Emenda Constitucional Nº66/2010: A Divergência Jurisprudencial Acerca Do Instituto Da Separação e Prevalência Da Autonomia Da Vontade Dos Cônjuges

Nome do autor: Thaynara Jesine Ribeiro Mendonça. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Nilton Lins – endereço eletrônico: [email protected].

Nome do orientador: Professor MSc. Guilherme Henrique Benek Vieira. Doutorando em Direito e Justiça pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em Direito pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Especialista em Direito pelo Centro Universitário de Ensino Superior do Amazonas (CIESA). Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA) – endereço eletrônico: [email protected].

Resumo: O presente trabalho visa fazer uma análise a respeito da Emenda Constitucional nº 66/2010, bem como as divergências oriundas de sua publicação. Para tanto foi utilizado o método da abordagem qualitativa, seguindo uma linha descritiva e analítica, com fulcro na interpretação das divergências doutrinárias acerca das inovações trazidas pela EC n° 66/2010.Com esta emenda dois posicionamentos antagônicos surgiram: o primeiro apoia a permanecia o regramento infraconstitucional da separação judicial, uma vez que não há qualquer óbice ao casal com intuito de dissolver a sociedade conjugal sem, contudo, promover, de fato, a dissolução do casamento; o segundo, por outro lado, afirma que a separação judicial deve continuar vigorando no mundo jurídico, posto que é uma ferramenta eficaz na discussão da culpa e, consequentemente, na separação tida por sanção. Ademais, o mérito desta discussão suscitada no RE n° 1167478/RJ ainda não foi enfrentado pelo STF, o que torna o objeto desta pesquisa atual e de suma relevância, posto que a possível decisão de mérito advinda do STF seria capaz de transcender os limites subjetivos do direito material e processual aqui expostos.

Palavras-chave: Emenda Constitucional nº 66/2010; Divergência jurisprudencial; separação; autonomia da vontade.

 

Abstract: The present work aims to analyze the Constitutional Amendment nº 66/2010, as well as the differences arising from its publication. For that, the qualitative approach method was used, following a descriptive and analytical line, with a fulcrum in the interpretation of the doctrinal divergences about the innovations brought by the EC n ° 66/2010. With it, two antagonistic positions emerged: the first supports the continued infraconstitutional rule of judicial separation, since there is no obstacle to the couple in order to dissolve the conjugal society without, however, promoting, in fact, the dissolution of the marriage; the second, on the other hand, states that judicial separation must continue to be in force in the legal world, since it is an effective tool in the discussion of guilt and, consequently, in the separation taken for sanction. Furthermore, the merit of this discussion raised in RE 1167478 / RJ was not yet faced by the Supreme Court, which makes the object of this research current and extremely relevant, since this decision on the merits would be able to transcend the subjective limits of material and procedural law information set out here.

Keywords: Constitutional Amendment 66/2010; Jurisprudential divergence; separation; autonomy of the will.

 

Sumário: Introdução. 1. O casamento e suas formas de dissolução. 1.1. Histórico do casamento. 1.2. Dissolução. 2. A separação judicial e o divórcio. 2.1. Quanto à divergência. 2.2. Quanto a defesa da extinção da separação judicial. 3. A emenda    constitucional    nº    66/2010    e    pela    prevalência    da autonomia da vontade. 3.1 A defesa pela permanência da separação judicial. 3.2. Princípio da autonomia da vontade. Considerações finais. Referências.

 

INTRODUÇÃO

A Emenda Constitucional nº 66/2010 é responsável por uma enorme modificação no âmbito do Direito de Família, uma vez que foi responsável por alteração de entendimentos doutrinários, jurisprudenciais, gerando dúvidas e críticas a seu respeito. O artigo 226, da Constituição da República Federativa do Brasil previa em seu § 6º, a possibilidade de dissolução do casamento pelo divórcio, porém, com anterior separação judicial, no prazo de 1 (um) ano, ou mesmo a separação, de fato, pelo prazo de 2 (dois) anos.

Desta forma, pode-se dizer que foram excluídas do texto constitucional a separação judicial e o divórcio por conversão, assim como a necessidade de espera dos supracitados prazos. Logo, com a Emenda Constitucional nº 66/2010 o divórcio, seja consensual ou litigioso, tornou-se a ferramenta disponível mais utilizada para o término do matrimônio.

Para refletir bem o assunto, é mister voltar um pouco no tempo e falar acerca da PEC 413/05, proposta pelo Deputado Antônio Carlos Biscaia e, posteriormente, da PEC 33/07, de autoria do Deputado Sérgio Barradas Carneiro. Tal proposta de emenda à Constituição ficou conhecida como a “PEC do Divórcio” que, segundo o IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família), buscava diminuir a burocracia em torno do divórcio, uma vez que no Brasil podia-se ver um elevado número de pessoas que se encontravam separadas judicialmente e que acabavam por constituir união estável com outras pessoas, sem, contudo, terem de fato se divorciado, fato este que gerava inúmeras

consequências ao Direito de Família, sobretudo no que tange às relações familiares e sucessórias.

Pode-se dizer que com o surgimento da legislação sobre o divórcio, em especial a partir de 1977, passou a existir uma espécie de “duplicidade artificial” entre o fim do casamento e o fim da sociedade conjugal, numa postura um tanto quanto retrógrada, tendo em vista que submeter o casal e estes ritos processuais gera um aumento nas despesas para a concessão de algo que, em tese, deveria ser rápido, sem burocracia e sem custas, qual seja, o divórcio.

Após este contexto fático, pode-se retornar à ideia central da Emenda Constitucional nº 66/2010, que foi alvo de sensíveis críticas, sobretudo no meio religioso, posto que alegavam que a referida emenda veio trazer uma maior facilidade ao término dos vínculos matrimoniais, banalizando um sacramento essencial à igreja: o casamento. Apesar das duras críticas enfrentadas, a PEC 33/07 acabou sendo aprovada pelo Congresso Nacional e transformada na Emenda Constitucional nº 66/2010, alterando

substancialmente o artigo 226, § 6º da CRFB/1988.

Assim, a referida emenda acabou por dividir juristas, tendo em vista que para uns, no regramento infraconstitucional inexiste previsão da permanência da separação judicial, uma vez que a dissolução do casamento por meio do divórcio é feita de forma mais rápida e eficaz. Por outro lado, outros juristas posicionaram-se no sentido oposto, afirmando que a separação judicial deve continuar vigorando no mundo jurídico, posto que é uma ferramenta eficaz, e que em nada prejudica o divórcio, visto que consoante ao princípio da autonomia da vontade, se as partes entendem que precisam de um tempo separados até decidir se realmente querem se divorciar, o Estado não deve intervir, e muito menos retirar do ordenamento jurídico esta opção.

 

1.   O CASAMENTO E SUAS FORMAS DE DISSOLUÇÃO

1.1 Histórico do casamento

Antes de adentrar no assunto referente ao casamento em si, é importante entender um pouco sobre a evolução da família. Na doutrina de Pablo Stolze, “a formação de núcleos familiares na Antiguidade não pressupunha uma ritualização, uma formalidade social ou religiosa” (GAGLIANO, 2019, p.132) Assim, antes de qualquer

formalização jurídica, a união de duas pessoas com o intuito de constituir uma família existe desde os primórdios da sociedade. Carlos Alberto Gonçalves (2019) expõe que o casamento, até o momento que foi legislado pelo Código Civil de 1916, em seu art. 226, trazia a ideia de que a principal função do matrimônio era criar a família legítima, família esta que era composta por marido, mulher e filhos diretos da união. Qualquer filiação ou relação obtida fora deste núcleo, era considerada ilegítima.

Dito isto, volta-se ao histórico do casamento. Em 1890, mais precisamente no dia 24 de janeiro, surgiu o decreto nº 181. Marechal Deodoro da Fonseca promulgou no Brasil o casamento civil, onde “aqueles que pretendem casar-se, devem habilitar-se perante o oficial do registro civil.” (BRASIL, art. 1º). Assim, o casamento, que já existia de forma fática, foi regulamentado e entrou no nosso ordenamento com todas as suas formalidades, situações de impedimentos, forma de celebração, provas e dissolução. Desde então, o casamento existe como um contrato e acompanha a constante mudança da sociedade.

Podemos observar essas mudanças em vários aspectos, posto que “ o Código Civil de 1916 e as leis posteriores, vigentes no século passado, regulavam a família constituída unicamente pelo casamento, de modelo patriarcal e hierarquizada” (GONGALVES, 2019, p. 35) assim, com o decorrer do tempo foi necessário que a CF/88 trouxesse consigo inovações, tendo como fundamento a dignidade da pessoa humana e considerando todos (independente de gênero) iguais, pois, dessa forma, traçou o caminho para a elaboração e aprovação do Código Civil de 2002.

Dito isto, o casamento que antes era apenas a união de homem e mulher com o objetivo de formar uma família legítima composta por mãe, pai e filhos, hoje reconhece diferentes tipos de família, que, como conceitua Carlos Alberto Gonçalves, “o direito civil brasileiro reconhece a família monoparental (constituída por um dos genitores com seus filhos), a anaparental (somente os filhos), homoafetiva (pessoas do mesmo sexo) e a eudemonista (caracterizada pelo vínculo afetivo)” (GONÇALVES, 2019, p.38).

 

1.2   Dissolução

Nosso antigo ordenamento jurídico, enquanto Estado católico, teve grande influência da igreja, havendo assim, relutância em aceitar o divórcio como forma de dissolução. O casamento surgiu com o decreto nº181/1890, e a única forma de dissolução desse instituto era pela morte de um dos cônjuges. Assim permaneceu até que em 1916 o desquite chegou trazendo a possibilidade de extinção voluntária da sociedade conjugal por meio judicial ou de forma consensual, porém, mesmo existindo essa forma de dissolução no ordenamento, a constituição federal de 1934 trouxe o princípio da indissolubilidade no rol do seu artigo 144, onde o Estado protegia a família indissolúvel e estabelecia os casos passíveis de desquite e anulação do casamento, podendo aplicar os efeitos suspensivos. Assim, o casamento sofreu intervenção do Estado durante muito tempo como forma de proteção a família legítima.

Desse modo, o cristianismo influenciou fortemente o ordenamento jurídico, de forma que “a separação de corpos era camuflada e apresentada como divórcio pelos civilistas, guiados pelo direito canônico, um instituto formalmente abolido, mas que ainda exercia grande influência” (PEREIRA, 1987, p. 144).

Porém, “o interesse de defender a indissolubilidade do casamento não era somente da igreja, mas também do Estado por acreditar que a proteção a família, base da sociedade, se daria apenas com a conservação do casamento a todo custo” (DIAS, 2010, p. 17). Essa relutância por parte do Estado e a influência religiosa chegou ao ponto de não acompanhar mais a evolução da sociedade brasileira e já não satisfazia seus interesses. Tais fatos contribuíram para o surgimento da Emenda Constitucional nº 09/77, que trouxe o divórcio como uma hipótese de dissolução do matrimônio, retirando o princípio da indissolubilidade do casamento. Todavia, para divorciar-se, “era necessário separação judicial prévia pelo período de 3 anos” (Emenda Constitucional nº 09/77). Assim, surgiu o instituto da separação judicial e o divórcio no ordenamento jurídico brasileiro, o que serviu de porta de entrada para o divórcio direto, que passou a vigorar a partir da Emenda Constitucional nº 66/2010, onde não se fez mais necessário expor os motivos da dissolução, muito menos ter um período de separação de corpos prévia, apenas o interesse em extinguir o casamento.

Assim, no atual ordenamento jurídico a Constituição Federal não impõe condições ou obstáculos para o divórcio, bastando a vontade dos cônjuges. Porém o Código Civil, no rol do seu art. 1571 especifica as formas de dissolução do casamento, podendo ser pela morte de um dos cônjuges, pela separação judicial ou pelo divórcio.

 

2.   A SEPARAÇÃO JUDICIAL E O DIVÓRCIO

Antes de adentrar no surgimento e teor da EC nº 66/2010, é importante entender o que é separação judicial e o que é divórcio. A separação judicial, conforme dispõe o art. 1574 do Código Civil, consiste na modalidade que suscita a dissolução da sociedade conjugal se forem casados por mais de um ano, enquanto o divórcio, se define como uma maneira de dissolver o casamento de forma válida e que dispõe aos cônjuges a faculdade de contrair novas núpcias, ou seja, com o divórcio, extingue o vínculo conjugal e resolvendo qualquer pendência referente ao matrimônio, e esta é a principal diferença entre ambos.

Além do mais, na separação judicial, as partes podem restabelecer a sociedade conjugal quando desejar, permanecendo os mesmos termos e condições anteriores a separação. Os cônjuges possuem maior autonomia sobre seu relacionamento, como se lhes fosse assegurado pela constituição a possibilidade de “dar um tempo” e repensar os termos matrimoniais.

 

2.1   Quanto a divergência

A Emenda Constitucional nº 66 e 14 de julho de 2010 provocou muitas divergências no entendimento dos Juristas. Para alguns, foi vista como um avanço, visto que as pessoas eram impedidas de se casar novamente no período da separação, mesmo que não houvesse mais entre os cônjuges os deveres matrimoniais, e por isso, a referida emenda inovou ao trazer para os cônjuges a liberdade de extinguir o vínculo matrimonial de forma imediata.

Para outros, a Emenda Constitucional foi vista sim como um avanço, mas que não revogou a separação judicial, até porque a separação concedida antes do divórcio proporciona o tempo necessário e fundamental para que o casal ter certeza da sua decisão e para resolver situações pendentes.

Essa discussão foi levada ao STF, e tal matéria encontra-se no Recurso Extraordinário (RE) 1167478, onde o relator da matéria, ministro Luiz Fux, reconheceu a repercussão geral da questão constitucional ante a existência de jurisprudências divergentes em todo o país, conforme consta no portal do Supremo Tribunal Federal (STF).

 

2.2   Quanto a defesa da extinção da separação judicial

A alteração do § 6º do art. 226 da CF/88, feita pela EC nº 66/2010 trouxe a possibilidade do divórcio direto, retirando a obrigatoriedade da separação judicial por 2 (dois) anos.

Pablo Stoze Gagliano (2019), defende que a permanência do instituto da separação fere o texto constitucional:

 

Em síntese, com a nova disciplina normativa do divórcio, encetada pela Emenda Constitucional, perdem força jurídica as regras legais sobre separação judicial, instituto que passa a ser extinto no ordenamento brasileiro, seja pela revogação tácita (entendimento consolidado no STF), seja pela inconstitucionalidade superveniente pela perda da norma validante (entendimento que abraçamos, do ponto de vista teórico, embora os efeitos práticos sejam os mesmos). (Gagliano, 2019)

 

Portanto, de acordo com o pensamento do jurista, a extinção do instituto da separação proporcionou a economia processual por não ser mais necessário o ingresso de duas ações para conseguir um divórcio, evitando duplicidade de procedimentos, e também proporciona ao casal a liberdade de dissolver o matrimônio e não ter qualquer impedimento para adquirir novo casamento. Por esse motivo, não seria mais necessária a existência do instituto da separação, sendo suprimido do ordenamento jurídico por existir em sua aplicação uma inconstitucionalidade superveniente.

Ademais, a alteração do texto constitucionalizou o que era necessário diante da evolução societária brasileira, visto que “desde a época em que era seguido o princípio da indissolubilidade do matrimônio até a obrigatoriedade da separação judicial, provou- se frustrada a tentativa do Estado de tentar dar novas chances a uniões conjugais que não eram bem-sucedidas.” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, pag. 95).

Além disso, tem-se a necessidade de desafogar o poder judiciário brasileiro que hoje abarrota uma grande demanda de processos, e com a permanência da possibilidade da separação judicial juntamente com o divórcio direto, traz maiores dificuldades de resolução da lide por existir uma sobrecarga no sistema judiciário, acarretando uma crise.

 

Portanto, sob a ótica de quem defende a extinção do instituto da separação judicial, a sua permanência “apenas traria um desnecessário desgaste emocional e financeiro para os consortes” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p. 95).

Considerando a história  e o objetivo do  instituto da separação judicial, esta “originou-se com a finalidade de ser um requisito para o divórcio. Ocorre que, com sua evolução, não há mais necessidade de sua permanência ante a possibilidade de extinção do vínculo conjugal sem tantas burocracias.” (LÔBO, 2010).

Dessa forma, de acordo com os doutrinadores citados acima, considerar a permanência da separação judicial significa retroceder o ordenamento jurídico que tanto demorou para chegar ao divórcio direto e possibilitar aos consortes uma forma de extinguir todo o vínculo conjugal, sem tantas burocracias e influência do Estado.

 

3. A    EMENDA   CONSTITUCIONAL   Nº   66/2010    E   PELA   PREVALÊNCIA   DA AUTONOMIA DA VONTADE

O Direito de Família, junto com a sociedade, sofre constantes mudanças para que melhor se adeque a novas realidades, novos conceitos de família e garantias que a esta pertence. Assim, deixou de ser um mero ramo do Direito Civil que visa apenas proteção ao patrimônio e economias, porque hoje, o Direito de Família preza principalmente a proteção aos direitos dos indivíduos, seguindo princípios legais e decisões que melhor satisfaça ao pedido, visto que a família é a base da sociedade, conforme prevê o caput do art. 226, Constituição Federal.

O conceito de família é “toda ligação de pessoas por vínculos sanguíneos, afetivos e adotivos” (GONÇALVES, 2018, p. 300). Ou seja, a partir do início de uma relação afetiva, como o casamento, tem-se a construção de um tipo de família. Porém, assim como o matrimônio tem seu início provocado por relações afetivas, também termina pela falta deste.

A dissolução da sociedade conjugal com a nova redação da EC nº 66/2010 trouxe uma grande inovação, visto que antes de romper definitivamente qualquer vínculo matrimonial, os cônjuges deveriam passar um período separados faticamente, conforme redação original do art. 226, § 6º CF/88.

Tal medida gerou diversos problemas pois era nítido o desamparo aos que realmente não tinham qualquer interesse em prosseguir com o relacionamento, muitos até nutriam uniões extramatrimoniais que perduravam clandestinamente até o fim do decurso do tempo obrigatório de separação para enfim casar-se com o novo companheiro (a). Assim, a separação de corpos já não era suficiente para suprir a dissolução da sociedade marital, fazendo com que os juristas trouxessem a EC 66/2010, que trouxe para o rol do artigo 226, CF/88 o divórcio direto, com a possibilidade dos cônjuges obterem o divórcio imediato, sem qualquer condição.

 

3.1   A defesa pela permanência da separação judicial

Não há discussão quanto a existência da EC nº 66/2010 e a alteração que esta trouxe a redação constitucional do art. 226 da CF/88. Porém, a divergência tem início quando se discute sobre a permanência ou não do instituto da separação judicial.

No texto da emenda, não veio qualquer revogação ao instituto da separação. Alguns doutrinadores e juristas entendem que essa revogação foi feita de forma tácita, e essa também é a interpretação adotada pelo presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), que acredita que “essa modalidade não existe mais, é impossível de pedi-la, e aquelas que estão em andamento podem ser convertidas diretamente para o divórcio, independente do período” (OLIVEIRA, 2010).

Considerando também a lei de Introdução ao Código Civil, “somente ocorre a revogação de lei anterior quando a posterior for de conteúdo conflitante ou repetitivo” (Decreto-lei nº 4.657, 4 de setembro de 1942, Vade Mecum Saraiva.2020, p. 114)

Porém, há também quem defenda a permanência deste instituto, tendo em vista os princípios da autonomia da vontade das partes e da não-intervenção do Estado no ramo do Direito de família, caso de José Moacyr Doretto Nascimento e Gustavo Gonçalves Cardozo:

 

É de se indagar se a separação judicial foi, deveras, extirpada do ordenamento jurídico pela superveniência constitucional. A novel norma constitucional preceitua que o casamento será extinto pelo divórcio, silenciando-se quanto à separação; nada diz, nada prescreve. Lança-se, nesse contexto, outra indagação retórica: o casal que passe por crise familiar, querendo buscar um respiradouro, deverá divorciar-se açodadamente ou viver em ligeira ilegalidade, que constrange socialmente muitos, uma vez que presente ainda o dever de fidelidade recíproca? (…) Há que se respeitar a vontade dos indivíduos, ainda incertos quanto ao futuro, mas decididos quanto ao presente. Há que se viabilizar e reconhecer a persistência da separação consensual em nosso sistema. Nem se venha redarguir que serão esses casos poucos ou mesmo raros, porque o direito, em sua modernidade, também tutela e promove a felicidade de minorias. (NASCIMENTO e CARDOZO, 2010.)

 

Esse pensamento também é defendido pela Presidente da Comissão de Direito de Família do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), Regina Beatriz Tavares da Silva, que afirma a impossibilidade de concluir pela extinção da separação judicial. “Sem considerar algumas modalidades de separação que são dadas como primordiais, a emenda trouxe insegurança jurídica.” (OLIVEIRA, 2010).

Assim, levando em consideração os dois pensamentos, vê-se que a emenda logo após a sua instauração, trouxe uma confusão por não deixar explícito a permanência ou não do instituto da separação. Porém, essa discussão ainda se encontra presente no nosso sistema jurisdicional, mesmo após dez anos, mas se levarmos em consideração os princípios acima informados, veremos que não há qualquer impedimento a aplicação dessa modalidade de dissolução matrimonial pois os cônjuges possuem essa autonomia de escolher o que melhor se aplica à sua situação matrimonial.

Portanto, na defesa dessa interpretação da emenda, considera-se também a legalidade do processo, pois nas situações em que os consortes ainda não encontram- se preparados para o divórcio, existe a necessidade de aplicação da separação para que evite constrangimentos e ilegalidades em sua apresentação por ter que assinar como “casado (a)” quando não há no momento uma relação matrimonial condizente.

 

Ao ser dada nova redação ao art. 226, § 6º da Constituição Federal, desaparece a separação e eliminam-se prazos e a perquirição de culpa para dissolver a sociedade conjugal. Qualquer dos cônjuges pode, sem precisar declinar causas ou motivos, e a qualquer tempo, buscar o divórcio. A alteração, quando sancionada, entra imediatamente em vigor, não carecendo de regulamentação. Afinal, o divórcio está regrado no Código Civil, e a Lei do Divórcio manda aplicar ao divórcio consensual o procedimento da separação por mútuo consentimento (art. 40, § 2º). Assim, nada mais é preciso para implementar a nova sistemática. (DIAS, 2010)

 

Desse modo, a doutrinadora afirma que a nova redação dada ao art. 226, § 6º da CF/88 eliminou a separação e os seus prazos como requisito da dissolução do relacionamento conjugal, e que não é um impedimento para o divórcio, visto que este pode ser requisitado por qualquer dos cônjuges sem explicação do motivo ou alegação de culpa. Porém, nessa linha de pensamento, nada impede que os cônjuges requeiram a separação antes de decidir pelo divórcio.

A principal fundamentação para a extinção do instituto da separação é a interpretação e lembrança de sua antiga finalidade, que era atrasar o processo de divórcio por existir uma prevalência da influência religiosa. Todavia, deve se observar que existem casais que ainda optam pela separação de corpos anterior ao divórcio, por precisar de um tempo das suas obrigações matrimoniais, mas sem extinguir completamente a sociedade conjugal.

É importante salientar que, a separação judicial ainda é prevista pelo Código Civil, que de acordo com o art.1571, inciso III, é uma das formas de dissolução da sociedade conjugal, e é importante a sua permanência por além de resguardar os princípios da autonomia da vontade e da liberdade, mantém a possibilidade de em qualquer momento após a separação, reestabelecer a sociedade conjugal independente do motivo que causou a dissolução, conforme prevê o rol do art. 1577 do Código Civil.

Ademais, há que se destacar que o Supremo Tribunal Federal, através do Ministro Relator Luiz Fux, já reconheceu a repercussão geral da tese, todavia, o Recurso Extraordinário n° 1167478, proferido ainda não foi enfrentado, o que torna o objeto desta pesquisa atual e de suma relevância, posto que a possível decisão de mérito advinda do STF seria capaz de transcender os limites subjetivos do direito material e processual aqui expostos.

 

3.2   Princípios da autonomia da vontade

A família por muito tempo foi um bem que sofreu diversas intervenções do Estado, por ser reconhecida desde os primórdios como a base da sociedade. Por isso, por muito tempo foi seguido o princípio da indissolubilidade do casamento como uma forma de inibir o número de divórcios. Porém, essa ideia não se adequou a realidade que a sociedade vivia, por isso, houve diversas mudanças até chegar no atual ordenamento jurídico pátrio. Todavia, hoje existe a discussão referente a permanência ou não do instituto da separação judicial. Por isso, podemos levar em consideração um princípio de grande

importância para o direito civil: o princípio da autonomia da vontade.

 

O princípio da autonomia da vontade, “garante a liberdade da manifestação da vontade das partes de contratar ou não contratar, da forma que melhor entender para estabelecer o teor contratual” (GONÇALVES, 2016, p. 40). Assim, os consortes são livres para moldar seus contratos de forma que satisfaça suas vontades sem qualquer interferência do Estado ou de outrem.

 

Dessa forma, considerando que “a contratualidade, o compromisso recíproco de comunhão de vida, a pessoalidade e a solenidade caracterizam o instituto do casamento” (PINHEIRO, 2015, p.389), observa-se que a contratualidade é uma característica do casamento, portanto, inclusive na sua dissolução devem ser aplicados os princípios que se referem ao módulo dos contratos, e por isso, cabe a aplicação do princípio da autonomia da vontade quando existe entre as partes o interesse na separação judicial antes do divórcio.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A família é, sem dúvida, o núcleo fundamental da sociedade, posto que representa o primeiro agente capaz de socializar o ser humano. Está presente em toda a história da civilização e caracteriza-se por ser uma construção social organizada de acordo com o a cultura e, sobretudo, o tempo, sendo ainda sujeita a constantes alterações. Assim, conclui-se que a família tem a capacidade de se adaptar com a realidade do tempo, todavia, sempre teve o afeto como núcleo base de suas relações.

Infelizmente, o afeto nem sempre se mantêm com o tempo, levando casais a se separarem e a buscarem mecanismos de direito material e direito processual em seu auxílio. Nesse ínterim, surgem as bases desta pesquisa, posto que o objeto central foi a Emenda Constitucional n° 66/2010, bem como as divergências doutrinárias e jurisprudenciais em torno dela, tendo em vista que trouxe substancial modificação no artigo 226, § 6º da Constituição, modificando o instituto da separação judicial, fazendo com que, em tese, a sociedade conjugal venha a ser dissolvida apenas pelo divórcio. Outros doutrinadores, por sua vez, defendem que a Emenda Constitucional n° 66/2010 em nada afetou a existência do instituto do divórcio, gerando apenas um amparo para que os cônjuges possam exercer a sua autonomia da vontade.

Nesta pesquisa, foi utilizado o método da abordagem qualitativa, seguindo uma linha descritiva e analítica, com fulcro na interpretação das divergências doutrinárias acerca das inovações trazidas pela Emenda Constitucional n° 66/2010.

Ao término da análise, chegou-se a conclusão que a referida emenda acabou por trazer uma espécie de confusão, por não deixar claro a permanência ou não do instituto da separação. Todavia, levando-se em conta os princípios de proteção constitucional da família, sobretudo o princípio da autonomia das partes, chegou-se à conclusão de que se deve respeitar a autonomia da vontade dos indivíduos, ainda que estes não tenham certeza quanto ao seu futuro de suas relações matrimoniais, mas que já têm a plena convicção, no presente, da sua vontade de separação. Assim, quando o casal quiser se divorciar, pode fazer tal pedido diretamente ao juiz, caso haja menores envolvidos, ou ir diretamente a um Tabelionato de Notas, sem ter que esperar qualquer cumprimento de lapso temporal imposto de maneira retrógrada pela lei. Desta forma, o mecanismo processual ficou mais simples, pois aqueles que já se encontram separados judicialmente, independente do cumprimento ou não de prazo, já podem requerer o divórcio de forma imediata, seja ele consensual ou litigioso, judiciais ou extrajudiciais. Ademais, quanto aos processos que já estão em curso, pode-se, de forma direta, requerer a sua conversão em um procedimento de divórcio.

Logo, mesmo diante das divergências doutrinárias mostradas em face da Emenda Constitucional nº 66/2010, chega-se à conclusão que ela veio consagrar dois princípios muito em voga: o princípio da liberdade, que diz respeito não apenas à criação, manutenção ou extinção das relações familiares, como também o princípio da autonomia da vontade, que garante o poder de escolha aos integrantes da família, sobretudo aos cônjuges no que tange à separação ou não. Pode-se dizer, portanto, que a Emenda Constitucional nº 66/2010 adota uma postura vanguardista no Direito Brasileiro, posto que retira do Estado a capacidade de imposição de tantos óbices ao fim de um relacionamento que existia apenas judicialmente, todavia, falido na prática.

 

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de. O divórcio após a Emenda Constitucional nº 66 de 2010: anotações para uma primeira abordagem. In: LÔBO, Paulo; ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino et al.. (Org.). Temas atuais e polêmicos de direito de família. 1 ed. Recife: Nossa Livraria, 2011, v. 1, p. 95-130.).

 

BRASIL, [Constituição (1998)] Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 26 de nov. 2020.

 

BRASIL, Decreto nº 181 de 24 de janeiro de 1890. Promulga a lei sobre o casamento civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d181.htm>. Acesso em: 25 de nov.2020.

 

BRASIL, Decreto-lei nº 4.657 de 04 de novembro de 1942. Dispõe sobre as Lei de introdução ao Código Civil. In vade mecum. São Paulo: Saraiva. 2020.

 

BRASIL, Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm>. Acesso em: 25 de nov. 2020.

 

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