A Constituição brasileira[1] prevê o sistema proporcional para a Câmara Federal de representação popular, o sistema majoritário para o Senado Federal de representação dos Estados-Membros e para a Presidência da República no sistema presidencialista de governo.
O sistema eleitoral adotado leva a crer, de acordo com a doutrina, que conduz a uma democracia partidária. Chega-se a essa conclusão, embora tenhamos mecanismos de participação direta do povo, como o plebiscito, o referendo popular e a iniciativa popular. Há uma representação popular e a participação direta do povo. É semidireta, representativa partidária devido à eleição proporcional dos representantes, admitir o voto de legenda e mesmo na atuação direta do povo há participação dos parlamentares que só podem ser eleitos se inscritos em partidos.
O que ocorre no Brasil são algumas incoerências com as características do sistema adotado, misturando-se com as do sistema majoritário.
I. PARTIDOS POLÍTICOS
Os partidos políticos desenvolveram-se ligados à democracia, ou seja, à extensão do sufrágio popular e das prerrogativas parlamentares. Quanto mais cresciam as funções e a independência das assembléias políticas, os seus membros mais sentiam a necessidade de agrupar-se por afinidades, afim de atuarem de acordo. (Maurice Duverger. Los partidos políticos. 1957, p.15).
Os partidos políticos são associações de indivíduos com a finalidade de disputar eleições e, por esse meio, vir a colocar os seus membros no poder. Podem ser estudados entre outras dimensões, pela legislativa que corresponde à atuação parlamentar, implementação de políticas públicas. (Rogério Schmitt, Partidos políticos no Brasil. 1945-2000, p.10).
II. REPRESENTAÇÃO PROPORCIONAL
Pela representação proporcional, divide-se o número de votos expressos, pelo número de mandatos, para obter-se o quociente eleitoral. Após divide-se o número de votos recebidos pelo partido, representado pela soma dos votos dos candidatos ou destes mais os da legenda (sem indicação de candidatos) pelo quociente. Tem-se o número de mandatos conquistados. Há uma correspondência entre os votos dos candidatos ou do partido e o número de mandatos no Parlamento. Como existem sobras, vários são os critérios para distribuí-las.
A representação proporcional constitui uma assembléia que reflete o eleitorado com a eleição onde ocupam as cadeiras todas as tendências significativas do país. Substitui um sufrágio de homens por um sufrágio de idéias. Há uma escolha de um programa ou projeto de sociedade. O eleitor vota no partido que prefere e não numa maioria da qual deve sair o Governo. (Jorge Miranda. Estudos de Direito Eleitoral. 1995, p.135-141). O modelo pressupõe partidos. Estes são os meios que permitem medir as forças das correntes populares, a proporção de cada uma. Os partidos são necessários à democracia, para a formação política do povo; oferecem opções, que serão submetidas à escolha do eleitorado, e escolhem os homens capazes de executa-las; apresentam novas idéias e novos programas para a escolha popular. (Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Curso de direito Constitucional. 2002, p.104).
Estas manifestações doutrinárias são suficientes para analisarmos como se apresenta o sistema no Brasil e suas distorções. Evidentemente não pretendemos a perfeição e lembramos as palavras de Rousseau na citação de Maurice Duverger “Rousseau lo vio, aunque sus comentadores hayan olvidado leerlo: ‘ Tomando el término em el rigor de la acepción, jamás ha existido verdadera democrácia y jamás existirá”. (Los Partido Políticos, p.450). Lembramos, ainda, as dificuldades com o estabelecimento da proporcionalidade apresentada por Arendt Lijphart (Electoral Systems and Party Systems. 1994).
III. A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA
A Constituição brasileira de 1988 diz em seu artigo 45 que “A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo, eleitos pelo sistema proporcional, em cada Estado, em cada Território e no Distrito Federal”, no § 1º “O número total de Deputados, bem como a representação por Estado e pelo Distrito Federal, será estabelecido por lei complementar, proporcionalmente à população, procedendo-se aos ajustes necessários, no ano anterior às eleições, para que nenhuma daquelas unidades da Federação tenha menos de oito ou mais de setenta deputados” e no § 2º “Cada Território elegerá quatro Deputados”.
A Constituição estabelece o sistema proporcional, o mínimo e o máximo de deputados para cada unidade da federação. A lei complementar referida em seu texto é n º 9.504 de 30/9/1997, que em seu artigo 5º determina: “Nas eleições proporcionais, contam-se como válidos apenas os votos dados a candidatos regularmente inscritos e às legendas partidárias”. Admite por força do artigo 6º, as coligações às quais são contados os votos para efeito de proporção.
IV. ATRIBUIÇÃO DOS MANDATOS E AS SOBRAS
No Brasil soma-se os votos atribuídos a todos os partidos e candidatos dos mesmos, obtendo-se os votos de legenda. Após divide-se o total dos votos de legenda pelo número de cadeiras a preencher, chegando-se ao “quociente eleitoral”, desprezando-se as frações. Em seguida divide-se os votos de cada partido pelo “quociente eleitoral” e aí temos o número de eleitos, desprezando-se as frações. Havendo sobras de cadeiras não atribuídas, procura-se a maior média da seguinte forma: soma-se uma unidade ao número de eleitos pelo partido, excluindo-se o que não houver obtido número de votos ao menos igual ao “quociente eleitoral”, por esse número divide-se o total de votos do partido; após o cálculo para cada partido verifica-se o que conseguiu maior média o qual receberá mais uma cadeira. Repete-se a operação até a distribuição de todas as sobras. Esta forma poderá levar um partido que teve, particularmente, menos sobras a conseguir mais uma cadeira em detrimento daquele que teve mais sobras de votos.
V. QUESTÕES
Três questões merecem destaque: 1) Os votos são do partido ou do candidato, ou em outras palavras, vota-se em um ideal e um programa e nos mais capazes para a concretização ou em homens? 2) Deve haver fidelidade e disciplina partidária? 3) A fixação de um mínimo e um máximo é legítima?
1) Pelo que se expôs, doutrinariamente, e pelo texto da Constituição e sua lei complementar o cargo deveria pertencer ao partido. É uma decorrência do sistema. O eleitor escolhe um programa, um ideal, a opção proposta pelo partido. O candidato é eleito para a execução daquilo que a agremiação ofereceu. Ele vence a eleição com a força da legenda. Isto decorre do fato de o eleitor muitas vezes votar apenas na legenda. Como dizer que este voto é pessoal? O mesmo caso é o do eleito por um número insignificante de votos, mas o consegue com os votos da legenda. Quem venceu ou conquistou o mandato, o candidato ou o partido, a coligação? Evidentemente estes últimos. Apenas para exemplificar, nas eleições no Brasil, em outubro do ano 2000, um candidato do partido PMDB obteve 127.938 votos e não foi eleito enquanto um do partido PRONA, com 275 votos foi eleito porque outro candidato do partido obteve 1.573.112 votos que contam para a legenda; esta sem a designação de candidato, recebeu mais de 41.505 votos; numa soma total dos votos, conquistou proporcionalmente seis mandatos. O último da lista com 275 votos foi eleito pela legenda ou pelo voto pessoal? Não resta dúvida que foi pela legenda/partido.
2) A segunda questão é se deve haver fidelidade e disciplina partidária. Pelo que se expôs, além de programas bem definidos a resposta é afirmativa. Deve haver a disciplina partidária aliada à fidelidade. Não se pode compreender a estrutura eleitoral seguida pelo Brasil, sem a obediência e esses requisitos. O eleitor escolhe o programa, o ideal, tem em mente os objetivos, vota no partido, escolhe a pessoa, ou deixa a qualquer dos candidatos do partido a sua execução. Se eleitos, após receberem os mandatos, por indisciplina ou infidelidade, não cumprem a orientação partidária ou transferem-se a outro partido, significa traírem os objetivos para os quais receberam a confiança popular. Ocorrendo a hipótese deveriam perder o cargo, como já previsto na lei eleitoral Tchecoslovaca de 1920. Deveriam ser substituídos pelos suplentes dos partidos pelos quais foram eleitos. Estes deveriam seguir as diretrizes partidárias. Não se trata aqui de um mandato “imperativo” e seguir as orientações determinadas pelos eleitores, mas de cumprirem suas funções com liberdade, dentro dos limites, programáticos, para os quais, conscientemente, candidataram-se e o povo os elegeu. Daí a caracterização de uma democracia pelos partidos.
VI. AS DISTORÇÕES DO SISTEMA BRASILEIRO
Se o Brasil escolheu o sistema proporcional, com voto de legenda, deveria seguir a orientação exposta, mas o não faz.
Em primeiro lugar, o mandato que deveria ser partidário não o é e pertence ao candidato eleito. Há uma mistura entre uma característica do sistema proporcional com outra do sistema majoritário, elege-se pelo primeiro e detém o mandato pelo segundo, como pessoal.
Em segundo lugar, os partidos devem estabelecer normas de fidelidade e disciplina, conforme o § 1º do artigo 17 da Constituição de 1988, mas não impedem que um candidato eleito por um partido transfira-se a outro, ou decida contra as diretrizes de seu programa. Mais uma vez fica demonstrado que o candidato elege-se pela força do partido. Conforme exemplificamos, com apenas 275 votos um candidato elege-se por um partido enquanto outro com 127.938 votos não consegue um mandato. Após a eleição, com os votos do partido, vem traí-lo, decidindo contra diretrizes do mesmo ou abandonando-o e não perde o cargo; elege-se pelo sistema proporcional e mantém-se pelo sistema majoritário. Além disso, é uma incoerência com o sistema, um desrespeito aos eleitores.
Ainda cumpre esclarecer, que se esse candidato, eleito com 275 votos, transferir-se para o partido daquele não eleito com 127.938 votos, continuará com o mandato, executando um programa e dentro de uma ideologia para o qual não foi eleito. Há uma ilegitimidade porque neste outro partido quem obteve 127.938 votos populares não representa os eleitores de seu partido, nem o povo, no sentido amplo, enquanto o outro com 275 votos o faz, como se o voto, no sistema proporcional adotado, fosse pessoal. Não há, portanto, o respeito pleno a este sistema e nem a legitimidade do voto pessoal de um sistema majoritário.
3. A terceira questão é a determinação de um número mínimo de oito e máximo de setenta deputados, para cada unidade da federação. É também uma distorção na representação popular, com conseqüências na formação de maiorias e no processo legislativo das leis e das emendas constitucionais. O Brasil que tem várias unidades federativas com pequena população e contam com (8) oito deputados provoca um desequilíbrio com relação a unidades populosas que podem ter no máximo (70) setenta representantes. Para exemplificar, apresentamos quando o Estado de São Paulo tinha 34.119.110 habitantes, e o direito a (70) setenta deputados e o Estado de Roraima, com 247.131 habitantes o direito a (8) oito. Quer dizer que São Paulo tinha um deputado para cada 487.416 habitantes, enquanto Roraima um deputado para cada 30.891; vale 15,77 vezes mais do que São Paulo. Assim muitos Estados são sub-representados, enquanto outros são super-representados caracterizando um sistema, que na realidade é desproporcional e não proporcional. É diferente do que ocorre nos Estados Unidos da América do Norte, onde há proporcionalidade, com o mínimo de 1 representante em sete Estados e delegado no Distrito Federal. Aliás possui um total de 435 deputados para a população de 265 milhões de habitantes e o Brasil, comparando, tem 513 deputados para uma população de 165 milhões de habitantes, com 8 deputados para o Distrito Federal. Esses números podem ter sofrido alterações, de acordo com as datas, mas não alteram o significado de exposição.
Essa desproporção leva a conseqüências: a soma dessas unidades menores do norte, nordeste e centro-oeste, formam uma região de regiões, com maioria na Câmara Federal. Esta também ocorre no Senado Federal porque somam maior número de Estados com 3 Senadores, cada um, sendo igual esse número para todas as unidades. O resultado é que essa região de regiões consegue a maioria parlamentar nas duas casas do Congresso e nem sempre agem nos interesses nacionais, com relação à legislação e às emendas. Quando, por exemplo, não conseguem os 3/5 dos votos para aprovar uma emenda, conseguem pelo menos mais de 2/5 para rejeitar. Assim, quando não conseguem aprovar seus projetos, têm votos suficientes para rejeitar e utilizar esses mecanismos visando interesses particularizados.
Estes problemas poderão surgir na União Européia, quando da ampliação, aumento dos países de pequena população, formação de regiões com a soma dos pequenos e de um número mínimo de representantes ou por outro lado a atribuição do voto qualificado.
VII. CONCLUSÕES
Evidentemente, como conclusão, verifica-se a necessidade de uma reforma no sistema eleitoral brasileiro. Deve ser mais coerente, justo e atender às necessidades peculiares do País. Não se pode adotar parte de um sistema no interesse particular e passar para outro quando deixa de interessar. E isto sem critério e objetivos maiores.
Outros aspectos, relativos ao tema poderiam ser desenvolvidos: o necessário registro partidário; a eleição majoritária do Presidente da República junto com um Vice-Presidente; a candidatura de Senador com dois suplentes que acabam exercendo e nunca seriam eleitos pelo povo no sistema majoritário; a cidadania ativa e passiva; a participação do menor entre 16 e 18 anos; do analfabeto, etc. Entretanto, seriam longos e melhor cabem em outro trabalho.
Assim espero ter colaborado, trazendo a análise de algumas características do sistema adotado no Brasil e suas conseqüências.
Informações Sobre o Autor
Dircêo Torrecillas Ramos
Livre-Docente pela Universidade de São Paulo – Brasil
Professor pela EAESP – Fundação Getúlio Vargas