Resumo: O presente trabalho busca delinear o pensamento de Francisco de Vitória e sua importância para a fixação dos marcos atuais do direito internacional e dos direitos humanos.
Palavras-chave: Direito Internacional; Direitos Humanos; Francisco de Vitória.
Sumário: 1. O entendimento atual de direito internacional; 2. Francisco de Vitória e o seu pensamento vanguardista; 3. Vitória e os Direitos Humanos; Considerações conclusivas; Referência Bibliográfica.
1. O entendimento atual de direito internacional
É considerado o direito aplicável à sociedade internacional, ou seja, pressupõe a existência de uma sociedade internacional distinta da sociedade interna dos Estados e, para que exista uma sociedade de Estados, é necessário um direito próprio.[1] Considerando que o direito internacional é inseparável da história[2], far-se-á uma breve digressão acerca dos precursores deste importante ramo do direito e de suas contribuições para a compreensão do pensamento jurídico internacional moderno.
2. Francisco de Vitória e o seu pensamento vanguardista
Em Francisco de Vitória[3] há o reconhecimento da soberania do Estado e que este é tem como atributo a liberdade, sendo apenas limitado pelo direito natural, considerado superior. Um outro ponto relevante consiste na certeza que os Estados, tal qual os indivíduos, devem viver em sociedade, formulando o que entendemos hodiernamente como sociedade internacional, constituindo uma comunidade jurídica, daí a necessidade da existência do direito internacional, para disciplinar, juridicamente, a relação social internacional.[4]
Sustentou o direito de liberdade dos índios e delimitou marcos teóricos para a guerra justa, fato este imprescindível para que fosse rotulado como um dos fundadores do direito internacional.[5] Assim, “é considerado um dos fundadores do Direito Internacional, partindo da idéia de que a sociedade internacional é ‘orgânica e solidária’, levando a crer na concepção de que os Estados têm soberania limitada”.[6]
Vitória deixa de utilizar a expressão jus gentium para denominar jus inter gentes, que significa direito entre Estados, em que o mesmo afirma a necessidade de sua formação.[7] Entretanto, confunde sua substância com o direito natural, que, em seu entendimento, tem aplicação universal, isto é, Vitória apresenta a “idéia de um direito realmente universal, que engloba toda a humanidade: não somente os Estados cristãos, mas também os demais Estados”.[8]
O mundo não era um “amontoado inorgânico de nações isoladas, sem vínculo entre estas, não tendo umas em relação às outras, nem direito nem deveres, senão o direito absoluto para cada uma de se fechar em si mesma, e o dever de todas as demais respeitarem essa vontade”.[9] Para Vitória, os Estados não eram independentes, mas interdependentes.
Seu pensamento acerca da defesa dos índios exerceu grande influência, uma vez questionou o modelo divino de poder, que tinha por ideal construir um domínio cristão com dois centros de poder: o político e o espiritual, nas figuras do imperador e do papa, respectivamente.
Vitória questionava a concepção de que os índios não tinham vontade própria – argumento utilizado pelos conquistadores à época – que consideravam que os índios deveriam ser tutelados e governados pelos povos de capacidade superior – os colonizadores.[10] Tal questionamento deu-se tendo em vista que os “espanhóis e portugueses legitimavam o direito de conquista na bula papal de Alexandre VI, de 4 de maio de 1493, que lhes transferiu o direito de soberania sobre todas as terras cem léguas ao oeste de Cabo Verde e das Açores, concedendo para Castela tudo quanto descobrisse para o oeste”.[11]
O início da deslegitimação do modelo político do Sacro Império, começou com o questionamento de Vitória acerca do poder do imperador sobre todo o orbe terrestre, dando lugar ao surgimento das novas teorias políticas dos Estados modernos.[12] Seja pelo direito natural, direito divino ou direito humano, não há consagração de direitos sobre todo o orbe, ou seja, “o imperador não tem legitimidade para exercer sua soberania além dos territórios que já governa, porque não existe nenhuma soberania universal que o legitime”.[13]
Igualmente, questiona a figura papal e de seu domínio sobre a orbe e que a soberania política do papa é arbitrária, pois nem Jesus enalteceu uma política universal soberana. Ensina Rolf Kuntz que:
“Sendo os homens livres por natureza, só uma decisão humana, da qual não havia notícia, poderia justificar a existência de um império universal. O papa não poderia conceder-lhe esse direito, pois seu poder sobre as coisas temporais seria limitado pelas necessidades da função espiritual”.[14]
Após tais questionamentos, teve suas publicações proibidas e censuradas.[15] Para Vitória, uma sociedade política – sociedade e governo – são fundados na Lei Natural e, como lhe é peculiar, provém de Deus, uma vez que Deus é a causa do poder.[16] Ao se conceber a naturalidade uma sociedade política, conduz ao pensamento de que todos os Estados são iguais no plano jurídico, contribuindo para um dos pilares do direito internacional moderno: a igualdade entre Estados.[17]
3. Vitória e os Direitos Humanos
A “descoberta” da América pelos espanhóis fez com que as relações entre os povos fosse problemática, dada a divergência cultural e o animo dominador e aculturador eurocentrista, fez com que o pensamento vitoriano se mostrasse sensibilizado com os índios recentemente descobertos.[18]
Vitória apresentou, tendo em vista o pensamento estóico e cristão, fundamentado no direito natural,[19] considerava os índios como povos independentes, não tendo qualquer relação de sujeição para com os colonizadores. De fato, de sensibilidade além do seu tempo, corajosamente Vitória, apesar do processo de exploração, escravidão e destruição dos povos originários, defendeu que os índios eram, tal qual como qualquer outro ser, livres e iguais, merecendo respeito enquanto sujeitos de direito.[20]
A exposição de Vitória questionava o tratamento que os seres diferentes recebiam.[21] Com um discurso fundado na razão e autoridade, defendia um práticas humanitárias e justas para aqueles que tinham uma cultura, religião ou etnia diferente. Tal fato se justificou tendo em vista o “processo” de descoberta, ocupação e colonização da América, em que os índios eram subjugados, em regime de servidão e vassalagem.[22]
O domínio europeu em face das “riquezas do novo mundo” foi enfaticamente contestado por Vitória. Uma pergunta incisiva de Vitória consistiu em como a América foi descoberta se os índios lá habitavam, com sua cultura, organização e vida pacífica própria? Enfatiza Lopes[23] que:
“A ‘descoberta’ da América – e a respectiva pretensão jurídica (o tradicional ius inveniendi, que faz do descobridor o dono da coisa descoberta) – deu-se sobre uma terra ocupada, afirma Vitória. Assim, os índios tinham título anterior, e os espanhóis não haviam descoberto coisa abandonada (res derelicta). Além disso, dizia ele, o direito de descoberta é universal ou recíproco: se valia para os espanhóis, deveria valer para os índios. E se os índios tivessem chegado primeiro à Espanha, teriam direito sobre os bens e a pessoa dos espanhóis?”.
No pensamento vitoriano, se uma comunidade indígena era representada por um chefe, esta deveria ser tratada com o status jurídico de Estado, até então conhecido.[24]
A natureza humana dos indígenas os conferia o tratamento, para Vitória, como livres, iguais. Independentemente da religião – católica ou protestante – ou, ainda, independentemente de serem ou não cristãos, todos – incluídos os índios – deveriam ter sua dignidade respeitada pelos colonizadores e tal pensamento consistiu em um marco no pensamento histórico do direito internacional dos direitos humanos.[25]
Estando todos sujeitos ao direito natural, Vitória estabeleceu diretrizes de atuação e relacionamento em comunidade entre os espanhóis e os índios quanto à cristianização[26]:
a) Os espanhóis, na defesa de suas pretensões, devem fazê-lo sem que acarrete danos aos índios.[27]
b) Em sendo atacados pelos índios, os espanhóis poderiam se defender, mas desde que agissem com moderação.[28]
c) Os cristãos têm o direito de pregar e anunciar o Evangelho nos territórios ocupados dos bárbaros[29], mas não podiam obrigá-los a ter a fé cristã.
d) Se houver recusa de fé cristã, isto não é motivo para justificar uma guerra e a conquista, que deveria ser compreendida, posto que razoável, uma vez que a fé deve ser aceita livremente.[30]
e) Há um direito de pregação pacífica do cristianismo;
f) A defesa dos índios cristianizados,[31] ou seja, poderiam os espanhóis proteger os convertidos.[32]
g) Sustentou o direito dos índios – ou qualquer outro povo – contra práticas desumanas ou tirânicas.[33]
h) Se os bárbaros permitirem aos espanhóis pregar o Evangelho livremente e sem impedimentos, quer recebam a fé ou não, não é direito de declarar guerra por causa disso, nem tomar suas terras[34];
i) Os espanhóis tinham o direito de ir e voltar da América, bem como ali morar. Mas uma vez estando nas “índias”, deveriam respeitar os índios e suas instituições.[35]
j) Direito de aliança, se uma comunidade indígena solicitasse ajuda contra outra sociedade agressora.[36]
Considerações conclusivas
É importante delimitar o pensamento e a atualidade de Vitória, a sociedade internacional é ordenada conforme normas que são aplicáveis a todos os membros e todos os Estados participantes da comunidade são iguais, em direitos e obrigações. No que tange à guerra, enfatizou que só há uma justificativa plausível: em resposta a uma agressão anterior.[37] Por ser teólogo e considerando o momento histórico vivido, enalteceu que um Estado não pode impor ao outro a sua religião e, no prisma do comércio internacional, sustentou que “todo homem tem o direito de buscar o contato pacífico e o comércio com o semelhante de qualquer nacionalidade”.[38]
De fato, o pensamento deste teólogo espanhol foi notável e vanguardista para seu tempo e é possível extrair a sensibilidade para com os povos originários e sua coragem em defender um tratamento humano a estes povos e da delimitação, a partir do pensamento jusnaturalista, dos marcos modernos do direito internacional. Se hoje concebemos o direito das gentes como um direito comum à humanidade[39], aplicável aos Estados e aos indivíduos, devemos às inspirações teóricas e embrionárias de Francisco de Vitória.
Informações Sobre o Autor
Murillo Sapia Gutier
Advogado militante. Professor de Direito Processual e Direitos Fundamentais na Universidade Presidente Antonio Carlos – Unipac-Uberaba. Mestrando em Direito Público Internacional pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.