O crime de introdução ou abandono de animais em propriedade alheia[1] previsto no artigo 164, CP tutela a propriedade e a posse de imóveis, bem como seu uso e gozo pelo respectivo titular.
Acontece que segundo a doutrina dominante tem-se entendido que se o proprietário de um imóvel estiver com este na posse legítima de terceiro (aluguel ou arrendamento, por exemplo) e vier a abandonar ou introduzir animais nesse local, não responderá pelo delito previsto no artigo 164, CP, senão somente por eventual crime de dano (artigo 163, CP). [2] O tema, porém, não é pacífico, havendo quem defenda a tese da ocorrência do artigo 164, CP, mesmo quando é o dono do imóvel quem abandona ou introduz os animais, desde que esse imóvel esteja na posse legítima de terceiros. [3]
Toda a discussão se desenvolve em torno do fato de que o tipo penal do artigo 164, CP menciona “propriedade alheia”, de forma que se o agente for o dono do imóvel faltaria um elemento objetivo do tipo penal. Doutra banda, afirma-se que o termo “propriedade” nesse contexto deve ser entendido num sentido amplo, abrangendo a propriedade e a posse, o que se afigura mais correto, embora seja o pensamento até o momento minoritário. [4]
Efetivamente entende-se que a postura doutrinária deveria se alterar, inclusive por uma interpretação que leve em conta a necessária homogeneidade com aquilo que se tem afirmado acerca do crime de violação de domicílio (artigo 150, CP), onde também se menciona a “casa alheia”, mas não se cogita permitir que, por exemplo, o locador possa a seu bel prazer invadir a casa do locatário sem sua anuência, o que seria realmente rematado absurdo. Assim também o é a possibilidade de que o dono de um terreno arrendado ou alugado possa ali colocar várias cabeças de gado, sem a autorização do arrendatário ou locatário, turbando sua posse e impedindo seu livre gozo do bem. Nada mais óbvio do que perceber que em ambos os casos a tutela se estende da propriedade até a posse, não havendo motivo para tratamento diferente.
Quando comenta o artigo 150, CP, Mirabete é assertivo ao dizer que “qualquer pessoa pode cometer o delito, inclusive o proprietário do imóvel, quando a posse estiver legitimamente com terceiro” (grifo nosso). [5]
Não há motivo para tratamento diverso no caso do crime do artigo 164, CP, conforme também aduz Bitencourt, eis que é possível empregar um sentido abrangente de propriedade alheia que proteja não somente a propriedade, mas também a posse legítima e direta, especialmente no que se refere ao uso e gozo do bem imóvel arrendado ou alugado que pode ser turbado pela introdução ou abandono de animais no local, ainda que perpetrados pelo proprietário. [6]
Se no crime de violação de domicílio é possível superar a expressão “casa alheia” para abranger como sujeito ativo mesmo o proprietário em casos de posse legítima de terceiros, considerando, para além da propriedade, o direito à intimidade e à vida privada; também no crime do artigo 164, CP, é viável suplantar a expressão “propriedade alheia” para estender a tutela à posse direta legítima, considerando não somente a questão da propriedade, mas do direito ao uso e gozo plenos conferidos contratualmente e que podem sofrer restrições ou até mesmo total impedimento pelo ato do abandono ou introdução de animais no imóvel.
Espera-se que a doutrina e a jurisprudência venham a ponderar com mais cuidado sobre esse tema, percebendo que uma interpretação meramente gramatical do dispositivo do artigo 164, CP não é satisfatória. É preciso haver uma visão sistemática, principalmente tendo em vista os critérios utilizados para a exegese do artigo 150, CP. A diferença dos entendimentos hoje encontrável demonstra o quão deletéria pode ser a estagnação na análise meramente gramatical, deixando passar “in albis” o viés sistemático para a aplicação de dispositivos de um mesmo diploma ou ordenamento legal. Em geral essa falha interpretativa produz desigualdades e injustiças que podem ser facilmente evitadas quando se procura homogeneizar o pensamento com a sensibilidade necessária para identificar as semelhanças de casos que por mesma ou semelhante razão devem ter idênticas soluções de direito (“ubi eadem est ratio, ib ide jus”).
Informações Sobre o Autor
Eduardo Luiz Santos Cabette
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.