O delito de furto se consuma pela subtração da coisa alheia móvel, a qual o próprio Código Penal equipara a energia elétrica ou quaisquer outras energias que possuam expressão econômica (art. 155, §3º). Conforme preleciona Cezar Roberto Bitencourt, “qualquer outra energia, além da elétrica, é igualmente equiparada à coisa móvel. Outros tipos de energia – animal, humana, industrial etc. – podem ser objeto de furto, desde que possam ser subtraídos e possuam valor econômico, tais como energia térmica, mecânica, genética, radioatividade etc.”[1].
A propósito, desde a Exposição de Motivos do CP (n. 56) se vê que “para afastar qualquer dúvida, é expressamente equiparada à coisa móvel e, conseqüentemente, reconhecida como possível objeto de furto, a ‘energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico’. Toda energia economicamente utilizável e suscetível de incidir no poder de disposição material e exclusiva de um indivíduo (como, por exemplo, a eletricidade, a radioatividade, a energia genética dos reprodutores etc.) pode ser incluída, mesmo do ponto de vista técnico, entre as coisas móveis, a cuja regulamentação jurídica, portanto, deve ficar sujeita”.
Embora, num primeiro momento, pela mera interpretação gramatical do texto legal, possa parecer controvérsia de fácil solução, os tribunais e a doutrina vêm questionando acerca da adequação típica da conduta consistente na recepção não autorizada do sinal de televisão a cabo, inexistindo, até agora, consolidação de um entendimento a esse respeito.
Tal prática tem se difundido amplamente, por todo o mundo, causando evidentes prejuízos às empresas prestadoras desse serviço e ao erário, em face da não-arrecadação dos tributos incidentes[2].
Portanto, seja pela inexistência de um consenso jurisprudencial e doutrinário, seja porque se trata de prática que vem se propagando mundialmente, o tema ganha relevância e merece aqui ser examinado, sem, obviamente, a pretensão de exaurir a discussão existente, mas sim de demonstrar as visões jurídicas já conhecidas e de agregar-lhe uma análise crítica.
Pelo que se verifica, tanto em nível doutrinário quanto jurisprudencial, existem três correntes de entendimento a respeito da temática proposta: uma que caracteriza a conduta como delito de furto (art. 155, caput, c/c §3º, do CP), outra que admite somente a configuração do crime de estelionato (art. 171, caput, do CP) e outra que a considera atípica[3].
Quando se trata do furto de energia elétrica, a síntese da distinção entre as hipóteses de estelionato e de furto, em sede doutrinária, é feita por Magalhães Noronha, conforme registra Paulo José da Costa Jr.: “Magalhães Noronha entende que se o consumidor desviar a corrente elétrica, sem que ela passe pelo registro, haverá furto. Se, ao revés, ‘modificar o medidor, para acusar um resultado menor do que o consumido, há fraude, e o crime é estelionato”. A crítica vem a seguir: “No estelionato, a vítima, ludibriada, entrega espontaneamente a coisa ao agente. Na espécie apresentada, o que se verifica é o furto qualificado pela fraude, que se destingue do ardil que integra o estelionato”[4].
Há, ainda, um acórdão do Supremo Tribunal Federal que também manifesta essas distinções:
“Furto de energia elétrica. Adulterações sucessivas de medição de consumo de energia elétrica constante do relógio-contador configura crime continuado de furto, qualificado pela fraude (CP, art. 155, §4º, II). Com base nesse entendimento, a Turma indeferiu habeas corpus em que alegava a errônea classificação dos fatos pelo acórdão do Tribunal de Alçada do Estado do Rio Grande do Sul que alterara a classificação do delito, estipulada na sentença de primeiro grau como crime de estelionato (CP, art. 171), para crime de furto de energia elétrica. Precedente citado: HC 72.467-RS (RTJ 159/588)”[5]
Quando se trata, especificamente, de uso desautorizado de sinal de TV a cabo, encontram-se também ponderações no sentido de que esta conduta seria atípica.
Como defende João Eduardo Grimaldi da Fonseca, “quem intercepta o sinal de televisão a cabo não o tira, faz desaparecer, retira ou, nem mesmo em última análise, dele se apodera. Não há desfalque no patrimônio, o prejuízo decorre do que a empresa – em virtude da utilização indevida do sinal de retransmite – deixa de receber, não do que desta se subtrai”[6].
Portanto, em síntese, a comunidade jurídica convive com três entendimentos bem distintos[7].
Na Justiça de São Paulo, por exemplo, há decisões no sentido de que a conduta…
a) configura o delito de furto
“Furto de energia. Agente que subtrai, por meio de ligações clandestinas, teletransmissões via cabo, de considerável valor econômico. Caracterização: o ilícito penal a que faz menção o art. 35 da Lei nº 8.977/95. pelo qual deve ser condenado o agente que subtrai, por meio de ligações clandestinas, teletransmissões via cabo de considerável valor econômico, é o disposto no art. 155, ‘caput’, c.c. seu §3º, do CP. As imagens de um serviço de televisão a cabo somente chegam ao seu destino impulsionadas por ondas eletromagnéticas, configurando sua subtração, portanto, furto de energia” (TACrim, Apelação nº 1334393/2, Rel. Dr. Oliveira Passos, j. 26/06/2003).
b) é atípica
“Furto. Descaracterização. Utilização de sinal televisivo pago através de ligação clandestina e/ou irregular. Fato considerado pelo perito como procedimento fraudulento. Irrelevância. Hipótese que não se enquadra no disposto no art. 155, §3º, do CP. Configuração de mero ilícito civil” (TACrim, RT 820/594)[8]
Outro exemplo de dissídio jurisprudencial ocorre no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, onde já se entendeu que o fato…
a) configura estelionato
Furto – estelionato – sinal de tv a cabo. O sinal de tv a cabo não pode ser equiparado a energia elétrica (art. 155, § 3º), pois embora tenha valor econômico não é energia. A ligação clandestina de tv a cabo configura estelionato. Possibilidade de nova definição jurídica para o mesmo fato, pois não existe inovação acusatória. Considerando o pequeno prejuízo causado, o fato e considerado privilegiado, pois primário o agente. Recurso defensivo provido em parte, redefinida a conduta criminosa, aplicando apenas sanção pecuniária. (Apelação Crime Nº 70001779305, Sexta Câmara Criminal, Relator: Des. Ivan Leomar Bruxel, Julgado em 09/08/2001)
b) é atípico
Acusação de furto de sinal de tv a cabo. Fato atípico. Acusação de furto de sinal de tv a cabo. Impossibilidade de equiparação ao furto de energia elétrica. Analogia “in malam partem” proibida no direito penal. Conduta de religar tv a cabo não se enquadra na tipicidade do par.3º do art.155 do CP. Mero ilícito civil que não deve ser combatido em âmbito criminal. Absolvição que se impõe. Apelo provido para absolver o apelante. (Apelação Crime Nº 297039505, Segunda Câmara Criminal, Relator: Des. Alfredo Foerster, Julgado em 02/04/1998)
Ao menos pelo que se tem conhecimento, o Superior Tribunal de Justiça ainda não se pronunciou de forma definitiva a respeito do assunto, mas tem admitido que os fatos sejam investigados sob o enquadramento inicial como crime de furto. É o que permitem entender os seguintes precedentes: Hábeas-Córpus nº 21.175-SP, Relator Ministro Paulo Medina, julgado em 03.02.2004, e Hábeas-Córpus nº 17.867-SP, Relator Ministro Gilson Dipp, julgado em 17.12.2002.
Assim, é forçoso reconhecer que há três entendimentos distintos já aceitos pelos tribunais em relação ao tema.
Então, a questão que fica, à primeira vista, sem resposta diz respeito às razões que levam os tribunais a travar tão viva discussão sobre a tipicidade ou não da recepção não autorizada de sinal de TV a cabo, quando isso não se verifica, sequer em menor intensidade, em relação aos chamados furtos de energia elétrica (sentido estrito) e de linha ou impulso telefônico.
Com efeito, não destoa a jurisprudência quanto à afirmação da adequação típica do furto de energia elétrica, bem como de linha telefônica. Vejamos, apenas a título de exemplo, os seguintes julgados:
“Participa da consumação do furto consistente na subtração de energia elétrica aquele que se utiliza de telefone clandestino ligado àquela energia e à linha de outro aparelho, acarretando prejuízo a seu proprietário, com o aumento dos impulsos, e à concessionária do serviço público (RT 622/292)”[9]
FURTO DE ENERGIA. IMPULSO TELEFÔNICO. CRIME CARACTERIZADO.
Conforme reiterada jurisprudência, o furto do impulso telefônico também caracteriza o delito do §3º do artigo 155 do Código Penal, porque há a subtração de energia, a qual permite o funcionamento do sistema telefônico, podendo ela, a exemplo da energia elétrica, ser equiparada à coisa móvel. Esta ação, além disso, acarreta prejuízo ao proprietário da linha telefônica, seja ele um particular ou a concessionária do serviço público (Apelação Criminal nº 70009002734, Sétima Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Rel. Des. Sylvio Baptista, julgada em 04.11.2004)[10]
CRIME DE FURTO DE IMPULSO TELEFÔNICO – CARACTERIZAÇÃO.
Nos termos do §3º do artigo 155 do Código Penal, equipara-se à coisa móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico, aí podendo ser incluídas a genética, a mecânica, a térmica e a radioativa, o que deixa certo que aquele que subtrai, para si, sinais de comunicação (impulsos telefônicos) de propriedade da TELEMAR, pratica o delito de furto, sendo flagrante o prejuízo sofrido pela empresa concessionária respectiva. (Apelação Criminal nº 0667/04, Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Rel. Des. Marcus Henrique Pinto Basílio, julgada em 20.04.2004)[11]
Por que, então, de um mesmo dispositivo legal, no caso o parágrafo 3º do art. 155 do CP, surge uma interpretação mais flexível quando se trata de subtração de sinal de TV a cabo, mantendo-se um entendimento rígido em relação ao “gato” para furto de energia elétrica ou linha telefônica?
Se admitirmos como verdadeiro que a TV a cabo é um serviço utilizado por aqueles que possuem condições financeiras melhores, ou, em outras palavras, pela elite, estamos, assim, autorizados a afirmar que estamos diante de mais um exemplo do “direito penal de castas” que vige no país.
Aparentemente, as interpretações que levam a entender atípico o uso desautorizado do sinal de TV a cabo estão imbuídas dos mesmos motivos que levaram os legisladores a, por exemplo, criar normas que tornam praticamente impossível a punição dos denominados criminosos do “colarinho branco”.
Foi assim, dentre outros exemplos, quando se editou o art. 34 da Lei nº 9.249/95, que determinou a extinção da punibilidade das infrações contra a ordem tributária e econômica, quando o agente efetuar o pagamento do tributo ou contribuição social antes do recebimento da denúncia. Equivale a dizer que quem subtrai objeto de algum valor do patrimônio individual de outrem será certamente punido, tendo, no máximo, direito a uma redução da pena, caso devolva o bem subtraído até a propositura da ação penal. De outra parte, quem subtrai valores muito mais expressivos de cofres públicos tem, quando identificado, a benesse legal de poder devolver o produto dessa subtração e, com isso, ver-se livre da persecução criminal.
Por outro lado, retornando à análise do tema central, sabe-se que tanto o impulso telefônico quanto o sinal de TV a cabo são transmitidos pela mesma energia: a elétrica.
Ademais, cabe lembrar a norma contida no art. 35 da Lei nº 8.977/95: “Constitui ilícito penal a interceptação ou a recepção não autorizada dos sinais de TV a Cabo”.
Logo, talvez a falta de técnica e de preocupação com o sistema justifique não ter havido a conseqüente alteração da redação do parágrafo 3º do art. 155 do CP, mas a intenção de afastar o questionamento acerca da criminalização da conduta está evidenciada.
Portanto, se o Direito deve ser entendido como um sistema, parece que pelo menos não faz mais sentido falar em analogia in malam partem.
Em razão disso, pode-se concluir que a corrente doutrinária e jurisprudencial que entende atípica a conduta consistente na interceptação desautorizada de sinal de TV a cabo está a merecer ao menos uma reflexão crítica quanto às suas razões jurídicas, pois talvez esteja reproduzindo a tendência de pretendermos punir aquelas práticas distantes da nossa realidade, enquanto, por outro viés, blindamos contra os rigores da lei penal os responsáveis por fatos delituosos mais próximos, que são apenas aparentemente menos reprováveis.
Informações Sobre o Autor
Emerson Pinto Pinheiro
Graduado pela PUCRS, aluno da Escola Superior da Magistratura-RS, Secretário de Desembargador do Tribunal de Justiça do RS