A pandemia de Covid-19 produziu profundas alterações na prática dos operadores do Direito. De maneira repentina, os tribunais e varas tiveram que se adaptar ao meio virtual para a prática de praticamente todos os atos processuais, de maneira a preservar o distanciamento social e diminuir a velocidade de transmissão do vírus. Com isso, as audiências foram quase que integralmente migradas para o âmbito virtual, inclusive no processo penal e abrangendo até mesmo atos como o interrogatório, cuja realização remota era tratada como uma excepcionalidade pela lei, em hipóteses limitadas previstas pelo art. 185, § 2º, do CPP.
Nesse cenário, diversos atos foram editados pelo Poder Judiciário para a implementação de audiências virtuais, transformando a excepcionalidade prevista pela lei em regra. Nesse sentido, destaca-se a resolução nº 354/2020 do CNJ, uma das principais emitidas pelo órgão, previu que o deferimento da participação por videoconferência dependia de viabilidade técnica e se submetia ao juízo de conveniência do magistrado (art. 5º, §2º). Já no âmbito do Tribunal de Justiça de São Paulo, o Comunicado nº 284/2020, no mesmo sentido do supracitado, estipulou que as audiências poderiam ser realizadas por meio de videoconferência, a critério do magistrado responsável.
Os atos normativos vigentes nesta temática, porém, são inadequados à realidade atual, uma vez que editados quando o isolamento social era uma política pública e os tribunais estavam operando 100% em regime de home office. No presente momento, no qual a maioria das medidas restritivas foi revogada, o estabelecimento de um regime de gradual retorno às atividades presenciais pelos tribunais não foi acompanhado por novas normativas regulamentando em que situações as audiências devem ser realizadas presencial ou virtualmente.
Nesse cenário, sem diretriz legal, a prática jurídica tem mostrado que o modelo de audiência aplicado no caso concreto se tornou verdadeira loteria, com discricionariedade do magistrado para a adoção do formato da audiência. Na prática, quando a audiência é designada na modalidade presencial, os magistrados têm acolhido os pedidos defensivos de conversão em virtual somente quando as testemunhas ou interrogados apresentam comprovação de alguma impossibilidade de comparecimento físico.
Diante da ausência de regulamentação estrita dessas hipóteses, diversas incongruências surgem na prática forense. Uma das mais relevantes é a referente à realização de interrogatório de réu foragido, que possui em seu desfavor mandado de prisão pendente de cumprimento. Nesse caso, o principal debate se refere à possibilidade de realização do interrogatório por videoconferência, com participação do réu foragido.
Essa questão entrou definitivamente na pauta de temas em debate no processo penal após a concessão de medida liminar pelo Ministro Edson Fachin nos autos do HC nº 214.916/SP, no STF. Nesse caso, o Ministro reconheceu que o réu foragido poderia participar de audiência virtual de instrução e julgamento, permitindo-lhe acompanhar os depoimentos e ser interrogado por vídeo conferência. Na origem, a juíza havia indeferido o pedido defensivo afirmando que a designação de audiência virtual não poderia “privilegiar o menosprezo do réu com a aplicação da lei penal”, bem como que a condição de foragido representaria uma renúncia tácita ao direito de participar dos atos processuais. Ao final, decretou a revelia do acusado e concluiu que a sua participação está condicionada ao cumprimento do mandado de prisão.
No STJ, há dois relevantes precedentes sobre o assunto (HC 640.770/SP e RHC 148.983/AL) que contrariam a posição externada pelo Min. Fachin, sendo que em ambos foi negado ao réu foragido a participação na audiência por videoconferência, por entender que a permissão refletiria uma forma de premiação a quem está nesta condição. Assim, permitir a presença do réu feriria o princípio da boa-fé objetiva e o postulado de que ninguém pode se beneficiar da sua própria torpeza. Em um deles, inclusive, menciona-se violação ao princípio da cooperação entre as partes e o juiz na instrução processual.
No entanto, contrariando tal posicionamento, o Min. Fachin entendeu que o acusado tem o direito de participar de um processo penal exercendo na máxima amplitude o direito ao confronto, à ampla defesa e ao contraditório, que são princípios cardeais do processo penal e consectários lógicos do devido processo legal. Nesse sentido, refutou a justificativa de que haveria renúncia tácita ao direito de participar da audiência, tanto porque o réu pode comparecer espontaneamente a qualquer tempo, nos termos do art. 185 do Código Penal, quanto porque houve pedido expresso da defesa de realização de audiência virtual. Em acréscimo, estabeleceu que não há lei que determine que o réu foragido esteja impedido de participar dos atos processuais e, mesmo que estivesse, seria inconstitucional por ferir a função do processo penal de garantir a máxima eficácia dos direitos fundamentais.
Apesar da aparente incongruência, a nossa posição vai no mesmo sentido da adotada pelo Min. Edson Fachin. Isso se dá principalmente porque não há nenhuma previsão legal de sanção processual para a situação de foragido. A revelia no processo penal ocorre em duas situações: (i) quando o acusado é citado ou intimado pessoalmente e não comparece ou quando não comunica o novo endereço ao juízo (art. 367, CPP) e (ii) quando o acusado é citado ou intimado por hora certa e não comparece (art. 362, CPP). Seus efeitos, todavia, não são os mesmos do processo civil, não gerando o efeito processual de presumir-se verdadeiros os fatos alegados na inicial ou da perda da faculdade de praticar atos processuais
No processo penal o único resultado da revelia é a desnecessidade de intimação do acusado para os demais atos processuais. Se o réu revel não sofre qualquer mitigação na ampla defesa e no contraditório em decorrência dessa condição, inclusive, devendo seu defensor constituído continuar sendo intimado, do mesmo modo não deve sofrer o réu foragido, declarada a revelia ou não.
No mais, tais situações não maculam o direito de comparecer nos atos instrutórios, sendo facultado, a qualquer tempo, se apresentar. O que ocorre normalmente no formato presencial é a consequência do cumprimento do mandado de prisão, unicamente pela possibilidade fática que decorre: a presença do réu diante de autoridades facilita o seu recolhimento. Trata-se de uma questão eminentemente de facilidade prática, mas não uma condição imposta pela lei para que participe dos atos processuais.
A isso se soma o fato de que a participação do réu nos atos processuais e a realização de seu interrogatório são desdobramentos naturais e indispensáveis do exercício da ampla defesa, na face da autodefesa, e do contraditório. Qualquer restrição a esse direito deve ser prevista em lei, proporcional e amparada em justificativa igualmente importante do ponto de vista constitucional, o que não se aplica ao caso analisado.
Ademais, não há como privilegiar o dever de cooperação das partes ou então a boa-fé objetiva que sequer são princípios inerentes ao processo penal sobre a ampla defesa, de matriz constitucional. Não se trata de sustentar que é direito absoluto e soberano, mas não há como negar sua proeminência, ao menos prima facie, com relação a princípios previstos no Código de Processo Civil.
A falta de regulamentação das audiências virtuais e de suas hipóteses de realização prejudica a segurança jurídica e dá espaço ao arbítrio judicial. Sendo assim, diante da ausência de regulamentação legal, a solução dada pelo Min. Fachin é adequada para permitir o exercício da ampla defesa em sua máxima plenitude, especialmente diante do fato de que a lei não prevê a revelia como sanção para a situação do réu foragido. Deve se observar se futuras mudanças legais nesse sistema terão o condão de alterar essa realidade.
Escrito por
Pedro Luís de Almeida Camargo, advogado criminalista. Pós-graduado em Direito Penal Econômico pelo Instituto dos Advogados de São Paulo e Universidade de São Paulo Fundação Arcadas (2019-2020). Especialista em Obtenção, Interpretação e Valoração da Prova pela Universidade de Salamanca (2020). Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo (2016). E-mail: [email protected]
Lívia Fabbro Machado, advogada criminalista. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP, 2020). E-mail: [email protected]