Resumo: O presente trabalho discute algumas questões relativas à Lei 9.296, que regula o procedimento de interceptação telefônica. É uma pesquisa básica, que utilizou o método qualitativo para abordagem do tema mediante pesquisa exploratória. Na busca de informações, foi utilizado levantamento bibliográfico no material relacionado ao assunto. Diante de tudo que foi estudado, conclui-se que para ser mitigado o direito constitucional de sigilo das comunicações telefônicas não basta que tal determinação parta de um juiz. Faz-se necessário que a ordem esteja em consonância com as determinações legais, podendo o executor direito da ordem, inclusive, impugná-las por meio de habeas corpus ou mandado de segurança, a depender da ordem.
Palavras-chave: interceptação telefônica, direitos fundamentais, garantias fundamentais, ordem ilegal, responsabilidade penal.
Sumário: 1. Introduçã 2. O sigilo das comunicações telefônicas x Lei 9.926, de 24 de julho de 1994. 3. Metodologia. 4. Considerações finais. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Não é novel na história do Brasil a utilização de formas ilegítimas e ilegais utilizadas por agentes públicos para conseguir provas sobre determinado crime a que se pretende apurar.
Visando a coibir abusos de poder, bem como à invasão inconstitucional da intimidade dos cidadãos brasileiros que, em decorrência de ações ilegais, derivem condenações, o Poder Legislativo editou a Lei 9.296/90, de 24 de julho de 1994, que trata do devido trâmite para o deferimento judicial de quebra de sigilo telefônico e de dados telemáticos, com a intenção de coibir a prática da interceptação por meios ilegais.
Em recente escândalo envolvendo altos cargos da Polícia Federal, diversas personalidades do plano político do Brasil, bem como o Ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Gilmar Mendes, veio à tona o que há tempos era utilizado sem qualquer controle por juízes de primeiro grau: o deferimento de mandados genéricos[1] de quebra de sigilo e interceptação telefônica.
Assim, quais os requisitos para a validade de uma ordem judicial de quebra de sigilo e dados telefônicos e quais os meios eficazes de impugnação dessas ordens judiciais?
2. O SIGILO DAS COMUNICAÇÕES TELEFÔNICAS x LEI 9.926, DE 24 DE JULHO DE 1994
A enorme quantidade de mandados de quebra de sigilo e interceptação telefônica e a forma indiscriminada com que essa ferramenta de investigação vem sendo usada pelo Ministério Público e pelas Polícias, com aquiescência do Poder Judiciário, não devem continuar a ser utilizadas da forma com vem sendo, pois ferem o espírito constitucional no que tange à proteção dos direitos fundamentais e individuais das pessoas. A Lei é clara ao dispor que essa ferramenta de investigação deve ser utilizada em última hipótese, haja vista afrontar normas constitucionais, o que não vem sendo observado por alguns Magistrados.
Para se ter uma ideia do uso indiscriminado dessa medida extrema, em matéria veiculada no jornal Folha de São Paulo de 7 de março de 2008, existiam, segundo dados fornecidos pelas empresas prestadoras de serviço telefônico, em 2007, cerca de 409 mil ordens judiciais nesse sentido, número absurdo.
Ponto relevante a ser observado é que, em virtude de deferimento de decisões judiciais de quebra de sigilo e interceptações telefônicas com conteúdo genérico, algumas empresas de telefonia se insurgiram contra tais ordens e viram-se coagidas por Magistrados a cumprir a ordem, sob pena de crime de desobediência.
Assim, o tema se mostra relevante no campo jurídico penal e constitucional, pois envolve direitos e garantias fundamentais do cidadão que são violados de forma arbitrária e ilegal, bem como consequências penais por eventual descumprimento da medida pelo Diretor responsável pela empresa de telefonia.
O artigo 5º, inciso XII da Carta da República dispõe de forma clara:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:(…)
XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.” (http://www.planalto.gov.br/)
Nesse sentido, por uma leitura isolada, poderíamos concluir que o referido dispositivo alberga de forma absoluta os direitos nele descrito. Todavia, não é essa a melhor interpretação a ser dada. Como se sabe, não há no ordenamento jurídico brasileiro direito absoluto. Sobre o tema, Grinover (2006) ensina que os direitos fundamentais trazidos pela Constituição Federal não podem ser, de forma absoluta, oponíveis ao Estado. Tais direitos são invioláveis, desde que não coloquem em risco o bem-estar, a segurança e as liberdades coletivas. Afirma ainda que a quebra do sigilo das correspondências e comunicação deve ser obstada toda vez que o exercício desse direito não venha a colocar em risco a segurança, caso em que pode ser afastada essa inviolabilidade, como por exemplo no caso de grupos voltados a atividades criminosas.
Conclui-se, portanto, que a melhor interpretação a ser dada ao dispositivo Constitucional é de que não prevalece sobre a ordem pública o direito fundamental e individual da pessoal, descrito no art. 5º, inciso XII, da CF/88, porém, para que tais direitos sejam violados, necessário se faz agir no estrito limite da legalidade.
Regulando o permissivo constitucional, foi editada a Lei 9.296, de 24 de julho de 1996, trazendo em seu bojo as hipóteses de cabimento da medida e requisitos de validade para que fosse deferida a medida extrema de interceptação telefônica. Assim:
“Art. 1º A interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, para prova em investigação criminal e em instrução processual penal, observará o disposto nesta Lei e dependerá de ordem do juiz competente da ação principal, sob segredo de justiça.
Parágrafo único. O disposto nesta Lei aplica-se à interceptação do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática.
Art. 2º Não será admitida a interceptação de comunicações telefônicas quando ocorrer qualquer das seguintes hipóteses:
I – não houver indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal;
II – a prova puder ser feita por outros meios disponíveis;
III – o fato investigado constituir infração penal punida, no máximo, com pena de detenção.
Parágrafo único. Em qualquer hipótese deve ser descrita com clareza a situação objeto da investigação, inclusive com a indicação e qualificação dos investigados, salvo impossibilidade manifesta, devidamente justificada. (…)
Art. 4º O pedido de interceptação de comunicação telefônica conterá a demonstração de que a sua realização é necessária à apuração de infração penal, com indicação dos meios a serem empregados. (…)
Art. 5º A decisão será fundamentada, sob pena de nulidade, indicando também a forma de execução da diligência, que não poderá exceder o prazo de quinze dias, renovável por igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova. (http://www.planalto.gov.br) (Grifos nossos)
Analisando de forma mais restritiva o preceito constitucional, Greco Filho (2005, pp. 17-8) conclui que a CF não autoriza a violação das demais formas de comunicação, senão a comunicação telefônica, entendendo pela inconstitucionalidade do Paragrafo Único do artigo 1º da Lei 9.296/90, mas essa posição é minoritária.
No contexto da disposição legal, conclui-se então que, para que a ordem judicial seja válida, legal, faz-se necessário que estejam presentes as exigências trazidas nos artigos 1º ao 5º, sob pena de nulidade do ato jurisdicional. Evidente que nas ordens enviadas às operadoras de telefonia não se deve informar todos os requisitos da lei, porém, alguns são imprescindíveis, visto que não afetam o sigilo das investigações, são eles:
i) A ordem deve emanar de Juiz competente e com jurisdição;
ii) O prazo para a interceptação não pode ser maior que 15 (quinze) dias, podendo haver prorrogação, e;
iii) Deve ser informado o número a ser interceptado (o número do investigado).
Ausente qualquer desses requisitos, a ordem tronar-se-á ilegal, pois afronta o direito constitucional de inviolabilidade dos sigilos, descrito no inciso XII do artigo 5º da CF. Mais absurdo ainda são as decisões que concedem senhas de acesso a agentes públicos, para eles próprios realizarem o juízo de valor e pertinência da interceptação, usurpando prerrogativa exclusiva do Poder Judiciário.
Seguindo esse raciocínio, sendo a ordem ilegal, estaria o Diretor da empresa autorizado a descumprir a ordem manifestada pela autoridade judiciária, vez que ausentes os requisitos legais e objetivos para a legalidade da medida. Ocorre que, por diversas vezes, agindo de forma arbitrária e desmedida, motivados por sentimento de superioridade, juízes e membros do Ministério Público não aceitavam as alegações das empresas quanto à ilegalidade da ordem, determinando seu imediato cumprimento, sob pena de ser, o responsável pelo cumprimento da ordem, processado pelo crime descrito no artigo 330 do Código Penal.
O Egrégio Tribunal de Justiça do Paraná, apreciando casos análogos ao que nos propomos a explorar, assim se posicionou reiteradas vezes:
“HABEAS CORPUS PREVENTIVO – GERENTE JURÍDICA DE OPERADORA DE TELEFONIA – FORNECIMENTO DE SENHA A INSVESTIGADORES DE POLÍCIA – DETERMINAÇÃO JUDICIAL – NEGATIVA DE CUMPRIMENTO – AUSÊNCIA DE INDIVIDUALIZAÇÃO DO USUÁRIO – COLISÃO DE PRINCÍPIOS – SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O INTERESSE PRIVADO – RELATIVIZAÇÃO – PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE – GARANTIA CONSTITUCIONAL DA INVIOLABILIDADE DA INTIMIDADE E DO RESPEITO À VIDA PRIVADA – CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO – ORDEM CONCEDIDA, CONFIRMANDO-SE A LIMINAR ANTERIORMENTE DEFERIDA. 1 – É necessária a existência de uma ordem judicial prévia, específica, individualizada, bem como de justa causa, a fim de que seja possível a quebra de sigilo das informações telefônicas. 2 – Não basta ao magistrado deferir o acesso de um agente público a estas informações – mesmo tendo tal agente poder investigatório – de forma ampla e genérica, pois a quebra de sigilo só se justifica em casos onde se verifique a presença de suficientes indícios de autoria e materialidade. 3 – Se faz necessária a individualização do cliente que terá seu sigilo quebrado, bem como seja fundamentada a necessidade do acesso das informações cadastrais do cliente, bem como da localização do aparelho através da ERB’s. 4 – A quebra de sigilo de forma prévia, genérica e indeterminada é temerária, não havendo justa causa que motive seu deferimento, não podendo ser invocada simplesmente a supremacia do interesse público sobre o privado como fundamento da medida.” (TJPR – 2ª C. Criminal, HC 0475535-7 – Foro Central da Região Metropolitana de Curitiba – Rel. Designado: Desº. Carlos Augusto A de Mello – Maioria – J. 27/03/2008) (http://portal.tjpr.jus.br/web/guest)
Como visto, admitiu-se no caso acima citado a impetração do remédio heroico do habeas corpus visando à anulação de uma ordem judicial genérica, todavia, esse meio de impugnação é exceção à regra, sendo cabível apenas quando se mostra evidente a possibilidade de restrição da liberdade individual de alguém.
Não se demonstrando essa possibilidade de restrição à liberdade de locomoção, deve-se impugnar a ordem judicial mediante o ajuizamento de mandado de segurança, pois ilegal a ordem emanada pelo magistrado, agente público. Nesse sentido, segue a decisão abaixo:
“MANDADO DE SEGURANÇA. OFÍCIO EXPEDIDO POR AUTORIDADE JUDICIAL, POSSIBILITANDO A QUEBRA DO SIGILO DE DADOS DE COMUNICAÇÕES TELEFÔNICAS DE TODOS OS USUÁRIOS DE OPERADORA DE TELEFONIA, EM ÂMBITO NACIONAL, PELO PRAZO DE SEIS MESES. INSURGÊNCIA DESTA CONTRA TAL ATO. LEGITIMIDADE ATIVA DA CONCESSIONÁRIA DO SERVIÇO DE TELEFONIA. CARACTERIZAÇÃO. ORDEM GENÉRICA FLAGRANTEMENTE ILEGAL. VIOLAÇÃO DO ART. 5º, INCS. X E XII DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ART. 2º DA LEI 9.296/96 E ART. 11 DA RESOLUÇÃO 59/CNJ. OFÍCIO QUE ATENTA CONTRA O DIREITO DE SIGILO DE DADOS E COMUNICAÇÕES TELEFÔNICAS. DEVER LEGAL E CONTRATUAL DA IMPETRANTE DE ZELAR PELA CONFIDENCIALIDADE E SIGILO DE TAIS DADOS E COMUNICAÇÕES DE SEUS USUÁRIOS, SOB PENA DE MULTA, RESPONSABILIDADE CIVIL E PENAL POR PRÁTICA DELITUOSA (ART. 10 DA LEI 9.296/96). ORDEM JUDICIAL QUE IMPÕE À OPERADORA A VIOLAÇÃO DE TAIS DEVERES. ATO DE AUTORIDADE ILEGAL QUE NÃO IMPORTA, NEM MESMO INDIRETA OU MEDIATAMENTE, RESTRIÇÃO OU VIOLAÇÃO AO DIREITO DE IR E VIR. CABIMENTO, NO CASO, DO MANDADO DE SEGURANÇA, E NÃO DO HABEAS CORPUS. INTELIGÊNCIA DO ART. 5º, LXVIII E LXIX DA CF. DIREITO LÍQUIDO E CERTO PRÓPRIO DA OPERADORA DE OBTER ORDEM QUE INDIVIDUALIZE OS TERMINAIS TELEFÔNICOS CUJO SIGILO DE DADOS SEJA OBJETO DE QUEBRA. DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS DOS USUÁRIOS DA CONCESSIONÁRIA, OUTROSSIM, QUE NÃO PODEM PERMANECER SEM TUTELA. PRINCÍPIO DO DIREITO À PROTEÇÃO JUDICIAL EFETIVA. ART. 5º, XXXV DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PRECEDENTE DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (CASO ESCHER E OUTROS VS. BRASIL). MANDAMUS CONHECIDO E ORDEM CONCEDIDA. 1. Quando a ameaça ou perigo de lesão advier de ato de autoridade sem que se caracterize, sequer mediata ou indiretamente, risco à liberdade de ir e vir, o remédio adequado será o mandado de segurança que, pela própria dicção do inciso LXIX do art. 5º da CF, é mais abrangente que o habeas corpus e tem em relação a ele função supletiva. 2. A operadora de telefonia tem legitimidade ativa para impetrar mandado de segurança a fim de que o ofício a ela dirigido, ordenando a quebra de sigilo de dados e telefônico, indique expressa e especificamente os números dos terminais alvo da ordem. 3. O direito de sigilo (art. 5º, XII da CF) não se restringe ao teor das conversas telefônicas, mas também aos dados relativos a ela, tais como os números para os quais o usuário ligou, os horários e duração das chamadas. 4. O direito de sigilo não é absoluto, tanto que a própria Constituição Federal ressalva a possibilidade de ser afastado por ordem judicial para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, não servindo ele para acobertar práticas delituosas que devem ser apuradas pela autoridade competente. 5. A quebra do sigilo de dados e das comunicações telefônicas é admitida apenas mediante decisão fundamentada demonstrando a presença dos requisitos legais que, ainda, deve delimitar precisamente a sua abrangência, indicando os números dos terminais telefônicos e dos seus titulares. Os ofícios encaminhados às operadoras de telefonia para cumprimento de tais ordens devem, por isso, enumerar os terminais alvo da diligência. 6. “A regra, constante do rol constitucional de garantias do cidadão, é a manutenção de privacidade, cujo afastamento corre à conta da exceção.” (STF-1ª Turma, HC 86.094/PE, Rel. Min. Marco Aurélio, julg. 20.09.2005) (2ª Câmara Criminal em Composição Integral, Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba, Mandado de Segurança nº 0619401-8, Rel. Lilian Romero, Julgado em 17/12/2009) (http://portal.tjpr.jus.br/web/guest)
Não obstante a possibilidade de utilização do mandado de segurança, conclui-se que, tendo em vista a celeridade de tramitação do habeas corpus, esse meio de impugnação é largamente utilizado para esse fim, uma vez que a não obediência a ordem judicial acarretaria, em tese, a responsabilização penal da pessoal responsável pelo cumprimento da ordem pelo crime previsto no artigo 330 do Código Penal. Assim, a fim de confirmar a possibilidade de impugnação indireta por intermédio de habeas corpus, seguem os julgados abaixo:
“HABEAS CORPUS PREVENTIVO. SIGILO TELEFÔNICO. DECISÃO JUDICIAL CASSADA EM ANTERIOR IMPETRAÇÃO, POR MANIFESTA INCONSTITUCIONALIDADE. NOVA DETERMINAÇÃO JUDICIAL PARA CADASTRAMENTO DE SENHAS PESSOAIS PARA FINS DE INVESTIGAÇÃO POLICIAL. IMPOSSIBILIDADE. DETERMINAÇÃO JUDICIAL ALICERÇADA EM DECISÃO CASSADA. ORDEM CONHECIDA E CONCEDIDA, COM EXPEDIÇÃO DE NOVO SALVO-CONDUTO EM FAVOR DO PACIENTE.” (TJPR – 5ª C.Criminal – HCC 0612472-9 – Foro Central da Região Metropolitana de Curitiba – Rel.: Desª Maria José de Toledo Marcondes Teixeira – Unânime – J. 29.10.2009) (http://portal.tjpr.jus.br/web/guest)
“HABEAS CORPUS PREVENTIVO. ORDEM DE QUEBRA DE SIGILO TELEFÔNICO. OFÍCIO JUDICIAL DETERMINANDO DISPONIBILIZAÇÃO DE SENHA A AUDITOR PLENO DO NURCE PARA ACESSO ILIMITADO, POR 6 (SEIS) MESES, A DADOS CADASTRAIS, LOCALIZAÇÃO DE ´ERBS´ E BILHETAGENS DOS USUÁRIOS DE TELEFONIA CELULAR DA EMPRESA BRASIL TELECOM. DETERMINAÇÃO GENÉRICA E DESPROVIDA DE FUNDAMENTAÇÃO. VIOLAÇÃO AO DIREITO DE PRIVACIDADE DOS CIDADÃOS. INFRINGÊNCIA AO DISPOSTO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ART. 5º, INCS. X E XII, E À LEI Nº 9472/97, ART. 3º, INCS. V E IX. JUSTO RECEIO DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL POR DESOBEDIÊNCIA AO OFÍCIO JUDICIAL. POR MAIORIA, ORDEM CONCEDIDA. 1. A regra, em nosso ordenamento jurídico, é a de proteção à privacidade dos cidadãos, sendo garantia constitucional a inviolabilidade do sigilo de suas comunicações telefônicas. 2. A Constituição Federal ressalva a possibilidade de o direito ao sigilo ser afastado por ordem judicial para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, condicionada, entretanto, a demonstração de conveniência e de necessidade, bem como seja a decisão judicial fundamentada e com individualização da situação do cidadão a ser investigado.” (TJPR – 2ª C.Criminal – HCC 0471019-2 – Foro Central da Região Metropolitana de Curitiba – Rel.: Des. José Mauricio Pinto de Almeida – Por maioria – J. 12.06.2008) (http://portal.tjpr.jus.br/web/guest)
No mesmo sentido segue o E. Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que concedeu a ordem para fins de afastar a responsabilidade penal do diretor da empresa de telecomunicação que se negou a fornecer senhas de acesso a agentes da Polícia Federal para que, eles mesmos, pudessem pesquisar os bancos de dados das empresas, ou seja, devastando por completo o sentido do sigilo amparado na Constituição da República. Confira-se:
“PROCESSUAL PENAL. DESOBEDIÊNCIA. WRIT PREVENTIVO. ORDEM JUDICIAL MANIFESTAMENTE ILEGAL. DELEGAÇÃO DA COMPETÊNCIA PARA AFASTAR SIGILO DE DADOS CADASTRAIS DE USUÁRIO DE SERVIÇO DE TELEFONIA À AUTORIDADE POLICIAL. IMPOSSIBILIDADE. CONCESSÃO DA ORDEM.
1. Os dados cadastrais dos usuários do serviço de telefonia móvel estão acobertados pelo sigilo, a teor do que dispõem os artigos 3º e 72 da Lei nº 9.472/97, ambos ressaltando que os dados pessoais dos usuários do serviço estão sob o manto da proteção da intimidade.
2. Fixada essa premissa, é de concluir-se que a quebra de tais dados, pela simples razão de estarem protegidos legalmente por sigilo, somente pode se realizar mediante a expressa autorização judicial, tomada à base dos postulados constitucionais que regem a matéria, especialmente no que diz respeito à necessidade de que a decisão judicial esteja concretamente fundamentada.
3. Nessa seara, impõe-se a máxima de que o afastamento do sigilo deve estar dirigido a pessoas determinadas, por meio de decisão judicial fundamentada, sendo vedada a decretação de quebra do segredo de dados a critério da autoridade policial.
4. Sendo manifestamente ilegal a ordem judicial dirigida à paciente (gerente jurídica da empresa de telefonia) – no sentido de que fornecesse a senha aos agentes de polícia federal que lhes permitisse a obtenção dos dados acobertados por sigilo -, ainda que a ilustre magistrada não tivesse conhecimento de qualquer intentada da polícia federal no sentido de efetuar a sua prisão, faz-se cabível a concessão de salvo-conduto, para impedir quaisquer consequências criminais advindas do descumprimento de tal ordem, o que configuraria, não fosse a concessão da ordem habeas corpus, o crime de desobediência (art. 330 do CP).
5. Concessão da ordem.” (HC 2008.01.00.010765-3, Rel. Juiz Federal Convocado César Fonseca, DJ 30.5.2008) (http://www.trf1.jus.br/index.htm)
Posição idêntica foi adotada pelo E. Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que concedeu, integralmente, a ordem requerida nos habeas corpus 2008.03.00.00.456-7:
“Habeas corpus. Ameaça à liberdade de locomoção do paciente configurada. Impetração conhecida. Quebra de sigilo telefônico. Ordem judicial genérica e impessoal. Ilegalidade. Ordem concedida.
I. Impetração conhecida, em face da legítima ameaça, ainda que indiretamente, à liberdade de locomoção do paciente. Precedentes do STJ e do STF.
II. Ordem judicial de quebra de sigilo telefônico genérica e impessoal, e que não está direcionada a uma investigação em especial ou inquérito previamente instaurado.
III. Ainda que evidenciada a prevenção e repressão de certos delitos, tais como os crimes de lavagem de dinheiro ou de organizações criminosas, não devem ser tais finalidades vetores de mácula da garantia de segurança jurídica dos cidadãos.
IV. Ordem concedida” (TRF 3ª Região, 5ª Turma, Rel. Juíza Convocada Eliana Marcelo, julgado em 14/04/2008, DJU DATA: 23/04/2008 PÁGINA: 273) (http://www.trf3.jus.br/)
Seguindo a mesma esteia, ainda relativamente à questão da ilegalidade de fornecimento de senhas de acesso a agentes e delegados de polícia, é o sentido do seguinte v. acórdão prolatado pelo E. Tribunal de Justiça do Estado de Goiás:
“EMENTA – HABEAS CORPUS PREVENTIVO. DECISÃO JUDICIAL QUE DETERMINA FORNECIMENTO DE SENHAS PARA ACESSO DE DELEGADOS DA POLÍCIA CIVIL A DADOS CADASTRAIS DE USUÁRIOS DE OPERADORA DE TELEFONIA.
INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO AO SIGILO.
1 – A existência de recurso próprio ou de ação adequada à análise do pedido não obsta sua apreciação pela via eleita, ante a celeridade e a possibilidade de reconhecimento de flagrante ilegalidade no ato recorrido, com possibilidade de responsabilização penal do paciente frente ao descumprimento de ato judicial considerado inconstitucional.
2 – O sigilo de dados sobre a pessoa se encontra elencado no rol dos direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição Federal em seu art. 5º.
3 – O afastamento do sigilo de dados de operadora de telefonia fixa e móvel é medida extrema a ser deferida de modo excepcional e restrito, diante de relevante interesse público e quando indispensável à apuração de fatos específicos, sendo descabida de forma ampla, de modo a atingir a generalidade dos usuários da operadora. Ordem concedida.” (TJGO, 1ª Câmara Criminal – Habeas Corpus nº 30398-1/217 (200704424325) Relator: Des. Huygens Bandeira de Melo, Julgado em 22.11.2007) (http://www.tjgo.jus.br/)
Noutro caso rigorosamente idêntico ao vertente, também foi semelhante o sentido do pronunciamento do E. Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo, nos autos da ordem de habeas corpus nº 100.08.002087-6:
“HABEAS CORPUS Nº 100080020876 PACIENTE: ANDREIA DA SILVA FROTTA AUT. COATORA: JUIZ DE DIREITO DA VARA ESPECIAL DA CENTRAL DE INQUÉRITOS DE VITÓRIA RELATOR: DES. ALEMER FERRAZ MOULIN EMENTA: HABEAS CORPUS. SALVO CONDUTO. OFÍCIO Nº 1525⁄2008. EXPEDIÇÃO DE ORDEM JUDICIAL GENÉRICA. FORNECIMENTO DE DADOS E REGISTROS CADASTRAIS. SOLICITAÇÃO AO ALVEDRIO DA AUTORIDADE POLICIAL. IMPOSSIBILIDADE. LAPSO TEMPORAL DESARRAZOADO. 1 (UM) ANO. AFRONTA AO ARTIGO 5º, INCISOS X E XII, DA CRFB. CONSTRANGIMENTO ILEGAL COMPROVADO. LIMINAR RATIFICADA. ORDEM CONCEDIDA. 1. Depreende-se do ofício emanado por Juiz de Direito atuante em 1º grau de jurisdição a expedição de ordem judicial genérica ao órgão competente a fim de permitir o fornecimento de dados cadastrais existentes em poder da Paciente, gerente jurídica da filial das empresas Brasil Telecom S.A. e Brasil Telecom Celular S.A., pelo período de 01 (um) ano, sempre que solicitado pelas autoridades elencadas em seu decisum. 2. O teor da decisão exarada pelo Juízo a quo discrepa dos anseios trilhados pelo legislador pátrio, eis que em dissonância aos ditames constitucionais previstos no artigo 5º, incisos X e XII, da CRFB. 3. A amplitude a que foi acometida a decisão não se coaduna com o direito constitucional ao sigilo de dados, vez que concedeu amplos poderes à autoridade policial, ao seu próprio alvedrio, para obter informações sigilosas de qualquer cliente das empresas de telefonia representadas pela Paciente. 4. O lapso temporal equivalente a 01 (um) ano concedido às autoridades para a obtenção das respectivas informações aflige a razoabilidade, porquanto amplia sobremaneira os poderes as elas concedidos, deixando de exigir, para cada ato porventura investigado, o correspondente requerimento, junto ao Poder Judiciário competente para tal ordem, para a análise de sua real necessidade ⁄ possibilidade. 5. Ordem concedida, ratificando-se a liminar outrora deferida. VISTOS, discutidos e relatados os presentes autos, em que são partes as acima indicadas. ACORDA a Egrégia Primeira Câmara Criminal, na conformidade da ata e notas taquigráficas da sessão, que integram este julgado. Vitória, de 2008. PRESIDENTE⁄RELATOR PROCURADOR DE JUSTIÇA” (TJES, Classe: Habeas Corpus, 100080020876, Relator: ALEMER FERRAZ MOULIN, Órgão julgador: PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL, Data de Julgamento: 24/09/2008, Data da Publicação no Diário: 14/10/2008) (http://www.tj.es.gov.br/)
Outro ponto que merece considerações é quanto à ocorrência ou não do tipo penal descrito no artigo 330 do CP, uma vez que para a o ocorrência do tipo há vários requisitos objetivos a serem observados para a subsunção. Há, da mesma forma, a necessária verificação se o agente agiu em decorrência de erro de tipo ou erro de proibição, o que trará reflexos importantes no deslinde da questão.
É cediço, doutrinária e jurisprudencial que a legalidade da ordem constitui elemento normativo do tipo penal previsto no artigo 330 do Código Penal, pelo que não há como se falar em crime de desobediência se o ordenamento jurídico não impõe ao destinatário o dever de acatamento.
Nesse sentido, apenas em benefício da ênfase, vale conferir as seguintes lições de Mirabete (2005) e Jesus (2005):
“A desobediência só ocorre quando não atendida a ordem legal (item 14.2.4). Se o ato de ofício não é legal, não se pode cogitar de crime contra a Administração Pública. (RT 586/334, 590/337, 591/422, 655/304) (2005, p. 370) (…)
É imprescindível que o destinatário da ordem tenha o dever jurídico de agir ou deixar de agir. Não há desobediência se o ordenamento jurídico não lhe impõe o dever de acatar o conteúdo da ordem. (2005, p. 220)
Seguindo a mesma linha de raciocínio, Greco (2006) completando o pensamento dos doutrinadores acima citados, ensina que “a ordem deve ser formal e materialmente legal”.
Conclui-se então que impossível a responsabilização penal do responsável pelo cumprimento da ordem judicial de quebra de sigilo telefônico quando a referida ordem não possui os requisitos de validade, pois, conforme se verifica pela leitura do tipo penal, é elemento constitutivo do tipo a desobediência à “ordem legal”, de forma que, ausente esse requisito, não há plena subsunção do fato ao tipo.
3. METODOLOGIA
O presente trabalho pode ser enquadrado no conceito de pesquisa básica, que, segundo Ander-Egg, citado por Marconi e Lakatos (2002, p. 20), consiste na procura pelo progresso científico, na ampliação de conhecimentos teóricos, sem que haja preocupação imediata de aplicação prática. “É a pesquisa forma, tendo em vista generalizações, princípios, leis”.
O Manual dos Programas de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico do Setor Elétrico Brasileiro da Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL – assim define de forma didática o conceito de pesquisa básica:
“[…] trabalho teórico ou experimental executado com o objetivo de adquirir conhecimentos quanto à compreensão de novos fenômenos, com vistas ao desenvolvimento de produtos, processos ou sistemas inovadores. Envolve a análise de propriedades, estruturas e conexões para formular e comprovar hipóteses, teorias e leis. […]” (2001, p. 3)
No que tange ao método de abordagem, foi adotado o modelo qualitativo. Sua característica básica é descrever os fatos mediante coleta de dados. Conceituando esse método de abordagem, Marques, Manfroi, Castilho e Noal (2006. pp. 38-9) assim descrevem em sua obra:
“É aquele cujos dados não são passiveis de ser matematizados. É uma abordagem largamente utilizada nas ciências sociais e, por conseguinte da educação, quando a opção é trabalhar principalmente com representações sociais que, a grosso modo, podem ser entendidas como visão do mundo.”
Tendo em vista o objetivo que se pretende alcançar, utilizou-se a pesquisa exploratória. Para Gil (1991), “a pesquisa exploratória assume, na maioria das vezes, o formato de pesquisa bibliográfica ou estudo de caso”.
Para o levantamento de informações para a conclusão, foi realizada uma revisão bibliográfica, mesmo que pequena, tendo em vista a especificidade do tema, e documental, amparado em jurisprudências dos Tribunais Estaduais e Federais e legislação que seja aplicável ao caso. Ao analisar o tema, foram priorizadas, no campo do Direito Público, as áreas do Direito Penal e Constitucional.
Marques, Manfroi, Castilho e Noal (2006, p. 55), em sua obra, conceituam esse método de coleta de dados nas seguintes palavras: “é aquela cujos dados secundários são obtidos mediante consulta feitas nos livros, revistas, jornais, enciclopédias etc.”.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme vastamente explanado ao longo do presente trabalho, não é qualquer ordem judicial que deve ser cumprida de imediato pelos executores direitos. É necessário verificar se a ordem contém os requisitos legais mínimos, descritos na própria lei que regula o procedimento de quebra de sigilo.
Diante da ausência de requisitos objetivos de validade da ordem com, por exemplo, o número a ser interceptado, pode o responsável direto da ordem descumprir o mandamento judicial, tendo em vista que ações dessa natureza ferem a Constituição. Conclui-se então que, interpretando as normas legais e constitucionais que normatizam o procedimento de interceptação, para que os mandados não sejam eivados de nulidades, faz-se necessário que os mesmos sejam deferidos em limites previamente determinados pela lei e observados pelos Magistrados.
Não obstante, deve ainda ser concedido apenas pelo prazo necessário, sendo que qualquer decisão judicial em contrário encontrará obstáculo de validade processual, podendo, inclusive, ser descumprido pelas empresas, pois claramente em contrário à legislação vigente e à mais recente e vasta jurisprudência.
Válido ressaltar que a responsabilidade penal do executor direito deve ser afastada quando ausente qualquer requisito de validade da ordem. Em tese, a responsabilidade deveria ser afastada pelo próprio Magistrado que expediu a ordem, todavia, insistindo este para que o executor direto da ordem cumpra com a ordem ilegal, abre-se espaço para a impugnação da ordem ilegal por meio do remédio heroico do habeas corpus.
Informações Sobre o Autor
José Pinheiro De Souza Sobreira
Advogado, Pós-Graduação em Direito Penal