Fraudes em certames de interesse público e a Lei n. 12.550/2011

Aos 16 de dezembro de 2011 foi publicada no Diário Oficial da União a Lei n. 12.550, de 15 de dezembro de 2011, que autoriza o Poder Executivo a criar a empresa pública denominada Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares – EBSERH. Em uma leitura desatenta, poder-se-ia chegar à conclusão de que esta Lei em nada modificou o campo do Direito Penal.


Sucede que, estranhamente, o legislador no corpo da referida Lei, além de tratar da matéria acima citada, acrescentou dispositivos ao Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, ou seja, criou uma nova modalidade de pena restritiva de direito, ao acrescentar o inciso V ao artigo 47 – “proibição de inscrever-se em concurso, avaliação ou exame públicos” –, e ainda criou um novo tipo penal incriminador, previsto no artigo 311-A – “fraudes em certames de interesse público”, que passa a integrar o também agora criado Capítulo V – “Das Fraudes em Certames Públicos” – do Título X.


Malgrado não haver vedação constitucional expressa, como no caso do Direito Financeiro (artigo 165, parágrafo oitavo), atendendo assim formalmente o princípio da estrita legalidade, não é recomendável que o legislador trate de matérias totalmente distintas, ainda mais se tratando de norma penal incriminadora, onde o predito princípio tem por finalidade garantir a liberdade dos cidadãos, e não acarretar insegurança jurídica, como poderia ter ocorrido na presente Lei.


Sempre houve grande polêmica envolvendo a tipificação das condutas dos agentes que se valem de meios ilícitos para obterem vantagens em certames de interesse público, como é o caso da conhecida “cola eletrônica”. O Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Inquérito 1145-PB, reconheceu que a conduta designada “cola eletrônica” era penalmente atípica, pondo termo à discussão sobre a capitulação desta conduta no artigo 171, do Código Penal (crime de estelionato).


Ao que tudo indica, o legislador pretendeu tornar típicas condutas destas espécies. A Lei n. 12.550, de 15 de dezembro de 2011, que se originou do Projeto de Lei da Câmara n. 79 de 2011, de iniciativa da Presidência da República, tornou típica a conduta daquele que: “utilizar ou divulgar, indevidamente, com o fim de beneficiar a si ou a outrem, ou de comprometer a credibilidade do certame, conteúdo sigiloso de: I – concurso público; II – avaliação ou exame públicos; III – processo seletivo para ingresso no ensino superior; ou IV – exame ou processo seletivo previstos em lei” (artigo 311-A, “caput”).


A objetividade jurídica tutelada pela norma penal incriminadora, ou o bem jurídico a ser protegido, é a fé pública, mais especificamente a lisura na seleção de candidatos que se submetem às modalidades de certames de interesse público descritos nos incisos que seguem o “caput” do artigo 311-A.


Trata-se de um crime comum, i.e., o crime pode ser praticado por qualquer pessoa, não sendo exigida nenhuma qualidade especial relativa ao sujeito ativo. Contudo, se o fato é praticado por funcionário público (artigo 327, do Código Penal), o parágrafo terceiro do artigo 311-A prevê o acréscimo de pena em um terço ao agente (causa especial de aumento de pena). A coautoria e participação, tanto do particular como do funcionário público, são admitidas, porém se um dos agentes permite ou facilita o acesso de pessoas não autorizadas à informação, responderá pela figura equiparada elencada no parágrafo primeiro do mesmo dispositivo.


O sujeito passivo do crime em estudo é o Estado, entendido como a pessoa jurídica que promove o certame de interesse público fraudado. Não descartamos a hipótese do particular prejudicado com a fraude do certame, igualmente figurar como sujeito passivo do crime.


Analisando objetivamente o tipo básico (“caput”), se extrai que coexistem duas condutas puníveis alternativamente previstas. A primeira conduta consiste em “utilizar indevidamente” (fazer uso), já a segunda representa “divulgar indevidamente” (propagar, difundir). A expressão indevidamente que integra a ilicitude ou antijuridicidade da conduta típica, neste caso constitui elemento normativo do tipo.


O objeto material sob o qual recaem as condutas acima descritas se refere ao “conteúdo sigiloso” (v.g., questões de provas, gabaritos oficiais) relativo às modalidades de certames de interesse público descritos no tipo: (i) concurso público: procedimento administrativo que visa selecionar candidatos para o provimento de cargos ou empregos públicos; (ii) avaliação ou exame públicos: v.g., exame para obter a permissão ou habilitação para conduzir veículo automotor, exame para obter autorização para o registro ou porte de arma de fogo; (iii) processo seletivo para ingresso no ensino superior: engloba provas de vestibulares que conferem acesso às instituições de ensino superior públicas e privadas; (iv) exame ou processo seletivo previstos em lei: v.g., processo seletivo simplificado para a contratação pela Administração Pública de trabalhadores temporários.


Não havendo modalidade culposa, o crime é punido a título de dolo (vontade livre e consciente de utilizar ou divulgar indevidamente o conteúdo sigiloso do certame). Além disso, a norma penal incriminadora descreve alternativamente dois elementos subjetivos que representam especiais finalidades de agir (dolo específico). O primeiro consiste em “com o fim de beneficiar a si ou a outrem”, i.e., ao praticar a conduta o agente deve visar alguma vantagem indevida sobre os demais candidatos que disputam o certame, que tanto pode ser própria ou para terceiros. Há ainda a possibilidade em que o agente pratique alguma das condutas previstas no tipo com o especial fim “de comprometer a credibilidade do certame”, como quando ele pretender colocar em dúvida a lisura do certame de interesse público.


O parágrafo primeiro prevê uma figura autônoma equiparada ao tipo básico. Para a hipótese, há a previsão alternativa de duas condutas puníveis: daquele que “permite” (dar licença para; consentir em), ou daquele que “facilita” (tornar ou fazer fácil ou mais fácil), o acesso de pessoas não autorizadas à informação. Estas condutas podem ser praticadas por qualquer meio (escritos, palavras, gestos), e as informações devem se referir ao “conteúdo sigiloso” do certame público, mencionado no “caput”. Esta figura equipara, igualmente, é punida apenas a título de dolo (vontade livre e consciente de permitir ou facilitar o acesso de pessoas não interessadas à informação relativa ao conteúdo sigiloso de certame de interesse público), prescindindo de qualquer especial finalidade de agir (dolo genérico).


O crime se consuma com a efetiva utilização ou divulgação do conteúdo sigiloso das modalidades de certames de interesse público descritas no tipo (“caput”), ou com a efetiva permissão ou facilitação do acesso de pessoas não autorizadas à informação (parágrafo primeiro). Ressalta-se que há a necessidade de que as condutas recaiam sobre o “conteúdo sigiloso” do certame público. Assim sendo, na hipótese em que os agentes, sem conhecimento prévio das questões ou respostas, se utilizam de meios fraudulentos, como no caso da conhecida “cola eletrônica”, valendo-se apenas de seus conhecimentos para resolver a prova ou exame, a conduta será fatalmente atípica. Se da conduta resultar dano à Administração Pública (v.g., gastos com a realização de novo certame), restará configurada a figura qualificada no parágrafo segundo. Tratando-se de crime formal, a obtenção de qualquer benefício ou o comprometimento da credibilidade do certame seria mero exaurimento do crime, que já restará consumado. Em sendo um crime plurissubsistente, a tentativa é tecnicamente admitida.


Há duas figuras típicas que não devem ser confundidas com o crime em exame. A primeira delas está prevista no artigo 325, do Código Penal (revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação). O segundo crime está previsto no artigo 94, da Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993 (referente ao segredo de proposta apresentada em procedimento licitatório). Assim sendo, segundo o princípio da especialidade, que deve nortear os casos de confronto de crimes, o crime em estudo, previsto no artigo 311-A, do Código Penal, deve prevalecer quando a conduta envolver os certames de interesse público descritos na norma.


A princípio o novo crime não se enquadra no conceito de infração penal de menor potencial ofensivo (artigo 61, da Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995). Sucede que, nas figuras simples (“caput” e parágrafo primeiro), será perfeitamente admitida a chamada suspensão condicional do processo (artigo 89, da Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995). Por derradeiro, resta anotar que o crime em estudo se processa mediante ação penal de iniciativa pública incondicionada.


 


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Informações Sobre o Autor

David Pimentel Barbosa de Siena

Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, Especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura, Delegado de Polícia do Estado de São Paulo, Professor de Direito Penal da UniABC – Universidade do Grande ABC.


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