Durante os dezoito anos de vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990), invariavelmente, sempre se esteve sob os riscos de um “pesado esquecimento” – mutatis mutandis, como já bem observava Michel Foucault[1] sobre os avanços científicos e tecnológicos da razão –, por vezes, impostos pelo próprio desenvolvimento do conhecimento que se construiu acerca do novo Direito da Criança e do Adolescente. Os avanços científicos, tecnológicos, humanitários e civilizatórios, certamente, encontram-se expressos nas reconhecidas figuras legislativas que regem a matéria pertinente à infância e à juventude, quais sejam: a Constituição da República de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Contudo, tais “Leis de Regência” não podem se transformar em meras perspectivas éticas absolutas – senão, em expedientes principiológicos “supremos de moralidade”, consoante propunha Emmanuel Kant[2] –, a partir das quais, argumentativa (explicação) e discursivamente (justificação/legitimação), seja possível a adoção de medidas legais (alterações legislativas) e judiciais (aplicação e cumprimento) que, de fato, suprimam ou mesmo restrinjam os direitos individuais e ou as garantias fundamentais afetos à criança e ao adolescente.
Tais “Leis de Regência”, senão, principalmente, o Estatuto da Criança e do Adolescente, enquanto normatização deontológica protetiva[3], devem possibilitar a efetivação dos compromissos assumidos, superando, assim, a função meramente reguladora dos direitos e garantias peculiares à cidadania infanto-juvenil. No entanto, mais do que isto se afigura agora imperativo o estabelecimento de vínculos comunicativos (linguagem) que possibilitem o asseguramento dos particulares sistemas de valores culturais (identidades culturais), ao mesmo tempo em que se permita a mútua comunicação efetivamente participativa entre as comunidades humanas através da interculturalidade.
Neste sentido, Jürgen Habermas[4] tem entendido que o viés pragmático lingüístico tem sofrido transformações importantes a partir da análise diferenciada dos aspectos da linguagem, isto é, enquanto a tradição analítica se interessa pela “função representativa da linguagem e pela estrutura propositiva de sentenças afirmativas simples”, os filósofos hermeneutas, de outro lado, “analisam a função por meio da qual a linguagem comum revela o mundo e procuram encontrar visões de mundo inscritas nas características gramaticais da linguagem”. A interculturalidade, assim, cumpre importante função social, epistêmica, metodológica e propositiva, em prol do reconhecimento, da responsabilidade e do respeito de cada uma das identidades culturais para com todas as demais, enquanto condição civilizatória de toda comunidade humana.
O Estatuto da Criança e do Adolescente sob a égide do texto constitucional deve, assim, proporcionar o desenvolvimento de estratégias jurídico-sociais para emancipação daquelas novas subjetividades, transformando-se a partir de sua própria implementação jurídica e social, num marco referencial e propedêutico para a articulação de ações governamentais e não-governamentais de atendimento – art. 86, da Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990 – sob pena de “suprimir-se”, como bem observa Michel Foucault[5].
Eis, pois, os riscos de um “pesado esquecimento”[6], pois a própria perda de sentido é cotidianamente determinada, por exemplo, pelas inúmeras e paradoxais propostas de alteração legislativa do Estatuto da Criança e do Adolescente – isto é, mera “legalização dos sentidos”, os quais devem ser alcançados por processos democráticos de construção interpretativa –, senão, por vezes, determinada pela “dogmatização” interpretativa judicial – principalmente, por aquela decorrente da utilização indevida dos instrumentais pertinentes à dogmática jurídico-penal, como, por exemplo, a “sumulação”[7] da aplicação do instituto da prescrição penal às medidas socioeducativas –, enfim, através desse cotidiano processo de “esquecimento” dos avanços e das conquistas democraticamente alcançadas naqueles tempos de um Estado jamais Democrático (Constitucional[8]), mas, invariavelmente, sempre de “Direito”.
Por isso, que, a interpretação emancipatória da subjetividade infanto-juvenil, de cunho precipuamente protetivo, não pode ser uma intervenção eventual que se preste a “atualização de verdades”[9] que são construídas, também, por demandas emergenciais, impostas pelo modo capitalista de produção social, o qual exige urgência das reações estatais (controles e limitações), ainda, que, quase sempre inadequadas.
Essas reações inadequadas de controle social estabelecem, por assim dizer, um ciclo determinista que torna controlável, previsível e pragmático não só o ato decisional, mas, também, toda a procedibilidade destinada ao asseguramento das liberdades públicas substanciais[10], pois suprime dos operadores desse novo Direito as suas peculiares atribuições e competências jurídicas, políticas e sociais (democráticas) de garantia fundamental dos direitos individuais afetos à criança e ao adolescente.
O Estatuto da Criança e do Adolescente deve ser (re)interpretado à luz dos direitos humanos afetos à infância e à juventude, isto é, ao que se convencionou denominar de “doutrina da proteção integral”, retomando, assim, os “sentidos protetivos” que orientaram a construção legislativa dos institutos e categorias elementares, então, optados política e democraticamente no tempo e na espacialidade pública própria da palavra e da ação[11], qual seja: na Constituinte de 1987/1988, sob pena da dispersão gerada pelo esquecimento desses compromissos fundamentais.
A proposta que hoje permanece é a da ampla mobilização social – da opinião pública e, principalmente, do senso comum jurídico – com o intuito precípuo de que sejam efetivados jurídica e comunitariamente os direitos individuais, de cunho fundamental, afetos à criança e ao adolescente. Para tanto, uma das importantes conquistas civilizatórias e humanitárias, no Brasil, foi a construção textual das denominadas “Leis de Regência” – Constituição da República de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente – desse novo Direito no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro que precipuamente se destina a regulamentar as ações e relações jurídicas, legais, políticas e sociais que envolvam a implementação da proteção integral dos interesses individuais, difusos e coletivos afetos à infância e à juventude.
Apesar da Constituição da República de 1988 está completando 20 (vinte) anos, e, do Estatuto da Criança e do Adolescente, no dia 13 de julho de 1988, ter completado seus 18 (dezoito) anos de existência, ainda persiste a preconceituosa compreensão de que tais figuras legislativas se configuram em meras novidades propositivas de utopias inalcançáveis, quando, não, são decorrências políticas que apenas buscavam alinhamento legislativo às predeterminações de segmentos radicais oriundos de políticas internacionais humanitárias.
Eis, pois, a importância, hoje, de difundir através da ampla mobilização comunicativa e lingüística (educação) essas novas objetivações protetivas destinadas àquelas novas subjetividades (crianças e adolescentes) que se destinam, por isso mesmo, a orientar diretivamente a aplicação das normas e a resolução adequada das questões que envolvam os supra mencionados interesses, direitos individuais e garantias fundamentais inerentes à infância e à juventude.
Por certo, que, também, não se limitam à condição de “princípios supremos de moralidade”[12], através dos quais se possa instrumentalmente justificar a adoção de decisões judiciais e de medidas legais – como, por exemplo, alterações legislativas de caráter supressivo, restritivo (e mesmo repressivo-punitivo) aos direitos e garantias destinadas à criança e ao adolescente, seja qual for a circunstância em que se encontrem! – que se sustentem na mera explicação pragmática fundada nas promessas ilusórias redutivistas que, no mais das vezes, simplesmente, banalizam a complexidade daquelas dimensões humanas e existenciais inerentes às pessoas que se encontram na condição peculiar de desenvolvimento da personalidade.
A Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990 – assim como a Constituição da República de 1988 – ainda que possa se configurar numa das figuras legislativas “de regência” do novo Direito da Criança e do Adolescente, por certo, não se substitui a toda forma de conhecimento possível acerca da infância e da juventude, pois, do contrário, transformar-se-á numa dogmatização absoluta que servirá também para excluir da perspectiva protetiva especial – seja na formulação da lei, seja na sua aplicação/interpretação – a própria criança, senão, também o adolescente.
Exemplo vivo disto é a construção permanente do que se tem denominado de “Rede de Proteção”[13], isto é, o conjunto de ações governamentais e não-governamentais, em prol do atendimento direto e indireto da criança e do adolescente, através da articulação das diversas atividades que as inúmeras entidades sociais pertencentes aos diferentes segmentos sociais desenvolvem juntamente, senão, com o apoio estratégico e técnico das instituições públicas. Essa conjugação de esforços multidisciplinares tem a cada dia oferecido, à Justiça da Infância e da Juventude (Sistema de Garantia), importantes contribuições para a resolução judicial cada vez mais adequada dos casos legais que lhe são apresentados.
Não se pode olvidar que as dimensões civilizatórias e humanitárias conquistadas democraticamente acerca das liberdades substanciais (públicas[14]) pertinentes à criança e ao adolescente são merecedoras de asseguramento teórico (doutrina da proteção integral), político (principalmente, orçamentário), social (atendimento), e, principalmente, cultural (ideológico), através de uma ampla mobilização social da opinião pública e do senso comum técnico (jurídico, psicológico, pedagógico, médico, serviço social, psicanalítico, dentre outros), enfim, da “indispensável participação dos diversos segmentos da sociedade”, nos termos do inc. VI, do art. 88, do Estatuto da Criança e do Adolescente, em prol da infância e da juventude brasileiras.
A atuação das instituições públicas, por isso mesmo, deve se “pautar na e pela construção de espaços dialógicos e consensuais, na colaboração interinstitucional, na impessoalidade e no respeito mútuo”, segundo o Procurador-Geral da República Antonio Fernando Souza[15], para quem “o Estado de Direito é o que respeita e fiscaliza as regras. […] o Ministério Público faz valer a fiscalização e o combate aos desvios […] na luta contra a exclusão social, adotando medidas destinadas a fiscalizar ou redefinir as políticas públicas”.
Por certo que somente assim será possível evitar os riscos de um “pesado esquecimento”[16] dessas conquistas civilizatórias e humanitárias em prol da infância e da juventude, então, alcançadas e consolidadas democraticamente nesses dezoito anos de vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente, e, por que não dizer, também, nesses vinte anos de vigência da Constituição da República de 1988.
Informações Sobre o Autor
Mário Luiz Ramidoff
Promotor de Justiça no Ministério Público do Estado do Paraná, Mestre em Direito (CPGD-UFSC), Doutor em Direito (PPGD-UFPR), Professor Titular no Centro Universitário Curitiba – UniCuritiba