estadual do Índio, Jonas Marcolino, afirmou que a prática de garimpo na Reserva Raposa/Serra do Sol é uma “questão de sobrevivência”, sem a qual os índios podem “morrer de fome”. Na mesma reportagem noticia-se que, de acordo com o líder indígena Abel Barbosa, ligado à Sodiur (Sociedade dos Índios Unidos do Norte de Roraima), que era favorável à presença dos produtores de arroz, cerca de cem famílias foram prejudicadas pela operação porque dependiam dos garimpos para garantir seu sustento[1]. Conforme a própria decisão do Supremo, a prática de garimpo e faiscação são proibidas na região, devido ao seu alto impacto ambiental, dependendo a atividade de autorização da União para funcionar. Se o conteúdo da reportagem for verossímil, podem-se antever os resultados trágicos causados pela demarcação da reserva não só para os índios, que segundo a reportagem dependem da atividade clandestina para não morrer de fome, mas também para o equilíbrio ecológico da região, dado o potencial nocivo dos garimpos. Desta notícia pode-se ter antever também que o peso da aculturação na vida dos índios atuais foi subestimado, visto que cerca de cem famílias dependiam do garimpo para não morrer de fome, e não da agricultura ou do extrativismo, conforme seria de se esperar da tradição do índio da região amazônica.
Conforme noticiado em outra matéria publicada na versão on line do jornal Folha de São Paulo[2], no dia 05 de maio de 2009, técnicos ligados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST entraram em contato com os índios da Reserva Raposa Serra do Sol, com intuito de assessorá-los na melhor forma de lidar com o arroz, visando a transformar o local em um polo de produção de arroz orgânico. Conforme a matéria, o arroz, originário da Ásia, era justamente o produto plantado pelos proprietários de terra afetados pela criação da reserva indígena. Caso tal parceria se concretize e seja implantada uma monocultura de arroz na região, seria interessante coletar dados sobre os resultados dessa produção, e sobretudo da divisão dos resultados dessa produção: o lucro obtido por algumas dezenas de agricultores seria suficiente para garantir o sustento dos dezoito mil índios? Enquanto estes dados não estão disponíveis, resta a observação de que toda a concepção abstrata sobre o modelo identitário do índio brasileiro desenvolvida pelo Supremo com intuito de preservar os costumes e tradições agrícolas pode estar sendo dispensada pelos próprios índios, ao plantarem um alimento oriundo de outro continente, sob técnicas aprendidas com especialistas ‘não-índios’.
Das matérias jornalísticas acima citadas, evidencia-se a relação de evolução conjunta experimentada por índios e não-índios da região. Até o presente momento, os índios contemplados pela reserva chamaram a atenção no cenário nacional em dois eventos econômicos totalmente alheios aos seus usos e costumes tradicionais: o garimpo e a monocultura de arroz. Isto demonstra que, apesar de toda a retórica sobre o modelo de identidade cultural envolvido, existe um forte fator de aculturação presente na realidade material dos índios. As imposições econômicas para suprir necessidades básicas são mais fortes do que a preservação de uma identidade cultural, ou de um modelo tradicional: os indivíduos cuidam primeiro da sobrevivência material, para depois se ocupar da preservação das tradições identitárias. Independentemente da leitura do Supremo Tribunal Federal sobre a legitimidade de não-índios na região, os fatos evidenciam que os indivíduos ali estabelecidos experimentaram um inter-relacionamento histórico que marcou seus costumes e modos de vida. Este fator de aculturação, por mais que não seja percebido por aqueles que creem estar preservando tradições, geram necessidades e efeitos econômicos reais. Conforme demonstram as matérias citadas, os índios aculturados não estão tendo o mesmo poder de adaptação à mata que seus ancestrais, enfrentando dificuldades para suprir suas necessidades básicas.
Em nenhum momento da decisão prolatada fica consignado que os índios prefiram o pajé aos postos de saúde, ou que abdicariam das escolas em nome da preservação da tradição oral, ou mesmo se desejam se locomover por trilhas na mata ao invés de utilizar vias abertas pelo poder público – muito menos a proporção de índios que porventura assim o desejem de fato. Qualquer benefício social tem custos de realização, e por trás de todo custo há um agente custeador. Caso a reserva e seu modelo de exploração não sejam capazes de atender às expectativas básicas dos índios atuais, isto é, dos indivíduos reais que habitam a reserva, eles necessitarão de aporte de recursos externos, que poderão ser proporcionados de duas maneiras, basicamente: por exploração da comercialização de excedentes oriundos da própria reserva, ou por aporte de recursos oriundos do poder público, com os custos repassados ao contribuinte.
O aporte de capital privado na infraestrutura da reserva ou em parcerias de sua produção parece improvável, por não ser uma transação simples, ante a impossibilidade de ‘não-índios’ frequentarem a reserva sem autorização dos órgãos públicos, bem como pelo alto grau de incerteza nas relações jurídicas. Por se tratar de uma região amazônica, não é difícil prever que tipo de investidores poderiam se interessar em aplicar capitais de risco elevado na reserva. De qualquer modo, pela insegurança jurídica da transação, o mais provável é que o aporte de capital privado simplesmente não aconteça. Por outro lado, para que sua produção se projete de forma competitiva no mundo ‘não-índio’, é provável que os índios necessitem de meios de produção capazes de aumentar sua eficiência, o que representa mais custos e maior necessidade de aporte de capital. Caso os índios optassem por investir em maquinários para otimizar sua produção, necessitariam de linhas de crédito compatíveis com sua produtividade, naturalmente relacionada aos riscos da transação. Se os índios não conseguirem custear seu próprio desenvolvimento, a demanda por recursos públicos tende a aumentar, onerando o contribuinte. Estes são alguns dos aspectos econômicos que os índios inevitavelmente vão se deparar, e não poderão se esquivar de fazer escolhas complexas em nome do tipo de vida que tenham razão para valorizar, por mais que comprometam a integridade de seus costumes.
2.2.O Estado de Roraima e a Reserva Indígena Raposa Serra do Sol
Outro ponto que não pode ser deixado de lado é o efeito da criação de uma reserva indígena para o estado de Roraima, e as consequências econômicas para os ‘não-índios’ da localidade. Em que pese alguns dos ministros terem se manifestado pela pouca relevância econômica da área abrangida pela reserva indígena para a região, inclusive consignando em seus votos que o tamanho remanescente do estado é suficiente para suprir as necessidades da economia, o tema não foi tratado com merecida profundidade. Não existem nos votos dados econômicos concretos suficientes para afirmar se a criação da reserva indígena afeta ou não a economia local. Deste modo, a fundamentação econômica da decisão encontra-se respaldada em argumentos retóricos, impossibilitando uma desejável verificabilidade objetiva dos argumentos ali aduzidos. O simples fato de que o estado possui uma área total maior do que a de outros estados, mesmo que descontados os 46% ocupados por reservas indígenas, fora outras reservas de cunho ambiental, ou a baixa densidade populacional do Estado de Roraima, ou mesmo a afirmação de que as fazendas instaladas na região não representavam parte significativa da economia roraimense não são suficientes para garantir, por si só, que não haverão prejuízos para a economia da região.
A posição majoritária da corte foi a de que o laudo antropológico comprovava a posse indígena nas terras, que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios pertencem à União, e que os agentes econômicos lá estabelecidos seriam invasores do bem público, sem qualquer direito, conforme voto do Ministro Eros Grau. Tudo como forma de reparar uma dívida histórica, conforme consignado no voto da Ministra Ellen Gracie. No voto do relator, ficou registrada a referência a grupos oligárquicos aliados ao Estado para privilegiar os interesses dos agropecuaristas da região. Contudo, não se pode deixar de notar que haviam ali propriedades tituladas pelo INCRA há anos, algumas muito anteriores à Constituição de 1988, com benfeitorias e uma produção organizada e em curso. Vale ressaltar que o INCRA é órgão federal que responde às políticas administrativas do poder executivo da União. O primeiro ponto, e talvez o que cause maior prejuízo ao aporte de investimentos no estado, é a insegurança jurídica causada pela decisão. O fato é que em nome da realização de um modelo de indigenato, pessoas foram retiradas das terras onde estavam estabelecidas há anos, inclusive com títulos de propriedade conferidos pelo Estado, e a terra foi ‘restituída’ aos índios. Aos olhos do investidor, esta informação não é lida propriamente como ‘justiça social’, mas como ‘instabilidade institucional’ e, em última instância, como ‘risco’. Os fatos, despidos de valores a priori, revelam objetivamente que títulos de propriedade conferidos pelo poder público brasileiro podem ser anulados em prol da promoção de modelos de reconhecimento identitários.
Não bastasse a insegurança jurídica gerada pela anulação dos títulos de propriedade e sobre a incerteza quanto aos riscos que o investimento em uma região marcada pela controvérsia entre a preservação de um modelo de indigenato e os interesses de agentes econômicos locais, ainda mais complexificados pelas peculiaridades da exploração econômica em região de floresta amazônica, soma-se o fato de que Roraima é um dos estados mais novos da federação. Conforme Anuário Estatístico de Roraima de 2009[3], Roraima experimenta crescimento populacional acentuado a partir da década de oitenta, quando sua população saltou de 79.721, em 1980, para 217.583 habitantes, em 1991, e continuou em crescimento até os dias de hoje, chegando aos estimados 412.783 em 2008 – mais da metade concentrada na capital, Boa Vista, o que demonstra que as relações jurídicas lá havidas são recentes, em sua maioria. Em reservas indígenas, o estado conta com uma área de 10.401.843 hectares, povoados por cerca de 41.378 índios. No ano de 2007, Normandia contava com 3.922 eleitores, Pacaraima com 4.599 eleitores, e Uiramutã com 3.328 eleitores. Levando-se em conta que a chegada dos ‘não-índios’ à região foi considerada pela Corte como algo ilegítimo, como uma turbação que perturbou a regular organização dos índios, não é difícil de se imaginar que o investidor tenha um pouco de resistência em destinar capital privado para a região. Ante a história recente do estado de Roraima, pouca certeza jurídica se tem sobre a possibilidade de surgirem novas reservas, devolvendo aos índios a terra que lhes foi esbulhada em algum momento da história com base em uma questionável dívida ancestral.
Outro ponto que merece ser ressaltado é que o Estado de Roraima tem uma economia voltada para a agropecuária e o comércio, contando com fraco desenvolvimento industrial. De acordo com dados da Secretaria de Planejamento de Roraima, o arroz, produto plantado pelos ‘não-índios’ na região da reserva antes do cumprimento da decisão, representava importante papel no total de grãos produzidos pelo estado[4]. Em uma região onde a agropecuária representa papel principal na economia, interferências significativas na produtividade podem atrapalhar não só o desenvolvimento regional e o aporte de novos recursos, mas também o regime de preços praticado pelo próprio mercado. Levando-se em conta a máxima capitalista de que os lucros são privatizados e os custos socializados, os maiores prejudicados por uma decisão judicial que interfira bruscamente no mercado e no regime de propriedade vigente serão os destinatários finais daquela mercadoria específica; no caso, os consumidores de arroz da região norte.
Outro ponto que chama a atenção é a afirmativa, por parte da ala majoritária da Corte, de que a parte remanescente do Estado de Roraima é maior do que o território de muitos Estados economicamente ativos e populacionalmente mais densos, como o Rio de Janeiro, Pernambuco, Espirito Santo, Alagoas, o que supostamente demonstraria que a demarcação da reserva indígena não causaria prejuízo para o Estado de Roraima. Conforme exaustivamente exposto no próprio acórdão, o território de Roraima foi transformado em Estado pelo Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, em 1990. A simples inferência de que a criação de inúmeras reservas indígenas não afetará a economia da região, destinando 46% do território de um estado de economia agrícola ao usufruto exclusivo dos índios, sustentando-se no fato de existirem outros estados territorialmente menores economicamente ativos não é propriamente uma análise sobre a sustentabilidade econômica da decisão: a comparação entre estados tão distintos não é suficiente para auferir os parâmetros pretendidos pela Corte. Enquanto Roraima é um dos estados mais novos da federação, e situa-se no extremo norte brasileiro, em área fronteiriça e sem acesso direto ao mar, tendo sua economia fortemente vinculada à agropecuária, todos os estados utilizados na comparação são territorialmente menores, mas em compensação contam com séculos a mais de colonização, são situados em região litorânea, com um imenso apelo turístico já explorado e consolidado há décadas, com parques industriais já estabelecidos e portos estruturados para escoar a produção, infraestrutura implementada, e sobretudo uma economia já consolidada e extremamente diversificada. Nenhum dos estados citados depende da agropecuária para movimentar suas economias, pois apesar do pequeno território, sua posição geográfica lhes proporciona outras alternativas de desenvolvimento. Essa instabilidade de instituições, aliada às despesas geradas para os cofres públicos com a implementação e manutenção de uma reserva indígena, pode ser identificada economicamente como custo social. Sobre a problematização dos custos sociais, vale ressaltar um trecho de um artigo de Ronald COASE (1960), relacionado ao tema:
“Num mundo em que há custos para realocar os direitos estabelecidos pelo sistema jurídico, as cortes estão, de fato, nos casos que envolvem a causação de incômodos, tomando uma decisão acerca do problema econômico e determinando como os recursos devem ser empregados”
Os índios receberam a terra, e em última análise poderão permanecer aldeados, os proprietários de terra serão indenizados pelo Estado; e os custos dessa transação, dessa realocação de direitos, recaem sobre a coletividade – que além de deixar de se beneficiar com a circulação de riquezas proporcionada pela agropecuária, pagará pela destinação das terras a um grupo de indivíduos cuja produção conta com isenção tributária. A realização de valores dentro do sistema jurídico importa também em realocação de recursos; se esses recursos não forem realocados de forma que propicie sustentabilidade, a decisão resultará em um custo para a sociedade que pode não ser de interesse da coletividade – gerando um problema de legitimidade na forma como os recursos públicos são alocados. Em outras palavras, a realização de valores é desejável (e por que não dizer inevitável) e de extrema importância para a formação de uma esfera pública pluralista, contudo a filtragem de que tipo de valores podem permear o ordenamento jurídico depende de uma análise dos efeitos práticos da realização de tais valores, para que gerem resultados desejáveis.
De acordo com os dados apresentados, percebe-se que o Estado de Roraima possui uma economia nova, em desenvolvimento, e que sobretudo apresenta maior fragilidade em relação às unidades federativas mais antigas, merecendo uma atenção especial. O acompanhamento de dados relacionados ao desenvolvimento humano na região da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol é extremamente desejável, no sentido de proporcionar uma análise pragmática dos efeitos econômicos gerados pela decisão na região, bem como a forma que os indivíduos que vivenciam aquela realidade encontrarão para determinar seus modos de vida a partir do modelo adotado.
3. Reconhecimento, justiça e paridade participativa.
Conforme visto, a problematização econômica da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol foi analisada em dois aspectos: primeiro, a capacidade dos índios, organizados em um modelo de usufruto coletivo das terras, em satisfazerem tanto as necessidades daqueles indivíduos que desejam permanecer aldeados e viver sob os costumes tradicionais, quanto daqueles que desejam se integrar ao restante da sociedade; e segundo, os impactos da criação da reserva indígena no modo de viver dos ‘não-índios’, afetando aspectos econômicos do estado de Roraima. Desses dois aspectos, identificam-se três interesses distintos, os quais podem ser harmonizados ou postos em conflito direto, dependendo dos rumos que sustentem a argumentação jurídica sobre o caso. O argumento da ‘dívida histórica’ embasa-se em um modelo de reconhecimento identitário da história do Brasil, que pressupõe que acontecimentos do passado devem ser compensados no presente. O problema deste modelo é encontrar os responsáveis por ‘saldar’ essa dívida, quando a realidade conta com uma população altamente miscigenada, e que sobretudo é resultado de um processo histórico do qual não participou. Conforme destaca Darcy RIBEIRO (1995, p. 106) a colonização do interior do Brasil só foi possível graças aos brasilíndios, ou mamelucos, que adentravam no território promovendo a expansão do domínio português terra adentro – e a formação deste grande contingente de mestiços ocorre justamente pelo encontro de etnias, e não pela sua separação.
É evidente o genocídio de índios durante a colonização, e que enquanto algumas tribos se aliavam aos colonizadores para combater inimigos em comum, outras eram violentamente escravizadas e postas para trabalhar até a exaustão. Não se questiona também que os grupamentos indígenas atuais enfrentem dificuldades que remontam ao processo de colonização do Brasil, como o desemprego, a falta de oportunidades e de infraestrutura, e sobretudo o preconceito. Mas se o objetivo é promover a paridade participativa, é importante ter em vista a medida da isonomia entre índios que desejam viver aldeados, índios que desejam se integrar ao restante do mundo, e ‘não-índios’ que porventura venham a ser afetados pelos efeitos da medida, abrindo-se mão de valores metafísicos sobre a formação histórica do país. Tratar os indivíduos de acordo com o histórico de seus antepassados pode ser uma alternativa retoricamente bonita para constar em discursos políticos, mas ineficiente para satisfazer as necessidades práticas dos indivíduos reais envolvidos, além de perigosa. Caso os índios não consigam suprir suas necessidades por seus próprios meios e necessitem de amparo externo, é o Estado que será chamado para resolver o problema através de novas políticas afirmativas, onerando os cofres públicos, e por consequência os próprios cidadãos que, por não serem índios, foram expulsos da região. Ações que promovam este tipo de conflito promovem a separação entre índios e ‘não-índios’, criando um abismo entre os cidadãos ao invés de integrá-los à cidadania brasileira.
Da forma como a reserva indígena foi demarcada, nota-se um modelo que privilegia aos indivíduos que desejam viver aldeados, de acordo com o modo de vida idealizado como tradicional dos índios brasileiros. Este tipo de modelo promove a ‘suficiência’ para os índios aldeados, mas não é capaz de promover o princípio da igual importância (DWORKIN, 2007, p. 245 e ss) entre os interesses de todos índios envolvidos, nem entre índios e ‘não-índios’. O Supremo Tribunal Federal concebeu um modelo baseado no usufruto coletivo das terras indígenas, no intuito de permitir aos cerca de 18.000 indivíduos que habitam a região a autodeterminação de seus rumos. Contudo, o caráter coletivo do uso da terra limita as capacidades individuais, dificultando que os mais esforçados se sobressaiam, ou que sejam recompensados na medida de seus esforços – neste sentido não sendo capaz de promover às liberdades formais, concebidas classicamente pelo modelo de justiça ralwsiano (RAWLS, 2002, p. 64 e ss.). Significa dizer que, em um modelo baseado na propriedade coletiva, os indivíduos acima da média acabam sendo limitados pela média.
Conforme bem salienta FRASER (2007), é necessário tomar como paradigma não uma concepção de boa vida, mas uma concepção de justiça que possa ser aceita por aqueles que tenham divergentes concepções de boa vida, em paridade participativa. O não reconhecimento é um equívoco localizado nas relações sociais, e não na psicologia individual ou interpessoal, pois o falso reconhecimento significa a negação da condição de parceiro integral na interação social. O foco não está nos efeitos psicológicos do não reconhecimento de um modelo identitário, ou na perda de uma tradição, mas nos bloqueios à paridade de participação dos indivíduos. A demanda por reconhecimento não está relacionada à valorização da identidade do grupo, mas sim a superação da subordinação, tornando o sujeito subordinado um parceiro integral na vida social – em última análise, propiciando-lhe paridade participativa. No caso em tela, os bloqueios à paridade participativa foram detectados tanto em relação aos índios que porventura desejem se integrar ao mundo fora das aldeias (conforme visto, somente os representantes da etnia Macuxi conseguiram se organizar para propor suas reivindicações oficialmente, ficando de fora os representantes das etnias Ingarikó, Patamona, Wapixana e Taurepang), quanto em relação aos ‘não-índios’ que habitavam a região e foram impedidos de lá permanecer.
Por outro lado, a decisão do Supremo Tribunal Federal cria um ambiente de disputa entre índios e ‘não-índios’ ao optar por separá-los, mesmo depois de vários anos de convivência e de relacionamento mútuo. O reconhecimento de um modelo de identidade cultural não parece ser uma justificativa palpável para tal separação – afinal, o que se questiona não é a identidade cultural em si, mas a capacidade do modelo de proteção adotado de suprir necessidades básicas sem depender de fatores externos para promover a paridade participativa de todos os indivíduos envolvidos. De acordo com o voto vencido, o país já conta com cerca de 108 milhões de hectares de terras indígenas, 13,5% do território nacional destinados para cerca de 400 mil indivíduos em terras propriamente rurais, o que evidencia que se o problema indígena até hoje não foi resolvido, o problema não é a falta de terras, mas de infraestruturas aptas a propiciar que cada indivíduo alcance meios de promover seus objetivos individuais, sejam eles o de permanecer aldeados ou não. Em que pese a intensão de garantir aos índios a faculdade de autodeterminação de seus modos de vida, e até de se reconhecer a aculturação experimentada pelos índios brasileiros, a decisão não leva em conta o impacto da aculturação nas necessidades econômicas desses indivíduos, negando-lhes a paridade participativa.
É certo que com a complexificação das relações sociais, a cada momento surgem novos grupos minoritários, e a cada grupo minoritário novos direitos são pleiteados como passíveis de reconhecimento. É desejável alguma objetividade na hora de trabalhar tais direitos, para que outros grupos sociais não paguem um preço alto demais pela realização dos direitos pleiteados por tais grupos. A questão indígena, e porque não também quilombolas e ribeirinhos, é recorrente na história do Brasil e o amparo do Estado aos indivíduos remanescentes destas condições históricas é algo extremamente democrático e desejável. Contudo, o formato das políticas afirmativas deve ter um sentido de promover a inclusão de cada um desses indivíduos na qualidade de parceiros integrais da interação social, e não a de isolá-los do convívio dos demais brasileiros através da manutenção das condições materiais que lhes coloca em situação de exclusão. Ainda que se opte pela concessão de terras aos índios, conforme preceitua a Constituição Federal, esta concessão deve ser pensada sob moldes que lhes permitam socializar-se e satisfazer às suas necessidades básicas – e adquirir bens, participar do comércio, ingressar na vida política, montar uma empresa caso queiram (por que não?). Sem essa desejável paridade participativa, os índios permanecerão dependentes do Estado, presos às reservas por sua condição de miséria e não por vontade própria. Neste sentido de inclusão, a educação e o desenvolvimento regional apresentam-se como potencialmente mais eficazes do que uma imensa reserva indígena de usufruto coletivo. Enquanto não for proporcionado aos índios brasileiros os meios necessários para que consigam se emancipar, a tal ‘dívida histórica’ jamais será saldada. Continuar a tratá-los como incapazes de se socializar não parece ser a melhor forma de incluí-los no seio da esfera pública brasileira.
Da forma como foi proferida, a decisão pauta-se em uma suposta dívida histórica com os índios e sobretudo com seu modo tradicional de vida, sem se levar em conta a miscigenação característica da formação do Brasil. Não se levou em conta que ao se miscigenar, as etnias ancestrais estavam dando origem ao que somos hoje – e se há de se falar em dívida histórica, esta não pode ser paga pelos indivíduos que são fruto dessa miscigenação: pessoas que não causaram e nem sofreram as violências dos tempos coloniais, apenas vivem a realidade histórica que lhes é posta, com todas as agruras que uma colonização desordenada impôs à coletividade como um todo, e não só aos índios. O importante para indivíduos reais é corrigir distorções históricas sentidas no presente, promovendo a paridade participativa entre indivíduos reais, e não resgatar velhos modelos históricos na busca de restabelecer um status quo que, na prática, é incapaz de satisfazer às necessidades básicas dos próprios indivíduos envolvidos.
Informações Sobre o Autor
Daniel José Pereira De Camargo Salles
Advogado, Mestrando em Direito