Resumo: Pela articulação entre os preceitos busca-se um sentido criativo, propositivo, para a vida social que eleve do estado de dormência ética e mera eloquência político-jurídica. Trata-se de instigar uma consciência para a vida social, destacando-se o objetivo de se viver: a exemplo dos sobreviventes do Holocausto que, teimosamente, se recusam a desistir e morrer.
Pela articulação entre os preceitos busca-se um sentido criativo, propositivo, para a vida social que eleve do estado de dormência ética e mera eloqüência político-jurídica. Trata-se de instigar uma consciência para a vida social, destacando-se o objetivo de se viver: a exemplo dos sobreviventes do Holocausto que, teimosamente, se recusam a desistir e morrer.
Para absorver as melhores experiências de descentramento que afinem o relacionamento social, é inspirador reler o jurista Warat:
“Vivemos em sociedades burocráticas, porque nelas se encontram afirmadas as texturas de uma disciplina simbólica que fundamenta os jogos políticos da dominação […] A transformação da intertextualidade em uma atmosfera pétrea de significações serve de suporte para os efeitos políticos dos complexos burocráticos que tecem nosso social […] Divisão do social e dissimulação dessa divisão em nome de múltiplas unidades que, por sua vez, resultam eufemisticamente unificadas na forma una da história. Simular a unidade é o segredo da dominação […] O social não existe em si […] Toda prática social inscreve-se necessariamente em uma ordem intertextual. Sendo essa ordem porosa, teremos democracia; petrificando-a a qualquer preço para obter a uniformidade, teremos então o totalitarismo” (Warat, 2000, pp. 74-78).
A Inteligência Ética nega o cinismo e a indiferença social, pois precisamos ler o mundo com a clareza da responsabilidade. Busca-se lutar contra a reclusão social derivada do medo e da paralisia diante da negação de si e do Outro. Entende-se que é preciso denunciar o Mal do analfabetismo ético e político (Bertolt Brecht[1]). Deve-se desligar do automatismo, como nos diz o filósofo Adorno:
“O símbolo da inteligência é a antena do caracol “com a visão tateante” […] Diante de um obstáculo, a antena é imediatamente retirada para o abrigo protetor do corpo, ela se identifica de novo com o todo e só muito hesitantemente ousará sair de novo como um órgão independente […] O corpo é paralisado pelo ferimento físico, o espírito pelo medo […] A repressão das possibilidades pela resistência imediata da natureza ambiente prolongou-se interiormente, com o atrofiamento dos órgãos pelo medo […] Esse primeiro olhar tateante é sempre fácil de dobrar, ele tem por trás de si a boa vontade, a frágil esperança, mas nenhuma energia constante. Tendo sido definitivamente afugentado da direção que queria tomar, o animal torna-se tímido e burro” (Adorno & Horkheimer, 1985, pp. 239-240 – grifos nossos).
A Inteligência Ética instiga talentos para a emancipação, com um tipo de aprendizado com base em estímulos e motivação — o próprio Adorno (1995) citava que sua formação se deveu a ter pensamentos não-assegurados. Como ensina Umberto Eco, nada mais indiferente do que não se opor à negação da vida – neste caso, o compromisso ético com a vida social exige um combate sério ao proto-fascismo. Nosso compromisso político deve ser pelo combate ao analfabetismo ético:
“1. A primeira característica de um Ur-Fascismo é o culto da tradição. Todas as mensagens originais contêm um germe de sabedoria e verdade primitiva. Como conseqüência, não pode existir avanço do saber. 2. O tradicionalismo implica a recusa da modernidade. O Iluminismo, a Idade da Razão eram vistos como o início da depravação moderna. Nesse sentido, o Ur-Fascismo pode ser definido como irracionalismo. 3. O irracionalismo depende também do culto da ação pela ação. A ação é bela em si e, portanto, deve ser realizada sem nenhuma reflexão. 4. Nenhuma forma de sincretismo pode aceitar críticas. Para o Ur-Fascismo, a crítica e o desacordo são traições. 5. O desacordo é, além disso, um sinal de diversidade cultural. O Ur-Fascismo é, portanto, racista por definição. 6. Uma das características típicas dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas. 7. Na raiz da psicologia Ur-Fascista está a obsessão do complô. Os seguidores têm que se sentir sitiados e o modo mais fácil de fazer emergir um complô é fazer apelo à xenofobia. 8. Os adeptos devem sentir-se humilhados pela riqueza ostensiva e pela força do inimigo. Os adeptos devem, contudo, estar convencidos de que podem derrotar o inimigo – com isso, porém, revelam-se incapazes de avaliar a força do inimigo. 9. Não há luta pela vida, mas antes vida para a luta. Logo, o pacifismo é conluio com o inimigo; o pacifismo é mau porque a vida é uma guerra permanente. 10. Há um elitismo popular, populista, que faz as massas sonharem com o poder. 11. Nessa perspectiva, cada um é educado para tornar-se um herói. Esse culto do heroísmo está estreitamente ligado ao culto da morte, não é por acaso que o mote dos falangistas era: “Viva la muerte”.” (Eco, 1998, p 43 e ss.) [2].
O automatismo, a indiferença e o analfabetismo ético nos conduzem a uma consciência maquínica (Guattari, 1991): um tipo especial de pensamento positivista é um pensamento positivo acerca da técnica e independente da ética. Sem nenhuma consideração do Mal provocado pelo analfabetismo ético, a consciência maquínica é um pensamento deslumbrado, formado à base da reificação: em que pessoas e máquinas são iguais, são igualmente “coisas”. Pela consciência embrutecida caminha o analfabetismo ético. Ainda que neste processo de contínuo “desencantamento do mundo”, de racionalização progressiva e “civilizatória”, como bem salientou Adorno (1995), haja momentos estupendos, infelizmente vemos dos mais estúpidos.
Os antagonismos continuam a existir, mas de maneira diferente. Por exemplo: o igualitarismo de fachada do mundo liberal dá lugar ao serialismo de mídia (mesmo ideal de status, mesmas modas); indiretamente, as mulheres ainda sofrem com a discriminação; os jovens aderem ao consumo da ética para se sentirem mais ajustados.
Como nos diz (Guattari, 1991), para que a sociedade não continue degradando-se, precisamos formar uma consciência de integração com o meio ambiente. Sem que isso ocorra, os problemas globais (trabalho infantil, degradação ambiental, desterritorialização) só tenderão a crescer, pois falta um agenciamento desses fatos, e com isso os problemas psicológicos também aumentam.
A época contemporânea está preocupada com a produção de bens materiais e imateriais, em detrimento da consistência de territórios existenciais individuais e de grupo, o que engendrou um vazio na subjetividade, deixando-a sem recursos. O CMI (comércio mundial integrado) colabora com esta desterritorialização, uma vez que controla a mídia, a publicidade – o dinheiro vem antes do humano.
Temos que agir para que, no contexto das novas distribuições das relações entre capital e atividade humana, as tomadas de consciência ecológica, feminista, anti-racista, estejam prontas para fazer valer os modos de produção da subjetividade, isto é, conhecimento, cultura, sensibilidade e sociabilidade.
Dessa forma as pessoas aprenderão a obedecer quando necessário, e a respeitar a individualidade alheia sem discriminação, inventando-se outros contatos de cidadania: ecologia social. O princípio comum às três ecologias consiste em tornar o território existencial habitável, por meio da praxis e em meio a um verdadeiro projeto humano.
As condições atuais do capitalismo avançado não permitem vivenciar outra sociabilidade que não sejam as atuais formas encontradas na abstinência ética encontrada na vida social sob a Multidão. Em meio a este sentimento de multidão insondável, de isolamento-aglomerado, só sentimos desnorteamento ético, desconcentração cultural e indiferença ideológica.
O sistema capitalista tem um caráter de equivalente geral para os modos de valorização, alienando-os à sua hegemonia. Ë necessário mudar esse quadro para que o interesse coletivo, a longo prazo, seja portador de enriquecimento processual para o conjunto da humanidade – com a criação de novos pólos de valorização. Porém, se nada for feito a esse respeito, junto com as espécies desaparecerão as palavras, as frases e os mínimos gestos de solidariedade humana.
Nada nos aproxima mais do sentido da vida do que priorizar formas de sociabilidade não-excludentes e combater o antagonismo. Trata-se de desejar e insistir em viver, como vemos na idéia de que o brasileiro “não desiste nunca”. A meta da Inteligência Ética é moldar uma educação para atacar o nojento e para se tornar infecto desse desejo de acirrar fileiras contra o Mal do analfabetismo ético, da paralisia individual e do automatismo social. Para Adorno (1975 & 1995), nojento é não combater o Mal Ético da Indiferença Social e, por isso, é preciso se infectar de um sentimento de responsabilidade social e ética.
Para a filósofa Hannah Arendt, nossa miríade pode estar nos clássicos, pois todos os clássicos têm uma verdade inaugural retida, uma lição para todas as épocas e formas de sociabilidade. Os clássicos têm o poder de revelar a essência de modo objetivo, direto e simples. Para Arendt, a lição vinda da tradição clássica grega é insuperável nos tempos da apatia, da descaracterização e da insuficiência de potencialidades:
“Com a expressão vita activa, pretendo designar três atividades humanas fundamentais: labor, trabalho e ação […] A ação, única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. Todos os aspectos da condição humana têm alguma relação com a política; mas esta pluralidade é especialmente a condição – não apenas a conditio sine qua non, mas a conditio per quam[3] – de toda vida política. Assim, o idioma dos romanos – talvez o povo mais político que conhecemos – empregava como sinônimas as expressões <viver> e <estar entre os homens> (inter homines esse), ou <morrer> e <deixar de estar entre os homens> (inter homines esse desinere)” (Arendt, 1991, p. 15 – grifos nossos).
A luta pelo reconhecimento do aneu logou (do alijado da vida social na Grécia antiga), hodiernamente, dá-se pelo direito, educação e emancipação. Para o grego, aneu logou era o indivíduo que não dominava a palavra, que não estava apto à conversação, ao diálogo. Mas, é curioso e estranho pensar que, pela tradição judaico-cristã, “o verbo se fez carne”. Fazer-se carne, “gente” (e não “coisa ou escravo”[4]) era o que faltava ao aneu logou, para ser homem livre. Pois, sem carne, sem voz! Para o homem moderno o que falta, não é exatamente “fazer-se carne”, mas sim protagonizar o que exclama por sua própria voz: daí a necessidade de uma teoria social crítica e de uma “luta pela afirmação e reconhecimento desses sujeitos serem autônomos”.
Pode-se dizer que se organizou a luta pelo reconhecimento dos sujeitos, das demandas, das classes, das ações, da “maioridade” e para que se legitimasse a “motivação dos justos”, inibindo-se a corrupção e os usurpadores. Não há luta pelo reconhecimento sem lutas pela conservação — toda luta pela autoconservação é uma luta política (Honneth, 2003). Por isso, da fera satisfeita virá o homem insatisfeito (à espera do próximo confronto):
“Tudo, em nossa sociedade (continuemos esse termo) é feito para que ninguém participe do conjunto do funcionamento social. O povo se sente distante da nação, os eleitores, dos homens políticos, os executivos, dos dirigentes das grandes empresas, os habitantes de uma região, dos de outra região (pelo fato de levar-se em conta as diferenças culturais), as mulheres, dos homens, os filhos, de seus pais… É desnecessário estender uma lista que logo se tornaria enfadonha. Participamos apenas de alguns segmentos do socius” (Enriquez, 2004, pp. 57-58).
Mas também o medium-direito precisa ser entendido como parte da luta do “mundo da vida” ao requerer/enfrentar o monopólio legislativo e coercitivo, em benefício da globalidade dos interesses sociais, exigindo-se muito mais legitimidade do que mera legalização[5]: “Por isso, tanto as regras morais, como as leis jurídicas, são ‘gerais’, em pelo menos dois sentidos. Em primeiro lugar, na medida em que se dirigem a muitos destinatários, não permitindo, pois, exceções; em segundo lugar, porque excluem privilégios ou discriminações na aplicação” (Habermas, 1997, p. 194). Portanto, pensando-se como sociedade civil, resta-nos pensar o processo de universalização do medium-direito fora do contexto e do alcance do Estado de Exceção, porque aí a exceção já foi devidamente (legalmente) incluída (Agamben, 2004). Nesta fase, o “privilégio do poder” suplantou o processo de generalidade jurídica e, assim, sistematicamente, passou a vigorar o poder controlativo.
Mas ainda se trata, hoje em dia, de luta pelo reconhecimento (agora da Justiça), “submetendo-se o sistema ao mundo da vida”, o direito à própria Justiça. Com isso, a defesa da soberania popular (se entendida como “ação política sobre o Estado”) se congrega ao mundo da vida e ao próprio Estado de Direito.
A Luta pelo Reconhecimento (Honneth, 2003), portanto, passa por aceitar e afirmar a educação como um “direito universal”, como obrigatoriedade estatal e como responsabilidade social, de toda a sociedade civil envolvida. Se é um direito universal, intransferível, então, não pode ser barganhado, comprado ou “oferecido a clientes”, por melhor que seja esse “produto”. Afinal, educação não é produto, é produzida pelo coletivo no processo democrático de aprendizagem. Por isso, educar passa por convencer a “responsabilizar-se pelo mundo” (Arendt), a “converter-se aos interesses da coisa pública” (na expressão de H. Arendt não quer dizer Estado!), ao espírito participativo, reflexivo.
A força está no movimento, tal qual o direito se apresenta na luta pelo reconhecimento; como vimos, há intensidade, força e duração na luta pelo reconhecimento do direito. É uma luta sem fim, milenar, pois pertence à condição humana de sempre requerer a Justiça, embora, na maioria das vezes, não haja educação suficiente para se pensar no que é certo para a maioria.
A luta pelo reconhecimento, portanto, é um processo de ensino-aprendizagem de abertura para o mundo, superando-se o estágio primário ou primitivo do “eu-mesmo”. Além do “eu-mesmo”, há outra luta pelo reconhecimento que não tem fim, pelo menos enquanto perdurar esse tipo de aprendizagem para “além-de-si”. Pois bem, esta é uma educação para algo em comum, e isto se define por República. Pode-se pensar na “educação para a virtus” (ética) como educação para o melhor que se tem a fazer ou, simplesmente, como educação republicana. É interessante notar como virtus evoluíra para uma concepção bem ordenada que mesclava os meios e os méritos de uma formação integrada entre teoria e prática.
No caso, a relação ética e técnica, essência/aparência, inseparável como forma/conteúdo, entre os vários sujeitos da relação social e “seus modos de construir, vivificar”, com suas “visões de mundo”, traria a modernidade, mas também a hipocrisia. Para Arendt (1991), “os homens, e não o Homem, habitam a Terra” e, por isso, o “novo” tanto se refere a novas gerações, com outras perspectivas, visões de mundo e modos de vida, quanto as mais profundas mudanças nas estruturas sociais, políticas, econômicas, culturais.
Como se a “educação do novo” estivesse prenhe e, ao mesmo tempo, necessitada da (re)construção do “mundo da vida” e do Estado de Direito. Indubitavelmente, a essência do homem é a liberdade, pois sem isto ele é coisa, “não-está-aí-para-si”, “não-está-aí-para-nada”. Aliás, este também é o princípio da educação, porque sem isso o indivíduo precisa ser comandado, “não tem autonomia para ser”: a não-autonomia do autômato. Ou seja, vê transferido para outros esse mesmo “direito de ser” e que, a ele também recobre (e mesmo que não o saiba ou perceba).
Por isso, uma educação que proponha desigualdades (de qualquer natureza ou gênero) que interfiram negativamente nas “formas de ser”, em que “apenas um se sinta inferior” e, assim se baste, não é educação: é obstrução. Desse modo, educação que não leve à liberdade é mera obstrução de todo e qualquer um que “queira ser”. Sem essa “consciência de que precisa ser”, a inferioridade é imposta até com parcimônia e qualquer potencialidade é subsumida às necessidades.
A primeira necessidade a ser superada seria este profundo sentimento de “não-liberdade”, de “não-ser”. A educação do sitiado, isolado, esquecido, excluído, abandonado pode/deve, então, levar à consciência da “necessidade da liberdade” – do “ser-livre-para-ver-o-Outro”. Na exata medida em que só vê o Outro, aquele que percebe a si mesmo, tal como é (ou poderia, deveria ser). O sitiado precisa ser um narrador de sua própria história.
A liberdade só é daquele que, realmente, é – ou melhor -, a liberdade é a primeira necessidade de quem não é. Portanto, a liberdade não é um direito e sim a primeira necessidade, e um caminho privilegiado para seu alcance é a própria “educação para a liberdade”, “para-ver-e-para-haver-o-Outro”. A liberdade é esta grande sensibilidade para ser e, “sendo-se”, é verdadeiro para si e para os outros, para todos. Por isso, a liberdade é concreta, tal qual a educação – e para não ser obstrução ao ser: todo aquele que não só quer, mas acima de tudo “precisa ser”.
Por outro lado, como seria “educar para sitiar”? Mas, para sitiar outros ou para se libertar? Não há educação para sitiar, talvez, uma educação para “a arte da guerra”, mas aí se trata da “guerra do sitiado”, contra o “não-ser” e que, para ele, é a “não-liberdade” e todos que dela propugnam. O poder instalado e muito menos a luta por ele tem desjejum, só a fome e a ferocidade para saciar a angústia de não sucumbir. Educação, liberdade, emancipação, autonomia, responsabilidade são, portanto, virtus, e exigem de nós uma atenção redobrada quanto aos princípios e “valores quanto aos meios”. Na República, o modus operandi é definidor, é basilar, como um princípio geral do “mundo da vida pública”.
A mesma história que nos conta essa trajetória da luta pelo reconhecimento e pelo direito, é a que afirmou a exceção como parte natural (naturalizada) da luta pelo direito. A mesma Constituição que preservava a vida, a dignidade, os direitos sociais, os direitos humanitários (já sensibilizados pela Primeira Guerra Mundial) trouxe, igualmente, a perspectiva em aberto de um poder espetacular.
Não há paz no passado, porque no passado não há o Outro: se houvesse essa/sua história seria contada diferentemente (algo que se conheceu, no passado, como “A História dos Vencidos”). Se hoje falamos do Outro, é porque no passado lutamos pelos outros e, logicamente, por nós mesmos. Portanto, a paz está no futuro da luta, porque é da luta do passado e das lutas do presente que o Outro persistirá (ou não), assim como nós.
Todavia, estamos e temos de sair da contramão da história, das negações do mundo real/atual, do desenraizamento (Weil, 1979), e sem que ocorra desdobramento virtuoso (fuga do egocentrismo) não é possível. Infelizmente, estamos/permenecemos restritos a falar de um suposto Outro; pejorativamente, de um outro que não é virtude, mas tão-só virtualidade, potencialidade quase-vazia de si mesma. As virtualidades são cada vez mais negociadas no mundo real. Assim, se o Outro é uma latência, virtualidade, virtuosidade a ser erigida, os mesmos são impotências massificadas, misérias humanas do que um dia poderiam ter se tornado. Na voz desesperada de um povo a ser abatido em sua existência cultural e referencial, vemos que estamos todos sitiados pela morte, pelo sentimento de não haver sentido para a vida social:
“Em Sarajevo, nos anos de sítio; não era raro ouvir, no meio do bombardeio ou das descargas de atiradores de tocaia, um habitante de Sarajevo gritar para os fotojornalistas, facilmente identificáveis graças ao equipamento pendurado em seu pescoço: “Vocês estão secos por uma explosão para poderem fotografar alguns cadáveres não é?” […] No decorrer do conflito, a maioria dos tarimbados jornalistas que cobriam os acontecimentos em Sarajevo não se manteve neutra. E os habitantes da cidade queriam que seus apuros fossem registrados em fotos: as vítimas têm interesse na representação de seus sofrimentos” (Sontag, 2003, p. 93).
Neste sentido proposto por Susan Sontag, trata-se dos direitos mais antigos que podemos reconhecer, retroagindo ao jusnaturalismo, se preferirmos. Entretanto, e ironicamente, o novo sujeito de direitos, da modernidade tardia, é o refugiado político-ambiental (o cidadão sem-lugar, o cidadão sem-pátria: o próprio utopos, como não-lugar) que mira o futuro aponta(n)do para problemas do passado-presente. Nessa luta pelo reconhecimento, entre passado, presente e futuro, é urgente o reconhecimento da legitimidade do debate, sob pena de vermos naufragarem o direito e as pessoas. Vivemos pelo sentimento incômodo, pois para os que são um pouco mais sensíveis diante da indiferença do Mal, lá onde havia o Outro, adveio o mesmo (Baudrillard, 1990).
A luta pelo reconhecimento é inerente à luta pela vida, por isso não pode se satisfazer à maneira tradicional de se responder aos desafios, simplesmente porque há uma dinâmica que leva a modificações constantes (algumas importantes). Assim, nosso objetivo/desafio é superar a uniformização e a administração dos sentidos da vida; rejeitar toda recaída, tentação ou regressão à barbárie e ao arcaísmo; defender vigorosamente o direito à diferença.
O objetivo geral em se agir para debelar o analfabetismo ético, portanto, está em debater e alargar a conceituação política e constitucional das práticas públicas sob a tutela da ética e dos princípios da cidadania, debatendo-se, sobretudo, a mitigação da responsabilidade pública.
Conseqüentemente, é preciso ter uma nova dimensão ou visualizar outra dimensão para nossa realidade — muitas vezes é preciso retornar ao passado, aos clássicos, para ali encontrar mais motivação, inspiração e “correição” dos atos que nos faltam. É preciso levar a sério todo comportamento anti-ético. A mesmice do analfabetismo ético insulta a inteligência social mas poucos se apercebem do Mal.
Informações Sobre o Autor
Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto I da Universidade Federal de Rondônia; Pós-Doutor em Educação e em Ciências Sociais (UNESP); Doutor em Educação (USP); Doutor em Ciências Sociais (UNESP); Mestre em Educação (UNESP); Mestre em Direito (Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro – PR); Bacharel em Direito e em Bacharel em Ciências Sociais (UNESP).