Se você foi contratado para uma função e está exercendo outra, essa situação pode configurar desvio de função, o que é uma irregularidade trabalhista. O empregador não pode contratar o trabalhador para determinada atividade e exigir, de forma permanente, o desempenho de tarefas de cargo diferente sem ajuste formal ou pagamento compatível com as novas responsabilidades. Essa prática pode gerar o direito a diferenças salariais e, em alguns casos, indenização.
Neste artigo, vamos abordar detalhadamente o que caracteriza o desvio de função, a diferença entre acúmulo e desvio, como a Justiça do Trabalho entende essas situações, quais são os direitos do trabalhador prejudicado, como reunir provas e qual é o caminho para buscar a reparação. Também explicaremos as exceções permitidas por lei, os limites do poder diretivo do empregador e apresentaremos exemplos práticos para facilitar a compreensão do tema.
O que é desvio de função
Desvio de função ocorre quando o trabalhador é contratado formalmente para exercer uma determinada atividade, mas, no cotidiano do trabalho, passa a executar tarefas pertencentes a outra função, geralmente mais complexa, com maior responsabilidade ou que exige maior qualificação, sem alteração no registro da carteira ou aumento salarial proporcional.
Por exemplo, se uma pessoa é contratada como auxiliar administrativo e, ao longo do tempo, passa a exercer as funções típicas de um analista, elaborando relatórios, conduzindo reuniões e assumindo decisões, isso caracteriza desvio de função.
O ponto central para configurar o desvio de função é que as tarefas que o trabalhador executa no dia a dia não correspondem às descritas no contrato de trabalho ou no cargo registrado na carteira.
O que diz a legislação trabalhista
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) não define de forma literal o termo “desvio de função”, mas protege o trabalhador por meio do princípio da irredutibilidade salarial e da boa-fé objetiva. A jurisprudência dos tribunais do trabalho, com base em diversas decisões, entende que o empregador não pode alterar a função do trabalhador sem consentimento e sem ajustar a remuneração à nova realidade.
O artigo 456 da CLT estabelece que, na falta de cláusula expressa, o empregado se obriga a todo e qualquer serviço compatível com a sua condição pessoal. Porém, isso não autoriza o empregador a promover o trabalhador informalmente para funções superiores sem o devido reconhecimento contratual e salarial.
Diferença entre desvio de função e acúmulo de função
É importante diferenciar o desvio de função do acúmulo de função, pois os efeitos legais são distintos.
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Desvio de função: o trabalhador deixa de executar suas tarefas originais e passa a exercer outra função diversa daquela para a qual foi contratado, sem ajuste formal.
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Acúmulo de função: o trabalhador mantém suas atribuições iniciais, mas passa a acumular outras atividades de outro cargo ou setor, também sem compensação financeira.
Exemplo de acúmulo: um recepcionista que, além de atender ao público, é obrigado a limpar o ambiente ou fazer controle financeiro. Nesse caso, ele acumula funções diferentes da original.
Ambas as situações podem gerar direito a adicional de função ou pagamento de diferenças salariais, desde que comprovadas.
Quando o desvio de função é caracterizado
O desvio de função é caracterizado quando há:
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Registro em carteira ou contrato prevendo uma determinada função;
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Exercício contínuo, habitual e significativo de atividades não compatíveis com a função contratada;
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Ausência de ajuste formal no contrato de trabalho ou de promoção por parte da empresa;
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Ausência de pagamento equivalente ao cargo efetivamente desempenhado.
A simples realização de tarefas esporádicas ou de menor complexidade fora da função original não configura desvio, salvo se houver habitualidade, permanência e prejuízo ao trabalhador.
O que o trabalhador pode pedir em caso de desvio de função
Se comprovado o desvio de função, o trabalhador pode pleitear judicialmente:
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Pagamento das diferenças salariais entre a função exercida e a registrada, com reflexos em férias, 13º, FGTS, horas extras, INSS, aviso-prévio e verbas rescisórias;
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Reconhecimento formal da função real, com possível retificação na carteira de trabalho;
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Indenização por danos morais, nos casos em que o desvio causa constrangimento, prejuízo à imagem profissional ou outras consequências graves;
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Equiparação salarial, se estiver exercendo função idêntica à de outro colega com salário superior.
Esses pedidos podem ser feitos em conjunto com uma reclamação trabalhista, mesmo após a rescisão do contrato.
Como reunir provas do desvio de função
Para que o trabalhador comprove o desvio de função na Justiça, é necessário apresentar indícios concretos e, preferencialmente, provas documentais ou testemunhais. Podem servir como prova:
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Testemunhas que confirmem as atividades desempenhadas;
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E-mails e mensagens que demonstrem atribuições típicas de outro cargo;
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Ordens de serviço, documentos assinados ou produzidos pelo trabalhador com responsabilidade além da função registrada;
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Registros de sistemas ou agendas com responsabilidades não compatíveis com a função original;
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Cópias de relatórios, planilhas, contratos ou comunicações internas atribuídas ao trabalhador.
É importante manter esses registros ao longo do tempo e não apenas após o encerramento do contrato, pois o ônus da prova recai sobre quem alega o desvio.
Quanto tempo o desvio precisa durar para gerar direito
Não há um prazo mínimo fixado em lei, mas a jurisprudência tende a considerar o critério da habitualidade. Ou seja, se o desvio de função ocorreu de forma frequente e contínua por vários meses, há fundamento para o pedido de diferenças salariais.
Desvios pontuais, em substituições rápidas ou em períodos de férias de outros funcionários, geralmente não dão direito à reparação. Já um desvio que perdura por três meses ou mais, com constância e sem compensação, pode fundamentar uma reclamação válida.
Pode haver mudança de função por ordem da empresa?
Sim, o empregador possui o chamado poder diretivo, que permite alterar atividades internas conforme a necessidade do negócio, desde que a nova função seja compatível com a qualificação profissional do empregado e não represente prejuízo.
Contudo, se a nova função for mais complexa, com maior responsabilidade ou diferente da natureza original do contrato, a mudança só pode ocorrer com:
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Consentimento do trabalhador;
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Alteração do contrato de trabalho;
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Ajuste no salário, quando houver alteração substancial das atribuições.
Caso contrário, caracteriza-se desvio de função ou alteração contratual lesiva, que é vedada pelo artigo 468 da CLT.
E se o trabalhador aceitar exercer outra função?
Mesmo que o trabalhador aceite, por medo de represálias ou com esperança de promoção futura, a ausência de formalização dessa mudança não exime o empregador das obrigações legais.
A Justiça do Trabalho reconhece que o trabalhador não pode renunciar a direitos indisponíveis. Ou seja, não é válido o acordo tácito em que o empregado aceita trabalhar em cargo superior recebendo menos do que o devido.
O tempo em que o empregado exerceu a função superior poderá ser considerado para fins de progressão de carreira, promoção e pagamento das diferenças salariais.
Quais são os riscos para a empresa
Empresas que mantêm trabalhadores em desvio de função estão sujeitas a:
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Ações trabalhistas com pedidos de diferenças salariais;
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Pagamento de multas e indenizações por danos materiais e morais;
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Penalizações em auditorias fiscais e trabalhistas;
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Questionamentos sobre planos de cargos e salários;
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Problemas com a equiparação salarial entre colegas.
Além dos valores retroativos, a empresa também pode ser condenada a ajustar imediatamente a função e o salário do trabalhador.
Desvio de função no serviço público
No serviço público, o desvio de função também é irregular, mas as consequências variam. De modo geral:
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O servidor público que exerce função diversa da prevista no edital não tem direito à equiparação salarial automática;
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A jurisprudência admite o pagamento de indenização pelas diferenças acumuladas no período em que o desvio foi constatado;
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O servidor não pode ser efetivado automaticamente no cargo desviado, exceto por concurso público;
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O órgão público pode responder por danos se mantiver a prática irregular.
Assim, no setor público, o desvio de função também deve ser combatido e reparado, embora os efeitos sejam diferentes do setor privado.
Exemplo prático de desvio de função
Imagine que uma trabalhadora foi contratada como recepcionista com salário de R$ 1.600. Após dois meses, ela passou a fazer o controle financeiro da empresa, emitir notas fiscais, elaborar relatórios contábeis e prestar contas ao escritório de contabilidade.
Essas atividades são típicas de uma assistente administrativa ou auxiliar contábil, cuja média salarial na empresa é de R$ 2.300. No entanto, sua função na carteira não foi alterada e seu salário permaneceu o mesmo.
Neste caso, há indício claro de desvio de função com prejuízo financeiro, o que pode gerar:
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Pedido de pagamento da diferença salarial (R$ 700 mensais)
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Recolhimento retroativo do FGTS e INSS com base no novo valor
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Reflexos em 13º, férias, horas extras e rescisão
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Atualização da função na carteira de trabalho
Perguntas e respostas
Fui contratado como auxiliar, mas faço tarefas de supervisor. Isso é desvio de função?
Sim, se as atribuições exercidas forem compatíveis com as de supervisor e o contrato não tiver sido alterado formalmente, há desvio de função.
Desvio de função dá direito à demissão por justa causa?
Não. O desvio de função é uma falha do empregador. O trabalhador não pode ser punido por aceitar ordens superiores sem compensação.
Aceitei trabalhar na função diferente, mas não assinei nenhum contrato novo. Posso reclamar?
Sim. A aceitação tácita não significa renúncia aos direitos. Você pode exigir judicialmente o pagamento das diferenças e o reconhecimento da nova função.
Qual o prazo para reclamar o desvio de função na Justiça?
Você pode ajuizar ação até 2 anos após o fim do contrato, e os valores podem ser cobrados até 5 anos antes da data do ajuizamento.
Trabalhei 4 meses fora da função contratada. Tenho direito a algo?
Se você exerceu outra função de forma contínua, com carga e responsabilidade diferentes, tem direito a diferenças salariais proporcionais ao período.
Preciso de testemunhas para provar o desvio?
Testemunhas ajudam muito, mas você também pode apresentar documentos, mensagens, e-mails e outras provas que demonstrem as tarefas realizadas.
A empresa me promoveu informalmente, mas não aumentou meu salário. Isso é legal?
Não. A promoção deve vir acompanhada de reajuste compatível e alteração formal do contrato.
Posso pedir indenização por danos morais por desvio de função?
Depende. Se o desvio causar constrangimento, desgaste emocional ou prejuízo à imagem, é possível pleitear indenização, além das verbas salariais.
A empresa pode me rebaixar de volta à função anterior sem aviso?
Não. Redução de função ou salário sem acordo é ilegal. Qualquer mudança lesiva ao trabalhador deve ser evitada.
Tenho direito à equiparação com colega que faz o mesmo trabalho, mas recebe mais?
Sim. A CLT prevê equiparação salarial quando duas pessoas exercem função idêntica, com mesmo tempo na empresa e sem diferença de produtividade.
Conclusão
Ser contratado para uma função e exercer outra configura, em muitos casos, desvio de função — uma prática vedada pela legislação trabalhista brasileira. O empregador não pode transferir o trabalhador para outra atividade, especialmente de maior complexidade, sem alterar o contrato de trabalho e sem pagar o salário correspondente. O desvio de função prejudica o trabalhador e pode gerar diferenças salariais, reflexos em todas as verbas trabalhistas e, em casos mais graves, até indenização por danos morais.
É essencial que o trabalhador fique atento aos seus direitos, registre as alterações que ocorrem no dia a dia, e procure orientação profissional quando perceber que está exercendo atividades além do que foi contratado. Do lado da empresa, a boa prática exige clareza, transparência e respeito à função acordada. Manter o contrato atualizado e compatível com a realidade evita litígios, protege a reputação da empresa e assegura uma relação de trabalho mais justa para todos os envolvidos.