Resumo: O problema enfrentado ao longo deste trabalho consubstancia-se na demonstração de que um direito processual penal do inimigo possui características peculiares que não podem ser confundidas com flexibilizações de direitos e garantias individuais no processo penal. O presente estudo tem por escopo esclarecer que a flexibilização de direitos e garantias individuais no processo penal não guarda necessariamente relação com o direito processual penal do inimigo. Este que em suma à um desdobramento da tese do professor alemão Günther Jakobs: o direito penal do inimigo. Será minuciosamente explicado o que vem a ser inimigo na concepção de Jakobs como também as características de um direito processual penal do inimigo. Tenta-se constatar que uma visão romântica de um direito penal/processual penal em face da atuação de organizações criminosas cada vez mais complexas gera um risco para a própria eficácia do poder de punir do Estado consequentemente alojando a sociedade numa situação de medo e descrédito da capacidade do Estado em coibir a atuação criminosa. A conclusão que se procura chegar à que flexibilizações de direitos e garantias individuais no processo penal são posáveis sem que isso signifique violação de normas constitucionais nem signifique simbiose com o direito processual penal do inimigo. Logo havendo tais flexibilizações estas devem ser feitas por meio da via legislativa competente.
Sumário: Introdução. 1. Direitos e garantias individuais. 1.1. Diferença terminológica. 1.2. Titularidade dos direitos e garantias individuais. 2. Direito processual penal do inimigo. 2.1. Origem. 2.2. Base jusfilosófica. 3. Flexibilização de direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 3.1. Diferença entre flexibilização e supressão. 3.2. Diferença entre flexibilização legal e flexibilização casuística. 3.3. ImPossibilidade de flexibilização de direitos e garantias individuais no processo penal à luz da CF/88. 4. A flexibilização de direitos e garantias individuais no processo penal caracteriza processo penal do inimigo. 5. Conclusão.
INTRODUÇÃO
O direito processual penal do inimigo é um desdobramento da tese desenvolvida pelo professor alemão Günther Jakobs, a do direito penal do inimigo.
Embora o professor alemão faça menção a um direito processual penal do inimigo, não o desenvolve na mesma medida.
O direito processual penal do inimigo tem como característica um processo específico para indivíduos rotulados como “inimigos”; indivíduos que não merecem o mesmo tratamento processual penal dos cidadãos em geral, já que possuem comportamentos distintos daqueles que aceitam o regime constitucional vigente. Ou seja, é um processo penal diverso do aplicado como regra aos cidadãos.
Trata-se de uma tese constantemente contrarrazoada no sentido de apresentar-se como um retrocesso, na medida em que sugere tratar indivíduos de forma diversa, com a restrição, ou mesmo supressão, de direitos e garantias individuais.
A tese desenvolvida pelo Jakobs gera polêmica no âmbito das ciências criminais, não sendo poucas as vezes em que doutrinadores se manifestam contrários à ideia de um tratamento diferenciado, seja no âmbito penal, seja no processual penal, para um indivíduo tido como “inimigo”. Doutrinadores como Cancio Meliá, Damásio de Jesus, e Luiz Flávio Gomes são exemplos, dentre tantos outros, dos que rechaçam, peremptoriamente, a existência de um direito penal/processual penal do inimigo.
Jakobs não define de forma clara quem e quando vem a ser e surgir a figura do “inimigo”, apenas enumera algumas características e, em outros momentos, cita exemplos, como os dos terroristas. Sendo a expressão “terrorista”, assim como “inimigo”, carecedora de uma definição minimamente precisa.
O problema enfrentado consubstancia-se na demonstração de que um direito processual penal do inimigo possui características peculiares que não podem ser confundidas com flexibilizações de direitos e garantias individuais no processo penal. Flexibilizações estas, realizadas por meio de edições de leis com tratamento mais rigoroso sob a perspectiva mais garantista.
O objetivo deste estudo é demonstrar que a flexibilização de direitos e garantias individuais no processo penal não guarda, necessariamente, relação com o direito processual penal do inimigo. Para tanto, será abordada a tese (origem, base jusfilosófica, principais características do que vem a ser “inimigo”) do professor alemão Günther Jakobs, para, em seguida, concluir-se se flexibilizações de direitos e garantias individuais são possíveis no ordenamento jurídico pátrio, e se tal flexibilização se apresenta como resquício da tese de Jakobs.
O método aplicado é o descritivo-analítico, por intermédio do qual há a descrição de uma realidade, a partir do ordenamento pátrio hodierno, e um posicionamento crítico (analítico).
1. DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS
1.1 DIFERENÇA TERMINOLÓGICA
Direitos e garantias são termos distintos. Os primeiros se caracterizam como sendo prerrogativas em favor dos indivíduos, previstas num ordenamento jurídico. Ou seja, são prescrições positivas em favor dos indivíduos e negativas em face do Estado. Direitos existem como disposições meramente declaratórias.
As garantias, por sua vez, podem ser entendidas como meios disponíveis para assegurar a efetividade dos direitos, como instrumentos que estão disponíveis para efetivá-los. Apresentam-se como disposições assecuratórias.
Algumas garantias também são direitos, embora com caráter instrumental de proteção de outros direitos, como bem leciona Canotilho[i]. Como exemplo de garantias/direitos podemos citar o direito de acesso aos tribunais para defesa dos direitos.
Jorge Miranda diferencia direitos de garantias. Para o citado autor “os direitos representam por si só certos bens, as garantias destinam-se a assegurar a fruição desses bens; os direitos são principais, as garantias acessórias; os direitos declaram-se, as garantias estabelecem-se”[ii].
Os direitos e garantias individuais são espécies de direitos e garantias fundamentais, previstos, no ordenamento pátrio, na Constituição Federal de 1988, em seu título II. Diante do tratamento constitucional, a análise de possível flexibilização de direitos e garantias individuais no processo penal tem que ser feita à luz da Carta Magna, por força da hierarquização das normas.
Vale ressaltar que os direitos e garantias individuais não estão exclusivamente previstos na Constituição Federal de 1988, até pelo fato da própria Carta Magna, em seu art. 5°, §2°, declarar que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a república Federativa do Brasil seja parte”. O próprio texto constitucional admite a existência de direitos e garantias previstos em normas infraconstitucionais.
Como exemplo de direto individual oriundo de fonte diversa da Constituição, podemos citar a Súmula Vinculante de n°. 25, que tem a seguinte redação: “é ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito”.
A proibição de prisão de depositário infiel, prevista na mencionada Súmula Vinculante, apresenta-se, inequivocamente, como um direito individual. A redação da Súmula veio pacificar um aparente conflito entre o art. 7°, 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) e o art. 5°, LXVII, da CF/88.
O art. 7°, 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos[iii] (Pacto de São José da Costa Rica) prevê uma única exceção à proibição de detenção por dívida, qual seja, a decorrente de inadimplemento da obrigação de alimentar. A Constituição Federal de 1988, por sua vez, traz na redação do art. 5°, inciso LXVII, duas exceções à proibição de detenção civil por dívida, quais sejam, a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel.
Daí subsistiu a dúvida: pode ou não a prisão do depositário infiel? A Constituição prevê que sim, a Convenção Americana de Direitos Humanos, que não.
O entendimento que prevaleceu no julgamento do Recurso extraordinário nº 349.703-1/RS[iv] foi no sentido de que a previsão constitucional de prisão do depositário infiel resta adormecida, não revogada, uma vez que o mencionado tratado ingressou no ordenamento jurídico pátrio num status de supralegalidade – leia-se: abaixo da Constituição, mas acima das demais leis infraconstitucionais.
1.2 TITULARIDADE DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS
Os titulares dos direitos e garantias individuais são todos (brasileiros e estrangeiros). O art. 5°, caput, da CF/88 assegura que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
Como bem acentua Alexandre de Moraes, a palavra “residente”, presente no texto do art. 5°, caput, da CF/88, deve ser interpretado de forma sistêmica. Veja-se o que leciona o referido doutrinador:
“Observe-se, porém, que a expressão residentes no Brasil deve ser interpretada no sentido de que a Carta Federal só pode assegurar a validade e gozo dos direitos fundamentais dentro do território nacional, não excluindo, pois, o estrangeiro em trânsito pelo território nacional, que possui igualmente acesso às ações, como o mandado de segurança e demais remédios constitucionais. Igualmente, as pessoas jurídicas são beneficiárias dos direitos e garantias individuais, pois reconhece-se às associações o direito à existência, o que de nada adiantaria se fosse possível excluí-las de todos os seus demais direitos. Dessa forma, os direitos enunciados e garantidos pela constituição são de brasileiros, pessoas físicas e jurídicas”.[v]
Caso interprete-se de forma literal o texto do art. 5°, caput, da CF/88, a norma depreendida será de que tais direitos ali elencados são apenas dos brasileiros e estrangeiros residentes no país, o que causaria uma série de perguntas, tais como: e o estrangeiro de passagem pelo Brasil, não teria direito à vida, à segurança? O estrangeiro que se encontra no território nacional de forma irregular não goza de tais direitos?
Como se percebe, a interpretação do artigo em comento requer uma sensibilidade maior do que a presente numa interpretação literal da lei. Corroborando o entendimento, cumpre-se invocar os ensinamentos de José Afonso da Silva:
“Viu-se que o art. 5° da Constituição assegura os direitos ali indicados tanto aos brasileiros como aos estrangeiros residentes no País.
A propósito, cabem três indagações: sendo direitos e garantias individuais, pessoas jurídicas não os auferem a nenhum? Aos estrangeiros residentes só se reconhecem esses direitos e garantias constantes daquele artigo? Os estrangeiros não residentes, mesmo estando no País, estão excluídos da incidência de qualquer deles ou delas?”[vi] (grifos do autor).
O respeitável doutrinador vai além, faz uma análise mais profunda quanto à destinação de tais direitos às pessoas jurídicas e aos estrangeiros não residentes no País:
“[…] a pesquisa no texto constitucional mostra que vários dos direitos arrolados nos incisos do art. 5° se estendem às pessoas jurídicas, tais como o princípio da isonomia, o princípio da legalidade, o direito de resposta, o direito de propriedade, o sigilo da correspondência e das comunicações em geral… Há até direito que é próprio de pessoa jurídica , como o direito a propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos (logotipos, fantasias, p. ex.). Mas as empresas de capital estrangeiro, incluindo as multinacionais, não se beneficiam desses direitos e garantias constitucionais individuais, salvo, no que tange a marcas, nomes e signos, proteção de direito internacional.[…]
Se a Constituição aponta os destinatários desses direitos, isso há de ter consequências normativas. Isso não quer dizer que os estrangeiros não residentes, quando regularmente se encontrem no território nacional, possam sofrer o arbítrio, e não disponham de qualquer meio, incluindo os jurisdicionais, para tutelar situações subjetivas”.[vii]
Apesar da interpretação um pouco mais restritiva de José Afonso da Silva, sobretudo quando reconhece que alguns direitos são extensíveis aos estrangeiros não residentes que se encontrem em situação regular no território nacional, não há como excluir dentre os destinatários o estrangeiro em situação irregular. É inimaginável negar-lhes direitos, como, por exemplo, a integridade física e o devido processo legal, mesmo que seja para extraditá-los para seus países de origem.
Sendo assim, resta, como razoável, a extensão de direitos e garantias individuais às pessoas jurídicas e aos estrangeiros não residentes no País.
2. DIREITO PROCESSUAL PENAL DO INIMIGO
2.1 ORIGEM
O Direito processual penal do inimigo é um desdobramento da tese criada pelo autor alemão Günther Jakobs, a do Direito penal do inimigo. Tese esta que provocou e ainda provoca debates, motivados por sua proposta contrária à evolução do direito penal no cenário moderno.
Para o referido autor deve existir dois tipos de direito penal: (i) um para o cidadão convencional, que respeita as regras impostas pelo Estado, para uma harmonização social apta a possibilitar o desenvolvimento natural da sociedade; (ii) outro para aquele que, de forma reiterada, não se pauta pelas regras pré-estabelecidas, apresentando-se como um risco para a sociedade, já que infringe corriqueiramente as normas, afastando-se da conduta média que se espera de um cidadão convencional, tornando-se um inimigo da sociedade e do Estado.
A tese do direito penal do inimigo[viii], criada por Jakobs, prevê regras penais e processuais penais diversas para aqueles considerados como inimigos, em que a aplicação de sanções pode se dar de forma antecipada. O indivíduo tido como inimigo pode ser submetido a um processo penal, porém, com direitos e garantias substancialmente restringidos, quando não suprimidos totalmente.
Para uma melhor compreensão de como e por que surgiu a teoria do direito penal do inimigo, faz-se necessário uma análise de fatos históricos, como também uma análise doutrinária da diferença entre direito penal do fato e direito penal do autor.
A humanidade experimentou momentos que, se possível, melhor seria que fossem apagados do mundo dos fatos, entre os quais estão a primeira e segunda guerra mundial. A Segunda Guerra teve em suas origens o nascimento de um regime que tomou por premissa o suposto desnivelamento entre seres humanos, julgando-se alguns (judeus, homossexuais, ciganos, entre outros) como seres inferiores, que não gozavam dos mesmos direitos e garantias dos “eleitos como raça superior, digna de existir”.
Conforme descreve Rogério Greco[ix], quando na Alemanha, em meados de 1933, o partido nacional-socialista venceu as eleições e chegou ao poder, houve o início de uma série de promessas feitas nas campanhas eleitorais. Continua, mencionando Francisco Muños Conde, que com Adolf Hitler no poder, o partido nacional-socialista começou a “reorganizar” o ordenamento alemão por meio de projetos com finalidades obscuras, onde alguns indivíduos seriam punidos independentemente da prática de qualquer conduta, por exemplo, a castração de homossexuais e a prisão por tempo indeterminado de alcoólatras e de prostitutas.
Para entendermos de forma mais clara essa seleção abstrata de indivíduos considerados estranhos – punidos pelo o que são e não pelo o que praticaram -, faremos uma diferenciação entre Direito penal do fato e Direito penal do autor, a posteriori.
2.2 BASE JUSFILOSÓFICA
A expressão “inimigo”, utilizada na tese do professor de Bonn[x], remete a autores como Rousseau, Fichte, Hobbes e Kant.
Para Rousseau e Fichte, na concepção de Jakobs, quando um indivíduo pratica conduta considerada como crime, viola o próprio Estado, pois viola um contrato social que fundamenta a própria existência do Estado. Citando Rousseau e Fichte, aduz Jakobs:
“São especialmente aqueles autores que fundamentam o Estado de modo estrito, mediante um contato, entendem o delito no sentido de que o delinquente (sic) infringe o contrato, de maneira que já não participa dos benefícios deste: a partir desse momento, já não vive com os demais dentro de uma mesma relação jurídica. Em correspondência com isso, afirma Rousseau que qualquer malfeitor que ataque o direito social deixa de ser membro do Estado, posto que se encontra em guerra com este, como demonstra a pena pronunciada contra o malfeitor. A consequência diz assim: ao culpado se lhe faz morrer mais como inimigo que como cidadão. De modo similar, argumenta Fitchte: quem abandona o contrato cidadão em um ponto em que no contrato se contava com sua prudência, seja de modo voluntário ou por imprevisão, em sentido estrito perde todos os seus direitos como cidadão e como ser humano, e passa a um estado de ausência completa de direitos”.[xi]
Como bem lembra o autor, para Rousseau e Fichte, o indivíduo que comete ato considerado crime, ou seja, que se desvia, mesmo que uma única vez, da conduta esperada por um cidadão, torna-se inimigo do Estado, por violar um contrato pré-estabelecido. Porém, não é nesse sentido que perfilha o professor alemão, preferindo distinguir o criminoso do inimigo. Para Jakobs, o cidadão comete crimes, sem, contudo, pôr em risco a própria figura do Estado, permanecendo com a qualidade de cidadão, já para ser considerado inimigo, o indivíduo deve adotar uma postura da não aceitação da legítima existência do Estado, atentando de maneira a desestabilizar este por meio de reiteradas condutas. Ou seja, não é um único ato, como pensava Rousseau e Fichte, que vai extirpar do indivíduo a condição de cidadão.
A distinção entre delinquente e inimigo, sustentada por Jakobs, tem como fonte ensinamentos de autores como Hobbes e Kant. Para Hobbes, segundo o professor de Bonn, o delinquente mantém seu status de cidadão, não podendo por si mesmo eliminar tal condição, sendo esta a regra – com exceção de casos como uma rebelião, que se caracteriza como uma rescisão da submissão dos indivíduos ao Estado, uma recaída ao estado de natureza, onde inexiste a figura do estado e se é permitido tudo.[xii]
Nas palavras de Jakobs, Kant sustenta que qualquer indivíduo tem o direito de obrigar que outro adira a uma constituição cidadã, afastando-se do estado de natureza (fictício) e aderindo a um estado estatal e, caso determinado indivíduo ou povo não aceite se submeter ao estado estatal, pode ser retirado do convívio social e expulso, não sendo tratado como pessoa, mas como inimigo.[xiii]
Influenciado principalmente por Hobbes e Kant, defende o professor alemão que, quando determinado indivíduo opta por não trilhar uma vida em convergência com a conduta de cidadão – desfrutando de direitos e cumprindo seus deveres -, é como se ele negasse sua própria condição de cidadão, retrocedendo ao estado de natureza imaginado por Hobbes, que age segundo sua própria consciência, sem reconhecer qualquer regra erga omnes.
Quando um cidadão, de maneira repetida, não respeita as condições postas pelo Estado, é como se estivesse abrindo mão da própria condição de cidadão, violando o contrato social, passando, por conseguinte, a ser regido por regras diversas das pré-estabelecidas.
Desta feita, para que um indivíduo seja inserido no conceito de inimigo, alguns requisitos devem ser preenchidos: (i) condutas criminosas reiteradas, (ii) não submissão a um Estado constitucional, e, (iii) práticas que afrontem o próprio Estado, sua existência.
Tais requisitos são importantes para que haja um marco mínimo, capaz de separar os conceitos de criminoso e inimigo. O criminoso, mesmo atuando de forma reiterada em violação às normas legais, não afronta a própria existência do Estado. Apesar de seus atos causarem incômodo à sociedade, não a amedrontam como um todo. Ademais, o criminoso submete-se às sanções impostas pelo Estado. Exemplificando, imaginemos um determinado cidadão que comete furtos de forma permanente e que, vez por outra, é flagrado e preso por tais delitos, cumpre a pena imposta e volta ao convívio da sociedade, porém, sem abandonar as práticas ilícitas. Pergunta-se, tal indivíduo deve ser considerado inimigo, segundo a tese de Jakobs? Após minuciosa leitura da obra Direito penal do inimigo: noções e críticas, entendemos que não. Tal indivíduo, mencionado na situação hipotética, não pode ser considerado inimigo, por faltar nas suas condutas a presença de um dos requisitos: condutas que ponham em risco a própria existência do Estado.
A missão de enquadrar determinado indivíduo como inimigo não é tão fácil e nem se pode estabelecer de forma abstrata, mas, caso a caso.
O próprio Jakobs não delimita de forma muito clara quem são aqueles considerados inimigos, o que dá ensejo a interpretações equivocadas de sua tese, muitas das vezes deturpando-a. Um exemplo esclarecedor de indivíduo que pode ser considerado como inimigo é o terrorista. Este que não aceita as regras legais e as rechaça por princípio, tendo em vista ser seu objetivo desestabilizar a ordem estatal.
O escritor alemão sustenta que quando um indivíduo perde a qualidade de cidadão e passa a ser considerado uma ameaça à ordem jurídica, um “inimigo”, não se espera o cometimento por parte deste, de algum ato material, podendo haver uma interceptação em estado prévio, a quem se combate por sua periculosidade.
O inimigo é tido como um risco que deve ser eliminado.
Não obstante todas as considerações feitas até aqui, algumas perguntas subsistem, de forma a exigir tantas outras reflexões. Afinal de contas, quem pode ser considerado inimigo? Qual o momento em que o cidadão perde esta condição e passa a ser um perigo? É necessário o cometimento de condutas reiteradas? Pode existir a metamorfose do status de criminoso para o de inimigo com base nas mesmas condutas criminosas? Analisemos cada uma dessas perguntas.
Já foi analisado neste subitem que não se apresenta como tarefa simples enquadrar determinado indivíduo no status de inimigo, não havendo delimitação clara nem mesmo por parte do criador da tese do direito penal do inimigo.
Não há um conceito formulado, mas conteúdo para caracterizá-lo. O próprio autor traz como exemplo de um potencial inimigo a figura do terrorista, que não se submete à ordem constitucional, agindo de forma violenta contra a estabilidade (curto prazo) e existência (longo prazo) de determinado Estado. Neste exemplo verifica-se, de maneira aparentemente clara, que o simples fato do indivíduo ser terrorista, participando de alguma organização, ou mesmo ostentando tal condição de maneira isolada, é o suficiente para ser considerado como inimigo. Aqui, o direito penal do inimigo se confunde com o direito penal do autor, bastando o indivíduo ter determinada qualidade (por exemplo: ser terrorista) para se enquadrar no status de inimigo. É o que vem sendo adotado, em regra, pelos EUA na “guerra ao terror”, em que o perigo (terroristas e organizações terroristas) é tratado de forma diferenciada dos demais crimes. O uso de veículos aéreos não tripulados, vulgarmente conhecidos como “drones”, são comumente utilizados no “combate ao terror”, quando supostos terroristas são sancionados (executados) sem serem submetidos a sequer um esboço de instrução processual penal para apurar suas condutas.
Deixando de lado o exemplo do terrorista, e pensando, por exemplo, num indivíduo chefe de uma organização criminosa que comanda boa parte do tráfico de drogas de um país, como o Brasil, que põe em risco instituições do Estado, a exemplo do Poder Judiciário, pergunta-se: tal indivíduo pode ser considerado um inimigo segundo a tese de Jakobs? Entendemos que sim, já que existem requisitos como: não submissão à ordem constitucional, práticas ilícitas reiteradas e, risco à existência do próprio Estado. Todavia, a dificuldade reside em saber em qual momento será considerado como inimigo. Na situação hipotética do terrorista, o status de inimigo nasce concomitante ao da figura do terrorista, o que não é o caso do chefe de uma organização criminosa tomada como exemplo. No caso do terrorista, sua periculosidade é abstrata, já no do chefe de uma organização criminosa, deve existir alguma prática que eleve o status de criminoso para o de inimigo, como, por exemplo, o assassinato de juízes, promotores, secretários de segurança pública, entre outros.
No nosso entender, em resposta a última pergunta posta, não há como haver a metamorfose da condição de criminoso para a de inimigo pelo cometimento das mesmas práticas.
Jakobs, influenciado pelos escritos de Hobbes e Kant, diferencia criminoso de inimigo. O criminoso pratica condutas ilícitas, sem, contudo, pôr em risco a existência do Estado. Retomemos um exemplo de outrora, de um indivíduo que tem por princípio a prática de furtos – eleita como ocupação habitual. Mesmo que tal indivíduo venha a ser preso e punido (encarcerado), e depois retome às mesmas práticas, não vislumbramos tal indivíduo na condição de inimigo, segundo a teoria de Jakobs. Mesmo na hipótese do indivíduo permanecer com tal comportamento ocupacional (prática de furtos) pelo resto de sua vida, não há a presença de qualquer risco às instituições que materializam o Estado. Não sendo, portanto, suficiente para elevá-lo à condição de inimigo. Seguindo tal raciocínio, defendemos a impossibilidade de existir uma metamorfose da condição de criminoso para a de inimigo pela repetibilidade da conduta ilícita.
3 FLEXIBILIZAÇÃO DE DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO
3.1 DIFERENÇA ENTRE FLEXIBILIZAÇÃO E SUPRESSÃO
Já foi dito que os direitos e garantias individuais são conquistas adquiridas com muito esforço, resistência e mártires. Daí porque qualquer alteração no sentido de minimizar essas conquistas causarem enormes debates e resistências. Não olvidemos que o Direito, como ciência que é, acompanha a evolução da sociedade, com o fim maior que é o equilíbrio social em detrimento dos conflitos oriundos pela vida no contexto social. A eficácia ou não do Direito posto deixemos para o campo da sociologia, cumprindo entendermos que um tipo penal nasce para coibir determinada conduta não tolerada pela sociedade e que mereça a tutela do direito penal – última ratio.
A partir do momento que direitos e garantias não se prestam mais ao fim originariamente proposto, cabe sua reanálise.
Contudo, não confundamos flexibilização com supressão, aquela segue no sentido de diminuição de algo, temporária ou definitivamente, já a supressão nada mais é que a extinção, a retirada de uma realidade atual.
A flexibilização de um direito ou garantia seria uma menor incidência em favor de determinada pessoa que se insere em circunstância predeterminada. Vejamos como exemplo o prazo para conclusão do inquérito policial quando o indivíduo estiver preso, que é de 10 (dez) dias, segundo o que preconiza o art. 10, do CPP: “o inquérito deverá terminar no prazo de 10 dias, se o indiciado tiver sido preso em flagrante, ou estiver preso preventivamente, contado o prazo, nesta hipótese, a partir do dia em que se executar a ordem de prisão, ou no prazo de 30 dias, quando estiver solto, mediante fiança ou sem ela”.
O texto é expresso em determinar que o prazo de conclusão do inquérito é de 10 (dez) dias se o indiciado estiver preso. Caso a prisão ultrapasse o prazo pré-estabelecido, sem que haja a conversão em prisão preventiva, cabe a incidência de uma garantia para assegurar o direito de liberdade de locomoção, garantia prevista no art. 5°, LXVIII, da CF/88 – “conceder-se-á ‘habeas-corpus’ sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”.
Por sua vez, a Lei n°. 11.343/06 (lei de drogas) possui prazo diferenciado do previsto no Código de Processo Penal, sendo de 30 dias o prazo para conclusão do inquérito policial caso o indiciado esteja preso. Vejamos a redação do art. 51 da referida lei: “o inquérito policial será concluído no prazo de 30 (trinta) dias, se o indiciado estiver preso, e de 90 (noventa) dias, quando solto”.
Na comparação entre os prazos constantes no CPP e na Lei n°. 11.343/06, resta claro que houve uma flexibilização do direito do indiciado responder em liberdade. O prazo ordinário de 10 (dez) dias para a conclusão do inquérito policial quando o indiciado estiver preso foi elastecido, por força da lei de drogas, em detrimento do indiciado por suposta prática de condutas específicas, inseridas na Lei n°. 11.343/06.
3.2 DIFERENÇA ENTRE FLEXIBILIZAÇÃO LEGAL E FLEXIBILIZAÇÃO CASUÍSTICA
A flexibilização de direitos e garantias – tomando-se por base a sistemática jurídica brasileira, que tem como Lei Maior a Constituição Federal – deve ter previsão legal (leia-se: deve ter sido aprovada pelo Poder Legislativo, já que se trata de matéria processual – art. 22, da CF/88). Não podendo o órgão julgador, segundo sua consciência, sem qualquer amparo legal, reduzir ou suprimir direitos e garantias assegurados em lei.
Como já foi dito anteriormente, o Direito evolui de acordo com as mudanças da sociedade. Caso um direito e garantia esteja em confronto com a finalidade de todo um ordenamento jurídico, não há razão para a sua aplicação, podendo ser mitigada (flexibilizada) em face de outro direito ou de outra garantia de mesmo patamar constitucional, desde que seguida as regras legais.
O princípio da legalidade é um dos pilares que sustentam todo o conjunto normativo pátrio, previsto na CF/88, no art. 5°, II, como a seguinte redação: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Por força do mencionado princípio, entendemos não ser possível uma flexibilização de direitos e garantias sem a edição de uma lei, como exigido no art. 5°, II, da Constituição Federal.
A flexibilização casuística segue entendimento oposto ao da flexibilização legal, sendo aquela sem amparo legal e sem respeito ao princípio da legalidade. Algo incompatível à luz da Constituição.
Por sua vez, a extinção seria a supressão de um direito ou de uma garantia do próprio ordenamento.
3.3 (IM)POSSIBILIDADE DE FLEXIBILIZAÇÃO DE DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS NO PROCESSO PENAL À LUZ DA CF/88
Não há direito absoluto, ou seja, que não possa sofrer ponderação em face de outro de mesma importância. A flexibilização de um direito ou garantia, desde que respeitado o princípio da legalidade, é possível. Existe forte tendência de se resistir a uma mínima proposta de flexibilização, surgindo, de imediato, vozes equiparando tais medidas ao direito penal do inimigo. Contudo, não caminhamos nesse sentido. Perfilhamos a doutrina de que direitos e garantias individuais não podem ser suprimidas, mas flexibilizadas em favor de interesses tão importantes quanto.
O art. 60, §4, IV, da CF/88, tem o seguinte texto:
“A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
§ 4º – Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (…)
IV – os direitos e garantias individuais”
Como se pode notar, os direitos e garantias individuais receberam tratamento de excelência pelo texto constitucional, elevando-os ao status de cláusula pétrea. O que não significa aplicação absoluta. Um exemplo bastante esclarecedor da possibilidade de flexibilização legal de um direito individual é o previsto no art. 53, da Lei n°. 7.210/84 (lei de execuções penais), que prevê dentre as sanções disciplinares o isolamento do preso, que significa restrições de, por exemplo, não receber visitas durante o período da sanção. Por outro lado, a CF/88, no art. 5°, LXIII, descreve que é direito do preso a assistência da família. O direito do preso de ser assistido por sua respectiva família foi flexibilizado pela restrição de visitas durante o período que o preso estiver cumprindo sanção de isolamento, nos termos do art. 53, da Lei de Execuções Penais.
Percebamos que o direito de assistência da família inclui o de ser visitado por esta. Percebamos ainda que, no cumprimento de sanção por falta disciplinar, o preso fica temporariamente sem direito às visitas, não há aqui uma supressão do direito individual de assistência pela família, prevista no art. 5°, LXIII, da CF/88, mas uma flexibilização de tal direito.
Corroborando o inicialmente exposto neste subitem, entendemos perfeitamente possível a flexibilização de direitos e garantias individuais, desde que em respeito ao o sistema constitucional e sob o fundamento de que não há direito ou garantia absoluto.
4. A FLEXIBILIZAÇÃO DE DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS NO PROCESSO PENAL CARACTERIZA PROCESSO PENAL DO INIMIGO?
A tese do professor alemão Günther Jakobs e seus respectivos desdobramentos, assim como a flexibilização de direitos e garantias individuais, foram assuntos minuciosamente tratados no presente trabalho. Não por acaso. Mas com uma questão bem definida: a flexibilização de direitos e garantias individuais no processo penal caracterizaria um direito processual penal do inimigo?
Já abordamos e comprovamos a importância dos direitos e garantias individuais frente ao poder/dever de punir do Estado. Tratam-se de conquistas conseguidas com demasiado esforço da sociedade e, inclusive, com a vida de mártires. Porém, reitere-se, não são direitos e garantias absolutos. O ordenamento jurídico é um todo sistematicamente harmonizado com uma finalidade: o de possibilitar a vida em sociedade, impondo direitos e deveres aos cidadãos. Os direitos e garantias individuais não se elevam em importância em face do direito coletivo, possuindo ambos a mesma importância.
Os direitos e garantias, sejam individuais, sejam coletivos, devem coexistir, podendo haver uma ponderação dos bens jurídicos, de modo que não haja um total sacrifício de um ou de outro.
Os direitos e garantias individuais possuem suma importância, sobretudo para aquele que se encontra encarcerado. Porém, tais direitos e garantias encontram limites em outros direitos e garantias de mesma importância. Nesse momento, oportuno se faz as lúcidas lições de Alexandre de Moraes, contida na sua obra já mencionada no presente trabalho. Vejamos os ensinamentos do eminente doutrinador:
“Os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal, portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna (princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas).
Desta forma, quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se de princípio da concordância prática ou da harmonização, de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual (contradição dos princípios), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com sua finalidade precípua”.[xiv]
A flexibilização de um direito ou garantia individual não caracteriza necessariamente um retrocesso, deve-se analisar o contexto social em que se dá tal flexibilização. Conforme o já exposto alhures, o direito evolui acompanhando a evolução da sociedade. Não foram poucas as vezes em que a humanidade experimentou momentos de instabilidade político-social, que geraram repercussões na forma de agir dos cidadãos. O direito penal, como ramo do direito que possui sanções mais drásticas a um indivíduo, tem atuação em última alternativa, quando outros ramos não são suficientes para dirimir os conflitos que se apresentam.
A legislação em matéria penal/processual penal requer uma reflexão por parte do legislador de intensa dedicação, sob pena de se agravar uma situação existente.
O direito penal/processual penal está longe de ser a solução eficaz frente aos delitos que são praticados diariamente, mas sim, um “mal” necessário. “Mal”, pelo fato de inexistir sentimento de satisfação em encarcerar um indivíduo pela prática de um delito. A restrição da liberdade de um indivíduo que venha a praticar um crime gera consequências para a própria sociedade, pois, na maioria dos casos, trata-se de um cidadão(ã) que possui uma família; família que sofre o abalo com a prisão de um de seus membros, o que pode gerar verdadeiro desequilíbrio no núcleo familiar. Lembremos que uma sociedade é composta por famílias.
O direito penal/processual penal brasileiro tem experimentado possibilidades de sanções diversas da prisão, sobretudo com a edição da Lei n°. 9.099/95 (lei dos juizados especiais), reservando o encarceramento, seja a prisão pena, seja a prisão cautelar (processual), para casos excepcionais.
O sonho de uma sociedade justa, igualitária e com baixo grau de criminalidade sempre será buscado pela coletividade. Todavia, a realidade, mormente a brasileira, mostra-se bem distante da sociedade que desejamos. A nação brasileira tem vivenciado crescente aumento da criminalidade nas últimas décadas, que evolui a cada dia, desafiando os governantes e parlamentares. Aqueles em planos de segurança e combate efetivo, os últimos em elaborar tipos penais e agravar penas. Medidas que nem sempre surtem o efeito esperado, continuando a sociedade amedrontada, fazendo de suas residências verdadeiros refúgios, cercados por grades e demais instrumentos de proteção contra a forte atuação criminosa.
No apogeu da criminalidade estão as organizações criminosas, que se estruturam com base numa hierarquia própria, trilhando uma realidade paralela da qual está inserida a sociedade. As organizações criminosas de maior destaque no cenário nacional e geradoras de maior preocupação para os governos em âmbito nacional e estadual são o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho. A primeira de origem paulista, a segunda, carioca. Tais organizações cresceram de tal forma que suas atuações ultrapassaram as fronteiras dos respectivos estados de origem.
No caso do estado do Rio de Janeiro, o Comando Vermelho é quem dita as regras em determinadas localidades, ficando o Estado sem atuação, sobretudo, quando se trata de segurança pública. São verdadeiros territórios dominados pelo crime, onde a circulação de armas e drogas é fato ordinário, e as sanções por condutas contrárias à vontade imposta pela organização criminosa resumem-se a execuções sumárias.
Numa tentativa de mudar tal realidade, principalmente pelos eventos como copa do mundo e olimpíadas, que o Brasil sediará em 2014 e 2016, respectivamente, o Estado do Rio de Janeiro tem adotado medidas de segurança pública de recuperação de territórios, até então dominados por organizações criminosas. Medidas que tem como maior destaque as Unidades de Polícia Pacificadora – UPP.
No Estado de São Paulo, a realidade da atuação do crime não é diferente. Com a atuação da maior organização criminosa do país, o PCC, o Estado tem encontrado, há décadas, dificuldades extremas de controle da atuação da referida organização. Não poucas vezes, o Estado tem “ficado de joelhos” frente às ações da organização. No ano de 2006, o PCC gerou uma sensação de descontrole e terror no estado de São Paulo. Conforme dados do jornal O Estado de São Paulo[xv] – O Estadão -, baseados num relatório desenvolvido pelo Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de janeiro, entre 12 e 21 de maio, cerca de 564 pessoas foram mortas por armas de fogo. No mesmo ano, inúmeros ataques foram registrados, cujos principais alvos eram ônibus, delegacias, agentes de segurança pública e prédios públicos. Quiçá, o ano de 2006, tenha sido o de maior afronta do PCC em face do Estado. A força da referida organização criminosa tem sido mostrada com certa frequência, bastando para sua aparição, uma intensificação do combate por parte das forças de segurança pública. No ano de 2012, segundo notícias do jornal O Estado de São Paulo[xvi], em 11 (onze) meses, 106 (cento e seis) policiais foram mortos, supostamente, a maioria por ordens da cúpula do PCC.
Como se percebe, tais organizações criminosas recusam qualquer submissão à ordem constitucional, reagindo com extrema violência às tentativas do Estado em combater o crime organizado. Segundo a tese de Jakobs, seria o caso de aplicação de um direito penal/processual penal específico para os integrantes de tais organizações, já que se tratam de indivíduos que não aceitam as regras legais impostas pelo Estado e impõem uma realidade diversa da legalmente constituída, além de atacarem a própria existência do Estado.
Contudo, a sistemática jurídica pátria, que tem como lei maior a Constituição Federal, não permite a adoção de um direito penal/processual penal do inimigo, o que não significa, registre-se, a impossibilidade de medidas legislativas mais rígidas no combate ao crime organizado. Medidas como as que já foram analisadas, a exemplo das leis de números 12.850/13 (lei trata do crime organizado), 11.343/11 (lei de drogas), 7.960/89 (prisão temporária), 8.072/90 (crimes hediondos), dentre outras.
Um tratamento penal/processual penal mais rigoroso não significa a adoção de um direito penal/processual penal do inimigo. Este é um direito mais evidente; significa a existência de um ordenamento repressivo diferenciado para os intitulados como inimigos.
Um prazo mais dilatado para a prisão temporária de um indivíduo que pratica uma conduta, por exemplo, prevista no art. 33 da Lei de drogas, não pode ser inserido como exemplo de resquício da tese de Jakobs, até porque, qualquer indivíduo que cometa a conduta prevista no art. 33, da lei de drogas, estará sujeito a uma prisão temporária de 30 (trinta) dias.
A flexibilização de um direito ou garantia individual no processo penal, por meio de uma lei editada pelo órgão competente – o que, na realidade brasileira seria o poder legislativo federal -, é medida possível e legal à luz da Constituição, não podendo haver, sob pena de violação à clausula pétrea (art. 60, § 4°, IV, da CF/88), a supressão de um direito ou garantia individual. Flexibilização, como já foi objeto de análise neste trabalho, não se confunde com supressão. Significa uma restrição de um direito ou garantia pré-existente em favor de um direito maior, preponderante.
Um direito ou garantia individual encontra limite num outro direito ou garantia.
Um exemplo de flexibilização de um direito individual que poderia existir sem que houvesse afronta à Constituição Federal seria a possibilidade de ocultação da identidade física e de dados pessoais daquelas pessoas que sejam arroladas como testemunhas contra organizações criminosas. O art. 217 do CPP prevê a possibilidade da retirada do réu da presença da testemunha, durante a inquirição desta, quando a presença daquele, causar humilhação, temor, ou sério constrangimento, desde que não seja possível a inquirição por vídeo conferência. Vejamos o dispositivo, ipisis litteris:
“Art. 217, CPP. Se o juiz verificar que a presença do réu poderá causar humilhação, temor, ou sério constrangimento à testemunha ou ao ofendido, de modo que prejudique a verdade do depoimento, fará a inquirição por videoconferência e, somente na impossibilidade dessa forma, determinará a retirada do réu, prosseguindo na inquirição, com a presença do seu defensor”.
Quando os réus forem membros de organizações criminosas, fato constatado ao longo da persecução penal, a periculosidade é presumida. Não há dúvidas do risco de morte que pessoas são submetidas quando arroladas como testemunhas contra tais organizações. Não é incomum a “queima de arquivo”, que nada mais é que a destruição de tudo que sirva como meio de prova, inclusive a vida de pessoas. Exigir a identificação de tais testemunhas gera duas situações: (i) a testemunha, revestida de coragem excepcional, depõe o que sabe, mesmo sob efetivo risco de morte ou (ii) omite a verdade por compreender as consequências que lhe esperam caso deponha o que sabe. Na maioria dos casos a segunda situação se apresenta.
Não seria nenhuma supressão de garantia ou direito individual a ocultação da identidade daquele que é arrolado como testemunha em tal situação, como é o caso daquele que depõe contra membros de organizações criminosas. De um lado está o direito à ampla defesa e ao contraditório (o conhecimento da identidade física e de dados pessoais da testemunha), do outro, o direito à segurança individual (a ocultação da identidade física e de dados pessoais da testemunha), que, em última análise, é o próprio direito à vida.
Apesar do art. 217, do CPP, prever a possibilidade da retirada do réu, desde que observados os requisitos ali presentes, a inquirição da testemunha será presenciada em qualquer caso pelo o defensor do acusado, o que em termos práticos expõe a testemunha aos mesmos perigos.
No processo penal, o réu defende-se dos fatos a si imputados, de forma que, mesmo diante do não conhecimento da identidade física, nem dos dados pessoais da testemunha que depõe em seu desfavor, o réu tem todo o direito de se defender do depoimento prestado, já que o processo se desenvolve sob o princípio do contraditório – art. 5º, LV, da CF/88.
A privação do réu e de seu respectivo defensor de conhecerem a identidade física e de dados pessoais da testemunha, restaria por destituí-lo do poder de contraditar esta, direito previsto no art. 214 do diploma processual penal, vejamos:
“Art. 214, CPP. Antes de iniciado o depoimento, as partes poderão contraditar a testemunha ou argüir circunstâncias ou defeitos, que a tornem suspeita de parcialidade, ou indigna de fé. O juiz fará consignar a contradita ou argüição e a resposta da testemunha, mas só excluirá a testemunha ou não Ihe deferirá compromisso nos casos previstos nos arts. 207 e 208”.
O afastamento do direito de contraditar a testemunha seria um álibi para aqueles que enxergam numa mínima flexibilização de direitos e garantias individuais a presença do direito penal do inimigo. Todavia, consigne-se que não se estaria privando o réu da ampla defesa e do contraditório, mas apenas mitigando o direito do acusado de ter o conhecimento de dados da testemunha, porém, disponibilizando-o todo o interrogatório, reduzido a termo ou por gravação sonora.
Tal flexibilização – privação do acusado e do seu respectivo defensor do conhecimento da identidade física e de dados pessoais da testemunha – não guarda relação com o direito processual penal do inimigo, apenas medida adotada diante de situações de grande complexidade, como é o caso de um processo penal no qual figuram como réus membros de organizações criminosas. Lembrando sempre que tal flexibilização não pode se dar de forma casuística, puramente discricionária do magistrado, mas, mediante lei.
Diante do exposto, entendemos ser possível uma flexibilização de direitos e garantias individuais no âmbito do processo penal, sem que isto caracterize a presença de um direito processual penal do inimigo.
A flexibilização de um direito ou garantia individual pode ser aceita, sobretudo quando esteja em rota de colisão com outro direito ou garantia de mesmo patamar. Interessante notar que não se trata de uma flexibilização sem fundamento, mas sim em respeito a todo um conjunto normativo.
Na situação hipotética exemplificada alhures, a testemunha que é arrolada para depor sobre fatos que envolvam membros de organizações criminosas, possui o direito individual à segurança pessoal, à preservação de sua integridade física e, em último desdobramento, o direito à vida. Este último, que estaria em sério comprometimento no caso hipotético. Por outro lado, está o direito à ampla defesa e ao contraditório, assegurado ao acusado. Diante do conflito de direitos, o que há é ponderação de valores, de modo que um não suprima totalmente o outro. No caso da testemunha, a exposição de sua identidade significa verdadeira sentença de morte, ou seja, a supressão total do direito à vida. Já o não conhecimento por parte do acusado e de seu respectivo defensor da identidade física e de dados pessoais da testemunha não significa a supressão total do direito à ampla defesa e ao contraditório, mas apenas uma flexibilização de tal direito.
No direito processual penal do inimigo os direitos e garantias são suprimidos, sendo o acusado submetido a um conjunto de regras distinto do qual são submetidos os cidadãos comuns.
No processo penal brasileiro não há regras distintas para cidadãos e inimigos, havendo, sim, flexibilizações em face de acusados que pratiquem determinadas condutas, como são os casos (i) da prisão temporária com prazo maior (30 dias), para aqueles que pratiquem condutas previstas na Lei de drogas, (i) para a progressão de regime para os condenados em crimes hediondos (dois quintos da pena, quando primário e três quintos, quando reincidente), dentre outros.
O que há no âmbito do processo penal pátrio são flexibilizações legais, com base em condutas consideradas de maior reprovabilidade, não importando a origem, classe social, ou modo de vida do acusado.
Desta forma, entendemos existir flexibilizações de direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro, sem, contudo, a presença das características da tese do professor alemão Günther Jakobs, relativa ao direito processual penal do inimigo.
CONCLUSÃO
A má interpretação feita entre a flexibilização de direitos e garantias individuais no processo penal e o direito processual penal do inimigo gera uma consequência indesejada, que é a cristalização de tais direitos e garantias. De acordo com o exposto neste trabalho, os direitos e as garantias individuais são conquistas oriundas de muita luta e resistência e, por tal razão, devem ser preservados. O que não significa que são absolutos, podendo, por meio de uma ponderação de valores, serem mitigados em prol de outros direitos ou garantias de mesmo valor.
O direito processual penal do inimigo, como desdobramento do direito penal do inimigo, apresenta-se como um direito processual diverso, paralelo, separado de um direito processual penal convencional. Não é uma lei específica, por exemplo, lei que eleva o período de uma prisão temporária, ou condiciona um maior cumprimento de pena para a progressão de um regime prisional, que configura um direito penal/processual penal do inimigo. O agravamento de sanções pode ser uma medida necessária diante de um contexto social.
Uma redução no número de recursos previstos no direito processual penal pode ser entendida como uma mitigação/flexibilização da ampla defesa, porém, não como a sua supressão. Daí pergunta-se: tal flexibilização significa a influência de um direito processual penal do inimigo? Entendemos que não. Talvez a redução no número de recursos, previstos atualmente no processo penal, torne a persecução penal mais efetiva e alinhada com a justiça.
A flexibilização de um direito ou garantia individual não significa, necessariamente, a influência de um direito penal/processual penal do inimigo. Podendo significar uma opção de política criminal diante de um contexto social que se apresenta. Uma flexibilização deve ser entendida como um ajuste, algo aberto a mudanças.
Entendemos ser plenamente possível a flexibilização de direitos e garantias individuais no processo penal, desde que mediante lei e por uma ponderação de valores. Que tal flexibilização se dê em observância a um bem jurídico tão importante quanto o que está sendo flexibilizado. Não defendemos flexibilizações temerárias, como o presente no direito penal simbólico[xvii], mas sim, pautadas por uma atuação legislativa fundamentada, que se apresente como uma melhoria para a situação que se tenta ajustar.
Um direito ou uma garantia fundamental deve servir para favorecer a aplicação da justiça, e não como instrumento de violação de outros tantos direitos e garantias.
A idealização de um Estado onisciente, onipresente e onipotente apresenta-se como algo pueril. O Estado, como detentor do poder-dever de punir (jus puniendi), possui suas limitações. Determinados crimes devem ser tratados com maior rigor processual penal, o que não representa violação aos direitos e às garantias individuais.
A preservação da identidade e de dados pessoais de uma testemunha, por exemplo, que depõe contra membros de uma organização criminosa, pode ser feita sem que o direito à ampla defesa e o contraditório seja violado. O direito do réu de contraditar tal testemunha seria preterido em face da preservação à integridade física e à vida da testemunha. Ou seja, pode haver uma flexibilização de um direito ou garantia individual sem que haja violação, o que pode ser feito por uma técnica de ponderação de valores.
É nesse sentido que entendemos razoável o tratamento penal/processual penal mais rigoroso de leis, como: a que trata do crime organizado, a lei de drogas e a lei de crimes hediondos, sem que isso represente resquícios de um direito penal/processual penal do inimigo, senão medidas que se alinhem à realidade, já que uma visão romântica da atuação criminosa, sobretudo das organizações criminosas, pode levar o direito penal/processual penal à inutilidade.
Informações Sobre o Autor
Jean Pierry Brito
Graduado em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba – UEPB Pós-graduando em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera Uniderp Servidor Público