Empregado doméstico: jornada de trabalho e seus desdobramentos sob a ótica da Emenda Constitucional nº 72/2013

Resumo: Sob a ótica da Emenda Constitucional nº 72/2013, o presente estudo aborda a temática da jornada de trabalho do empregado doméstico. A referida emenda constitucional promoveu uma profunda alteração no parágrafo único do artigo 7º da Constituição da República, estendendo expressamente à categoria dos empregados domésticos direitos trabalhistas antes reservados somente aos trabalhadores urbanos e rurais. Sendo assim, após essa ampliação dos direitos dos empregados domésticos, a esses são asseguradas a duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho; e a remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinquenta por cento à do normal. Desse modo, a ocasião favorece o debate sobre o assunto e, ao mesmo tempo, é um incentivo à produção doutrinária. Nesse contexto, este trabalho de conclusão de curso trata da problemática da jornada de trabalho do empregado doméstico, investigando o tratamento atual concedido à questão sob a ótica legal, doutrinária, jurisprudencial e social.

Palavras-chave: Empregado doméstico. Jornada de trabalho. Emenda Constitucional nº 72/2013.

Abstract: From the perspective of Constitutional Amendment No. 72/2013, the present study addresses the issue of the household employee working hours. That constitutional amendment promoted a significant change in the sole paragraph of Article 7 of the Constitution, expressly extending the employees category of household labor rights before reserved only to urban and rural workers. Thus, after this expansion of the rights of household workers, to these are guaranteed normal working hours not exceeding eight hours per day and forty-four per week, provided the compensation schedules and reducing journey through an agreement or collective bargaining agreement of work; and higher extraordinary service remuneration to at least fifty per cent of the normal. Thus, the occasion favors the debate on the subject and at the same time, it is an incentive to doctrinal production. In this context, this course conclusion paper deals with the problem of household employee working hours, investigating the current treatment given to the issue from a legal perspective, doctrinal, jurisprudential and social.

Keywords: Household employee. Working hours. Constitutional Amendment No. 72/2013.

Sumário: Introdução. 1 Panorama histórico e regulamentação legal. 2 Conceito de empregado doméstico. 2.1 Elementos fático-jurídicos gerais. 2.1.1 Continuidade. 2.2 Elementos fático-jurídicos especiais. 2.2.1 Finalidade não lucrativa dos serviços. 2.2.2 Prestação dos serviços à pessoa ou família. 2.2.3 Âmbito residencial da prestação dos serviços. 3 Jornada de trabalho doméstico. 3.1 Distinções: duração, jornada e horário. 3.2 Jornada de trabalho decente. 3.3 Jornada de trabalho doméstico pós EC nº 72/2013. 3.3.1 Projeto de Lei Complementar nº 302/2013. Considerações finais.

Introdução 

O trabalho doméstico, devido a sua grande importância social, possui uma função essencial na reprodução da força de trabalho e, consequentemente, para o bem estar das pessoas. No Brasil, assim como em diversos países, trata-se de uma atividade laboral bastante antiga e que tem um papel bastante relevante na organização e no funcionamento dos lares (âmbito residencial das famílias), assim como na economia.

A maioria dos postos de trabalho existentes no espaço doméstico é preenchida por mulheres, que desempenham seus ofícios, mediante pagamento de salário, nos domicílios de famílias diversas das suas próprias. Tradicionalmente, o labor doméstico representa uma considerável fonte de ocupação para um grande número de pessoas do gênero feminino, como se fosse um encargo a elas inerente. Em muitos casos, especialmente entre indivíduos pertencentes a famílias de baixa renda, o exercício dessa profissão tende a ser uma forma, senão a única, de inclusão no mercado de trabalho.

Além disso, o trabalho doméstico, assim como outras atividades manuais, é ainda corriqueiramente vinculado à exploração de negros e índios, ao colonialismo e a outras formas de servidão. Por isso, essa atividade laboral preserva até hoje as hierarquizações alicerçadas na etnia, nacionalidade ou raça. Ou seja, apresenta-se como parte integrante do sistema de discriminação de gênero e raça que insiste em prevalecer na sociedade brasileira.

Hodiernamente, há um gradativo aumento da demanda pelo trabalho doméstico no Brasil. O país, segundo estudo publicado pela Organização Internacional do Trabalho – OIT em janeiro de 2013, tem a maior quantidade de empregados domésticos do mundo – 7,2 milhões de pessoas (OIT, 2013). Isso se deve, principalmente, às transformações ocorridas na organização do trabalho e na estrutura básica das famílias. São exemplos significativos dessas alterações a introdução de um grande número de mulheres no mercado formal de trabalho e a consequente dificuldade de promover a devida harmonização entre a vida profissional e a vida familiar. Esta questão tem como agravante as mudanças constatadas nas famílias contemporâneas, valendo citar, a título de ilustração, o tipo de família denominado monoparental, em que somente um dos pais reside com o filho e arca com todas ou a maior parte das responsabilidades de criá-lo. A intensificação da duração do trabalho e o envelhecimento da população também são fatores que colaboram para a crescente busca por trabalhadores domésticos.

Não obstante, o labor doméstico continua sendo aviltado, subvalorizado e insuficientemente regulamentado, além de marcado por situações de informalidade e precariedade, o que contribui para que apresente grandes déficits de trabalho decente[1]. À profissão de empregado doméstico costumam ser negados a identificação como gerador de valores e, até mesmo, o reconhecimento de que é trabalho. Sendo assim, o referido ofício se torna invisível perante a sociedade. Trata-se do que se designa de trabalho invisível[2].

À vista disso, a construção de uma sociedade mais justa e igualitária e menos discriminatória perpassa pelo imprescindível processo de valorização do trabalho doméstico. Em âmbito nacional, essa atividade laboral permaneceu por um longo tempo na invisibilidade, não sendo sequer objeto de políticas públicas específicas. Atualmente, mesmo com algumas mudanças nesse quadro, é patente a situação de fragilidade da categoria dos trabalhadores domésticos. Tal vulnerabilidade se revela pelas altas taxas de informalidade, pelos baixos níveis de rendimento e na permanência do trabalho infantil.   

Na tentativa de alterar ainda mais esse panorama, foi promulgada a Emenda Constitucional nº 72/2013, que modificou o parágrafo único do artigo 7º do texto constitucional e tornou mais extenso o rol de direitos trabalhistas aplicáveis aos trabalhadores domésticos. Agora, lhes é garantido, por exemplo, o direito à duração do trabalho de oito horas diárias e quarenta e quatro semanais e o direito ao adicional de horas extras.

Portanto, introduzir o assunto na pauta das discussões jurídicas e acadêmicas torna-se inevitável, tendo em vista que as extenuantes jornadas de trabalho representam um dos problemas mais graves atinentes a essa profissão devido aos obstáculos existentes para o seu controle e sua fiscalização.

Logo, o objetivo do presente estudo é analisar a jornada de trabalho do empregado doméstico e suas implicações de acordo com as alterações introduzidas pela Emenda Constitucional nº 72/2013, apresentando os questionamentos e dúvidas mais frequentes e fazendo novas análises e indagações.

Diante desse cenário e considerando que os trabalhadores domésticos ganharam destaque com a promulgação da nova emenda constitucional, que transformou substancialmente o paradigma dessa categoria laboral, notadamente no que diz respeito à duração do trabalho, este estudo visa, dessa forma, contribuir para a elucidação do tema e evolução de debates científicos.

1 Panorama histórico e regulamentação legal

O vocábulo "doméstico" tem sua origem etimológica no latim, antiga língua indo-europeia do ramo itálico falada no Lácio, região localizada nos arredores de Roma. Deriva da palavra latina domus, que significa casa. Por isso, empregado doméstico é aquele que desempenha suas atividades na casa do patrão, proprietário, senhor.

O trabalho doméstico, na Antiguidade, era realizado, em sua maior parte, por escravas e crianças. Já na Idade Média, com a substituição do sistema escravocrata pelo sistema servil de produção, surgiu, durante o período do Feudalismo, a figura do servo.

No Brasil, do período colonial (1500-1815) até o fim do período imperial (1889), praticamente todo o trabalho doméstico era exercido por escravos, inicialmente índios e, depois, negros africanos.

Assim sendo, verifica-se que, desde as épocas mais remotas, o trabalho doméstico era considerado sem valor, desprestigiado por ser executado por escravos ou servos. Consequentemente, o exame detalhado da natureza do serviço doméstico não pode deixar de passar pela análise da escravidão.

O processo de abolição da escravatura no Brasil, que teve início em 1850 com a Lei Eusébio de Queirós, seguida pela Lei do Ventre Livre de 1871 e pela Lei dos Sexagenários de 1885, e fim em 1888 com a Lei Áurea, expandiu as oportunidades de trabalho doméstico assalariado. Apesar disso, vale esclarecer que as tarefas inerentes a esse ofício continuaram a ser realizadas predominantemente por mulheres negras, ex-escravas. Essa conjuntura fez com que à já existente discriminação de raça fosse somada a discriminação de gênero.

Observa-se, portanto, que o fim da escravidão não denotou, na realidade, a efetiva alforria dos escravos. Aqueles que haviam sido recentemente libertados optavam pela manutenção da sua condição de explorados pelos seus ex-senhores (ex-donos) para ter como compensação alimento e moradia. Ou seja, a subsistência desses indivíduos ainda dependia da realização das mesmas tarefas caseiras, como limpar, cozinhar, lavar e passar roupas, para os mesmos tomadores, só que na condição de trabalhadores domésticos e não na de escravos.

De acordo com Platão de Barros, citado por Ferraz (2003, p. 32), o trabalhador doméstico brasileiro provém,

[…] “ao que tudo parece, da aia ou da mucama das senhoras de engenho, visceralmente ungidas aos poderosos da terra, as quais recebiam como paga do dedicado e cansativo labor, morada em um recanto da ‘casa grande’, alimentação e escasso vestuário (BARROS apud FERRAZ, 2003, p. 32).”

Isto posto, entende-se com absoluta clareza o motivo de certas profissões, como babá, caseiro, cozinheiro, cuidador de idosos, faxineiro, governanta, jardineiro, lavadeira, mordomo, motorista particular e vigia, integrarem a categoria dos trabalhadores domésticos. É que essa classe de obreiros, como se pode notar, apresenta traços característicos importantes do trabalho escravo da Idade Antiga, com a adição de influências democráticas paternalistas provenientes de uma sociedade que ainda demonstra ter robustas sequelas do período escravocrata que, no Brasil, vigorou por 388 anos.   

Os primeiros diplomas legais a serem aplicados à prestação do trabalho doméstico foram as Ordenações do Reino (ordenamento jurídico português aplicável no Brasil Colônia), que compreendiam, respectivamente, as Ordenações Afonsinas, as Ordenações Manuelinas e, durante a dominação espanhola, as Ordenações Filipinas.

Em 1886, o Código de Posturas do Município de São Paulo passou a ser a primeira norma a tratar especificamente da categoria dos trabalhadores domésticos. Estabelecia regras para as atividades dos criados de servir e das amas-de-leite. Ainda definia, em seu artigo 263, que criado de servir era toda pessoa livre que, mediante salário convencionado, tivesse ou quisesse ter ocupação de moço de hotel, hospedaria ou casa de pasto, cozinheiro, copeiro, cocheiro, hortelão, de ama-de-leite, ama-seca, engomadeira ou costureira e, em geral, a de qualquer serviço doméstico.

Após a abolição da escravatura ocorrida em 1888 e diante da ausência de legislação específica, o trabalho doméstico somente voltou a receber tratamento normativo em 1916, e mesmo assim de forma genérica e subsidiária, quando o Código Civil passou a regular qualquer espécie de locação de serviços, estando aí inserido o trabalho doméstico (art. 1.216 e segs. do CC/1916).  

No Rio de Janeiro (na época, Distrito Federal), foi editado o Decreto nº 16.107, de 30 de julho de 1923, que aprovou o regulamento de locação dos serviços domésticos. Definia, em seu artigo 2º, como trabalhadores domésticos os cozinheiros e ajudantes, copeiros, arrumadores, lavadeiras, engomadeiras, jardineiros, hortelões, porteiros ou serventes, enceradores, amas-secas ou de leite, costureiras e damas de companhia. Além disso, conferia a esses trabalhadores alguns direitos esparsos e autorizava a aplicação da justa causa obreira em caso de incapacidade resultante de enfermidade.

Destaca-se que, em São Paulo, no ano de 1936, foi criada por Laudelina de Campos Melo[3] a primeira associação de empregadas domésticas de que se tem conhecimento no Brasil. Em seguida, outros sindicatos irromperam por todo o país, tendo como ponto culminante a criação da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas – FENATRAD[4].

Posteriormente, em 27 de fevereiro de 1941, o Decreto-Lei nº 3.078 passou a conceituar como empregados domésticos todas a pessoas que, de qualquer profissão ou mister, mediante remuneração, prestassem serviços em residências particulares ou a benefício destas (art. 1º). Concedeu, ainda, a essa categoria o direito ao aviso prévio de oito dias após seis meses de trabalho, bem como estabeleceu hipóteses de rescisão indireta e a obrigação de anotação do vínculo empregatício na carteira de trabalho. Entretanto, a vigência do diploma legal em questão era objeto de controvérsia, tendo em vista que havia disposição expressa em seu artigo 15 prevendo a necessidade de sua regulamentação no prazo de noventa dias, o que nunca aconteceu. No final das contas, o Decreto-Lei acabou sendo aplicado normalmente, pois a maior parte de seus dispositivos era bastante clara e simples, prescindindo de qualquer tipo de regulamentação posterior pelo Poder Executivo.

Em 1º de maio de 1943, o Decreto-Lei nº 5.452 aprovou a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, a qual estatui normas que regulam as relações individuais e coletivas de trabalho. A CLT despontou como a materialização da autonomia do Direito do Trabalho em relação ao Direito Civil. Porém, o texto obreiro, que censura as distinções relativas à espécie de emprego e à condição de trabalhador, bem como aquelas entre o trabalho intelectual, técnico e manual (artigo 3º, parágrafo único), afasta expressamente os trabalhadores domésticos da sua esfera de proteção, ipsis litteris:

“Art. 7º Os preceitos constantes da presente Consolidação salvo quando fôr em cada caso, expressamente determinado em contrário, não se aplicam:

a) aos empregados domésticos, assim considerados, de um modo geral, os que prestam serviços de natureza não-econômica à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas;

b) aos trabalhadores rurais, assim considerados aqueles que, exercendo funções diretamente ligadas à agricultura e à pecuária, não sejam empregados em atividades que, pelos métodos de execução dos

respectivos trabalhos ou pela finalidade de suas operações, se classifiquem como industriais ou comerciais;

c) aos funcionários públicos da União, dos Estados e dos Municípios e aos respectivos extranumerários em serviço nas próprias repartições;

d) aos servidores de autarquias paraestatais, desde que sujeitos a regime próprio de proteção ao trabalho que lhes assegure situação análoga à dos funcionários públicos. (BRASIL, 1943) (destaques acrescidos)”

Somente após quase três décadas de vigência da Consolidação das Leis do Trabalho é que o trabalho doméstico, por meio da Lei nº 5.859, de 11 de dezembro de 1972, e do Decreto nº 71.885, de 26 de fevereiro de 1973, passou a ter regramento específico. A referida lei, logo em seu artigo 1º, institui o conceito de empregado doméstico como sendo "aquele que presta serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família no âmbito residencial destas" (BRASIL, 1972).

Na Constituição da República de 1988, o rol de direitos trabalhistas aplicáveis aos domésticos foi estendido, porém, a diferença de tratamento em relação aos empregados urbanos e rurais permaneceu. De acordo com a redação original do parágrafo único do artigo 7º do texto constitucional, somente eram assegurados à categoria dos trabalhadores domésticos, além da integração à previdência social, os seguintes direitos: a) salário mínimo nacionalmente unificado; b) irredutibilidade do salário; c) décimo terceiro salário com base na remuneração integral ou no valor da aposentadoria; d) repouso semanal remunerado; e) gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal; f) licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias; g) licença paternidade; h) aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, sendo no mínimo de trinta dias; e i) aposentadoria.

No panorama internacional, vale apontar a Convenção sobre o Trabalho Decente para as Trabalhadoras e os Trabalhadores Domésticos (nº 189) e a Recomendação sobre o Trabalho Doméstico Decente para as Trabalhadoras e os Trabalhadores Domésticos (nº 201), ambas da Organização Internacional do Trabalho – OIT e ainda não ratificadas pelo Brasil. Em síntese, essas normas internacionais estabelecem direitos e princípios básicos com o objetivo de garantir aos empregados domésticos condições de trabalho decente. A título de exemplo, destaca-se o artigo 10 da Convenção nº 189, que prevê a adoção de medidas pelos Estados membros com vistas a assegurar a limitação da duração do trabalho dos domésticos, in verbis:

“Artigo 10

1. Todo Membro deverá adotar medidas para garantir a igualdade de tratamento entre os trabalhadores domésticos e os trabalhadores em geral com relação às horas normais de trabalho, à compensação de horas extras, aos períodos de descanso diários e semanais e férias anuais remuneradas, em conformidade com a legislação nacional e com acordos coletivos, considerando as características específicas do trabalho doméstico.

2. O período de descanso semanal deverá ser de pelo menos 24 horas consecutivas.

3. Períodos nos quais os trabalhadores domésticos não dispõem livremente de seu tempo e permanecem à disposição do domicílio onde trabalham de maneira a atender a possíveis demandas de serviços devem ser consideradas como horas de trabalho, na medida em que se determine na legislação nacional, acordos coletivos ou qualquer outro mecanismo em conformidade com a prática nacional.” (OIT, 2011)

Finalmente, em 2 de abril de 2013, foi promulgada a Emenda Constitucional nº 72, aprovada em segundo turno de votação pelo plenário do Senado Federal por unanimidade, que alterou a redação do parágrafo único do artigo 7º da Constituição da República para estabelecer a igualdade de direitos trabalhistas entre os trabalhadores domésticos e os demais trabalhadores urbanos e rurais. Trata-se, na verdade, de uma significativa ampliação dos direitos constitucionais trabalhistas assegurados à categoria dos empregados domésticos já que os direitos desses não foram equiparados em sua totalidade aos dos empregados regidos pela CLT. Conforme a nova redação, o dispositivo assevera o seguinte:

“Art. 7º[…]

Parágrafo único. São assegurados à categoria dos trabalhadores domésticos os direitos previstos nos incisos IV, VI, VII, VIII, X, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XXI, XXII, XXIV, XXVI, XXX, XXXI e XXXIII e, atendidas as condições estabelecidas em lei e observada a simplificação do cumprimento das obrigações tributárias, principais e acessórias, decorrentes da relação de trabalho e suas peculiaridades, os previstos nos incisos I, II, III, IX, XII, XXV e XXVIII, bem como a sua integração à previdência social.” (BRASIL, 2013)

Observa-se, quanto ao novo rol de direitos dos trabalhadores domésticos, que aqueles originariamente assegurados quando da promulgação da Constituição foram mantidos. Outros, de aplicação imediata, foram acrescidos pela emenda constitucional: a) garantia de salário, nunca inferior ao mínimo, para os que percebem remuneração variável; b) proteção do salário na forma da lei, constituindo crime sua retenção dolosa; c) duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho; d) remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinquenta por cento à do normal; e) redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança; g) reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho; i) proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil; j) proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência; e k) proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos.

Por outro lado, ainda dependem de regulamentação específica para entrar em vigor os seguintes direitos: a) relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos; b) seguro-desemprego, em caso de desemprego involuntário; c) fundo de garantia do tempo de serviço; d) remuneração do trabalho noturno superior à do diurno; e) salário-família pago em razão do dependente do trabalhador de baixa renda nos termos da lei; f) assistência gratuita aos filhos e dependentes desde o nascimento até 5 (cinco) anos de idade em creches e pré-escolas; e g) seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa.

Vale esclarecer que a relevante alteração promovida no texto constitucional pela EC nº 72/2013 não tem o poder de possibilitar a aplicação da CLT aos empregados domésticos, pois o comando do artigo 7º, alínea a, do texto obreiro, que exclui essa categoria de trabalhadores do seu âmbito de proteção, continua em vigor.

No momento, encontra-se em tramitação no Congresso Nacional o Projeto de Lei Complementar nº 302/2013, que regulamenta o artigo 7º, parágrafo único, da Constituição da República (EC nº 72/ de 2013); revoga o inciso I do artigo 3º da Lei nº 8.009/1990; o artigo 3º da Lei nº 8.213/1991; o inciso VII do artigo 12 da Lei nº 9.250/1995; e revoga a Lei nº 5.859/1972.
2 Conceito de empregado doméstico

Em conformidade com o artigo 1º da Lei nº 5.859/1972, empregado doméstico é "aquele que presta serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família no âmbito residencial destas" (BRASIL, 1972).

O Projeto de Lei Complementar nº 302/2013 também apresenta, logo em seu artigo 1º, o conceito de empregado doméstico, ipsis litteris:

“Art. 1º Ao empregado doméstico, assim considerado aquele que presta serviços de forma contínua, subordinada, onerosa e pessoal e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas, por mais de 2 (dois) dias por semana, aplica-se o disposto nesta Lei. (SENADO FEDERAL, 2013)”

Todavia, como a tarefa de conceituar institutos jurídicos não cabe ao legislador, mas sim à doutrina, necessário se faz trazer à baila alguns insignes conceitos de empregado doméstico entabulados no campo doutrinário.

Cassar (2014, p. 389) entende que "doméstico é a pessoa física que trabalha de forma pessoal, subordinada, continuada e mediante salário, para outra pessoa física ou família que não explore atividade lucrativa, no âmbito residencial desta".

Na mesma linha de raciocínio, Delgado (2012, p. 369) sustenta que empregado doméstico "é a pessoa física que presta, com pessoalidade, onerosidade e subordinadamente, serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, em função do âmbito residencial destas".

Ao cotejar os conceitos jurídicos e legais de empregado doméstico, é possível observar algumas semelhanças e diferenças quanto aos elementos fático-jurídicos característicos de uma relação empregatícia celetista.

Um e outro conceito jurídicos assinalam que na relação de emprego doméstica encontram-se os cinco elementos fático-jurídicos inerentes a qualquer outra relação empregatícia, quais sejam: pessoa física, pessoalidade, onerosidade, subordinação e não eventualidade[5]. Os quatro primeiros elementos não possuem qualquer singularidade na relação de emprego doméstica. Já o elemento da não eventualidade, nesse caso, recebe um tratamento jurídico diferenciado, sendo denominado de continuidade[6].

Nessas mesmas definições, ainda é possível verificar a existência de três elementos fático-jurídicos especiais: finalidade não lucrativa dos serviços; apropriação do trabalho somente por pessoa física ou por família; e atividades realizadas em função exclusivamente da esfera residencial dos patrões.

Por outro lado, o conceito legal previsto no artigo 1º da Lei nº 5.859/1972 passa em claro por três dos cinco elementos fático-jurídicos gerais: pessoalidade, subordinação e onerosidade. Abarca somente os elementos gerais da pessoa física e da continuidade e os três elementos especiais. Essa omissão do legislador, talvez proposital na época por haver considerado desnecessário repetir tais elementos na Lei dos Empregados Domésticos, deixou de existir no Projeto de Lei Complementar nº 302/2013, em que é possível encontrar expressamente, na definição de obreiro doméstico apresentada no artigo 1º, os elementos fático-jurídicos gerais da pessoalidade, subordinação e onerosidade.  

À vista disso, o vínculo de emprego doméstico, que se apresenta como uma modalidade singular, resta caracterizado pela existência de oito elementos fático-jurídicos, sendo cinco deles gerais (pessoa física, pessoalidade, onerosidade, subordinação e continuidade) e três especiais (finalidade não lucrativa dos serviços, apropriação dos serviços somente por pessoa física ou por família; serviços realizados em função exclusivamente da esfera residencial dos patrões), inerentes somente à relação empregatícia doméstica.

Antes de encerrar esta seção, porém, é válido mencionar o conceito de empregado doméstico elaborado pelo Ministério do Trabalho e Emprego – MTE. Na obra "Trabalho doméstico: direitos e deveres", o MTE (2013, p. 07) define como empregado doméstico "aquele(a) maior de 18 anos que presta serviços de natureza contínua (frequente, constante) e de finalidade não-lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas".

Ressalta-se, aqui, a restrição à contratação de trabalhadores domésticos somente a partir dos dezoito anos de idade. Essa limitação foi reproduzida no parágrafo único do artigo 1º do Projeto de Lei Complementar nº 302/2013 e está em absoluta consonância com as disposições da Convenção nº 182/1999[7], da Organização Internacional do Trabalho – OIT, que trata da proibição das piores formas de trabalho infantil e da ação imediata para sua eliminação, e do Decreto nº 6.481, de 12 de junho de 2008, que regulamenta os artigos 3º, alínea d, e 4º da referida convenção internacional.

2.1 Elementos fático-jurídicos gerais

Conforme já restou demonstrado na seção anterior, a relação de emprego doméstica é estruturada em torno dos mesmos cinco elementos fático-jurídicos que integram a relação de emprego comum prevista no texto celetista. O componente da não eventualidade, todavia, ostenta uma conformação jurídica peculiar na definição da figura do trabalhador doméstico em razão da opção do legislador pelo uso da expressão "serviços de natureza contínua", presente no artigo 1º da Lei nº 5.859/1972, o que instituiu um entendimento diferente daquele previsto na CLT.

Destarte, quatro elementos fático-jurídicos gerais que caracterizam a relação empregatícia doméstica são exatamente os mesmos encontrados no vínculo de emprego padrão, ou seja, não reclamam alguma explicação típica para a sua devida assimilação. Esses elementos são a prestação do serviço por pessoa física, a pessoalidade, a subordinação (jurídica) e a onerosidade.

No âmbito do Direito do Trabalho, como não poderia deixar de ser, trata-se a execução do trabalho por pessoa física de uma imposição intrínseca a esse ramo jurídico autônomo e especializado, pois os bens jurídicos por ele amparados, como o bem-estar, a integridade física e moral, a saúde, a vida e o lazer do obreiro, não podem ser desfrutados por pessoa jurídica. O fato é que esses bens jurídicos são protegidos, por sua própria natureza, em benefício apenas de pessoas físicas.

Quanto ao empregado, que ocupa o polo ativo do pacto empregatício, a pessoalidade aponta como atributo personalíssimo. Refere-se o elemento em questão a uma obrigação intuitu personae, dotada do caráter da infungibilidade, em que o obreiro não se pode fazer substituir por outrem quando bem entender. Vale ainda enfatizar que nos vínculos de emprego domésticos, em que a fidúcia depositada no trabalhador é ainda maior do que aquela existente nas demais espécies de relação de emprego, a pessoalidade ganha relevo porque a essência da atividade desenvolvida no espaço familiar (residencial) é rigorosamente pessoal.  

A subordinação jurídica, que também deve ser visualizada de forma objetiva e não subjetiva nas relações de emprego domésticas, é o componente fático-jurídico que fixa a distinção entre relação de trabalho e relação de emprego e entre esta e relações sociais que predominaram no passado como a escravidão e a servidão.

Enfim, a onerosidade representa a dependência mútua ou a reciprocidade entre as partes (leia-se, empregado e empregador) do contrato bilateral de emprego. À força de trabalho, que detém valor econômico, colocada à disposição do tomador de serviços deve corresponder uma contrapartida econômico-financeira em favor do empregado. Por isso, o obreiro percebe remuneração/salário em troca das tarefas executadas.

2.1.1 Continuidade

O quinto elemento fático-jurídico geral encontrado na relação de emprego doméstica é digno de uma atenção especial. Por uma predileção do legislador pátrio, a expressão "serviços de natureza não eventual", utilizada no artigo 3º do texto consolidado para conceituar o empregado dito "comum", foi substituída pela locução "serviços de natureza contínua" na Lei Especial dos Domésticos, em seu artigo 1º, para definir o empregado doméstico.

Sendo assim, a utilização de termos diferenciados em ambos os diplomas legais para se referir ao mesmo componente fático jurídico causou a emersão de duas consideráveis interpretações na doutrina e na jurisprudência.

A primeira corrente doutrinária, defendida por Martins (2001, p. 135), entende que a distinção entre as expressões é totalmente insignificante. Nesse sentido, a interpretação conferida ao elemento da continuidade (Lei do Trabalho Doméstico) seria igual àquela atribuída ao componente da não eventualidade (CLT). Segundo esse entendimento minoritário, o que realmente importa no desenho do vínculo de emprego doméstico é a imprescindibilidade permanente e duradoura da mão de obra do doméstico, sendo esta verificada pela repetição dos serviços prestados ao longo de todo o pacto empregatício, independentemente da quantidade de vezes por semana ou mês, porém, durante vários meses ou anos (teoria da descontinuidade[8]).     

Essa vertente é bastante entusiasmada pelo Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, cujo aresto abaixo colaciona-se para exemplificá-la:

“DOMÉSTICA. VÍNCULO EMPREGATÍCIO. SERVIÇO DE NATUREZA CONTÍNUA E SERVIÇO DIÁRIO. DISTINÇÃO. Descontinuidade não se confunde com intermitência para os efeitos de incidência da legislação trabalhista. A referência a serviços de natureza contínua, adotada pelo legislador ao esculpir o artigo 1º da Lei 5.859, de 11 de dezembro de 1972, diz respeito à projeção da relação no tempo, ou seja, ao caráter continuado do acordo de vontades (tácito ou expresso), que lhe confere feição de permanência, em contraponto à idéia de eventualidade, que traz em si acepção oposta, de esporadicidade, do que é fortuito, episódico, ocasional,com manifesta carga de incerteza incompatível com o perfil do vínculo de emprego. Desse modo, enquanto elemento tipificador do contrato de emprego, a continuidade a que alude a legislação que regula o trabalho doméstico não pressupõe ativação diária ou ininterrupta e muito menos afasta a possibilidade que, em se tratando de prestação laboral descontínua (não diária), mas sendo contínua a relação, torne-se possível o reconhecimento do liame empregatício. Ademais, a aplicação da pena de confissão à reclamada em audiência, tornou por verdadeiros os fatos articulados na peça inicial, que ademais, foram confirmados pela prova oral, restando patente a existência de vínculo empregatício entre as partes . Recurso da reclamada ao qual se nega provimento.” (Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região – RO: 14975320115020 SP 20130003580, Relator: Ricardo Artur Costa e Trigueiros, Data de Julgamento: 23/04/2013, 4ª Turma, Data de Publicação: 03/05/2013)

A segunda corrente, majoritária na doutrina e na jurisprudência, possui entendimento diametralmente oposto à primeira. Para os seus adeptos, a escolha diferenciada de expressões foi intencional, uma vez que a definição de trabalho não eventual presente no artigo 3º do texto obreiro possui afinidade com a atividade empresária, seus objetivos e conveniências de funcionamento. Na contramão, o empregador doméstico não utiliza mão de obra para a obtenção de lucro. Dessa forma, o trabalho contínuo tem ligação com o tempo, a repetição, seguido, sem paralisação.

Delgado (2012, p. 373), refletindo sobre essa teoria, afirma que:

“Se a trabalhadora (ou trabalhador) laborar, entretanto, com habitualidade, três ou mais vezes por semana para a mesma pessoa física ou família tomadora, naturalmente já cumprira a metade (ou mais) da duração semanal do trabalho (metade ou mais dos dias de trabalho existentes na semana, excluído o dia de repouso obrigatório). Por isso, considerado esse parâmetro temporal habitual (três ou mais dias por semana), não deve ser considerada descontínua sua prestação de labor, porém juridicamente contínua.”

Portanto, de acordo com essa interpretação, a repetição dos serviços domésticos deve ser averiguada por semana, ou seja, é necessário analisar se o obreiro doméstico trabalha pelo menos três dias na semana, por mais de quatro horas diárias, e por período não inferior a um mês. O tempo de vigência total do contrato de emprego precisa ser desconsiderado.

Em recente julgado da 1ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região, restou decidido o seguinte sobre a formação do vínculo de emprego doméstico:

“VÍNCULO DE EMPREGO. DIARISTA. INEXISTÊNCIA. Impõe-se manter a decisão recorrida que não reconheceu o vínculo de emprego pleiteado pela reclamante, uma vez verificando-se que a obreira laborou, para cada reclamada, apenas dois ou três dias na semana, ativando-se também em outras residências, ante o não preenchimento do requisito da continuidade, previsto no art. 1º da Lei 5.859/72.” (Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região – Processo: 0001406-74.2012.5.07.0015, Relator: Emmanuel Teófilo Furtado, Data de Julgamento: 10/07/2013, 1ª Turma, Data de Publicação: 16/07/2013)

No entanto, esse debate jurídico está muito próximo do fim. O Projeto de Lei Complementar nº 302/2013, cuja tramitação no Congresso Nacional já se encontra em fase adiantada, prevê, em seu artigo 1º, o tempo mínimo de trabalho semanal apto a ensejar o vínculo de emprego doméstico, in verbis:

“Art. 1º Ao empregado doméstico, assim considerado aquele que presta serviços de forma contínua, subordinada, onerosa e pessoal e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas, por mais de 2 (dois) dias por semana, aplica-se o disposto nesta Lei.” (SENADO FEDERAL, 2013) (destaque acrescido)

2.2 Elementos fático-jurídicos especiais

Os elementos fático-jurídicos especiais da relação de empregado doméstico (finalidade não lucrativa do trabalho executado; apropriação dos serviços somente por pessoa física ou por família; e atividades realizadas em função exclusivamente da esfera residencial dos tomadores) fazem jus a uma análise pormenorizada.

2.2.1 Finalidade não lucrativa dos serviços

No que se refere ao primeiro componente fático-jurídico privativo da relação empregatícia doméstica, a legislação especial dessa categoria obreira tem como imperativo que o labor executado pelo doméstico não tenha finalidades e efeitos comerciais ou industriais, devendo, por conseguinte, limitar-se apenas ao proveito pessoal do empregador ou sua família. Isto é, o trabalho doméstico não pode ter a capacidade de gerar lucro para o tomador e nem vantagens para terceiros.

Cassar (2014, p. 397) afirma que "[…] o patrão não pode realizar negócios com o resultado do trabalho do empregado. A energia de trabalho despendida pelo empregado doméstico não pode ter como finalidade o lucro do patrão".

Vale ressaltar que é construída sob a ótica do empregador e não do empregado a concepção de objetivo ou resultado dos serviços prestados. Delgado (2012, p. 375), dissertando sobre o tema, ensina que:

“O critério objetivo privilegiado pela lei elabora-se a partir do prisma do empregador, uma vez que — sabe-se — para o empregado todo trabalho efetuado tem evidente conteúdo econômico (a onerosidade, como visto, é elemento fático-jurídico inarredável também da relação empregatícia doméstica). Os serviços prestados não podem constituir fator de produção para aquele (pessoa ou família) que deles se utiliza, embora tenham qualidade econômica para o obreiro.[…]

Do ponto de vista econômico, pode-se afirmar que o doméstico produz, exclusivamente, valor de uso, jamais valor de troca: trata-se de uma atividade de mero consumo, não produtiva, por isso sem intuito ou conteúdo econômicos para o tomador de serviços.”

Isso significa que, caso o tomador comece a utilizar o prestador de serviços para obter qualquer tipo de vantagem econômica, a relação de emprego doméstica restará descaracterizada e, consequentemente, haverá uma alteração na figura do empregado, que deixará de ser doméstico para ser comum. O entendimento jurisprudencial do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região é nesse sentido: 

“EMPREGADO DOMÉSTICO. FINS LUCRATIVOS. DESCARACTERIZAÇÃO. Nos termos da Lei n. 5.859/72, considera-se empregado doméstico aquele que presta serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destes. Assim, comprovados os fins lucrativos na utilização da propriedade em que os serviços eram prestados, resta descaracterizada a relação doméstica, sendo o obreiro empregado celetista.” (Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região – Processo: 00301-2000-511-01-00-0, Relator: Antônio Carlos Areal, Data de Julgamento: 12/02/2003, 5ª Turma, Data de Publicação: 11/04/2003)

Assim sendo, o caseiro de um sítio de lazer de propriedade de seu patrão que, porventura, acumule suas atribuições (domésticas) com a comercialização de produtos, de que espécie sejam, a terceiros, é, na verdade, um empregado comum e não doméstico, pois há geração de lucro para o tomador de serviços.

Salienta-se, por último, que o tipo de trabalho desempenhado pelo obreiro não é um dos componentes fático-jurídicos inerentes ao vínculo de emprego doméstico. Ou seja, o serviço prestado não tem o condão de caracterizar o doméstico. Desse modo, uma faxineira ou uma lavadeira, por exemplo, podem tanto executar suas atividades em âmbito doméstico do empregador como podem servir a um hotel.

2.2.2 Prestação dos serviços à pessoa ou família

O comando legal estabelecido no artigo 1º da Lei nº 5.859/1972 de que, para ser enquadrado como empregado doméstico, os serviços devem ser prestados à pessoa ou à família revela ser inviável que o polo passivo dessa relação jurídica especial seja ocupado por uma pessoa jurídica. O posto de empregador é reservado à pessoa física ou à família.

Sobre essa questão, Cassar (2014, p. 393) faz importantes apontamentos:

“Não pode a pessoa jurídica ser a tomadora do serviço doméstico. Portanto, não são considerados domésticos os empregados em atividades assistenciais, beneficentes, comerciais (lavadeira de hotel ou pensão), industriais (cozinheira da fábrica). Também não pode um profissional liberal ser o tomador do serviço doméstico, quando tomar os serviços do trabalhador para sua atividade econômica (faxineira do escritório de um advogado, engenheiro, médico etc.). Mesmo os entes jurídicos especiais, sem personalidade formal, não podem contratar empregados como domésticos, como é o caso da massa falida e do condomínio.”

Dessa maneira, este segundo componente fático-jurídico específico faz com que seja indispensável pesquisar para quem o trabalho doméstico está sendo desempenhado. Por isso, a simples circunstância de uma determinada pessoa ocupar o cargo de arrumadeira não é o bastante para incluí-la na categoria dos domésticos. Para tanto, é necessário investigar quem é o seu patrão. Assim, somente evidenciar-se-á a relação de emprego doméstica desde que o tomador seja pessoa física ou família e que não tenha intenção de auferir lucro.

Os comentários de Cassar (2014, p. 395) acerca dos serviços prestados à família são de grande valor para elucidar a matéria:

“Quando o serviço é prestado para a família, o real empregador do doméstico é esta. Todavia, como a família não tem personalidade jurídica, a responsabilidade pela assinatura da CTPS ficará a cargo de um dos membros que a compõem. Sendo assim, todos os membros capazes da família, que tomam os serviços do doméstico, são empregadores.[…]

Todos os membros maiores e capazes da família são coempregadores domésticos e respondem solidariamente pelos encargos trabalhistas, mesmo aqueles que não trabalham.”  

Em contrapartida, aquela mesma arrumadeira será considerada uma empregada comum ou urbana quando o seu empregador for, por exemplo, uma pousada (pessoa jurídica). Esse entendimento é majoritário no âmbito dos tribunais do trabalho, conforme se pode depreender da ementa exemplificativa abaixo:

“TRABALHO DOMÉSTICO – CARACTERIZAÇÃO – IRRELEVÂNCIA DA FUNÇÃO DESEMPENHADA. Nos termos do art. 1º, da Lei n. 5.859/72, o que define o empregado doméstico não é a sua qualificação profissional, mas a circunstância de prestar "serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas". Tendo a autora sido contratada para prestar seus serviços laborais como auxiliar de enfermagem na residência do reclamado, para cuidar de dois idosos, sem fins lucrativos, restou caracterizada a sua condição de empregada doméstica.” (Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região – RO: 41901  419/01, Relator: Julio Bernardo do Carmo, 4ª Turma, Data de Publicação: 31/03/2001)

Sublinha-se, ainda, que pode ser empregador doméstico, desde que observados os requisitos da legislação especializada, o grupo unitário de pessoas, como a popular república estudantil, que é formada em virtude de interesses eminentemente pessoais (sem natureza lucrativa). No caso, é o que se dá com a contratação de lavadeiras e faxineiras.

2.2.3 Âmbito residencial da prestação dos serviços

O terceiro e último dos elementos fático-jurídicos especiais encontrados na relação de emprego doméstica faz referência à condição de que os serviços necessitam ser prestados no âmbito residencial do tomador.

A despeito de o artigo 1º do diploma legal que trata da profissão de doméstico prescrever que, para a qualificação do trabalho como doméstico, a atividade tem que ser exercida "no âmbito residencial" da pessoa ou família, essa expressão não pode ser compreendida com demasiada inflexibilidade. Tecnicamente, a locução mais apropriada seria "para o âmbito residencial", pois os serviços domésticos não são apenas aqueles executados dentro da moradia do empregador, mas também os que ocorrem externamente, como no caso do motorista particular.

Nesse sentido, Cassar (2014, p. 398) afirma o seguinte sobre a elaboração do artigo 1º da Lei dos Domésticos:

“Há um equívoco na redação contida no art. 1º da Lei nº 5.859.72, quando se refere ao trabalho executado no âmbito residencial do empregador doméstico, pois o trabalho pode ser exclusivamente externo e ser caracterizado como doméstico, como ocorre com o motorista, segurança, o piloto, a acompanhante etc. Melhor teria sido a expressão "para" o âmbito residencial, isto é, é doméstico quem executa serviços para a família, para o âmbito residencial, para o consumo da pessoa física, e não para terceiros.”

A locução, então, deve ser interpretada de forma mais abrangente, nos seguintes sentidos: com respeito ao âmbito residencial destas ou para o âmbito residencial destas, ou, ainda, em função do âmbito residencial da pessoa ou família. Essa noção mais ampla engloba o serviço executado pelo doméstico nos sítios, casas ou chácaras de recreio ou veraneio, ou em qualquer outro ambiente que esteja destinado exclusivamente ao lazer do patrão e/ou sua família, posto que se apresentam, na verdade, como uma extensão da residência.

Delgado (2012, p. 378) acrescenta que "o que se considera essencial é que o espaço de trabalho se refira ao interesse pessoal ou familiar, apresentado-se aos sujeitos da relação de emprego em função da dinâmica estritamente pessoal ou familiar do empregador".

Em conformidade com esse posicionamento doutrinário, infere-se que o desempenho do labor doméstico fora ou longe da residência principal do tomador não desfigura essa relação especial de emprego. A jurisprudência majoritária segue esse entendimento, conforme a ementa transcrita infra:

“MOTORISTA. EMPREGADO DOMÉSTICO. A atividade de motorista pressupõe o deslocamento do prestador de serviços para atendimento das necessidades pessoais de seu empregador doméstico, inclusive aquelas relacionadas ao deslocamento para o trabalho ou a trabalho, quando não houver “valor de troca”, preservando a característica não comercial ou a utilização da força de trabalho como “valor de uso”. O serviço de levar o empregador a seu local de trabalho e deste para a sua residência no final do dia, por si só, não caracteriza ganho econômico para o empregador.” (Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região – Recurso Ordinário: 0000036-74.2011.5.01.0302, Relatora: Sayonara Grillo Coutinho Leonardo, Data de Julgamento: 13/03/2013, 7ª Turma, Data de Publicação: 09/04/2013)

3 Jornada de trabalho doméstico

Desde a promulgação da Emenda Constitucional nº 72, ocorrida em abril de 2013, aos empregados domésticos foram estendidos os direitos à jornada de trabalho não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, permitida a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho, e à remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinquenta por cento à do normal. 

Sem dúvida alguma, a delimitação da jornada de trabalho doméstico é o ponto mais interessante da referida emenda ao texto da Constituição da República, fato este que suscitou um amplo debate entre os estudiosos do tema. Isso porque, historicamente, a jornada de trabalho sempre ocupou um lugar de destaque na evolução do Direito do Trabalho. Trata-se de um dos assuntos mais fulcrais e centralizadores discutidos no campo das demandas trabalhistas, responsável pela estruturação e desenvolvimento desse ramo especializado do direito. Atualmente, a questão ganhou ainda mais notabilidade devido aos avanços da saúde e segurança do trabalho e à criação de normas de medicina e segurança do trabalho.

3.1 Distinções: duração, jornada e horário

Antes de versar sobre a jornada de trabalho propriamente dita, faz-se mister examinar três expressões marcantes que aparecem no estudo desse instituto jurídico. São elas: duração do trabalho; jornada de trabalho; e horário de trabalho.

Em linhas gerais, doutrina e jurisprudência entendem que a duração do trabalho envolve todo o período que decorre do pacto empregatício. Desta forma, a locução possui interpretação mais abrangente, não se resumindo apenas ao lapso de tempo em que o obreiro fica disponível, devido ao contrato ajustado, para o tomador de serviço. Nela, estão incluídos o repouso semanal remunerado (hebdomadário), os feriados e as férias.

Ao contrário da expressão supra, jornada de trabalho tem um sentido bem mais estreito. Encerra o lapso temporal em que o trabalhador necessita se colocar à disposição de seu patrão em virtude do contrato pactuado. Em síntese, jornada de trabalho é o período de tempo delimitado em que o empregador pode demandar a força de trabalho de seu empregado.

Em sua origem, o vocábulo jornada referia-se ao dia. Assim, o conceito primitivo de jornada somente compreendia o período de tempo relativo ao dia (jornada diária de trabalho). Contemporaneamente, entretanto, o conceito da expressão abarca também, no estudo do Direito do Trabalho, as concepções de jornada semanal e jornada mensal, além dos denominados intervalos remunerados, em que o obreiro não presta serviços nem fica à disposição do empregador.

Por fim, horário de trabalho é a expressão que representa o lapso de tempo entre o termo a quo e o termo ad quem de uma jornada diária de labor. Deste jeito, horário de trabalho corresponde à demarcação dos limites entre o início e o fim da jornada diária com seus devidos intervalos. 

3.2 Jornada de trabalho decente

A extensão da jornada de trabalho é um dos mais notáveis atributos para analisar a qualidade de um emprego. A segurança e o bem estar dos obreiros dependem bastante de sua regulamentação. A delimitação dos períodos de descanso, como intervalos intra e interjornadas, férias e feriados, também são importantes. Da mesma forma, tal regramento é imprescindível para os empregados domésticos, que frequentemente são obrigados a cumprir ilimitadas e extenuantes jornadas de trabalho.   

A estipulação por lei de uma jornada máxima de trabalho e seus respectivos intervalos diários e semanais possibilita ao empregado acomodar, planejar os períodos de labor e os de descanso. Isso traz muitos benefícios para o trabalhador: recuperação física e mental; realização de atividades diversas; e assunção de outros compromissos. Por exemplo, a continuidade dos estudos e o acompanhamento da vida dos filhos estão sujeitos à regularidade das jornadas de trabalho e dos períodos de descanso. Ora, os trabalhadores domésticos, assim como qualquer outro empregado, também precisam estudar e cuidar de seus próprios filhos e de seus próprios familiares.

Todavia, os empregados domésticos, no Brasil, defrontam-se com uma dura realidade. Ao cotejar as jornadas de trabalho dos domésticos com as de outras profissões, apura-se que aquelas, habitualmente, são bem mais longas do que estas. O trabalho é ainda mais árduo para os empregados domésticos que pernoitam na residência de seus tomadores, pois têm que administrar um número maior de funções, como cozinhar, lavar e passar roupas e limpar a casa, em uma só jornada que não tem hora para chegar ao fim. Além disso, não é incomum ficarem à disposição de seus patrões para realizar alguma tarefa a qualquer momento do dia ou da noite, o que torna a jornada de trabalho praticamente contínua.

Não é à toa que a pauta da regulamentação da jornada de trabalho doméstico é abordada com atenção diferenciada na Convenção nº 189, da Organização Internacional do Trabalho, e na Recomendação nº 201, que a complementa. Na 100ª Conferência Internacional do Trabalho da OIT, realizada em 2011, a adoção das mencionadas normas internacionais evidencia um histórico progresso para o regramento da jornada de trabalho doméstico.

Em âmbito nacional, apesar de a jornada de trabalho ser limitada à quarenta e quatro horas por semana para trabalhadores urbanos e rurais desde a promulgação da Constituição da República de 1988, os domésticos costumavam prestar seus serviços por mais de quarenta e oito horas semanais. Isso significa que a saúde e o bem estar dos empregados domésticos estavam prejudicados pelas extensas horas de trabalho e pelo pouco tempo de descanso e lazer. Essa constatação só era possível porque, até abril de 2013, os domésticos não tinham direito à limitação da duração máxima da jornada de trabalho e ao adicional de horas extras.

Antes da Emenda Constitucional nº 72/2013, por não ter uma definição legal expressa de começo e fim e por não ser devido o adicional de horas extras, o horário de trabalho dos domésticos geralmente se estendia para além do que havia sido combinado entre as partes, afetando, inclusive, os repousos semanais remunerados.

A Convenção nº 189 dispõe, em seu artigo 7, que os empregados domésticos precisam ser esclarecidos sobre suas condições de emprego de forma adequada:

“Artigo 7

Todo Membro deverá adotar medidas para assegurar que os trabalhadores domésticos sejam informados sobre suas condições de emprego de maneira apropriada, verificável e de fácil compreensão e, preferivelmente, quando possível, por meio de contratos escritos de acordo com a legislação nacional ou acordos coletivos que incluam em particular:

(a) o nome e sobrenome do empregador e do trabalhador e os respectivos endereços;

(b) o endereço do domicílio ou domicílios de trabalho habituais; (c) a data de início e, quando o contrato é válido por um período determinado de tempo, sua duração; (d) o tipo de trabalho a ser executado; (e) a remuneração, método de cálculo e periodicidade de pagamentos; (f) as horas regulares de trabalho; (g) as férias anuais remuneradas e os períodos de descanso diários e semanais; (h) a provisão de alimentação e acomodação, quando for o caso; (i) o período de experiência, quando for o caso; (j) as condições de repatriação, quando for o caso; e (k) as condições que regirão o término da relação de trabalho, incluindo todo o prazo de aviso prévio comunicado pelo trabalhador doméstico ou pelo empregador. (OIT, 2011) (destaques acrescidos)”

A mesma norma internacional ainda estabelece que os obreiros domésticos que moram na residência em que desempenham seu ofício não devem ser obrigados a permanecer ou a acompanhar os membros do domicílio durante os períodos de descanso diários e semanais ou durante as férias anuais (artigo 9). Ademais, os períodos em que os empregados domésticos não tiverem condições de dispor livremente de seu tempo e permanecerem à disposição do tomador deverão ser considerados como horas de trabalho, tal como determinarem a legislação nacional ou as convenções coletivas (artigo 10).

3.3 Jornada de trabalho doméstico pós ec nº 72/2013

A despeito de o Brasil ainda não ter ratificado a Convenção nº 189, da OIT, pode-se dizer que a Emenda Constitucional nº 72/2013, que ampliou a listagem de direitos trabalhistas aplicáveis aos domésticos, representa um avanço muito importante para a garantia de trabalho decente para essa categoria obreira, especialmente no tocante à jornada de trabalho.

Tendo em vista que os direitos elencados no artigo 7º, da Constituição da República, são direitos fundamentais e, portanto, de aplicação imediata (artigo 5º, § 1º, c/c artigo 7º, parágrafo único, ambos da CRFB), a jornada de trabalho de oito horas diárias e quarenta e quatro semanais e o adicional de horas extras não são dependentes de regulamentação posterior pelo Poder Executivo e devem ser aplicados aos empregados domésticos de forma instantânea.

Nesse sentido, surgiram defensores da tese de que devem ser adotadas as regras da Consolidação das Leis do Trabalho para conferir eficácia imediata aos novos direitos estendidos à categoria doméstica, pelo menos até que legislação especial disponha de maneira diversa. Cassar (2014, p. 401) argumenta que deve ser aplicado ao doméstico, na parte compatível, o Capítulo II do Título II da CLT, que disciplina a Duração do Trabalho:

“Para cumprir a ordem emanada do art. 5°, § 1°, da Carta, que determina a aplicação imediata dos direitos fundamentais daquele capítulo, dentre eles os direitos dos domésticos, o hermeneuta, ao analisar as normas infraconstitucionais que excluem o trabalhador doméstico de sua aplicação total, que regulam os novos direitos concedidos ao doméstico, deve empregar-lhes uma interpretação em conformidade com a Constituição, para dar efetivação àqueles direitos ainda não regulamentados. Para tanto, o exegeta deve utilizar temporariamente as regras contidas na CLT (ou na lei ordinária que regula o direito), desde que compatíveis, para dar instrumentalidade àqueles direitos. Assim, a CLT, a Lei n° 605/49 (RSR) e a Lei n° 4.090/62 (13°) serão utilizadas apenas na parte compatível que possa dar efetividade ao direito criado constitucionalmente para o doméstico.

Esta técnica de interpretação deve ser cuidadosa e encontrar limites nos postulados da razoabilidade, pois os efeitos conexos, numa interpretação muito extensiva, podem importar em abuso, e desviar a finalidade constitucional. Logo, não é toda a CLT aplicável ao doméstico, mas apenas a parte necessária para cumprir o comando constitucional.”

Os institutos e regras do capítulo em questão, de aplicação provisória aos empregados domésticos, são os seguintes: abatimento salarial por atraso ou limiar para considerar trabalho extraordinário; contrato por tempo parcial; delimitações para o trabalho extraordinário e normas para o acordo de compensação; forma de cálculo do salário e das horas extras; intervalos inter e intrajornada; e regras para utilização de controle da jornada do obreiro.

Isso posto, para os empregados domésticos que cumprem jornada de trabalho de mais de seis horas por dia, deve ser concedido intervalo intrajornada para repouso e alimentação de, no mínimo, uma hora e, no máximo, duas horas. Cassar (2014, p. 426) entende ser, por ora, "inaplicável a redução do intervalo mínimo de uma hora, pois a regra do § 3° do art. 71 da CLT depende de autorização do Ministério do Trabalho e inspeção prévia da autoridade competente". Já o intervalo intrajornada de quinze minutos será concedido para o trabalho cujas jornadas diárias sejam superiores a quatro horas e limitadas a seis horas. O intervalo interjornada de onze horas também será usufruído pelo trabalhador. Vale lembrar que todos esses intervalos visam a proteção da saúde do empregado, além de integrarem as normas de higiene, medicina e segurança do trabalho.

No tocante às horas extras, é vedado ao tomador diminuir o salário caso deixe de exigir a sua prestação ou considerá-las já retribuídas no salário-base. É proibida também a contratação, desde a admissão, de horas extras[9]. Nesse caso, diante da ausência de regulamentação específica, existe certa controvérsia em torno do controle da jornada de trabalho doméstico e do ônus da prova. O Ministério do Trabalho e Emprego (2013, p. 13) é adepto do entendimento que, por ser o trabalho doméstico baseado na confiança mútua, "a jornada deverá ser estabelecida entre trabalhador e empregador, não sendo obrigatório o controle de jornada do trabalhador doméstico […]". Cassar (2014, p. 426) acrescenta que "é desnecessária a adoção de controle de jornada para os patrões que possuem, por residência, menos de 10 empregados, na forma do art. 74, § 2°, da CLT".

Entretanto, caso o empregador opte por fazer uso do controle de ponto, as seguintes circunstâncias precisam ser obervadas: há obrigatoriedade de pré-assinalação dos intervalos intrajornadas; a marcação dos horários de início e fim da jornada não pode ser britânica[10]; e  não pode haver rasuras e nem serão descontadas ou computadas as variações de horário não excedentes de cinco minutos.

Outra questão importante é o famoso acordo de compensação de jornada. Enquanto não houver a devida regulamentação, tal pacto necessita ser ajustado por escrito entre patrão e empregado e não terá validade quando mais de duas horas extras forem prestadas por dia ou caso exista desempenho habitual de atividades no dia reservado ao descanso semanal remunerado. Cassar (2014, p. 426) frisa que o acordo de compensação por banco de horas é inaplicável ao doméstico," já que este só pode ser efetuado por norma coletiva (Súmula 85, V, do TST) e esta, apesar de ter sido estendida a estes trabalhadores, ainda não foi regulamentada ou praticada de fato pelos respectivos sindicatos".

Após as reflexões acima, verifica-se que é bastante complicado monitorar a jornada de trabalho doméstico. Além de suas diversas peculiaridades, vale lembrar que a residência não pode ser equiparada a uma empresa, assim como o empregador celetista não pode ser comparado ao empregador doméstico. Este, em muitos casos, passa o dia todo afastado de seu domicílio estudando, trabalhando ou em atividades de lazer. Consequentemente, não tem condições de certificar-se da fidedignidade das horas lançadas na folha de ponto em relação às horas efetivamente laboradas pelo empregado doméstico. O Ministério do Trabalho e Emprego (2013, p. 11) adverte que "se houver indícios de que esse trabalhador está reduzindo a quantidade de trabalho em número de horas, poderá naturalmente ser descontado o valor do respectivo salário, além de vir a caracterizar falta disciplinar punível pelo empregador".

Então, é essencial que haja um controle ou fiscalização mínima sobre as horas efetivamente trabalhadas e também sobre aquelas em que o doméstico ficou à disposição do tomador. A real jornada de trabalho, aí já embutidas as horas extras eventualmente prestadas pelo obreiro, só pode ser confirmada quando o labor é, de alguma forma, ainda que diminuta, fiscalizado ou monitorado.

Há de se ressaltar, ainda, que a jornada de trabalho doméstico, antes da EC nº 72/2013, era classificada como jornada não controlada e, como tal, não possibilitava o cálculo das horas extras, pois era inviável mensurar até a jornada normal diária de serviços prestados. Porém, com a alteração desse paradigma, a categoria doméstica passou a ter a sua jornada de trabalho controlada, sendo, agora, factível analisar, inclusive, a prestação de horas extras. 

Ocorre que, até o advento de sua regulamentação por lei, essa questão continuará a ser objeto de debate doutrinário, jurisprudencial e social. Enquanto isso, como há os empregadores que adotam a folha de ponto e aqueles que a consideram desnecessária ou até mesmo burocrática, os juízes do trabalho têm sido os responsáveis por deliberar sobre essa matéria quando levada ao Poder Judiciário.

3.3.1 Projeto de Lei Complementar nº 302/2013

Considerando que o Projeto de Lei Complementar nº 302/2013[11], que regulamenta o artigo 7º, parágrafo único, da Constituição da República (EC nº 72/2013), está em avançado estágio de tramitação no Congresso Nacional, cumpre aqui destacar as suas principais regras disciplinadoras da jornada de trabalho doméstico e seus desdobramentos.

Não poderá a jornada padrão de labor ser superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais (artigo 2º). O adicional de horas extras será, no mínimo, cinquenta por cento superior ao valor da hora normal (§ 1º). Todavia, o acréscimo de salário poderá ser dispensado caso seja ajustado regime de compensação de horas, por meio de acordo escrito entre patrão e empregado, e o excesso de horas prestadas em um dia seja compensado em outro (§ 4º).

Esse regime de compensação de horas funcionará da seguinte forma: as primeiras quarenta horas mensais que excederem o horário normal de trabalho serão pagas como extras, ou seja, serão acrescidas do adicional de, pelo menos, cinquenta por cento (§ 5º, I); dessas quarenta horas, poderão ser descontadas, sem o correspondente pagamento, as horas não trabalhadas, em virtude de diminuição da jornada padrão de trabalho ou de dia útil não laborado, durante o mês (§ 5º, II); e o saldo de horas remanescente deverá ser compensado no período máximo de um ano (§ 5º, III).

O projeto em tela prevê também o regramento do trabalho em regime de tempo parcial, que, para a categoria dos empregados domésticos, será aquele cuja duração não exceda a vinte e cinco horas semanais (artigo 3º, caput). O salário a ser pago aos empregados sob esse regime será proporcional a sua jornada, em relação aos empregados que cumprem tempo integral (§ 1º). Além disso, os empregados em regime de tempo parcial poderão cumprir horas suplementares, em número não excedente a uma hora diária, mediante acordo escrito entre tomador e obreiro (§ 2º).

Desde que observados os intervalos para repouso e alimentação, a jornada de doze horas de trabalho por trinta e seis de descanso (escala 12 x 36), ajustada exclusivamente mediante acordo escrito, será válida (artigo 10). Os pagamentos devidos pelo descanso semanal remunerado e pelo descanso em feriados estarão embutidos na remuneração mensal pactuada nesse sistema (parágrafo único).

Quanto ao doméstico que necessite acompanhar o empregador executando serviços em viagem, serão consideradas apenas as horas efetivamente trabalhadas no período. As horas suplementares poderão ser compensadas em outro dia (artigo 11). Esse acompanhamento em viagem depende de prévio acordo entre as partes (§ 1º). Ainda está previsto um adicional de, no mínimo, vinte e cinco por cento para a remuneração do serviço realizado em viagem (§ 2º).

E, como não poderia ser diferente, o regulamento estabelece a obrigatoriedade do registro da jornada de trabalho doméstico por qualquer meio manual, mecânico ou eletrônico, desde que idôneo (artigo 12). Tal regra acaba com o forte debate em torno dessa questão e traz mais segurança jurídica para empregados e patrões.

Os intervalos intra e interjornada dos domésticos receberam, igualmente, tratamento expresso no projeto. O intervalo para repouso e/ou alimentação deverá ser concedido pelo período mínimo de uma e, no máximo, duas horas. Sua redução para apenas meia hora será admitida mediante acordo prévio entre tomador e empregado (artigo 13). Esse intervalo, caso o obreiro more no ambiente de trabalho, poderá ser dividido em dois períodos de, no mínimo, uma hora cada (§ 1º), sendo obrigatória a anotação dessa mudança na folha de ponto (§ 2º). Já o intervalo interjornada será de, pelo menos, onze horas consecutivas para descanso do empregado (artigo 15).

O repouso semanal remunerado, previsto no artigo 16, será de, no mínimo, vinte e quatro horas consecutivas e, de preferência, aos domingos. O descanso remunerado em feriados também será devido aos empregados domésticos.

Durante o cumprimento do aviso prévio, caso a resilição tenha sido iniciativa do empregador, a jornada normal de trabalho do obreiro doméstico será reduzida em duas horas por dia, sem qualquer desconto no salário (artigo 24). O empregado poderá, ainda, optar por desempenhar suas atividades sem essa redução de jornada, situação em que poderá se ausentar do trabalho, sem prejuízo do salário, por sete dias consecutivos (parágrafo único).

Finalmente, a Lei nº 10.593/2002 passará a vigorar acrescida do artigo 11-A. De acordo com a sua redação, dependerá de agendamento e entendimento prévio entre a fiscalização e o tomador de serviços a verificação, na residência deste, do cumprimento das normas que disciplinam o labor do empregado doméstico. Inicialmente, essa fiscalização deverá ter natureza prioritariamente orientadora. Porém, caso exista alguma suspeita de ocorrência de trabalho escravo, tortura, tratamento degradante, trabalho infantil ou qualquer violação dos direitos fundamentais da pessoa, poderá ser requisitada autorização judicial para a realização de inspeção compulsória no local de execução do trabalho doméstico (§ 4º).

Considerações finais 

Como restou demonstrado, o empregado doméstico, a partir da promulgação da Emenda Constitucional nº 72, de 2 de abril de 2013, passou a ter garantido o direito à jornada de trabalho não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, bem como ao adicional pelo serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinquenta por cento a do normal, entre outros direitos.

Não se pode negar que a ampliação do rol de direitos constitucionais do trabalhador aplicáveis aos domésticos representa um avanço histórico na direção da garantia de condições dignas de trabalho para essa categoria que, devido à natureza do serviço, prestado em âmbito residencial, e a sua origem atrelada à escravidão e à servidão, permaneceu durante anos e anos sem ser objeto de qualquer disciplina legal, sem o reconhecimento de direitos mínimos.

A concessão de novos direitos aos empregados domésticos atendeu às reivindicações e aos anseios da classe e da sociedade, além de se harmonizar com as normas e os preceitos internacionais mais modernos. Apesar disso, como até hoje a EC nº 72/2013 ainda não foi regulamentada, grande parte da expectativa gerada foi frustrada. Assim, os direitos que dependem de regramento específico não podem ser aplicados e aqueles de aplicação imediata têm suscitado muitas dúvidas. É o caso, por exemplo, do controle da jornada de trabalho.

Tendo em vista que o Projeto de Lei Complementar nº 302/2013 prevê a necessidade de que a jornada de trabalho doméstico, independentemente do número de empregados, seja registrada por qualquer meio manual, mecânico ou eletrônico, desde que idôneo, patrão e obreiro devem, a partir de agora, adotar a folha de ponto para se resguardarem de qualquer problema futuro que venha a resultar em uma ação judicial.

Diante do exposto, observa-se que a acelerada tramitação da EC nº 72/2013, sem que houvesse prévio e amplo debate sobre os seus efeitos, somada à ausência de regulamentação, ainda não permite que se averigue, na realidade, se a extensão de novos direitos aos empregados domésticos atingiu a finalidade pretendida, qual seja, a valorização do trabalho doméstico. Enquanto isso, empregadores, de um lado, tentam encontrar formas de amenizar o impacto econômico-financeiro que os novos direitos trabalhistas dos domésticos produzem, notadamente quanto às horas suplementares. Do outro, empregados se inquietam com a possibilidade de serem demitidos.

O certo é que somente após a entrada em vigor de regulamento específico será viável analisar toda a carga tributária e os encargos que o tomador de serviços deverá suportar, aí incluídas as questões atinentes à jornada de trabalho e seus consectários, e se, em virtude disso, haverá ou não aumento da formalização contratual ou do desemprego.

Referências:
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Notas:
[1] O direito ao trabalho decente é o direito a um trabalho apropriadamente remunerado, desempenhado em condições de liberdade, equidade e segurança, capaz de assegurar uma existência digna ao trabalhador e sua família. Logo, trata-se de direito a uma ocupação que propicie saciar necessidades pessoais e familiares de alimentação, educação, moradia e segurança e que, além disso, não viole direitos fundamentais do trabalhador.

[2] A expressão "trabalho invisível" serve para caracterizar as tarefas domésticas realizadas cotidianamente. Como as tarefas domésticas não se ajustam à ideia dominante de trabalho, deixam "misteriosamente" de ser trabalho. Numa sociedade baseada na produção de mercadorias, o trabalho doméstico não é considerado "verdadeiro trabalho" uma vez que não é comercializado.

[3] Laudelina de Campos Melo (1904 – 1991): Ativista sindical e trabalhadora doméstica. Sua trajetória foi marcada pela luta contra o preconceito racial, subvalorização das mulheres e exploração da classe trabalhadora. Combateu a discriminação da sociedade em relação às empregadas domésticas, exigindo melhor remuneração e igualdade de direitos sociais. Sua atuação permitiu a regulamentação do emprego doméstico como fundadora do Sindicato das empregadas domésticas.

[4] A Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) é uma associação formada por 26 sindicatos e mais uma associação. Ela representa uma categoria formada por, aproximadamente, 7,2 milhões de pessoas no Brasil. As organizações filiadas à federação estão presentes em 15 Estados brasileiros:  Acre, Bahia, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Paraíba, Paraná, Piauí, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina e Sergipe.

[5] Nesta obra acadêmica, foi adotada, quanto aos elementos fático-jurídicos que estruturam a relação empregatícia doméstica, a classificação elaborada por Mauricio Godinho Delgado (DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 11 ed. São Paulo: LTr, 2012.).

[6] Vide item 2.1.1.

[7] Convocada em Genebra pelo Conselho de Administração da Secretaria Internacional do Trabalho e reunida em 1ª de junho de 1999, em sua 87ª Reunião. Dados referentes ao Brasil: a) aprovação = Decreto Legislativo n. 178, de 14.12.1999, do Congresso Nacional; b) ratificação = 02 de fevereiro de 2000; c) promulgação = Decreto n. 3.597, de 12.09.2000; d) vigência nacional = 02 de fevereiro de 2001.

[8] De acordo com os defensores dessa teoria, doméstico seria tanto o empregado que trabalha de segunda à sexta, durante cinco anos para uma família, como aquele que trabalha somente às quintas-feiras para a mesma família, durante estes mesmos cinco anos.

[9] Súmula nº 199 do Tribunal Superior do Trabalho.

[10] Súmula nº 338 do TST. JORNADA DE TRABALHO. REGISTRO. ÔNUS DA PROVA. I – É ônus do empregador que conta com mais de 10 (dez) empregados o registro da jornada de trabalho na forma do art. 74, § 2º, da CLT. A não-apresentação injustificada dos controles de freqüência gera presunção relativa de veracidade da jornada de trabalho, a qual pode ser elidida por prova em contrário. II – A presunção de veracidade da jornada de trabalho, ainda que prevista em instrumento normativo, pode ser elidida por prova em contrário. III – Os cartões de ponto que demonstram horários de entrada e saída uniformes são inválidos como meio de prova, invertendo-se o ônus da prova, relativo às horas extras, que passa a ser do empregador, prevalecendo a jornada da inicial se dele não se desincumbir.

[11] Ementa: Dispõe sobre o contrato de trabalho doméstico; altera as Leis nº 8.212, de 24 de julho de 1991, nº 8.213, de 24 de julho de 1991, e Lei nº 11.196, de 21 de novembro de 2005; revoga o inciso I do art. 3º da Lei nº 8.009, de 29 de março de 1990, o art. 36 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, a Lei nº 5.859, de 11 de dezembro de 1972, e o inciso VII do art. 12 da Lei nº 9.250, de 26 de dezembro 1995; e dá outras providências.


Informações Sobre o Autor

Matheus Viana Ferreira

Graduado em Direito pela Universidade Federal Fluminense. Advogado. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Pós-Graduado com Treinamento em Serviço – Modalidade Residência Jurídica – pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro


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