Resumo: Esta obra tem como finalidade introduzir o pensamento de Francisco de Suárez, analisando as principais influências da filosofia que chegaram até seu tempo e como desenvolveu suas obras, sobretudo no tratado De Legibus, redigido no tempo que viveu em Coimbra. Concebendo a Escola Ibérica do Direito Natural como origem fomentadora para o pensamento de Francisco Suárez, a formação do corpo político, a coletividade e o poder legislativo e a alienação condicional do poder.
Palavras chaves: Francisco Suárez, Ius Gentium, Lei, Política, Governo.
Abstract: This work has the purpose of introducing the thought of Francisco Suárez, analyzing the main influences of the philosophy that came to his time, and how he developed his works, especially in the treaty De Legibus, written in the time when he lived in Coimbra. Designing the Iberian School of Natural Law as the fostering source of Francisco Suárez’s thought, we'll review his understanding the formation of the political body, the community and legislature, the conditional alienation of power.
Keywords: Francisco Suárez, Ius Gentium, Law, Politics, Government.
Sumário: Introdução. 1. A formação do corpo político. 2. O poder legislativo e a coletividade. 3. Alienação condicional do poder. Conclusão.
Introdução
Francisco Suárez nascido em 1548, em Granada, Espanha, morreu santamente em 1617 em Lisboa, onde está sepultado na Igreja de São Roque. Em 1561, iniciou seus estudos em Salamanca, porém somente em 1564, devido ao fato de ter sido considerado carente de dotes intelectuais, ingressou na Companhia de Jesus, começando seu noviciando em Medina do Campo. Tendo regressado a Salamanca, continuou seus estudos universitários, concluindo o curso de teologia, no qual revelou talento extraordinário.[1]
Após o termino de sua formação, foi professor em 1571 e se ordenou em 1572. Ensinou Filosofia e Teologia em Salamanca (1570), Segóvia (1571), Ávila e Valladolid (1575). Em 1580 tornou-se mestre de teologia no Colégio Romano dos jesuítas, regressando à Espanha em 1585, onde continuou a lecionar. Em Salamanca publicou sua obra principal: Disputationes Metaphysucae.[2] Em 1597 doutorou-se em Évora.[3]
Apesar de não haver se inclinado por gosto próprio,[4] ao que parece, para questões de filosofia política, foi justamente no campo da moral social que Suaréz mostrou-se bastante original, precisando de modo muito feliz o pensamento de Santo Tomás de Aquino.[5] Os dois tratados que Francisco Suárez dedica a essa matéria são De Legibus et Deo Legislatore, de 1612, e Defensio Fidei Catholica adversus sectae erroes, de 1613.[6] Assumindo importante papel na história do Direito:
“A história do pensamento jurídico moderno deve muito a um pequeno grupo de professores da universidade espanhola de Salamanca, que viveram no século XVI e na primeira parte do século XVII: o século de ouro da civilização ibérica. Como acontecera antes com Bolonha no século XII, Orléans em fins do século XIII, Bourges no século XVI, Leiden no século XVII e Berlim no século XIX, Salamanca se torna por um período sede universitária de vanguarda, privilegiada pela atuação de estudiosos inovadores no campo do direito. A principal característica da Escola espanhola – mesmo na variedade das posições assumidas por seus expoentes – é a ascendência teológica comum a todos. De fato, trata-se de professores não de direito, mas de teologia moral, geralmente membros da erudita ordem dos pregadores dominicanos, ou da nova ordem dos jesuítas, que decidiram trazer para o centro ie seu ensino e de suas pesquisas alguns aspectos centrais da problemática jurídica”.[7]
Ainda em outros tratados, de caráter essencialmente teológico, aparecem, eventualmente, considerações pertinentes à filosofia política, como nas obras póstumas, publicadas em 1621, De opere sex dierum, em que conjectura sobre qual seria a situação política da humanidade caso não tivesse havido o pecado original. Já na obra De Tríplice Virtude Theologica expõe ideias sobre a colonização, ao examinar meios para converter os infiéis.[8]
A faculdade de teologia de Coimbra possuía já há muito tempo importantíssimos nomes dentre aqueles que lecionavam nas margens do Mondego. No claustro universitário, ensinavam o dominicano Frei Luis de Sotomayor, na cátedra de Sagrada Escritura, o carmelita Frei Manuel Tavares, o cisterciense Frei Francisco Carreiro, o Beneditino Frei Gregório das Chagas e muitos outros. Porém, por razão da aposentadoria do Frei Antonio de Santo Domingo, vagava a cátedra de Prima Theologia. Seria necessário um nome de revelo para manter a distinção da Universidade, continuando com a excelência conquistada por Coimbra. O nome escolhido foi o granadino Pe. Francisco Suárez.[9]
A recepção em Coimbra não foi de pronto muito afetuosa, sua presença remontava a uma ideia de imposição dos jesuítas que já comandavam a Universidade de Évora. Contudo, Francisco Suárez, humildemente, era o primeiro a sustentar que em Coimbra se encontravam competentes doutos, capazes de lecionar com maestria, não compreendendo a razão de seu chamado para a tarefa de ensinar. O mestre granadino discursa publicamente, dizendo justamente isso, na recepção de seu título de Doutor em Évora.[10]
Com o passar do tempo, o teólogo granadino passou de intruso a membro indispensável, foi se enamorando com Portugal, com Coimbra e o mesmo ocorreu com a Universidade e seu novo professor. Francisco Suárez, por toda sua notável capacidade de trabalho e suas admiráveis obras escritas, tornou-se uma das mais brilhantes figuras dos grandes mestres que iluminaram o pensamento na península ibérica.
Verdadeiramente, impressiona a capacidade de trabalho de Francisco Suárez, suas biografias dão conta do que se falavam em sua época, narravam entre os confrades que a luz de seu quarto era sempre a primeira a ser acesa, já de madrugada, e a última a ser apagada ao dormir. Na parte da manhã, leciona magistralmente usando o latim e, entre os bancos dos alunos, era rotineiro a presença de outros professores ou visitantes que passavam pela universidade. Retorna das aulas, celebra a missa, almoça e se dedica aos estudos, escritos e orações.
Com seu empenho, desvenda minuciosamente os detalhes da reflexão teológica, filosófica, política e jurídica, buscando suas origens, razões e finalidades. Visto como grande intérprete dos consagrados autores, argumenta e avança nos seus ensinamentos. Durante o tempo que permaneceu em Coimbra escreveu, dentre muitas obras: Opuscula Theologica (1599); os tratados De Penitentia et Extrema- Unctione (1602); De Censuris (1603); De Deo Uno e Trino (1606) e a obra que o consagrou no mundo jurídico De Legibus o De Deo Legislatore (1613).[11]
É impróprio tentar enumerar aqui todas as obras de Suárez, suas correspondências, orientações, comentários e notas acadêmicas que se somam a confirmar sua capacidade de trabalho, sua busca pela séria reflexão intelectual dos problemas e os desafios que o envolviam em seu tempo. Sua personalidade era de trato fino e de humildade piedosa, conquistando a todos no convívio cotidiano. Logo após deixar suas funções de professor, muda para a casa dos jesuítas em Lisboa e lá falece.[12] Em seu Epitácio foi escrito: Era o mestre e o oráculo da Europa, da Ásia e de todo o mundo, o definidor supremo do Direito. Em sua mente viviam e por sua boca expressavam, com admirável harmonia: Aristóteles, Tomás de Aquino, Jerônimo, Ambrósio, Atanásio, Bernardo e Gregório.[13]
Após sua morte, houve a tentativa de abafar a figura dos jesuítas em Portugal, contudo a contribuição de Francisco Suárez ao pensamento filosófico e jurídico, sua história e suas obras foram, e continuam sendo, celebradas. Sua vida, sem grandes aventuras fora do campo acadêmico, nos surpreende pelo certo desapego das honrarias, mas com a firmeza obediente de realizar sempre um generoso e qualificado trabalho em qualquer lugar. Esta sua dedicação conquistou Coimbra que o celebra como um dos seus grandes professores.
1. A formação do corpo político
No tempo de Francisco Suárez, ou seja, no século XVI, se compreendia a ordem mundial como uma sociedade natural de Estados soberanos, rechaçando a ideia de mundo submetido ao império e ao Papa.[14] Cada Estado deve produzir leis que devem ser cumpridas por todos, inclusive pelos reis e os legisladores, afinal os governantes recebem sua autoridade da república e devem usá-la em prol dela.[15] O mundo inteiro é um tipo de república e por isso deve fazer leis justas para todos, e nenhum país tem o direito de desrespeitá-las.[16]
Existe nesse tempo a teorização de uma série de direitos naturais dos povos e dos Estados, entendidos como o direito de se comunicar, de viajar, de permanecer, de comércio, de ocupação e de migrar.[17] A esses são anexados mais quatro direitos divinos: direito de evangelizar, dever da censura fraternal aos bárbaros, dever de proteger os convertidos, dever de assegurar o trabalho dos líderes cristãos, caso haja conversão da maioria dos índios.[18] E o mais importante deles é o direito à defesa incondicional dos espanhóis, mesmo que para isso seja necessário dominar suas cidades.[19]
Ocorre a reformulação da doutrina cristã da guerra justa, redefinida como sanção jurídica às ofensas sofridas. A guerra é justa e necessária, porque os Estados estão submetidos ao direito das gentes e, na falta de um tribunal superior, seus argumentos não podem ser impostos senão com a guerra.[20] Desse pensamento, temos três consequências. São elas: a guerra pode ser feita legalmente pelos Estados, o príncipe que entra em guerra é um juiz competente para conhecer as pretensões que levam à guerra e, por último, uma longa série de limites, seja quanto aos seus pressupostos, seja quanto às suas modalidades. A violência nessa guerra deve ser a mínima necessária e os inimigos são submetidos ao direito.[21]
A origem jusnaturalista da dimensão de soberania externa remonta ao pensamento de Francisco de Vitoria, depois a Gabriel Vasquez de Menchaca, a Baltazar de Ayala e a Francisco Suárez, que anteciparam a reflexão de Hugo Grotius.[22] Essa origem tem como objetivo oferecer um fundamento jurídico para a conquista do Novo Mundo. Vitoria contestou, em suas Prelações, todos os títulos de legitimação originalmente feitos pelos espanhóis, dentre eles: o direito de descobrimento, a ideia da soberania do Império e da Igreja, a infidelidade e o comportamento pecaminoso dos índios, sua submissão voluntária e, finalmente, a concessão divina dada aos espanhóis para tal dominação.[23] A esses títulos ilegítimos, Vitoria contrapõe outros, reelaborando velhas doutrinas, dando fundamento ao direito internacional moderno e do conceito moderno de Estado soberano.[24]
Muito surpreendente é a postura que toma Suárez diante da questão sobre qual seria o melhor regime político para um estado, pois, como espanhol sob o domínio de Felipe II, seria natural imaginar que não haveria outra possibilidade a não ser a monarquia, justificando o poder do regente.[25] É bem verdade que o Doutor de Granada elege a monarquia como o melhor modo de governo, mas isso não o impede de sustentar que a forma do estado e, consequentemente, de seu governo depende da capacidade do juízo humano, dito de outro modo, da escolha de seus concidadãos,[26] devendo estar consolidada não sobre considerações dinásticas, mas sim sobre a forma que melhor servirá a sociedade constituída, isto é, ao bem coletivo.[27]
Na sociedade conscientemente constituída, estavelmente ordenada, cada membro tem os mesmos direitos de colaborar com a estruturação do Estado sendo um entre iguais.[28] A democracia direta para Suárez poderá existir sempre que houver condições favoráveis, sobretudo em estados pequenos.[29] Nos casos das grandes formações estatais, ou seja, os grandes países, Suárez é mais cauteloso e sugere a delegação dos direitos de regência a um somente numa monarquia ou aristocracia.[30] Para o Doutor Jesuíta, os poderes políticos compreendem tanto o executivo como o legislativo e o judicial. Somente mais tarde é que haverá a separação desses poderes, como é sabido em Montesquieu.[31]
A formação do corpo político ocorre na busca temporal dos homens em se constituir em comunidades e países. Primeiramente, as famílias, enquanto fechadas em si, são plenamente completas e constituídas de direito natural, porém, quando se abrem para a vida do Estado, serão dependentes e imperfeitas.[32] Assim, aos poucos, essas várias famílias e comunidades foram se organizando, até constituírem um único e maior corpo político, como nos fala Francisco Suárez:
«Por otra parte, esta comunidad puede ir aumentando hasta convertirse en reino Estado mediante la asociación de diferentes ciudades. Esta forma de sociedade s también muy conveniente a los hombres, al menos en orden a un mayor progreso. Las razones son las mismas en la medida en que son aplicables, aun cuando si el grado de necesidad no sea completamente igual.»[33]
Uma vez que se estabeleçam essas comunidades como realidade concreta, emerge a necessidade de um verdadeiro corpo político que a governe.[34] Existirá, assim, uma inevitável relação de subordinação entre aqueles que estão na direção do corpo político e os súditos, como nos diz o Doutor Exímio: «Pero una vez que existe, la subordinación y la sumisión vienem exigidas pro la ley natural como deber de justiça.»[35] Neste ponto, o corpo político recebe seu nascimento e sua meta, pois, nascendo da união de todos os membros da comunidade, está condicionado a favorecer e garantir o bem coletivo.[36]
Dentre os elementos que constituem a vida e a formação do poder político, está inclusa a relação entre o estado e a Igreja.[37] Podemos pensar facilmente que para o jesuíta Suárez essa separação, isto é, deixar a realidade social da Igreja apartada do Estado, estará fora de questão,[38] justamente pelos íntimos assuntos entre a Igreja e a Espanha na época de Suárez, que lecionava como Jesuíta sobre a égide de Felipe II.[39]
Porém, novamente, nos surpreende a posição que assume Francisco Suárez em sua obra Defensor Fidei.[40] Para Francisco Suárez, a Igreja não deve se intrometer nos assuntos do Estado e tampouco o estado deve opinar sobre assuntos espirituais e de moral.[41] Cabe à Igreja sempre uma superioridade, segundo Suárez, no que se refere aos assuntos imateriais.[42] Aqui Suárez comunga da ideia de Francisco de Vitória, que não reconhece a soberania do Papa diante dos príncipes quando se refere a assuntos exclusivamente temporais.[43]
Para Suárez, o objeto da Igreja é a saúde da alma de cada indivíduo e sua salvação espiritual, em oposição ao Estado, cuja jurisdição é somente temporal, e diz respeito ao bem comum da vida secular.[44] Dado o primado do espiritual sobre o temporal, a Igreja é, portanto, superior ao Estado.[45] Isso não significa, no entanto, que a Igreja tem um poder temporal irrestrito. A legitimidade da autoridade do Papa repousa nos assuntos espirituais e teológicos, em vez dos assuntos seculares e políticos.[46]
Quando adentra na formação do corpo político dos Estados e de sua soberania própria, o Doutor Jesuíta distingue com extraordinária meticulosidade os diversos estados e formas que podem estar realizados ou concretizados institucionalmente exercendo com eficácia a soberania territorial.[47] Numa compreensão que Suárez chama de pré-estatal, ou seja, um intermédio entre o pactum societatis e pactum subiectionis, o soberano é efetivamente o próprio povo que se auto constitui politicamente. Nessa situação originária do estado, o direito, o estado e o governo derivam, univocamente, da comunidade.[48]
Quando ocorre a maturação da comunidade imperfeita, encontramos a formação do pactum Subiectionis. Nesse momento, o soberano será constituído, segundo Francisco Suárez, na pessoa individual ou colegial formalmente investida da titularidade e do exercício das mais altas funções governativas.[49] Nesse sentido, a compreensão sociológica e política de Suárez mostra estar aberta às múltiplas modalidades institucionais e funcionais, hipotéticas ou históricas que possam apresentar os regimes políticos de seu tempo.[50] Contudo, mesmo estando aberto a possibilidades variadas de governo, Francisco Suárez ratifica sua concepção unitária da soberania jurisdicional do Estado na formação do corpo político, julgando sempre como modelo a monarquia.[51]
Francisco Suárez está mais bem firmado na linha política do que Soto, Cano e Covarrubias, conservadores por excelência dentro da Escola de Salamanca.[52] Conservadores, mas não reacionários, pois incorporam em seus sistemas inovações decisivas e as afirmam até as últimas implicações e consequências jurídico-políticas.[53] No âmbito teórico e sistemático, demonstram uma especial capacidade sintética e um rigor de crítica excepcional. Críticos de ideias, doutrinas e ideologias ou sistemas jurídicos, mais que de instituições ou regimes políticos.[54]
Contudo, do ponto de vista de Francisco Suárez, o fortalecimento institucional e executivo parecem evidentes, decisivos e, teoricamente, irreversíveis. Esse fortalecimento levará consigo, univocamente, um robustecimento da democracia em todos os seus níveis.[55] Trata-se de um reforço à figura estatal como um conjunto de instituições que vigoram legalmente para a manutenção social.[56] A concepção de Suárez, em conjunto com o fortalecimento do Estado, de modo sistemático a fortalecer o direito nacional, enquanto sistema regulador das relações sociais, são direitos e deveres recíprocos. Aqui aparece o esforço claro de Suárez em assegurar a estabilidade do corpo político.[57]
Nessa esfera institucional, que engloba a estrutura básica do Estado enquanto tal, podemos dizer que Francisco Suárez é, inequivocamente, democrático, constitucionalista e institucionalista,[58] pois percebemos em nossa leitura dos textos Suárezianos um profundo respeito ao povo e às estruturas comunitárias, igualmente o respeito à monarquia e às instituições supremas do Estado.[59] Com seus direitos e deveres estabelecidos, nenhuma das partes integradoras da sociedade poderá mudar ou omitir sem uma posterior inflação do pactuado.[60] Cabe, a seguir, estudarmos como nosso autor entendeu o poder legislativo.
2. O poder legislativo e a Coletividade
Tendo estudado a união societária, pensada por Francisco Suárez como a engendradora do corpo político, cabe averiguarmos como o Doutor Exímio pensou esse mesmo poder na esfera legislativa. Como podemos perceber, Suárez destaca, enormemente, o papel da comunidade, das pessoas em união na formação social. Cabe, por assim, verificarmos se, também no que tange à elaboração das leis, nosso granadino atribui à coletividade essa importante tarefa.[61]
A comunidade, como a primeira instituição do Estado, pode reservar para si determinadas competências no âmbito dos poderes públicos e políticos, até mesmo ao ponto de segurar todos os direitos, constituindo-se num regime de democracia direta.[62] Contudo, Francisco Suárez admite também múltiplas hipóteses e caminhos para que, posteriormente, a comunidade possa atribuir esses poderes, inclusive o legislativo, a outros de seus representantes.[63] Para isso considera o regime democrático bem mais moldável e fácil, ao passo que no regime monárquico essa atribuição legislativa permanece fixada na figura do soberano.[64]
Suárez compreende que o soberano está, em consciência, sujeito às suas leis como qualquer outro cidadão em particular. Aqui a tarefa do legislador em fazer as leis não será somente para impor a coletividade, mas incluirá seus próximos, sua família e a si próprio.[65] A ressalva do pensamento Suáreziano ocorre quando da monarquia, indicando que o Rei, como senhor absoluto do estado, está sujeito à lei, mais por consciência do que pela obrigação, porém sempre a serviço da comunidade.[66] Francisco Suárez faz radicar o poder legislativo no povo, independentemente da forma de governo.[67]
Nos regimes de monarquia pura, o rei, segundo o pensamento de Suárez, possui plena autoridade política, jurisdicional e executiva. Tem o monopólio das altas decisões do estado.[68] É o dono e o senhor do reino por direito próprio em virtude do poder e cargo que lhe confiou a comunidade.[69] Nessa concepção, o rei está acima do direito nacional e pode mudá-lo em função das prerrogativas de seu cargo.[70] Do rei depende, em última instância, a aprovação soberana que dá pleno uso ao direito, incluindo o direito consuetudinário.[71] É competência exclusiva do rei a criação de novos impostos e a administração dos fundos do Estado.[72]
Em resposta a essa prerrogativa soberana, os súditos têm a obrigação natural de reconhecer o Rei como supremo senhor e obedecer em tudo o que ele mandar.[73] Mas essa observância da autoridade do monarca encontra o limite no que Francisco Suárez indica como a atuação do rei dentro dos limites e condicionamentos de seu próprio cargo e tendo como parâmetros as leis vigentes e os princípios da justiça e do direito.[74] Como ele mesmo nos diz, «Contra naturalem obligationem qua vassali tenentur recognoscere regem ut supremum dominum.»[75]
Ocorre, porém, que os termos rei ou príncipe, em Suárez, não são sempre unívocos e muitas vezes dentro do mesmo texto mudam de sentido. A leitura mais ampla que poderíamos tomar seria “soberano” em sentido formal. Outras vezes encontramos citações como Imperador, Rei, instituição colegial ou comunidade política.[76] Frequentemente, o Doutor Jesuíta usa também a palavra governante em geral, tanto para o aspecto político civil quanto ao aspecto religioso-canônico.[77]
A partir disso, longe de imaginar uma presença do pensamento feudalista em Suárez, encontramos substancialmente um pensamento que se constrói rumo ao Estado de Direito autenticamente unitário, forte e moderno sobre uma base triangular: A) cidadãos livres e iguais diante da lei, com direitos e deveres recíprocos entre si e frente ao próprio Estado com instituições de representantes em qualquer nível. B) Monarquia nacional forte e concentrada, mas de caráter constitucional condicionada ao serviço do bem da coletividade.[78] C) Ordenamento jurídico de âmbito nacional, integrador e de normativas reguladoras da vida do Estado, correspondendo ao papel sócio-político nacional.[79]
O pensamento jurídico de Suárez contribuiu no desenvolvimento do conceito de Estado nacional, ainda emergente em sua época.[80] Seu legado para a Doutrina Social da Igreja se encontra na noção de bem comum, na concepção orgânica de sociedade e no conceito de Estado e Igreja como duas sociedades perfeitas que deveriam ter entre si relações harmônicas.[81] Sua doutrina da igualdade humana, junto com a sustentação do direito de resistência e a refutação do direito divino dado aos soberanos, influenciou as bases da democracia cristã.[82]
Francisco Suárez considerou com todas as suas forças e consequências um Estado, politicamente, forte, centralizado e igualitário a todos os concidadãos e comunidades.[83] Um estado não só presidido e representado pelo Rei, mas também dirigido, mandado e administrado por seus ministros que, regendo, emitem as leis para toda a coletividade. É um estado que compreende toda a aglutinação nacional econômica, social, territorial, política e, também, legislativa.[84]
A lei abrange todos dentro da comunidade à qual ela é promulgada. Isso vale também para os governantes que estão obrigados a cumprir as leis do Estado. não tanto por um possível pacto, expresso ou virtual, entre o povo e os governantes, mas por razões maiores de fundamento da lei.[85] Deus é a principal fonte do poder legislativo e, ao mesmo tempo, força da eficácia obrigatória da lei. Deus dá essa eficácia com a condição natural de que obrigue, universalmente, a toda a comunidade, enquanto composta de corpo e cabeça e, precisamente, porque assim se faz necessário ao bem comum.[86]
Na esfera jurídica, o sistema de Suárez é, substancialmente, pluralista, mas formalmente unitário. Primeiro, quando reforça as diversas fontes do direito e as diversas normas jurídicas especiais num ordenamento jurídico nacional.[87] Segundo, quando retoma o ordenamento jurídico com a soberania nacional do Estado como função pública específica. Terceiro, quando retoma a própria soberania jurisdicional em seus condicionamentos intrínsecos e extrínsecos de caráter institucional, teleológico, constitucional positivo e ético naturalista.[88] Todavia, ainda falta percebermos como o poder é transferido do povo ao seu governante, esta será a tarefa que empreenderemos a seguir.
3. Alienação condicional do poder
Ensina Francisco Suárez que o povo transfere seu poder ao rei ou governante. O povo, porém, não pode renunciar a seus direitos naturais, os quais conserva e contra os quais o regente não pode atentar.[89] Além disso, o povo pode estipular limites e condições ao exercício do poder que entrega ao rei, o qual deve respeitar o que foi acordado no contrato então firmado.[90]
Nosso mestre granadino ensina que não se dá apenas uma delegação revogável do poder, mas uma transmissão do mesmo. Todo o poder provém de Deus, mas que se dê numa pessoa concreta é resultado da concessão do povo.[91] Em consequência, o povo deve obediência ao governante assim constituído enquanto ele não exorbitar de suas atribuições e se mantiver fiel à missão recebida de promover o bem comum.[92] Existe, portanto, aqui, uma alienação condicional do poder.[93]
A alienação do poder na concepção de Suárez é uma verdadeira inovação em seu tempo, pois o Doutor Jesuíta considera que toda vez que uma sociedade se forma, surge nela, como propriedade natural, o necessário poder político. Tal poder é transferido pela mesma sociedade para determinada pessoa (ou grupo de pessoas) que fica, por assim, investida de soberania.[94] Daí se conclui que os governantes não recebem o poder imediatamente de Deus, mas por intercâmbio, ou seja, por meio do povo.[95] Esse mesmo povo, organizado em sociedade, é que transmite seu poder ao governante.[96]
O poder provém, assim, do consentimento comum entre os homens que o delegam a uma autoridade.[97] Existe aqui uma alienação condicional do poder, justamente porque numa sociedade constituída organicamente é atribuída ao governante a autoridade para estruturar e estabelecer a busca do bem comum.[98] Se o bem comum já fosse automaticamente posto, evidentemente não seria necessário que as comunidades se organizassem em comunidades perfeitas e que se criasse um sistema político.[99] Nesse sentido, segundo Suárez, somente a democracia seria uma instituição natural.[100] Contudo, sendo os homens muito diferentes, há a necessidade de uma unidade interna na sociedade para que se mantenha a identidade de propósitos. A essa autoridade, constituída por um ou mais homens, outorga-se o poder.[101]
Disso observamos que, sendo uma instituição humana, a forma de governo pode receber todas as variações possíveis desde que não maculem a razão e que possam ser alvo de escolha plenamente humana.[102] Desse modo, para o Doutor Exímio, uma sociedade consciente e madura, isto é, perfeita, não pode desejar formas de vida e de governo incompatíveis com a natureza humana e seu fim próprio.[103]
Isso implica, segundo Suárez, numa limitação decisiva ao poder do soberano, já que o próprio bem comum exige que o poder do governante esteja limitado em sentido indicativo.[104] Seguindo o esquema Suáreziano, chegamos na mesma conclusão sobre as demais autoridades governativas,[105] de modo que esses regentes, além de governantes, em qualquer uma das formas de governo, são, primeiramente, cidadãos que devem cuidar das leis de sua comunidade determinada, tendo como fim o bem da coletividade.[106]
Todas as políticas militaristas e de expansão violenta se fundam na retirada do poder do povo e numa interpretação da lei natural, que arrogam aos mais fortes o direito de se submeter os demais a seu próprio domínio.[107] Uma lista impressionante de agressores, que invadiram povos, cidades e famílias reivindicando legitimidade de suas ações em nome do direito natural e em nome da nação mais forte, usurparam a ideia do domínio natural.[108] Francisco Suárez, porém, se manifesta opositor a essa forma de alienação de forças, pois considera que a alienação deve ser condicional, visando o bem comum da comunidade, sem macular e interromper a vida de outros estados.[109]
Quando o príncipe ou os magistrados assumem as funções próprias que lhe foram conferidas, violando o bem comum da sociedade em benefício próprio, reduzindo sua tarefa à oferta de beneplácitos a seus partidários ou agindo de forma tirânica, agridem claramente o bem comum.[110] Diante dessa situação, o poder deverá ser revogado da alienação condicional.[111]
A ordem social com todo direito, teoricamente, vê-se livre dos compromissos que a cercam com as autoridades corruptas. Emerge uma natureza socialmente pura, capacitada para reger seus próprios destinos.[112] De certa forma, o que está entendido é o direito a se rebelar diante da tirania dos governantes, retomando, ao menos teoricamente, os direitos alienados.[113]
Suárez mantém uma concepção intensamente institucional e objetiva: o legislador poderá mudar o direito civil e só está submetido às leis civis enquanto força moral e diretiva claramente exigida na interpretação do verdadeiro sentido e contexto social.[114] O Doutor Jesuíta se refere ao direito civil como um verdadeiro direito privado e não como um direito constitucional.[115] Quando falamos de direitos constitucionais, Francisco Suárez claramente expressa a obrigatória força que impõem essas leis, inclusive aos governantes.[116]
Francisco Suárez é especialmente respeitoso em três domínios chaves dessa questão: condições político-constitucionais e institucionais, naturais ou pactuadas entre o povo e o governante ao constituir o Estado e o regime jurídico global vigente, com especial atenção ao direito consuetudinário.[117] Diante disso, nota-se que o chamado monopólio do soberano formal, por parte do monarca, afeta decisivamente os direitos e as formas da participação democrática comunitária em todos os seus níveis.[118]
Conclusão
Francisco Suárez, em sua magistral obra De Legibus ac Deo Legislatore, compreendeu e formulou a sua noção de lei.[119] É sabido que essa importante obra não é fruto de mero improviso, mas de anos de intenso trabalho do professor Suárez, que foi sistematizando e organizando seu pensamento político, legal e social.[120] Nessa sistematização, Francisco Suárez se deparou com uma das exigências do seu tempo: as novas descobertas, a existência de novos povos e os constantes conflitos da monarquia.[121] Realmente tantos eventos influenciaram sua escrita e a direcionaram para, de certa maneira, complementar o pensamento legislativo tomista numa esfera muita mais prática da que havia já abordado o Aquinate.[122]
Nesse sentido, Francisco Suárez é importantíssimo, pois, na direção do pensamento político, nosso Doutor Jesuíta lança as sementes do pacto social que, mais tarde, será sistematizado[123] e influencia o pensamento do que se constituirá no Estado soberano e estável e, decididamente, na lei internacional.[124] A figura de Francisco Suárez, muitas vezes, é pouco apreciada pelos pensadores mais desatentos. Talvez muitos o considerem deveras escolástico, não se preocupando em investigar a riqueza de seu pensamento; outros, imbuídos de um preconceito, talvez não percebam aquele mesmo que serviu de fonte para seus estimados e modernos autores.[125] Desbastando todo esse malogro, limitamo-nos, neste trabalho, ao estudo do De Legibus e podemos indicar a profunda riqueza do pensamento suáreziano.[126]
Suárez confirma sua tese de a lei ser um ato de vontade, ainda justificando que todo impulso ou movimento tem sua origem na vontade.[127] Para que a lei seja promulgada, é necessária a vontade do legislador que se dirige à ação volitiva dos súditos, porém toda essa ação deve sempre considerar a aplicação das leis ao bem comum.[128]
Existirá, portanto, um poder de domínio que, no exercício legislativo, deverá estar sempre desejando o bem comum.[129] Suárez recorda que em toda comunidade, estavelmente organizada, existirá um poder soberano, capaz de ditar leis. Esse poder deverá sempre ter como meta o bem coletivo.[130] Esse poder nasce pela tendência natural dos homens de se reunirem e formarem comunidades, com a ressalva específica quanto à corrupção e o desvio do bem colimado. Nesse ponto, Francisco Suárez direciona sua contrariedade ao regime tirânico.[131]
Francisco Suárez também considera que a lei deve ser justa em dois fundamentais sentidos: primeiro, no ato a que se dirige, isto é, na obrigação legal que impõe ao súdito, e em segundo, deve ser promulgada a não tolher a justiça.[132] Outra regra que entendemos no pensamento de Francisco Suárez, provinda já da tradição de Santo Tomás de Aquino, é que a lei humana e positiva não poderá, com o risco de sua desvalorização, ser contrária à lei natural.[133] A lei, portanto, é um ato de vontade, promulgada com a devida prudência da autoridade regente, salvaguardando sempre o bem comum. Diante disso, temos a definição da lei de Francisco Suárez: a lei é um preceito comum, justo e estável, suficientemente promulgado.[134]
Devemos notar que a definição Suáreziana, ao contrário da de Santo Tomás de Aquino, não apresenta a causa final da lei. Como bem expressa Michel Bastit : « debemos hacer notar que se excluye de ella, (da ley) como podíamos sospechar, la relación com un fin (ad bonum commune em la obra de Santo Tomás).»[135] Porém o conceituado estudioso de Francisco Suárez, E. Elordy destaca a resposta a essa questão afirmando: « Para Suárez, la causa eficiente es de mayor importância que la causa final, lo mismo en esta cuestión como em otras muchas. En elle sigue el rumbo iniciado pr la filosofia estóica e seguido pro el neoplatonismo cristiano.»[136]
Uma vez definida a lei, Francisco Suárez parte para a tradicional classificação escolástica das leis. Neste ponto, não há grande originalidade: enumera as leis eterna, natural e humana.[137] Claramente notamos que Francisco Suárez considera Deus como princípio de toda lei. A lei eterna é promulgada por Deus na sua infinita sabedoria.[138] E todas as demais leis seguem uma gradação, exigindo sua conformidade com essa lei eterna. Assim será com a lei natural e humana.[139] Por fim, após enumerar sistematicamente toda a ordenação das leis, Francisco Suárez afirma que a observância da lei será a causa de salvação: «La observância de la ley justa conduce naturalmente a la salvación. »[140]
Neste sentido, entendemos claramente que, em Francisco Suárez, Deus é o Supremo Legislador, e por assim dizer, o princípio de toda a lei, e como meta final da salvação humana é, ao mesmo tempo, a finalidade de toda lei.[141] Dessa importante constatação nasce, como entremeio da originalidade e fim colimado pela lei, a vida prática humana que Francisco Suárez expõe no De Legibus.[142]
A necessidade social do poder político reside, em Francisco Suárez, na união dos homens em comunidades perfeitas.[143] A partir dessa união, surge um poder justo e estável que pode garantir os valores comuns da comunidade, do Estado e, por último, da nação.[144] Para garantir esse fim próprio da coletividade, a autoridade política, no pensamento de Francisco Suárez, se torna tão natural e necessária quanto a própria sociedade.[145] Portanto, sem a autoridade política, a sociedade seria jogada à desordem. Basicamente, não suportaria existir, pois não encontraria a harmonia dos interesses expressos por cada cidadão.[146]
Informações Sobre o Autor
Adriano Broleze
bacharelado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas 1998 bacharelado em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. Sra. Assunção 2002 Mestrado em Direito Canônico pela Pontifícia Universitas Lateranensi-Roma2008 e Doutorado em Direito pela Pontifícia Universitas Lateranensi -Roma2010. Presbitero na Arquidiocese de Campinas – SP. Tem estudos na área de Filosofia Filosofia do Direito História do Direito Etica Direito Canônico Direito Romano Antropologia e Bioética. Vigário Judicial Juiz Presidente do Tribunal Interdiocesano de Campinas e Professor na Puc – Campinas