Sumário: 1 Introdução 2. Considerações gerais sobre a reforma constitucional; 3. O cenário da Reforma Tributária; 4. Propostas de Reforma Tributária e o princípio federativo 5. O federalismo como instrumento democrático; 6. Considerações finais; 7. Referências
Uma questão polêmica no contexto federativo brasileiro é a alteração do Sistema Tributário Nacional. As Proposta de Reforma Tributária sugerem a simplificação da tributação do consumo, a desoneração da produção mediante a eliminação da incidência de tributos em cascata, o fim da guerra fiscal entre os estados e a desburocratização do cumprimento da obrigação tributária. Assim considerando, o presente trabalho pretende analisar a possibilidade de implementação da Reforma Tributária, suas implicações e restrições, enfatizando alguns pressupostos, que deverão ser considerados para a implementação da Reforma Tributária no Estado Democrático de Direito Brasileiro.
1.Intrudução
Vive-se sob a expectativa de reformas como conseqüência da integração econômica, da globalização, da necessidade do governo ou porque a sociedade assim exige. A Reforma Tributária tem essa visão, uma vez que considera as reclamações da sociedade e as dificuldades do setor público de executar as tarefas inerentes aos seus fins. Há um sentimento na sociedade brasileira de que a Reforma Tributária se tornou necessária.
2 Considerações gerais sobre a reforma constitucional
A Constituição político-jurídica do Estado é o mais alto grau, é a “norma básica e fundamental”[1] e como tal deve permanecer no tempo, com duração indefinida e mudança difícil, lenta e complexa. Uma das condições para que a Constituição mantenha-se é a adesão aos seus preceitos pela coletividade, uma vez que o desconhecimento, a ignorância, o desprezo e o desrespeito sistemático à Constituição negam o “sentimento constitucional”. HESSE[2] considera perigosa para a força normativa da Constituição a tendência freqüente de revisão constitucional sob a alegação de suposta e inadiável necessidade política. Segundo o autor: “Cada reforma constitucional expressa a idéia de que, efetiva ou aparentemente, atribui-se maior valor às exigências de índole fática do que à ordem normativa vigente (…) A estabilidade constitui condição fundamental da eficácia da Constituição.”
FRIEDRICH[3] argumenta que uma Constituição bem elaborada possibilitará oportunas medidas para sua emenda. A possibilidade de emendas constitucionais é suficiente para efetuar os ajustes necessários a fim de que uma Constituição venha a se adaptar à realidade social. Apesar da possibilidade de alteração do texto constitucional, existem formalidades que deverão ser observadas para que as mudanças venham a realizar-se. Nas observações de CANOTILHO[4]: “A escolha de um processo agravado de revisão, impedindo a livre modificação da lei fundamental pelo legislador ordinário (constituição flexível), (…) – a rigidez constitucional – é um limite absoluto ao poder de revisão, assegurando, dessa forma, a relativa estabilidade da Constituição.”
No Brasil, são empregados termos como reforma, emenda e revisão para designar o processo de mudança da Constituição. A doutrina brasileira tende a considerar o termo reforma como gênero para englobar os métodos de mudança formal das Constituições que se revelam mediante o procedimento de emenda e de revisão.[5], o texto constitucional de 1988 estabelece uma diferença de “amplitude conceitual entre Emenda e Revisão”. A revisão traz um sentido mais amplo, global, que poderá incidir sobre o texto total da Constituição, enquanto que a emenda é pontual, referindo-se a determinados pontos, observadas nas duas possibilidades as limitações presentes no artigo 60, parágrafo 4.º, da Constituição brasileiro.
Sem o qualificativo de ‘imutável’, a Constituição pode atualizar‑se. A manifestação originária do Poder Constituinte cabe estabelecer os limites da atuação do Poder de Reforma, quando se fizer necessária, condicionando em sua ordenação normativa reformadora. A natureza do poder constituído demonstra ser ele um poder de direito e não de fato, uma vez que é previsto, limitado, condicionado e subordinado em sua ação no texto da Lei Maior. O poder constituído derivado do Poder Constituinte Originário não possui a mesma amplitude do poder que o criou. Os textos constitucionais fixam as possibilidades de atuação do Poder Constituinte Derivado. Para BURDEAU[6], o poder constituído está submetido às regras da Constituição, em especial às relativas à sua estruturação e às condições do seu funcionamento.
Assim, tem‑se que o Poder de Reforma deve observar o processo de modificação previsto na Constituição, os limites fixados pelo Poder Constituinte Originário. Usualmente, as Constituições estabelecem certas cláusulas como ‘imodificáveis’ e também prevêem prazo para sua revisão, os quais deverão ser seguidos. O agravamento traduz-se na exigência de maiorias qualificadas para deliberação sobre as matérias sujeitas a alterações. Essa exigência tem por fim demonstrar a adesão ou consenso inequívoco dos representantes quanto às mudanças pretendidas.
A não observância pela reforma dos limites estabelecidos na Lei Maior (formais, temporais, materiais e circunstanciais) resulta na desconformidade constitucional das leis de revisão, problema esse não diferente do da inconstitucionalidade das leis ordinárias, em sentido amplo, dado que o poder de revisão é um poder constituído e deve ser exercido dentro dos parâmetros estabelecidos pela ordem jurídica constitucional em vigor.[7]
Ao fixar os limites para o exercício do poder de reforma ordinário ou permanente, o constituinte visou a preservar os princípios intocáveis (cláusulas pétreas), definindo dessa forma, no artigo 60, parágrafo quarto, que não pode ser matéria de reforma constitucional a forma federativa do Estado brasileiro, o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação de poderes e os direitos e garantias individuais.
A possibilidade de manifestação do poder constituinte derivado transitório, previsto no texto de 1988, possui regras diferentes das do poder de reforma permanente. É o poder que estabelece a revisão constitucional e está previsto no artigo terceiro do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT)[8]. Assim dispõe o artigo: “A revisão constitucional será realizada após cinco anos contados da promulgação da Constituição, pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral.”
A partir desse dispositivo, tem‑se a forma prevista da reforma (a mudança se fará sob o rótulo de revisão constitucional); o prazo (a revisão se dará após cinco anos, contados da data da promulgação da Constituição); o órgão que deverá reformar (Congresso Nacional) e o procedimento a ser adotado (o Congresso Nacional deverá reunir‑se em sessão unicameral e decidir pelo voto da maioria absoluta dos membros).
Na revisão constitucional, o constituinte visou a propiciar uma revisão global no texto da Constituição, sem deixar, no entanto, de observar os limites do artigo 60. Entretanto a revisão constitucional de 1993 não foi ampla. Limitou-se a analisar pontos isolados, dos quais merece destaque a criação do fundo social de emergência[9]. Deve-se salientar que a revisão constitucional, apesar de seu caráter inicial geral e amplo, não se reveste das características de Poder Constituinte Originário, razão pela qual não pode significar uma ruptura com o texto constitucional, mas, sim, uma adequação das normas promulgadas ao novo cenário, atendendo às exigências prementes da sociedade.
BOBBIO[10] assim expõe sobre as limitações materiais ao poder de reforma constitucional: “Quando um órgão superior atribui a um órgão inferior um poder normativo, não lhe atribui um poder ilimitado. Ao atribuir esse poder, estabelece também os limites entre os quais pode ser exercido (…)”. Por isso, o Poder Constituído possui limites que podem, por sua vez, ser implícitos ou explícitos. As limitações explícitas são aquelas expressamente vedadas pelo constituinte originário. A atual Constituição tem expresso no artigo 60, parágrafo quarto, o que não poderá ser objeto de reforma. A vedação atinge a pretensão de modificar qualquer elemento conceitual da Federação, ou o voto direto, secreto, universal e periódico, ou elimine a separação de poderes, ou indiretamente restrinja a liberdade religiosa, ou de comunicação, ou de outro direito e garantia individual, basta que a medida “tenda” a sua abolição.
Como exemplo, pode‑se citar a autonomia dos estados federados que se assenta na capacidade de auto‑organização, de autogoverno e de auto‑administração. Emenda que retire deles parcelas dessas capacidades, por mínima que seja, indica “tendência” a abolir a forma federativa de Estado e, por conseguinte, não pode ser matéria de reforma constitucional.
São as cláusulas pétreas ou cláusulas ‘irreformáveis’ que estabelecem limites ao conteúdo ou substância de uma reforma constitucional e que operam como verdadeiras limitações ao exercício do poder constituinte reformador e visam a assegurar a integridade da Constituição, impedindo que eventuais reformas provoquem a destruição, o enfraquecimento ou impliquem profundas mudanças de identidade.
Do exposto, infere-se que as limitações funcionam como garantias da manutenção dos direitos fundamentais dos cidadãos como obstáculo aos interesses imediatos de maiorias eventuais de proceder alterações em detrimento a valores de longo prazo. A Constituição brasileira atribui ao Congresso Nacional a possibilidade de implementar reformas, contudo, não lhe confere autoridade para alterar o texto constitucional sem maior cerimônia. Sua atividade legislativa é uma mera delegação recebida dos cidadãos e, portanto, limitada. Seria absolutamente ilógico e contrário à democracia que os representantes pudessem alterar a extensão dessa delegação, alcançando-se a posição de autêntico poder constituinte capaz de realizar uma profunda revisão constitucional, o que se traduziria num simples ato de usurpação da soberania popular.
Assim, todo e qualquer Projeto de Reforma na área tributária precisará considerar como preocupação central de manter os preceitos constitucionais. As Proposta de Reforma Tributária sugerem a simplificação da tributação do consumo, a desoneração da produção mediante a eliminação da incidência de tributos em cascata, o fim da guerra fiscal entre os estados e a desburocratização ação do cumprimento da obrigação tributária. Assim considerando e levando em conta a estrutura federativa brasileira, bem como verificar a possibilidade de implementação da Reforma Tributária, suas implicações e restrições e tendo presente que toda matéria, objeto de emenda constitucional tendente a abolir o princípio federativo, será inconstitucional.
3. O cenário da Reforma Tributária
Em 1988, a nova Constituição pretendeu reforçar o federalismo brasileiro com a descentralização política e financeira, centrada em princípios inerentes ao Estado Democrático de Direito. Em contrapartida do fortalecimento dos estados e municípios, a União teve redução de parcela ponderável de seus recursos: perdeu receitas e ganhou atribuições.[11] Isso se constata na elevação dos percentuais repassados pela União aos estados e municípios através dos fundos, definidos constitucionalmente.
Quanto aos municípios, principalmente os de menor porte, passam a depender quase que exclusivamente dos recursos repassados por outras esferas de governo, ficando em segundo plano a arrecadação dos tributos sob sua competência. Essa atitude gera prejuízo sobre a eficiência arrecadatória.[12] Mas, o incremento na repartição das receitas não foi suficiente para que Estados-Membros e municípios alcançassem a estabilidade de suas finanças. Corroboraram a criação do Fundo de Estabilização Fiscal (FEF) e a Lei Kandir,[13] as quais subtraíram parte das receitas dos entes regionais e locais, representando centralização fiscal e quebrando a regularidade dos mecanismos de transferência de receitas intergovernamentais[14]. Aliado a isso, o complexo contexto político de juros incidentes sobre os compromissos de Estados-Membros e municípios, fez com que as dívidas desses entes aumentassem significativamente, deixando muitos em situação financeira crítica. A renegociação das dívidas com a União, antes de solucionar os problemas das administrações estaduais e municipais, vem comprometendo parcela significativa da receita mensal que, somada aos custos da folha de pagamento de seus funcionários, quase impede que os governantes implementem seus projetos de governo.
A União, não satisfeita com o montante da arrecadação através dos impostos, passa a servir-se das contribuições como forma de aumentar o volume de receitas necessárias para desempenhar as suas funções. A instituição de novas contribuições, bem como a alteração de suas alíquotas têm sido prática constante da União. Como elas não entram na composição dos fundos repassados aos estados e municípios, toda a receita fica para o poder central e nem sempre são destinadas a cumprir os fins a que foram criadas, apesar da vinculação constituir-se em fator essencial.[15]
O aumento na arrecadação, porém, não se manteve. Sua redução se deu paralelamente à do consumo, da produção e da renda, uma vez que a oscilação da arrecadação tributária está estreitamente vinculada à variação do nível da atividade econômica. O desempenho econômico afetou as receitas tributárias. A redução do consumo resultou na diminuição da arrecadação.
Aliada a isso, ocorre a evasão fiscal[16], amparada em diversos fatores, como os problemas de complexidade das leis tributárias, em razão da grande quantidade de normas que indivíduos e empresas têm que conhecer para cumprir as obrigações principais e as acessórias.[17] O governo procura saída para compensar a redução das receitas. As alternativas encontradas contribuem para o aumento da carga tributária, tornando-a mais “injusta e concentrada”[18], deslocando o papel da tributação de minimizador das desigualdades sociais, por meio da redistribuição de rendas, para promotor da concentração da renda, favorecendo o aumento das desigualdades sociais.
Como se observa, a questão tributária não se encontra em situação pacífica. De um lado, posicionam-se os interesses da União, cuja pretensão é recuperar e ampliar suas receitas, indicando que os atuais parâmetros conduzem o país à ingovernabilidade; por outro, os Estados-Membros e os municípios defendendo sua parte na receita tributária e com uma dívida elevada e, por fim, apresenta-se o contribuinte, aspirando a reduzir sua participação no montante da arrecadação.[19]
Não bastasse esse conjunto de interesses contraditórios, a complexidade do atual Sistema Tributário não favorece o setor produtivo e reduz a competitividade dos produtos em nível interno e externo. Para exemplificar, observe-se a multiplicidade de impostos e contribuições que incidem sobre o consumo no Brasil: o governo federal administra o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira CPMF) e a contribuição para o PIS/Pasep. Os estados arrecadam o Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e os municípios, por sua vez, o Imposto sobre Serviços (ISS). Com essa estrutura, o Brasil detém a característica de possuir dois impostos do tipo valor agregado (IPI e ICMS).[20]
Diante desse quadro pretende-se discutir e encontrar o caminho para a Reforma Tributária. Várias propostas foram elaboradas, em sua maioria pretendendo racionalizar e reduzir a tributação e possibilitar a integração com outros países, mais precisamente com os países integrantes do Mercado Comum do Sul – Mercosul, como a número 175/95, a “minirreforma” e a Proposta do Governo Lula.
4. Propostas de Reforma Tributária e o princípio federativo
Preliminarmente, pode-se constatar que a Constituição brasileira possui um programa tributário praticamente completo. O tratamento dispensado à matéria tributária é minucioso. Em relação aos impostos, a Constituição estabelece, no artigo 153, os de competência da União, no artigo 155 e os de competência dos estados e Distrito Federal e, no artigo 156, e os de competência do município. É como se o Sistema Tributário Nacional fosse um imenso “bolo” dividido em três partes e cada uma das partes representasse a competência de uma esfera federativa. Essa divisão delimita os campos de atuação tributária da União, dos Estados-Membros, Distrito Federal e municípios.
Ao mesmo tempo em que a Constituição determinou as competências tributárias, estabeleceu também as limitações ao poder de tributar[21]. A atribuição de competências próprias para instituir, majorar e arrecadar tributos aos membros da Federação, leva a distinguir diversas hipóteses de incidência que, resumidamente, estão centradas no patrimônio, no consumo e na renda. Dada a existência das competências, há diversidade de tributos e um imenso conjunto normativo, resultando na complexidade do Sistema Tributário.
Naturalmente que, quando se fala em reforma, não se espera que as decisões sejam tomadas de uma hora para outra. Necessário se faz que o tema seja amplamente debatido, com o envolvimento do maior número de pessoas possível. A participação da sociedade é fundamental, uma vez que todos, de uma forma ou de outra, são contribuintes e, por outro lado, dependem de um Estado com condições financeiras de desempenhar as suas funções primordiais nas diversas áreas: saúde, educação, segurança e outras.
É importante reconhecer a dificuldade de ter-se um modelo ideal de Sistema Tributário. As experiências de outros países podem servir como base para uma possível reforma, porém nem sempre os modelos implementados por eles terá o sucesso no Brasil. Essa constatação reforça a idéia de que o papel da sociedade é fundamental na decisão sobre a estrutura do Sistema Tributário, calcada na eficiência econômica, na simplicidade administrativa, na adaptação às mudanças econômicas e na concretização da justiça social.
A Proposta de Reforma Tributária nº 175/95, tinha como princípio que o atual Sistema Tributário Nacional possuía estrutura obsoleta e prejudicava a competitividade, além de ser demasiadamente complexo e induzir à sonegação. Outros pontos se somavam esses, especialmente a busca da harmonização tributária com os países do Mercado Comum do Sul.
Essa proposta surgiu em agosto de 1995, de autoria do Poder Executivo. Basicamente, a PEC n.º 175 fixava-se na criação de um Imposto sobre o Valor Adicionado (IVA) federal. Tinha como principais metas a simplificação da tributação sobre vendas, eliminando o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e a transformação do ICMS num IVA, abrangendo apenas bens de consumo e que cada estado tenha por base impositiva, em última instância, apenas o consumo de bens e serviços de seus cidadãos (IVA de destino) e o fim da competição por investimentos entre os estados (guerra fiscal).
Entre os principais pontos da proposta, está a modificação profunda na forma de tributação sobre o consumo.[22] Relativamente à estrutura tributária, a Proposta trouxe duas novidades: um Imposto Seletivo Federal e o novo ICMS Federal. O Imposto Seletivo unifásico, potente no sentido de geração de receita, fácil de administrar e com incidência limitada a um pequeno número de bens (bebidas, fumos, veículos, combustíveis, energia elétrica e telecomunicações). O ponto de maior relevância centrava-se na criação do ICMS federal, apresentando como principais características à não-cumulatividade; a repartição da receita entre União, estados e DF, garantindo, também, aos municípios a sua participação na divisão das receitas; a competência para legislar a cargo da União e a possibilidade de alíquotas diferenciadas em função da essencialidade do produto, entre outras.[23]
As principais alterações nas competências situavam-se na instituição compartilhada pela União, estados e Distrito Federal do novo ICMS, cuja incidência consideraria o valor agregado na produção, distribuição, circulação, transferência, alienação ou consumo de bens corpóreos e na prestação de serviços. A instituição do tributo ocorreria através de Resolução do Senado Federal, mantendo uniformidade para todos os bens e serviços, admitindo-se a existência de uma alíquota reduzida para alguns bens e a não incidência sobre as exportações. A Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) seria transformada em Imposto sobre Movimentação Financeira (IMF), com caráter permanente; a transformação do Imposto de Importação (II), Imposto de Exportação (IE), Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) e o Imposto sobre Propriedade Territorial Rural em contribuição de intervenção no domínio econômico. Os estados e o Distrito Federal passariam a ter competência para instituir o Imposto sobre Vendas a Varejo e Prestação de Serviços a Consumidores ou Usuários Finais (IVV).[24]
Essa proposta foi amplamente rejeitada pelos estados que resistiam frente à redução das conquistas no campo financeiro com a Constituição de 1988. Os estados só aceitam discutir Reforma Tributária se mantidas as suas competências e os níveis de arrecadação. Durante esse período, a proposta foi debatida e evoluiu apresentando um modelo de ICMS compartilhado. Além das três esferas com poder para instituir e arrecadar tributos, criar-se-ia um artifício permitindo que a Federação instituísse um tributo legislado pela União, fiscalizado e arrecadado pelos Estados-Membros, a quem competiria repassar parte aos municípios.
Um possível argumento contrário à criação do IVA em nosso país é a organização federativa, onde Estados‑Membros, Distrito Federal e municípios possuem competências distintas para instituir e arrecadar impostos, resultando em uma autonomia assegurada pela Constituição. Sob essa ótica, adotar um imposto indireto, de competência da União, seria esvaziar a competência tributária dos demais entes públicos tributantes. No tocante aos Estados-Membros, a preocupação dos governos estaduais girava em torno da sua fragilização, em conseqüência de uma reforma tributária que retirava competência legislativa exclusiva dos estados no que se refere ao ICMS, sua principal fonte de receita própria, deixando-os na dependência da União.[25]
Muito embora as justificativas apresentadas pelo governo na tentativa de amenizar os efeitos das alterações pretendidas, por meio de simulações e com a ampliação da base do novo tributo, fica claro que a União teria sob sua jurisdição o imposto que mais arrecada e, em conseqüência, a capacidade tributária dos estados se reduziria, mesmo participando da instituição e arrecadação do tributo.
Um questionamento pertinente em relação a PEC n.º 175/95 é se poderia ser revogada a competência estadual para instituir o ICMS, ou essa atitude seria inconstitucional, pois implicaria retirar a autonomia financeira e, portanto, a autonomia política e administrativa dos estados? Uma vez instituído pelo Poder Constituinte Originário, o princípio federativo sofreria algum abalo no seu equilíbrio com a implementação dessas alterações? Até que ponto pode se alterar o Sistema Tributário Nacional e manter a Federação? Estar-se-ia diante da tendência de abolir uma das cláusulas pétreas (CF, artigo 60)?
Com efeito, a proposta de reforma visava, essencialmente, a reformar os impostos sobre o consumo com significativas mudanças. As alterações pretendidas feriam o pacto federativo, culminando em pouco tempo com a federalização total do novo ICMS-C. A proposta de Reforma Tributária 175/95 diminuiria, a princípio, a autonomia dos Estados-Membros, pela redução da competência legislativa sobre o ICMS.
Pela proposta, o novo imposto é de competência legislativa federal, com arrecadação compartilhada e fiscalização tendente à federalização. Isso se observa quando a Emenda determinava que o imposto, embora da competência da União, dos Estados-Membros e do Distrito Federal seria instituído através de Lei Complementar, de iniciativa da União. Portanto a União instituiria o ICMS (inciso I, do parágrafo 1º , do art. 154). Outra questão é a que se refere à fixação das alíquotas pelo Senado Federal, mediante resolução do Presidente da República ou de um terços dos senadores (artigo 154, parágrafo 1º, inciso IV).
Na mesma linha, União passaria a gerir o imposto dos Estados-Membros e do Distrito Federal, por meio da expedição de regulamentos e de atos administrativos normativos, cabendo aos entes somente a possibilidade de pronunciar-se sobre a matéria. Ora, o poder constituído de reforma constitucional não pode revogar a Constituição. A emenda constitucional n.º 175/95 ultrapassa os limites previstos no texto constitucional.
Nesse ponto surge a seguinte questão: o que caracteriza a Federação? As respostas apresentadas a essa questão, se identificadas no texto constitucional, exprimem os pontos limites onde podem chegar as propostas de reforma, sem incorrerem em inconstitucionalidade. Nessa seara, vale comentar o texto da Lei Maior, relativamente à Emenda Constitucional: não é necessário que a alteração constitucional provoque mudanças nos princípios básicos. É suficiente que esteja marcada pela “tendência” à abolição, no caso, do princípio federativo.
Na tentativa de precisar resposta à questão, DINIZ[26] indica a dificuldade de estabelecer um marco, indicando até que ponto a reformulação do art. 60 poderia ocorrer, sem que se configure a “tendência a abolir” os princípios consagrados como cláusulas pétreas. Como resposta, apresenta duas posições possíveis:
a) O art. 60 não poderia ser emendado por nenhum processo, mas apenas pelo fato social de que a comunidade aceita outra Carta Magna como pedra angular da ordem jurídica. Todavia essa solução deveria, por razões óbvias, ser afastada, já que requer a mutação de todo o sistema jurídico.
b)O art. 60 poderia ser reformado pelo procedimento especial que ele mesmo prevê, pelas autoridades que ele mesmo constitui, porém isso poderia ser afastado por implicar auto-referência genuína e parcial, que deve ser excluída como algo tido, logicamente, como um absurdo, por representar evidente contradição.
No mesmo sentido ARAÚJO[27] indica duas possibilidades de interpretação do artigo 60, parágrafo 4.º, inciso I. A primeira é aquela que qualquer alteração para mudar o pacto federativo seria inconstitucional porque tenderia a abolir o pacto existente. Por exemplo, alterar a competência dos Estados-Membros, municípios e União representa tendência a abolir o pacto federativo. Assim considerando, o texto constitucional estaria engessado, entretanto mais respeitado e a Federação mais valorizada, resultando em inconstitucional toda a alteração no regime federativo. A segunda interpretação, segundo o autor, é a que busca “apenas princípios da forma federativa de Estado”. Essa interpretação indica a necessidade de manutenção dos princípios federativos. Nas suas observações:
É verdade que, nesse caso, teríamos uma grande dose de julgamento subjetivo, que moldaria a decisão de conformidade com a realidade que se pretendesse proteger.
Quantas competências seriam necessárias para manter a autonomia estadual? A busca da solução matemática certamente não seria correta. Mas até que ponto é possível diminuir a autonomia estadual, sem ferir o princípio federalista. (…)
São duas as possibilidades, gerando problemas diversos. A primeira, mais antipática, mais radical, mas garantidora dos valores garantidos pelos constituintes. A segunda, mais móvel, menos ortodoxa, mas que permitiria uma redução do grau de autonomia pactuado quando do ajuste federalista de 1988.
Em que pese a Constituição, prever a possibilidade de emendas, bem como a sua implementação deverá seguir procedimentos especiais e respeitar os limites constitucionais. Só o Poder Constituinte Originário, que representa o poder do povo, é que pode inscrever as mudanças fundamentais na estrutura e organização do Estado brasileiro. O poder constituinte é a expressão da supremacia do povo. O produto da vontade do povo é expresso pelos constituintes que elaboram o texto constitucional e também estabelecem as normas que deverão ser observadas para a mudança do texto da Lei Maior. O constituinte garantiu o princípio federativo como inabalável e ‘imodificável’[28].
Para maior clareza, é importante ter presente o que preceitua o artigo 60, parágrafo 4o., inciso I da Constituição: “Não será objeto de deliberação a proposta tendente a abolir I- a forma federativa de Estado”. De fato, não há necessidade de significativas mudanças para infringir as cláusulas pétreas, somente a “tendência a abolir” já está em conflito com a ordem constitucional. Dessa forma, dificilmente atenderão ao preceito constitucional emendas que possuam como objetivos alterar a competência dos entes federativos.
É de se considerar também que a Federação subsiste se os Estados possuírem autonomia, correspondendo ao poder de auto-organização, de autogoverno e de auto-administração. A Federação é um pacto permanente e decorre da Lei Maior do País. Nas palavras de SCHMIDT[29], o sistema federativo é sempre cláusula pétrea, mesmo que o texto não o indique como tal.
E mais, reduzir a competência tributária dos Estados-Membros, significa reduzir a capacidade legislativa. Mudanças nas proporções previstas na PEC 175/95 alterariam o pacto federativo, vislumbrando-se uma ‘nova federação’. Assim, Proposta de Reforma Tributária que retire dos Estados a competência para legislar sobre o ICMS, significa a redução da autonomia legislativa e, por conseguinte, contraria o princípio federativo.
Não há dúvida que qualquer alteração no Sistema Tributário Nacional é complexa. Os constituintes de 1988 garantiram a descentralização da tributação, reafirmando o ideal federativo e revestindo o texto constitucional de mecanismos de proteção (cláusulas pétreas, fixação de competências), que inviabilizam até a “tendência a abolir” os princípios constitucionais.
Ao que tudo indica, a repartição de receitas e encargos implicaria uma revisão na estrutura do atual federalismo brasileiro[30], resultante da vontade política da sociedade brasileira (poder constituinte). É típica do federalismo a existência de tributos poderosos a cada um dos entes que compõem a Federação. Assim, passar também para o plano federal o poder de legislar sobre o imposto mais poderoso dos estados (ICMS), significa centralização de poder e qualquer alteração deveria ser submetida à vontade da Nação.
Posteriormente, surge a proposta de uma ‘minirreforma tributária’ pela Medida Provisória[31] n.º 66, de 29.08.02, que se transformou na Lei 10.637, de 31.12.2003. Um dos principais pontos da minirreforma foi à eliminação da cumulatividade, ‘efeito cascatas’ das contribuições do PIS/Pasep. Essa medida teve por fim estimular as exportações. Além das mudanças no PIS/Pasep, a alteração teve por objetivo estabelecer normas referentes à compensação de créditos tributários[32].
Adotou-se, em relação às contribuições do PIS/Pasep, metodologia semelhante à aplicada ao ICMS. Como forma de compensar a eliminação da cumulatividade a alíquota foi majorada de 0,65%, para 1, 65% no caso do PIS/Pasep[33]. Esse aumento na alíquota, antes de reduzir a carga tributária, pretensão maior dos empresários, resultou em elevação da carga tributária, tendo em vista que, mesmo considerando a incidência do tributo em todas as fases da elaboração do produto, em média, a contribuição final era menor.
Sob o mesmo prisma, pretende-se eliminar a cumulatividade da COFINS, projetando a elevação de sua alíquota de 3 para 11%. Com a implementação da não-cumulatividade, o tributo incidiria somente sobre o valor agregado em cada fase. A eliminação do efeito cumulativo do COFINS, de acordo com o texto da Lei 10.637, deverá ser objeto de lei específica.
Mais recente, o conteúdo da proposta do Governo Lula, ficou aquém das idéias enumeradas na Exposição de Motivos, apresentada originalmente como a ‘reforma politicamente possível’, demonstrou ser insuficiente para promover as mudanças estruturais no sistema tributário brasileiro.
A proposta do governo possui como pontos principais a unificação da legislação do ICMS[34]; fim dos incentivos em relação ao ICMS; substituição de 50% da contribuição previdenciária patronal por uma contribuição sobre valor agregado; fim da cumulatividade do COFINS; progressividade do imposto sobre a herança e doação; transferência do ITR para competência dos Estados-Membros[35]; transformação do CPMF em tributo permanente; previsão constitucional de uma renda mínima para pessoas pobres, por meio de convênios entre a União, Estados-Membros e municípios; desvinculação de 20% da receita tributária da União[36].
Não se pode olvidar que a unificação da legislação sobre o ICMS é mérito da Proposta, se considerarmos a existência de vinte e sete legislações, uma para cada Estado-Membro e Distrito Federal e a complexidade da sua administração no contexto federal. Sua implementação racionaliza a legislação tributária nessa área. Relativamente aos incentivos, a nova proposta veda a concessão de isenções, redução da base de cálculo, crédito presumido ou qualquer incentivo ou benefício fiscal ou financeiro que implique sua redução. É de se registrar que a Constituição já dispõe de mecanismos de controle a cargo do Senado Federal e do CONFAZ (CF, artigos 151 e 155).
Ao referir-se ao COFINS, a Proposta admite até a sua substituição total ou parcial por outra contribuição não-cumulativa, a partir do fato gerador ‘receita ou faturamento’. Nesse caso, já existe previsão de eliminar a cumulatividade do COFINS na Lei 10.637, conforme já mencionado. Porém a extinção do ‘efeito cascata’ da Contribuição, não pode justificar uma elevação exagerada da alíquota a incidir, caso contrário, a alteração vem de encontro aos anseios dos contribuintes.
Outras alterações previstas na proposta referem-se ao imposto sobre Transmissão ‘causa mortis’ e Doação’, de competência estadual; ao Imposto sobre a Propriedade Rural e a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira perde o seu caráter de transitoriedade e passa a ser um tributo definitivo, inserido entre as contribuições sociais, para financiamento da seguridade social. A par dessas alterações, a Reforma ainda institui ‘a renda mínima’ para atender pessoas pobres e desvincula 20% de órgão, fundo ou despesa, o produto da arrecadação de tributos federais (impostos, contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico) até 2007.
Porém, essa Proposta de Reforma Tributária foi “fatiada” no Senado, limitando-se a aprovação imediata apenas da prorrogação da CPMF, da Desvinculação das Receitas da União (DRU), da alteração da fiscalização e cobrança do Imposto Territorial Rural que passa aos Municípios. O restante das matérias que geraram conflito entre o governo federal, os governadores e os partidos políticos, foram remetidas para posterior discussão. O que foi possível alterar, resultou na Emenda Constitucional n.º 42, aprovada em 19.12.2003. Basicamente a Emenda Constitucional acrescentou o artigo 146-A que atribui è Lei Complementar estabelecer critérios especiais de tributação, com objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência entre os entes federados. Reforçou as limitações ao poder de tributar através da inclusão da alínea “c”, ao inciso III, do artigo 150 da CF, estabelecendo que é necessário decorrer noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que instituiu ou aumentou o tributo. Nesse caso, o prazo de noventa dias soma-se ao princípio da anterioridade já previsto na Constituição (alínea “b”, inciso III, artigo 150, da CF).
Quanto ao ICMS, a Emenda alterou a redação do da alínea “a”, do inciso X, do artigo 155, indicando a não incidência sobre as operações que destinem mercadorias para o exterior, nem sobre serviços prestados a destinatários no exterior, assegurada a manutenção e o aproveitamento do montante do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores. Ocorreu a consagração constitucional da desoneração tributária das exportações para mercadorias e serviços. Ainda em relação ao ICMS, acrescentou-se a não incidência sobre as prestações de serviço de comunicação nas modalidades de radiodifusão sonora e de sons e imagens de recepção livre e gratuita.
A Emenda mantém a Desvinculação da Receita da União – DRU, até 2007. Durante esse período é desvinculado de órgão, fundo ou despesa, vinte por cento da arrecadação da União de impostos, contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico, já instituídos ou que vierem a ser criados no referido período, seus adicionais e respectivos acréscimos legais (artigo 76, ADCT). Outra matéria objeto da Reforma Tributária foi a prorrogação da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira – CPMF até 31.12.2007, mantendo o caráter de ‘provisória” e a mesma alíquota de trinta e oito centésimos por cento.
Pelo exposto, constata-se que o resultado da ‘Reforma Tributária’ ficou aquém das pretensões do governo e da sociedade. Por um lado, a dificuldade é conjugar os interesses dos entes federativos, uma vez que as alterações pretendidas deveriam adequar o novo modelo tributário e a sua administração às necessidades da sociedade, sem lesar o pacto federativo, garantindo as competências de cada ente. Não restam dúvidas quanto à complexidade do tema e às dificuldades de viabilizar propostas factíveis na área tributária, voltadas para a implementar uma reforma mais justa, sem visar ao aumento da carga tributária.
Mesmo assim, qualquer alteração deverá ter como norte os preceitos constitucionais. Caso contrário trará insegurança tanto para contribuintes, quanto para o governo e profissionais do Direito. Qualquer procedimento que se tome em descompasso com a Constituição, nas matérias consagradas como cláusulas pétreas (limitações), poderá ser considerado, a posterior, como inconstitucional. Ou quem sabe (a experiência brasileira mostra) alguns fatos serão considerados como inconstitucionais e outros não. A segurança e a certeza do Direito poderão ser relativas.
Ademais, uma Reforma Tributária de base, revestida de tamanha complexidade, carece de maior participação popular, de esclarecimentos sérios e de projeções que indiquem claramente qual será o novo perfil tributário brasileiro, suas conseqüências para os contribuintes e para o país. Não existem fórmulas simplistas para a alteração do Sistema Tributário Nacional, uma vez que o contexto da reforma é complexo, levando-se em conta além das peculiaridades internas, a tendência internacional de globalização das economias, na qual o Brasil está inserido.
5. O federalismo como instrumento democrático
O Estado federal possui, como idéia básica, a repartição de competências, tema central da democracia. Na Federação, com a descentralização do poder, os entes possuem autonomia nas suas áreas de atuação. A autonomia se expande aos campos administrativo, legislativo e político. A União, os Estados-Membros e os municípios possuem competências. A descentralização do poder político e jurídico revela-se na capacidade de autogoverno. Convive-se com o federalismo triático, em que existem, ao mesmo tempo e no mesmo espaço, três ordens jurídicas.
Quando se estabelece o ‘pacto federativo’, os membros devem guardar uma relação de proporção, pretendendo que haja maior igualdade de condições possível. A Constituição tem o papel de garantir a divisão do poder, dando a certeza aos entes federados sobre suas competências. O equilíbrio federativo garante a própria existência da federação.
Com a valorização dos governos regionais e locais, obtém-se a proteção contra os abusos do poder central e a melhoria na satisfação dos cidadãos, por meio de políticas públicas. Os governos subnacionais não podem ser dependentes da União, nem politicamente, nem financeiramente, pois, se isso ocorrer, não serão verdadeiramente autônomos. Daí, para que a democracia se realize não é suficiente a estrutura federal do Estado. Indispensável que ocorra a descentralização.
Então, com a descentralização, passa-se a atribuir ao sistema federativo a qualidade de democrático, porque através dele se torna possível a aproximação entre governantes e governados, devido à proximidade do povo com os órgãos do poder local. Quanto mais próximo o poder decisório estiver de seus destinatários, maior a possibilidade de o poder ser exercido democraticamente. Segundo BASTOS[37], “o federalismo possui a vantagem de aumentar as oportunidades de participação dos cidadãos num governo que lhes está próximo”.
Para LOEWENSTEIN[38], a Federação se apresenta como a “aplicação do princípio da distribuição do poder, é incompatível com a autocracia, que encarna a concentração do poder.” Na mesma direção, COMPARATO[39] vincula o “sistema federal ao princípio democrático de que a legitimidade do poder depende do consentimento majoritário dos governantes e dos interesses essenciais das minorias”. Nesse sentido, a descentralização política consolidaria a democracia. O governo descentralizado é mais responsável, mais acessível, mais inovador e mais efetivo do que o governo centralizado. O acesso à participação das pessoas torna-se possível em razão da proximidade do governo local e, por conseqüência, os governantes tornam-se mais responsáveis e atuantes.
Retomando as Constituições brasileiras, verifica-se que nas que contaram com a participação do povo, de forma direta ou indireta, a Federação se viu fortalecida, enquanto, contrariamente, nos regimes autoritários, cujos textos foram outorgados, o Estado brasileiro praticamente se transformava em Estado Unitário, apesar de manter o sistema federativo inscrito na Carta Magna.
Com a Constituição de 1988, houve um incremento na descentralização. Estados e municípios, principalmente, conquistaram mais poder. Isso se torna claro na área tributária. A possibilidade de instituir e arrecadar tributos expressa no texto constitucional garantiu um incremento nas receitas desses entes federativos, aliado aos repasses, que também foram readequados e previstos na Constituição. Essas conquistas traduzem-se na ampliação de recursos em nível regional e local, resultando em maior autonomia financeira dos entes federativos. A disponibilidade de recursos nas esferas menores da administração permite o atendimento das tarefas típicas do poder público, sem a submissão às esferas superiores.
Em que pese os rumos que a Reforma Tributária tomou ou venha a tomar, concentrar a competência tributária na União representará distanciar os recursos dos seus destinatários. Significa que o seu retorno pode percorrer caminhos diversos e contrários ao pronto atendimento das necessidades da população contribuinte. Centralizar a tributação é caminhar para o autoritarismo, é abalar o princípio federativo e é um retrocesso para a democracia. Descentralização de receitas, participação política e democracia são aliadas e se complementam.
SCAFF[40] apresenta a questão da Reforma Constitucional apontando como fundamental a participação do povo na discussão das alterações pretendidas. Segundo o autor: “Reduzir competências impositivas dos estados e municípios, bem como determinar maior nível de arrecadação das sociedades, deverá ser objeto de deliberação democrática, e não através de emendas disfarçadas”. O respeito ao pacto federativo é imprescindível e se constitui em um dos atributos essenciais para a consecução do Estado Democrático de Direito.
6. Considerações finais
O Estado federal caracteriza-se pela associação de Estados independentes ou da mesma nacionalidade por meio de uma união organizada e indissolúvel prevista no texto constitucional. Há um laço de unidade entre as coletividades federadas e o poder que se apresenta dividido entre as esferas de governo. Essa repartição do poder político, prevista em um texto constitucional rígido, é a idéia base do federalismo.
Ao adotar a forma federativa, o Estado opta por uma maior descentralização do poder. Desde a sua consagração no texto constitucional, o federalismo brasileiro alternou momentos de centralização e descentralização do poder. Ressalte-se que a centralização acentuou-se durante os governos de regime autoritário, enquanto predominou a descentralização nos períodos democráticos. Daí, descentralizar significa transferir competências para outros níveis de governo. Essa divisão garante a autonomia das unidades federadas. Entre as competências outorgadas está a possibilidade de instituir e arrecadar tributos, bem como a participação na receita da União. Nessa área, de igual forma, a centralização de receitas manifesta-se nos momentos de regime ditatorial e está diretamente ligada à concentração de renda. Já a descentralização está presente nos governos democráticos. Repartir receitas é fator decisivo para a eliminação das divergências de interesses dos entes federados.
Não existe um modelo ideal de Sistema Tributário nem um padrão uniforme a ser adotado pelos Estados Federados. Fatores sociais, econômicos, culturais e históricos de cada país pela conjugação de características próprias, direcionam a formação das estruturas fiscais. Portanto, há necessidade de que cada sociedade tenha presente o tipo de Estado que pretende, com as atribuições definidas e divididas entre os níveis de governo, possibilitando a cada um dispor dos recursos necessários para a consecução de suas funções.
Como forma de reafirmar o federalismo brasileiro, a Constituição de 1988 incrementou a descentralização das receitas tributárias. Estados e municípios, principalmente, conquistaram mais poder. A competência outorgada para instituir e arrecadar impostos, aliada aos repasses previstos na Constituição, foram garantidos. Essas conquistas traduzem-se na ampliação de recursos em nível regional e local, resultando em maior autonomia financeira dos entes federados. Apesar da ampliação das competências, os estados e municípios passam por dificuldades financeiras. Essa situação, entretanto, não pode desconsiderar que a descentralização tributária, prevista no texto constitucional, foi um avanço, uma vez que representa a transferência de poder da esfera central para as esferas mais próximas do povo.
Quando se discute esta matéria não se está apenas discutindo a questão financeira: discute-se também a estrutura federativa e o relacionamento do cidadão com o Estado. Portanto a questão tributária não pode ser tratada isoladamente. Falar-se em Reforma Tributária significa definir que o tipo de Estado, em termos de estrutura e entidades, uma vez que a tributação representa o principal meio de gerar recursos para o financiamento de suas finalidades estatais.
Com relação à complexidade da tributação, questionam-se, especialmente, as particularidades estaduais no gerenciamento do ICMS. Cada estado possui uma legislação farta sobre a matéria que em geral dificulta a compreensão por parte dos operadores da área tributária, assim como grande parte dos contribuintes. Nesse ponto, vale considerar a existência de mecanismos previstos, constitucionalmente, que poderiam ser utilizados como forma de reduzir os conflitos e as distorções existentes entre as legislações dos estados. Imaginar um Sistema Tributário simples é utopia, uma vez que a questão é por natureza complexa. Precipitar reformas constitucionais sem uma discussão ampla e imparcial pela sociedade é imprudente e poderá precipitar resultados imprevisíveis.
É evidente que a carga tributária brasileira é alta, se considerado o retorno que o poder público oferece aos contribuintes. Porém, as necessidades da administração pública são crescentes, tornando-se difícil reduzir as incidências. Vale lembrar a instituição indiscriminada de contribuições (que mais parecem impostos disfarçados) com o fim aumentar a arrecadação para fazer frente às necessidades da União.
É preciso, pois, recordar que as diversas tentativas de ajuste fiscal (necessidades de ‘caixa‘) promovidas pelo Estado brasileiro nas últimas décadas sempre tiveram como objetivo angariar volume maior de recursos, com a conseqüente oneração do contribuinte. Por outro, nunca se basearam em cortes de despesas, mas sim em buscar recursos para fazer frente aos compromissos já assumidos.
Os processos de reforma devem ser sérios, exigentes e realizados, considerando-se os limites ao poder constituído. Ademais, é justificável a preocupação do constituinte originário em inserir no texto constitucional um núcleo de preceitos imutáveis, composto por princípios fundamentais para a concretização e manutenção do Estado Democrático de Direito brasileiro. Essas limitações devem ser observadas sempre que se pretenda alterar os dispositivos constitucionais, sob pena de se incorrer em inconstitucionalidade, abolindo ou tendendo a abolir algum dos princípios fundamentais.
Portanto pode-se até afirmar (com cautela) que uma Reforma Tributária, com pretensões de ‘duradoura’, supõe a atuação do poder constituinte originário ou quiçá um ‘novo pacto federativo’, determinando a competência de cada ente federado a partir de uma das bases: renda, a cargo da União (e impostos regulatórios de importação e exportação); consumo (ICMS ou IMF), de competência dos Estados-Membros e propriedade (sobre propriedade territorial rural e urbana), de competência dos municípios.
Assim, alguns pontos são fundamentais para se discutir a questão, tais como: o Sistema Tributário deve fortalecer estados e municípios, atendendo ao princípio federativo; e considerar que o mesmo deve ser instrumento de promoção social e desenvolvimento econômico, cumprindo os preceitos característicos do Estado Democrático de Direito. Por conseguinte, tanto os representantes dos Estados-Membros, dos municípios, quanto dos segmentos representativos da sociedade e a população em geral devem participar da discussão e análise dos Projetos de Reforma apresentados.
A meta do Sistema Tributário Nacional é alcançar a justiça social (benefício à sociedade) e a observância dos princípios constitucionais tributários. O que se pode pretender mais de um Sistema Tributário que considera como basilares a capacidade contributiva do contribuinte e a vedação ao efeito confiscatório da tributação, a observância estrita da legalidade para a exigência de tributo, o tratamento igual dispensado aos contribuintes, a irretroatividade das normas tributárias, o princípio da não-surpresa e a progressividade? Em síntese, mais do que reforma na tributação urge o cumprimento dos preceitos já existentes e legitimados no texto constitucional.
Informações Sobre o Autor
Salete Oro Boff
Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito-Mestrado e Doutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Trabalho vinculado à Linha de Pesquisa “Políticas Públicas de inclusão social”, projeto “Políticas Públicas para a inovação, proteção jurídica da tecnologia e desenvolvimento: em busca do equilíbrio entre a propriedade privada e os interesses difusos”. Pós-doutora em Direito de Propriedade Intelectual pela UFSC. Doutora em Direito pela UNISINOS. Professora da Faculdade Meridional – IMED- Passo Fundo-RS. Professora do Instituto de Ensino Superior de Santo Ângelo – IESA