A evolução da matriz energética brasileira: O papel dos biocombustíveis e outras fontes alternativas

Resumo: O presente estudo visa discorrer acerca da matriz energética brasileira, ancorada no discurso da sustentabilidade, a qual é representada principalmente pelo etanol, produzido com a cana-de-açúcar. Diante disso, apresentamos o panorama histórico, que marcou os rumos da produção de combustíveis renovados, apontando para a necessidade de se trocar as matrizes energéticas por fontes renováveis. Nesta etapa, verificamos a posição favorável em que se encontra o Brasil diante do cenário internacional. No entanto, observamos também as barreiras tarifárias que o produto brasileiro encontra para sua comercialização no mercado externo. Por fim, discorremos acerca dos possíveis efeitos negativos que tal escolha pode representar, concluindo que a destinação de amplas áreas para a monocultura destinada à produção de biocombustíveis pode acarretar em malefícios econômicos e sociais e devem ser pleiteados sob a égide da racionalidade, pensando no global, mas considerando as necessidades regionais.


Palavras-chave: Biocombustíveis. Sustentabilidade. Etanol. Economia.


Abstract: This study aims to discuss about the Brazilian energy matrix, anchored in speech of sustainability, which is represented mainly by ethanol fuel, produced with the sugar cane. Before that, we presented the historical panorama, that marked the directions’ production of renewed fuels, pointing for the need of changing the matrix energy for renewable sources. At this stage, we verified the position that is favorable to Brazil before the international stage. However, we also observed the tariff barriers that the Brazilian product finds for the commercialization in foreign market. Finally, we discoursed concerning the possible negative effects that such choice may represent, concluding that the allocation of large areas to monoculture for the production of biofuels may lead to social and economic harm and must be pleaded under the aegis of rationality, thinking global but considering the regional needs.


Keywords: Biofuels. Sustainability. Ethanol. Economy.


Sumário: Introdução. 1. Panorama histórico. 1.1. Substituição da Matriz Energética. 2. Avanços na utilização das matrizes energéticas renováveis. 3. Possíveis efeitos negativos dos biocombustíveis. Considerações finais. Referências.


INTRODUÇÃO


Ao longo das últimas décadas vivenciamos um período de grande industrialização, no Brasil e nos demais países, de uma maneira geral. Este crescimento acentuado só foi possível, primeiramente, pelo aumento da capacidade de fornecimento de energia, independentemente de sua origem. No entanto, o sentimento de que vale a pena crescer a qualquer custo parece ter sido alterado, e atualmente já podemos notar preocupações reais quanto à necessidade de um crescimento sustentável, que se faça valer dos recursos naturais sem impactar demasiadamente o meio ambiente.


O discurso pela sustentabilidade ganhou projeção no cenário global defendendo que as nações devem priorizar a obtenção de recursos energéticos a um custo baixo e com pouco impacto ambiental, afim de que estejam melhor posicionadas em relação aos países que ainda mantêm suas bases energéticas majoritariamente em energia não renovável, por exemplo. E é exatamente neste cenário atual que as atenções são voltadas ao modelo brasileiro de produção de biocombustíveis, por exemplo, por enquanto um modelo de sucesso de aproveitamento da energia mais limpa e renovável.


Diante desse panorama, o presente artigo busca: (i) abordar a necessidade de troca das matrizes energéticas; (ii) destacando os avanços ocorridos na área dos combustíveis alternativos, sendo os biocombustíveis o exemplo de maior sucesso até então; (iii) questionando-se também sobre os possíveis efeitos negativos dos biocombustíveis, à maneira com que o avanço da cultura agrícola para a produção de combustíveis tira da mesa da população a oportunidade de acesso a alimentos mais baratos. À medida que é mais vantajoso ao produtor agrícola destinar sua produção para os biocombustíveis do que vender o grão in natura no mercado interno, o que é tratado como uma benesse no setor energético pode, na verdade, estar causando uma grande revolução nos preços dos alimentos, um setor muito mais sensível para a população em geral.


Com isso, esperamos refletir acerca da questão da sustentabilidade no mundo atual, a partir das análises empreendidas acerca do tema, buscando em publicações especializadas e em eventos econômicos da atualidade as bases teóricas para a sustentação de nossas reflexões.


1. PANORAMA HISTÓRICO


No início da História do Brasil, a lenha foi o principal recurso energético, impulsionando o ciclo da cana de açúcar e o ciclo do ouro. Com o ciclo do café, houve a alteração para o uso do carvão mineral. No entanto, com a Primeira Guerra Mundial, a importação do carvão se torna difícil, alavancando investimentos na geração de energia elétrica, entre 1901 e 1930 (crescimento de 15,6%).


A partir da década de 1920 começamos a verificar que a importação de petróleo e derivados era desprezível, coincidindo com o crescimento do uso de automóveis e caminhões. Paralelo a isto, o governo começa adotar medidas protecionistas para os recursos hídricos brasileiros, criando em 1934, o Código de Águas, que garantiu à União a posse de todo o recurso hídrico nacional.


Nos anos 1940 várias empresas estatais foram criadas, sendo duas na década de 40, nove na de 50, dez nos anos 60 (sendo que em 1966 a criação da CESP absorveu várias empresas estatais), duas nos anos 70, sendo uma delas, a ITAIPÚ, binacional (Brasil/Paraguai), com 96% da energia destinado ao Brasil.


Com o petróleo não foi diferente. Desde 1934 o governo passou adotar medidas de controle, criando o Código de Minas, situação que perdurou até 1938 com a Lei nº 395 que criou o Conselho Nacional do Petróleo (CNP). Esta lei decretava que todas as atividades petroleiras eram de utilidade pública, as quais deveriam ser regulamentadas pelo CNP. O Estado, por meio do CNP, controlaria as atividades de refino, prospecção e exploração das jazidas de petróleo.


Nos anos 50 e 60, devido aos investimentos estatais, o setor energético também se industrializou. As áreas de petróleo, hidroeletricidade e carvão adquiriram dimensões de indústria, somando os esforços do governo na construção de indústrias de base e infra-estrutura. A era desenvolvimentista prosseguiu com Juscelino e seu plano de metas, desenvolvendo a indústria nacional e reduzindo a dependência brasileira da exportação de commodities agrícolas e minerais.


O fator responsável pela grande penetração do petróleo no mercado nacional e mundial era o preço. Um grande impacto se deu na economia nacional e mundial quando a OPEP aumentou significativamente o preço em 1973.  O mundo reagiu de diferentes formas e o governo brasileiro, na época, controlado pelos militares, desencadeou ações e programas, tais como: a prospecção e extração de petróleo em águas profundas; a intensificação da construção de hidrelétricas para reduzir a dependência do petróleo na indústria; a associação com a Alemanha de repasse de tecnologia nuclear, resultando na construção de Angra 1 e Angra 2 e compra dos principais itens de Angra 3; e o Proálcool, maior programa mundial de sucesso em renováveis. Em 1975 teve início o projeto nacional de combustíveis renováveis, com a criação do Programa Nacional do Álcool (Proalcool), que levou a todo um progresso na área energética do etanol, de biodiesel de soja, entre outras fontes. (HAGE, 2008).


Este panorama demonstra que historicamente a demanda por energia no Brasil tem apresentado taxas que acompanham aquelas do crescimento econômico, ocasionando na necessidade eminente de substituição das matrizes energéticas a fim de se atender às demandas da economia nacional.


1.1 Substituição da Matriz Energética


Por estar intimamente ligada à produção econômica, a demanda por energia é um excelente termômetro da atividade econômica do país, como evidencia o gráfico abaixo, com dados da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), vinculada ao Ministério de Minas e Energia:


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Conforme se depreende do gráfico, o início da década de 1990 alavancou a demanda de energia. Isto se explica pela busca da retomada do crescimento econômico no país, em uma tentativa de superar a crise da década de 1980, considerada uma década perdida para a economia brasileira, devido aos inúmeros problemas políticos e econômicos que assolaram o país, com os indicadores de desempenho macroeconômicos inferiores aos da década anterior. Os anos 1990, por sua vez, trazem alguns dados positivos: controle inflacionário, relativa estabilidade econômica, abertura e integração da economia brasileira com o mercado externo, podendo ser os dois últimos interpretados como positivos ou negativos, se considerarmos as consequências e o ônus que a economia brasileira passou a incorrer.


Os dados do gráfico demonstrando o crescimento da demanda energética no início da década de 1990 são justificados pelos estudos de Theis (1990), segundo o qual a correlação entre crescimento econômico e demanda energética pode ser observada em razão de que “o processo de desenvolvimento econômico ser o processo de utilização de mais energia para aumentar a produtividade e a eficiência do trabalho humano. De fato, um dos melhores indícios da riqueza de uma população é a quantidade de energia que ela consome por pessoa” (THEIS apud RODRIGUES, 2008, p. 12).


É notável, também, ao compararmos os dados históricos com os atuais, que há um crescimento da diversificação da matriz energética brasileira. Enquanto na década de 1970, quase 80% da energia eram provenientes da exploração de carvão, lenha e petróleo, hoje quase 50% vem dos derivados da cana-de-açúcar, da energia hidrelétrica, entre outras fontes alternativas. Este é um padrão que deve continuar e até mesmo ser expandido nos próximos anos, com uma participação cada vez maior de fontes energéticas renováveis ou ao menos um pouco menos agressivas. De acordo com Abrepo (2008), haverá um balanço negativo na energia hidroelétrica no ano de 2020, sendo que nesse estágio, 80% do potencial de geração provavelmente já estará sendo utilizada e restrições ambientais não permitirão o uso pleno dos 20% restantes.


A EPE também publicou um recente estudo trazendo previsões sobre o crescimento do consumo energético no Brasil, apontando que:


“A demanda de energia elétrica no Brasil ao longo da década deverá crescer a uma taxa média de 4,8% ao ano, saindo de um patamar de consumo total de 456,5 mil gigawatts-hora (GWh) no ano de 2010 para 730,1  mil GWh em 2020. As estimativas constam da Nota Técnica ‘Projeção da demanda de energia elétrica para os próximos 10 anos’, produzida pela Empresa de Pesquisa Energética – EPE. Considerando o período em questão, o acréscimo do consumo total de eletricidade será de 274 mil GWh, volume superior ao atual consumo de eletricidade do México e próximo ao atual consumo de eletricidade da Espanha.  O estudo trabalha com a hipótese de a economia brasileira expandir-se ao ritmo de 5% ao ano nos próximos 10 anos” (EPE, 2011).


Ao analisarmos projeções como estas, de um crescimento anual muito próximo de 5%, fica reforçada a necessidade de substituição de fontes energéticas, visto que o país não comporta dobrar, por exemplo, seu fornecimento de energia por meio das usinas hidrelétricas sem causar imensos impactos ambientais, conforme já apontando no estudo da Abrepo (2008). Segundo a análise da Abrepo (2008), o pico do saldo energético, que representa a produção descontada do consumo, no que tange ao Petróleo, ocorre em 2015 e decresce nos anos posteriores. Já em relação à energia hidráulica, o saldo já começa a declinar a partir de 2010 e apresenta problemas a partir de 2015, quando a capacidade de produção não atende a demanda projetada.


Inexiste, ao menos, previsão no sentido de um movimento inverso, de retorno à utilização de energia não renovável no país, sendo que os dados e previsões demonstram a tendência brasileira avançando na utilização de energia renovável (BRASIL, Minas e Energia, 2007). Após a coleta de dados e previsões que consideraram diversos aspectos da economia nacional, chegou-se ao estudo que demonstra que o país deve continuar avançando, ao menos até o ano de 2030, na utilização de energia renovável, graças à diversificação das fontes energéticas e maior participação das fontes limpas atualmente em utilização.


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O gráfico evidencia a diversificação da matriz energética brasileira, ao passo que também sinaliza para acentuada queda do petróleo, praticamente se esgotando no ano de 2030. Por outro lado, intensifica-se a exploração do gás natural e de fontes renováveis, tais como cana-de-açúcar, energia solar, eólica e residuais. Destas, predomina o crescimento da matriz energética, a base de cana-de-açúcar e seus derivados, para os quais se estima a geração superior a 500 TWh no ano de 2030. Esta previsão nos conduz à reflexão de que o destino de áreas plantáveis para o cultivo de cana-de-açúcar pode acarretar em carências de áreas plantadas com culturas alimentícias.


O balanço energético brasileiro da Abrepo (2008) ratifica ainda a grande diversificação ocorrida no setor e nos faz revisar as informações históricas referentes aos anos 70, quando os derivados do petróleo e do carvão respondiam por quase 80% do parque energético brasileiro. Com o passar dos anos, esta participação ficou cada vez mais reduzida, de forma que a energia hidráulica, a cana-de-açúcar e o gás natural vêm sendo utilizados com muita frequência, conforme havia sido publicado no estudo de 2007, do Ministério de Minas e Energia:


“[…] os estudos apontam para uma maior diversificação da matriz energética brasileira. De fato, pode-se perceber uma tendência clara nessa direção: em 1970, apenas dois energéticos (petróleo e lenha), respondiam por 78% do consumo de energia; em 2005, eram quatro os energéticos que explicavam 80,3% do consumo (além dos dois já citados, mais a energia hidráulica e produtos da cana); para 2030, projeta-se uma situação em que cinco energéticos serão necessários para explicar 84,6% do consumo: entram em cena o gás natural e outras renováveis, permanecem com grande participação o petróleo, a energia hidráulica e os produtos da cana, havendo significativa perda de participação da lenha” (BRASIL, MINAS E ENERGIA, 2007, p. 168).


Há uma tendência, que parece ser irreversível: a substituição dos derivados de petróleo, por exemplo. Por muitas décadas fomos bombardeados por informações alarmistas de que nossa até então principal fonte energética poderia estar próxima de se esgotar. No entanto, se a tendência de substituição se mantiver por mais alguns anos, é bem possível que a necessidade de uso dos derivados do petróleo acabe muito antes do esgotamento das reservas, o que parecia impossível há 10 ou 15 anos atrás.


Se esta substituição trará apenas aspectos positivos, não podemos assegurar ainda, até mesmo porque as novas fontes energéticas não passaram por estudos sobre o impacto ambiental de longo prazo, principalmente pelo fato de terem crescido em importância muito recentemente. No entanto, outro ponto que é destacado do estudo sobre a matriz energética nacional é o aumento da participação dos combustíveis renováveis em todo o país.


A simples diversificação de fontes energéticas não é garantia de benefícios ambientais, uma vez que as novas fontes energéticas adotadas podem ser tão poluentes quanto as fontes já utilizadas. Mas a partir do momento em que a diversificação envolve cada vez mais o uso da energia limpa, além dos ganhos ambientais, podem ser evitados os riscos inerentes à dependência de uma ou restritas fontes energéticas. A preocupação com as mudanças ambientais é muito recente, e passam a ser discutidas formas de regulação deste novo tema. No entanto, a evolução deste tema pelo Direito Internacional ainda é lenta, por depender da disposição dos Estados em se comprometerem com a causa. (OLIVEIRA, 2008).


2. AVANÇOS NA UTILIZAÇÃO DAS MATRIZES ENERGÉTICAS RENOVÁVEIS


O estudo empreendido pelo Ministério de Minas e Energia enfatiza a participação das fontes renováveis na matriz energética nacional:


“Outro ponto que merece destaque é a manutenção do alto percentual de energia renovável que sempre caracterizou a matriz energética brasileira. Cabe lembrar que em 1970, essa participação era superior a 58%, em razão da predominância da lenha. Com a introdução de energéticos mais eficientes, deslocando principalmente esse energético, tal participação caiu para 44,5% no ano 2005. No horizonte de estudo, 2005-2030, observa-se uma clara quebra de tendência na qual há um aumento da participação de energia renovável que alcança 46,5% em 2030. Muito desse movimento deve-se a introdução da biomassa, do biodiesel e do processo H-bio no conjunto de opções para o desenvolvimento energético nacional, os dois últimos a partir de 2010. Com esta dinâmica de fontes alternativas, a matriz energética brasileira continua em 2030 com forte presença de fontes renováveis, de 46,6%, percentual superior ao de 2005, de 44,5%. Assim, o Brasil continua em situação bem confortável em termos de emissões de partículas pela queima de combustíveis quando comparado com a matriz energética dos países ricos, com apenas 6% de participação de renováveis e com a matriz energética do mundo, com 16% de participação de fontes renováveis” (BRASIL. MINAS E ENERGIA, 2007, p. 269).


O cenário brasileiro é tido muitas vezes como modelo de diversificação energética, e um dos exemplos mais citados é o da utilização do etanol proveniente da cana-de-açúcar no abastecimento de veículos. Quase 90% dos veículos comprados no Brasil já saem de fábrica com a tecnologia flex, que possibilita o abastecimento com etanol ou gasolina. Conforme a frota nacional for sendo atualizada, os veículos flex terão cada vez mais mercado, em um movimento natural.


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Macedo (2007) afirma que nos últimos trinta anos, a produção de etanol da cana-de-açúcar no Brasil avançou para 17 milhões de metros cúbicos, crescimento este motivado pelo investimento tecnológico, geração, importação, adaptação e transferência interna. Carvalho (apud MACEDO, 2007) diz que apenas em 2006, 425 milhões de toneladas de cana foram processadas em 310 usinas no Brasil, produzindo 30 milhões de toneladas de açúcar e 17 milhões de metros cúbicos de etanol. Estes dados possibilitam projeções para 2012-2013, quando se estima que a produção nacional será de 685 milhões de toneladas de cana, cultivadas em 6,4 milhões de hectare. “Em 2012-2013, cerca de 60% da cana seria destinada ao mercado interno; no total, além do açúcar seriam produzidos 35,7 milhões de metros cúbicos de etanol (7 milhões de metros cúbicos para exportação)” (MACEDO, 2007).


Outras matrizes energéticas também estão sendo incentivadas no Brasil e tendem ao crescimento nos próximos anos. É o que vem ocorrendo com a energia eólica, cuja primeira concessão, realizada em 2009, prevê a construção de 71 empreendimentos, com uma capacidade somada de 1.805 megawatts (MW). As regiões mais favorecidas para esta matriz são o Nordeste e o Sul do país.


No caso da energia solar, o Plano de Aceleração do Crescimento 2 (PAC 2), lançado pela presidente Dilma Rousseff determina a instalação de aquecedores solares nas moradias destinadas à população de baixa renda.


As chamadas energias limpas, tais como solar e eólica, juntas devem gerar quase 500 TWh, em 2030. Isso possivelmente deixará o Brasil em vantagem diante de outras nações, visto que a dimensão territorial e o clima predominantemente tropical possibilitam a captação de energia de fontes diversificadas.


No ano de 1997, foi assinado na cidade japonesa de Kyoto um protocolo, no qual os países deveriam se comprometer em reduzir as emissões de gases causadores do efeito estufa, principalmente o dióxido de carbono (CO2). O Protocolo entrou em vigor em fevereiro de 2005 e prevê que o efeito estufa seja reduzido em 5% até 2012. Ainda que não aderida por todas as nações, como os Estados Unidos, que afirmam ser o protocolo de Kyoto um risco para a economia, o documento impulsionou a pesquisa e o desenvolvimento dos combustíveis renováveis.


No Brasil, onde a mistura do etanol à gasolina é praticada desde 1975, tornando-se uma das soluções mais estudadas para reduzir as emissões. As políticas ambiciosas para mudanças climáticas podem ser combinadas com um desenvolvimento econômico sustentável e apontou que os países emergentes estão desenvolvendo soluções interessantes, adaptadas às suas necessidades específicas, para reduzir emissões, explicou a assessora sênior do Presidente da UNICA para Assuntos Internacionais, Geraldine Kutas (ÚNICA, 2009). Com o aumento das vendas para uso como combustível, as exportações de álcool em 2004 deram um salto no Brasil, atingindo 2,4 bilhões de litros exportados. Espera-se que seja apenas o começo.


Com isto, o Brasil conseguiu ficar menos vulnerável às variações de preço do petróleo, por exemplo, uma vez que os motoristas têm a alternativa de utilizarem o etanol nacional. A revista Time, no ano de 2009, em um artigo que questiona se os biocombustíveis são realmente menos agressivos ao meio ambiente, já destacava o cenário brasileiro e a forma com que conseguiu substituir a dependência do combustível fóssil:


“The promise of biofuels like ethanol is that they will someday help the world grow its way out of its addiction to oil. Nine billion gallons of corn ethanol were produced in the U.S. in 2008, while countries like Brazil have already widely replaced gasoline with ethanol from sugar cane and countless start-ups are working to bring cellulosic and other second-generation biofuels to market. The reasoning is that if we use greener biofuels in place of gasoline, it will significantly enhance our effort to reduce greenhouse-gas emissions”[1] (TIME, 2009).


As constatações acerca do destaque dado ao etanol brasileiro devem-se a outras características da produção nacional: como ampla área de cultivo no Brasil, mão de obra barata e competitividade em relação ao etanol produzido a partir da colheita do milho. Estes fatores proporcionam preços mais competitivos que outras formas de produção, desencadeando ações internacionais para dificultar a entrada do etanol brasileiro no mercado externo. Os Estados Unidos, por exemplo, aplicam uma sobretaxa fixa de 54 centavos de dólar por galão (medida que corresponde a aproximadamente 3,8 litros) para os produtos que entram em seu território, fato este que praticamente inviabiliza a exportação do produto brasileiro. Além disso, com a finalidade de proteger seus produtores, o governo norte-americano também subsidia de outras formas todo o mercado de milho, tornando a concorrência de fato desleal. No final de 2010, o Senado dos EUA prorrogou por pelo menos mais um ano a política protecionista em relação ao etanol:


“O Senado dos Estados Unidos aprovou nesta quarta-feira [14/12/2010] a extensão por mais um ano da tarifa sobre as importações de etanol e também dos créditos tributários do setor nos níveis atuais, apesar de críticas no país sobre a validade das medidas. A extensão é parte de um projeto de lei maior que propõe a manutenção de menores taxas de tributos implementadas durante a administração do ex-presidente George W. Bush. O projeto tem de passar pela Câmara. O crédito de US$ 0,45 o galão é direcionado para os distribuidores do etanol nos EUA. A taxa para importação situa-se em US$ 0,54 por galão” (REUTERS, 2010).


Infelizmente, ainda é muito comum que os Estados adotem a prática de impor barreiras aos produtos estrangeiros mais competitivos que os seus, por meio de tarifas aduaneiras, de modo que facilitem a disputa do mercado interno pelos produtores locais (TONUS, 2008). Desta forma, as relações internacionais saem prejudicadas, uma vez que cada vez que tenha um de seus produtos barrados, o Estado prejudicado geralmente reage com novas barreiras.


Cavalcante (2010) explica estas barreiras protecionistas ao etanol brasileiro, afirmando que os Estados Unidos, maior produtor e maior importador do produto, utilizam-se deste procedimento desde os anos 1980. No caso da União Europeia, em dezembro de 2008 foi estabelecida a incorporação obrigatória de 20% de energias renováveis na matriz energética europeia até 2020, determinando que metade deste percentual deverá ser alcançada pelo setor de transportes, ou seja, um mínimo de 10% de energias renováveis será utilizado por veículos, medida que beneficia diretamente o Brasil.


Por outro lado, Cavalcante (2010) expressa a dificuldade que o Brasil deverá superar para se manter no mercado europeu, que será, possivelmente, o primeiro mercado a exigir uma Certificação Socioambiental dos biocombustíveis. “Assim, para atender os requisitos europeus, os ditos combustíveis consumidos na UE, independente de sua origem, também deverão demonstrar uma redução inicial de pelo menos 35% dos gases de efeito estufa – GEEs” (CAVALCANTE, 2010, p. 18).


As barreiras protecionistas acarretam em efeitos relevantes no âmbito jurídico e, por isso, necessitam de regulamentação, ou seja, da criação de regras e critérios concernentes às suas especificidades. Neste sentido, verificam-se alguns esforços na tentativa de regulamentar o comércio internacional do etanol. O parágrafo 31.III da Declaração Ministerial de Doha, adotada em 14 de novembro de 2001, prevê a redução e, até mesmo, a eliminação de barreiras tarifárias e não tarifárias sobre bens e serviços ambientais. Esta resolutiva acarretaria uma série de vantagens para o Brasil, assim como para outros países que pleiteiam o livre comércio na área dos biocombustíveis, como a Índia e Cingapura.


A criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) foi um grande passo dado na esfera das negociações multilaterais de comércio. O Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) da OMC é o principal foro comercial multilateral, com um significativo volume de litígios instaurados. A efetividade de suas decisões beira os 75%, de acordo com a própria OMC, um índice superior a muitos tribunais nacionais (VARELLA, 2011). Dependendo da classificação a ser adotada no âmbito da OMC, poderá o país pleitear a redução ou mesmo a exclusão de barreiras tarifárias e não tarifárias que sobre ele incidam, o que acarretaria grandes vantagens econômicas para o Brasil, como também para a comunidade internacional, facilitando-se as relações comerciais entre os países.


“No entanto, não depende apenas do Brasil para que a existência de um comércio mais justo e equitativo aconteça. A oposição que o país recebe dentro da OMC quanto ao enquadramento do etanol parte dos países desenvolvidos, detentores de economias fortes, que tentam defender a todo custo seus interesses nacionais, não levando em consideração as necessidades globais” (CAVALCANTE, 2010, p. 22).


Enquanto o cenário internacional do biocombustível se configura em termos normativos e legais, o que se verifica atualmente é que grande parte da produção nacional de grãos é destinada ao mercado externo, que proporciona um retorno maior ao produtor. Neste panorama, mesmo sendo nosso país um dos maiores agroprodutores do mundo, vivenciamos nos últimos anos uma escalada no preço dos alimentos no mercado interno, já que a prioridade é vender para o mercado externo, que dá uma margem de lucro mais interessante a quem produz. Este fato pode estar vinculado aos possíveis efeitos negativos dos biocombustíveis.


3. POSSÍVEIS EFEITOS NEGATIVOS DOS BIOCOMBUSTÍVEIS


Esforços diversos podem ser observados na tentativa de instaurar o biocombustível como matriz energética primeira.  De acordo com modelo matemático de Solow (apud RODRIGUES, 2008), era necessário criar mecanismos de adaptação na relação entre o meio ambiente e o sistema econômico, possibilitando a substituição de insumos escassos e o desenvolvimento de mecanismos de mitigação de impactos ambientais prevenindo os colapsos econômico-sociais preditos com a possível escassez das fontes de energia não-renováveis, conforme relatamos anteriormente. No caso brasileiro, estudos acenam que é promissor o mercado da produção de etanol, entretanto se questiona se esta opção terá aspectos benéficos superiores aos negativos, justificando-se a longo prazo.


Ao observarmos pelo prisma da produção e comercialização agrícola, em 2010, o Brasil se tornou o terceiro maior exportador de produtos agrícolas do mundo, superando o Canadá. Os especialistas reconhecem o potencial significativo brasileiro, principalmente para carnes, milho e álcool, e apontou que no etanol, a exportação deve aumentar muito quando o mercado se consolidar (LANDIM, 2010). Há em uma parcela da população uma cultura de exportação a todo custo, como se quanto mais o país exporta, melhor fica. Ainda que a substituição das importações deva ser perseguida gradualmente, exportar grande parte da produção de etanol e deixar o mercado interno refém dos preços internacionais não parece ser uma alternativa interessante. Deve ser encontrado um ponto de equilíbrio entre expandir a fatia do mercado interno atendida por fontes nacionais ou buscar uma participação maior no cenário internacional (WILLIAMSON, 1988).


A verificação de que os alimentos produzidos no Brasil são muito bem aceitos no mercado externo conduz à expectativa de crescimento no interesse pelos biocombustíveis aqui produzidos. Competitivos em relação ao preço e de boa qualidade, estes são exportados em proporções que crescem a cada ano. Não cresce, no entanto, a produção que deveria abastecer o mercado local, o que, mais uma vez, gera instabilidade nos preços cobrados internamente. Se comparado com o mesmo período de 2010, as exportações de manufaturados cresceram 20,4%, saltando de US$ 311,0 milhões para US$ 374,5 milhões em razão dos crescimentos em óleos combustíveis, polímeros plásticos, máquinas para terraplanagem, veículos de carga, motores e geradores, açúcar refinado e autopeças.


Com isso, verifica-se atualmente no Brasil que uma parcela enorme da terra é utilizada para cultivar alimentos que serão exportados in natura, ou então transformados em combustíveis renovados, que, mais adiante, também terão como destino final o mercado externo. Apesar da grande demanda por estes produtos ser positiva em relação à mão de obra que é gerada, além da produção de riqueza nacional, há um efeito muito negativo que é a grande variação de preços a que é submetido o consumidor local. Em 2007 o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), juntamente com a Pastoral da Juventude Rural (PJR), entre outros órgãos representativos da sociedade, lançaram em 2007 a cartilha “Soberania Alimentar, os Agrocombustíveis e a Soberania Energética”, na qual expõem seu posicionamento desfavorável à produção de alimentos para que depois sejam destinados à fabricação de combustíveis:


À escala mundial, empresas e governos estão a fazer uma intensa campanha para apresentar os biocombustíveis como alternativas ambientalmente amistosas que ajudariam a combater as alterações climáticas, a substituir uma parte do consumo de petróleo destinado a combustíveis para transportes. Mas a lógica de fundo não é abandonar o petróleo nem mudar os padrões de consumo que produzem a mudança climática e sim aproveitar a conjuntura para criar novas fontes de negócios, promovendo e subsidiando a produção industrial de cultivos para essas finalidades.


Já existem estudos que mostram que os cultivos industriais de biocombustíveis colocam muitos problemas. Brian Tokar, do Instituto de Ecologia Social de Vermont, Estados Unidos, dá conta de duas análises recentes das universidades de Cornell e de Minnesota que mostram que o ciclo completo da produção de biocombustíveis deixa um saldo ambientalmente destrutivo. Uma vez que o processamento destes cultivos exige uma quantidade significativa de energia, o saldo energético final é muito limitado.


Mesmo que os biocombustíveis substituam em alguma percentagem a utilização do petróleo, necessitam de grandes áreas de produção agrícola industrial intensiva, incrementando o uso de agrotóxicos que provocam erosão e contaminam o solo e a água, além de retirar essas áreas à produção de alimentos. Segundo o investigador Lester Brown (citado por Tokar), “agora são os automóveis, não as pessoas, os que demandam a produção anual de cereais. A quantidade de grãos que se exigem para encher o reservatório de uma camioneta SUV com etanol é suficiente para alimentar uma pessoa durante um ano. (grifo meu) (RIBEIRO apud VIA CAMPESINA, 2007, p. 76).


Este documento foca claramente nos aspectos negativos gerados, ainda que indiretamente, pelo crescimento dos biocombustíveis. É levada em conta a questão ambiental, já que os biocombustíveis são, via de regra, associados a um nível menor de poluição. No entanto, no trecho acima, este fato é posto em dúvida, quando afirmam que o saldo de tudo isso (a adoção dos biocombustíveis de forma massificada) é destrutivo para o meio ambiente. O trecho final, grifado, trata de outro problema causado pelos biocombustíveis. Como é necessária uma grande quantidade de produto agrícola para gerar combustível suficiente para abastecer o tanque de um veículo, como exemplificado acima, um dos problemas gerados é a de escassez de área disponível para a produção de alimento. No entanto, esta é uma visão que não é compartilhada pela totalidade dos especialistas, já que parece ser, de fato, muito tendenciosa, focando apenas nos aspectos negativos, sem citar possíveis benefícios trazidos pelo uso dos combustíveis renováveis.


Com relação ao preço dos alimentos, observa-se que este tem subido muito recentemente, principalmente a partir de 2008, ano em que o tema “inflação dos alimentos” foi muito discutido e, com bastante frequência, os biocombustíveis foram apontados como maiores culpados pelo aumento dos preços. No entanto, não podemos afirmar que a disparada dos preços das commodities deve-se unicamente à maior presença dos biocombustíveis.  O jornalista William Waack publicou no jornal O Globo, à época, artigo sobre a inflação dos alimentos, que destacamos a seguir:


No meio da crise de crédito internacional – com a queda do preço de várias commodities – quase passa desapercebido um tipo de produto que deu muito lucro a quem apostou numa subida de preços: alimentos. Perdoem-me aqui pelo “quase”. Na verdade, protestos de ruas em lugares tão distantes entre si quanto Índia e Haiti deixaram claro que a inflação dos preços dos alimentos já é um grave problema político para países emergentes.


Segundo o jornal “Financial Times”, os preços do arroz, por exemplo, subiram 50% apenas nos últimos 15 dias. E continuam subindo por um motivo central: os países do Sudeste asiático estão competindo com os africanos na compra de um tipo de produto que alimenta, segundo a ONU, cerca de 3 bilhões de pessoas. Mas não só. Alguns dos principais produtores, como Egito, Vietnã, a própria Índia e a China baniram exportações.


Os países africanos estão tentando evitar distúrbios sociais assegurando a compra de estoques de arroz entre os produtores que ainda estão vendendo no mercado internacional, afirma o ‘FT’. Uma porta voz do Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas qualificou a situação atual de ‘tempestade perfeita’” (WAACK, 2008).


Observa-se, portanto, que a alta dos preços não pode ser vista como consequência apenas da produção agrícola voltada à produção de combustíveis, mas também ao aumento da população e, mais ainda, ao aumento do poder aquisitivo dos povos do Sudeste Asiático, por exemplo, local que reúne alguns dos países mais populosos do mundo. Se contabilizarmos que Índia e China juntas possuem quase 3 bilhões de habitantes, e, conforme suas populações alcançam condições de se alimentar mais e de forma melhor, o impacto em todo o mercado não é pequeno. Muito pelo contrário, é necessário que a produção pudesse crescer nos mesmos patamares com que crescem as economias emergentes. No entanto, enquanto países como Brasil, China, índia e Rússia crescem entre 5 e 10% anualmente, a produção de alimentos não chega a crescer 4% ano a ano, como demonstra um estudo da FAO (Food and Agriculture Organization)[2], órgão da ONU que trata, entre outros assuntos, da questão alimentar. O mapa produzido pela FAO expressa que a pesquisa,  o investimento e as políticas adequadas são a chave para satisfazer as necessidades de alimentos no futuro de o mundo. Outro estudo, desta vez do Departamento Americano de Agricultura (USDA), cita índices ainda menores de crescimento da produção de alimentos. Com previsão de que a população mundial possa alcançar 9 bilhões de pessoas até 2050, o USDA calcula que a taxa anual de crescimento da produção de alimentos deveria ser de, no mínimo 1,75% anualmente. No entanto, entre os anos 2000 e 2007, este crescimento não teria ultrapassado os 1,4% ao ano:


“Doubling agricultural output to m eet global demand by 2050 will require and annual average growth of at least 1.75 percent in total factor productivity, according to Neil Conklin, president of the Farm Foundation and author of the report. USDA economists estimate global agricultural TFP growth averaged 1.4 percent per year between 2000 and 2007”[3]. (DELTAFARMPRESS, 2011)


As variações climáticas também podem afetar drasticamente o mercado de grãos, uma vez que impactam diretamente na oferta do produto. Com a constante industrialização, os impactos da poluição e do uso de recursos naturais já podem ser sentidos em nosso clima, de maneira com que fica difícil prever com exatidão o clima para os próximos meses, por exemplo. Ainda que a previsão do tempo não trabalhe com índices totais de acerto, os produtores de alimentos dependem muito de uma constância climática para que possam se programar; consigam prever a data correta de plantio e colheita a fim de obterem resultados positivos com seu trabalho. E é exatamente esta previsão que tem falhado cada vez mais, uma vez que os padrões climáticos até então conhecidos e seguidos não tem se repetido com tanta frequência. E a partir do momento em que as alterações climáticas levam a uma “quebra” de safra, por exemplo, a oferta de determinado alimento é rapidamente reduzida, não consegue atender a demanda, o que gera um aumento de preços quase que instantâneo.


De acordo com estimativas recentes da FAO, a produção de cereais nos principais países exportadores recuou 4% em 2005 e mais 7% em 2006 devido a condições climáticas adversas. Como consequência, espera-se que a dependência pela importação destes alimentos cresça em várias regiões do mundo em desenvolvimento. As enchentes ocorridas na Austrália, por exemplo, reduziram a colheita de trigo em mais de 60% no ano de 2006, um fato que, sozinho, representou uma queda de 4% na exportação global do grão. As cheias também afetaram em quase 25% a produção do Canadá no mesmo ano, além de reduzir, ainda que em menores quantidades, o total produzido em países como Turquia e Argentina. Como muitos grãos são produzidos de forma que dão apenas uma colheita por ano, não há tempo suficiente para que os impactos de um desastre ambiental como o citado acima sejam amenizados pelos países produtores.


Diante do exposto, fica claro que são várias as razões pelos recentes aumentos de preço dos alimentos. Mas ainda que o crescimento populacional, as alterações climáticas e o aumento do consumo pelo incremento da renda da população sejam fatores importantes, uma das causas mais apontadas nos últimos anos tem sido mesmo a questão dos biocombustíveis, que estariam tirando alimento da mesa da população para transformá-los em energia. No entanto, este direcionamento tem sido combatido por muitos estudos recentes, que apontam não haver relação entre o crescimento dos biocombustíveis com a escassez de alimentos ou aumento de preços.


O aumento de preços dos alimentos começou, mais profundamente, no início do século XXI, após um longo período de queda. No entanto, períodos de altos e baixos nos preços são muito comuns, mas no início deste século presenciamos um aumento de maior monta que o usual. Um estudo publicado em meados de 2008, por Alessandro Flaminni, membro da FAO, destaca, entretanto, que enquanto os preços das commodities agrícolas cresceram mais de 60% nos últimos dois anos (à época da pesquisa – de 2006 a 2008), um índice que mede as commodities de forma geral, não apenas as agrícolas, apresentou as mesmas taxas de crescimento. Ainda, o índice que mede os preços do petróleo apresentou crescimento superior. Desde 1999, quando os 3 índices estavam praticamente no mesmo patamar (e no mesmo nível em que se encontravam 10 anos antes), o preço das commoditties agrícolas subiu 98%, enquanto que as commoditties em geral tiveram um aumento de preços da ordem de 286%. O aumento de preço do petróleo superou os 500% no mesmo período analisado, como demonstra o trecho destacado:


“Periods of high commodity prices as well as low prices are natural in the agricultural markets, although often high prices tend to be short-lived compared with low prices which persist for longer periods. Furthermore the current price hike involves all the major food and feed commodities and not just a few, as normally happens. Although the food commodity index has risen more than 60 percent in the last two years, the index for all commodities has also risen 60 percent and the index for crude oil has risen even more. Since mid-1999, when all three indices were at about the same level and were about where they had been 10 years earlier, food commodity prices have risen 98 percent (as of March 2008); the index for all commodities has risen 286 percent; and the index for crude oil has risen 547 percent (USDA 2008) as shown in the figure below. According to FAO standards, a price spike is identified as an annual percentage change that is above two standard deviations of the five years preceding the year from which the percentage change is calculated. Using this definition, it is possible to identify the years in which high price events for basic food commodities occurred.Four distinct periods can be identified when prices exhibited significant increases: 1972-74, 1988, 1995, and the current period (2007-2008). The only price events in consecutive years are those that occurred in the first and the last period (three years in a row in the first, during the oil crisis and two years at the moment)” (FAO, 2008)[4].


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Visto este aspecto, não conseguimos ser taxativos ao ligar o aumento dos preços aos biocombustíveis, conforme demonstra o gráfico 3, que evidencia uma escalada surpreendente dos preços do petróleo e de outras commodities, superando a oscilação observada nas commodities alimentares. Por outro lado, o mesmo relatório da FAO não rechaça totalmente este vínculo, afirmando que commodities agrícolas são dependentes de outros mercados (como o mercado de petróleo) e da direta competição com combustíveis fósseis, ao passo que se a procura aumentar haverá mudança estrutural no mercado de commodities agrícolas: “Agricultural commodities are much more dependent on other markets (such as the oil market) and the direct competition with fossil fuel on the demand side add complexity to the current scenario and signal a structural change in the agricultural commodity Market”. (FAO, 2008, p. 5).


Nas análises da FAO, a oscilação dos preços dos alimentos não está unicamente relacionada à produção de combustíveis renováveis no mundo, visto que o boom populacional em algumas regiões do planeta e as intempéries climáticas também interferem no valor dos alimentos, mas reconhece que a baixa nas reservas nacionais faz os preços de commodities muito mais sensíveis aos choques no a demanda ou mercado de fornecimento.


No Brasil observou-se a proliferação da monocultura de cana-de-açúcar durante o Proálcool, na década de 1970. Com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a partir de 2007, contribuiu para a homogeneização da paisagem agrícola de algumas regiões do país. Especialistas afirmam que o estímulo dado à monocultura da cana-de-açúcar traz desvantagens ambientais, porque agride o solo; sociais, porque reduz o uso da mão-de-obra e afugenta as populações rurais; e econômicas, pois a queda do preço pode por a perder toda a cadeia produtiva regional.


Segundo Luiz Cortez, pesquisador da Unicamp, a produção atual do Brasil é de 16 bilhões de litros por ano e ocupa 5,5 milhões de hectares e se quiséssemos aumentar essa marca para 110 bilhões, as lavouras de cana-de-açúcar ocupariam 75 milhões de hectares. A área total utilizada por toda agricultura brasileira hoje é de 55 milhões de hectares.


Dentre os demais possíveis efeitos negativos da disseminação dos biocombustíveis, a monocultura constitui-se em um problema, uma vez que pode gerar desvantagens econômicas, já que uma única doença ou praga ou a queda do preço do produto no mercado podem gerar um déficit na cadeia produtiva regional.


Se por um lado seria precipitado atribuir à produção de biocombustíveis os problemas com a produção de alimentos no mundo; por outro precisamos dar vasão às preocupações de alguns estudos, que relacionam o cultivo de áreas destinadas aos combustíveis renováveis. Conforme discutido neste artigo, vimos que a redução mundial no volume dos estoques de alimentos, as mudanças climáticas, crescente demanda de mercados consumidores e o uso de grãos para fabricar biocombustíveis são fatores apontados para a alta nos preços dos alimentos. Diante disso, pontua-se que a adoção de um biocombustível como o álcool em escala internacional traria benefícios econômicos ao Brasil e para o meio ambiente, considerando o discurso da sustentabilidade. No entanto, ocorre que esses ganhos podem vir acompanhados de prejuízos sociais e ambientais, se não forem tomadas as medidas adequadas para uma produção racional de grãos destinados aos biocombustíveis.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


O assunto combustível renovável frequenta as principais mesas de discussão da atualidade. Fruto da preocupação com o futuro da humanidade, engloba temas como poluição, efeito estufa e a própria escassez dos combustíveis não-renováveis, uma vez que estudos demonstram que estes atingiram seu ápice de extração em 2015, visto a demanda mundial por energia.


 No caso específico do Brasil, verifica-se uma grande diversificação ocorrida no setor, principalmente a partir dos anos 1970, quando os derivados do petróleo e do carvão respondiam por quase 80% do parque energético brasileiro. Com o passar dos anos, esta participação ficou cada vez mais reduzida, dando vasão a outras fontes: energia hidráulica, cana-de-açúcar e o gás natural.


Surge o álcool como a grande vedete nacional na tentativa de manter a economia do país em atividade, mesmo diante da crise do petróleo internacional. Com ampla área de cultivo no Brasil, mão de obra barata e competitividade, a produção do etanol brasileiro vem ganhando mercado, concorrendo inclusive com o produto norte-americano, produzido a partir da colheita do milho.


Estes fatores proporcionam preços mais competitivos do que outras formas de produção, desencadeando ações internacionais para dificultar a entrada do etanol brasileiro no mercado externo, que vem enfrentando barreiras protecionistas criadas pelo governo norte-americano. A criação da Organização Mundial do Comercio (OMC) constitui-se em uma esperança para as negociações multilaterais de comércio, uma vez que dependendo da classificação a ser adotada no âmbito da OMC, poderá o país pleitear a redução ou mesmo a exclusão de barreiras tarifárias e não-tarifárias que sobre ele incidam, o que acarretaria grandes vantagens econômicas para o Brasil.


Por outro lado, especialistas questionam os possíveis efeitos negativos da produção etanol, estimulando a monocultura. Organizações como o MST acusam o etanol de contribuir para a escassez de alimentos e, consequentemente, o aumento nos preços dos alimentos. O relatório elaborado pela FAO, por sua vez, aponta que são várias as razões pelos recentes aumentos de preço dos alimentos: crescimento populacional, alterações climáticas e aumento do consumo pelo incremento da renda da população. Entretanto, não eximem de culpa os biocombustíveis, que estariam tirando alimento da mesa da população para transformá-los em energia. A conclusão, ainda que arriscada, nos conduz afirmar que a utilização do biocombustível como o álcool em escala internacional traria benefícios econômicos ao Brasil e ao meio ambiente, mas este procedimento necessita ser previamente pensado, de modo que se respeitem as demandas regionais, minimizando os possíveis males sociais e ambientais, inerentes à prática.


 


Referências:

BRASIL. Ministério de Minas e Energia. Matriz Energetica Nacional 2030. 2007. Disponível em <http://www.mme.gov.br/spe/galerias/arquivos/Publicacoes/matriz_energetica_nacional_2030/MatrizEnergeticaNacional2030.pdf>. Consultado em 13 jun 2011.

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Notas:

[1] A promessa dos biocombustíveis, como o etanol, é que algum dia vai ajudar o mundo a crescer livre da dependência do petróleo. Nove bilhões de galões de etanol de milho foram produzidos em os EUA em 2008, enquanto países como o Brasil já vêm amplamente substituído gasolina por etanol de cana de açúcar e são várias iniciativas no sentido de produzir biocombustíveis de celulose. O pensamento é que o uso de biocombustíveis mais ecológicos no lugar da gasolina, que vai melhorar significativamente o a redução das emissões de gases-estufa. (TIME, 2009. Tradução Nossa).

[2] Ver <http://www.fao.org/wfs/final/WFSmaps/Map07-e.pdf> Consultado em 20 jun 2011.

[3] Dobrando a produção agrícola para atender à demanda mundial até 2050 exigirá um crescimento médio anual de pelo menos 1,75 por cento na produtividade total, de acordo com Neil Conklin, presidente da Farm Foundation e autor do relatório. No entando, economistas da USDA estimam o crescimento da TFP agrícola global na média de 1,4 por cento ao ano entre 2000 e 2007. (Deltafarmpress, 2010 – tradução nossa). 

[4] Períodos de altos preços das commodities, assim como os preços baixos são naturais nos mercados agrícolas, embora os preços elevados, muitas vezes tendem a ter vida curta em comparação com os preços baixos, que persistem por longos períodos. Além disso, o aumento do preço atual envolve todos os alimentos principais commodities e alimentos e não apenas algumas, como normalmente acontece. Embora o índice de commodities de alimentos aumentou mais de 60 por cento nos últimos dois anos, o índice para todas as commodities também aumentou 60 por cento eo índice para o petróleo bruto aumentou ainda mais. Desde meados de 1999, quando todos os três índices estavam aproximadamente no mesmo nível, os preços das commodities de alimentos subiram 98 por cento (em março de 2008), o índice para todas as commodities aumentou 286 por cento; e o índice para o petróleo bruto subiu 547 por cento (USDA 2008), como mostrado na figura abaixo. Acordo com os padrões FAO, a alta do preço é identificado como uma variação percentual anual, que está acima de dois desvios-padrão dos cinco anos anteriores ao ano a partir do qual a variação percentual é calculada. Usando esta definição, é possível identificar o ano em que os eventos alto preço de commodities alimentares básicos ocorreu. Quatro períodos distintos podem ser identificados quando os preços apresentaram aumentos significativos: 1972-1974, 1988, 1995, e o período atual (2007-2008 ). Os eventos de preços apenas em anos consecutivos são aqueles que ocorreram no primeiro e no último período (três anos seguidos na primeira, durante a crise do petróleo e dois anos no momento) (FAO 2008 – tradução nossa).


Informações Sobre o Autor

Matheus Lini Segura

Advogado, graduado em Direito pela Universidade Estadual de Londrina, especialista em Direito Internacional e Econômico também pela UEL


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