“Quando o direito é desalojado do lugar em
que deveria estar, a injustiça não é culpada desse fato, mas sim quem se
conformou com essa situação”. (Rudolf Von Ihering)
É
fora de questão que o nível de dignidade de um povo se mede pela seriedade do
seu judiciário. Na maior parte dos países do primeiro mundo, por exemplo, as
constituições são infinitamente menores e muitas vezes menos
“modernas” que a “constituição cidadã” aprovada no Brasil
em 1988. Contudo, o respeito à dignidade dos seus cidadãos é exemplarmente
defendido por sistemas judiciários que buscam responder aos anseios do povo a
que servem.
O
sistema judiciário brasileiro, ao contrário, encastelado no Poder que lhe
confere a ausência de qualquer controle externo, paira tão acima do povo a quem
deveria servir, que desumanizou-se. A Justiça deixou de ser o fim do Direito, e
este deixou de ser um instrumento daquela. Nesse contexto, o processo passou a
ser um fim em si mesmo, e muitas vezes mero cenário de disputas políticas, ou
queda de braço entre egos dos advogados.
Se
nos poderes legislativo e executivo a eleição dos seus membros garante um
mínimo de participação popular e a renovação dos seus quadros, em que pese toda
a manipulação do processo, no poder judiciário a vitaliceidade e o
corporativismo garantem a permanência de muitos que de outra forma lá não
estariam. Além do mais, apenas para Procurador e Juiz é que há concurso
público. (Ainda que no Brasil, muitas vezes, os concursos não sejam tão
isentos). O mais grave entretanto é que os Desembargadores e Ministros são
amiúde nomeados por favores políticos que terminam obrigando o eleito em
relação àqueles que o apadrinharam.É preciso uma formação moral ímpar para
que haja um arrancamento da consciência e do discernimento individual dessa
teia de favores, e o julgador possa se deixar guiar com isenção pelo direito,
em busca da realização da justiça. Esta, muitas vezes, só é usada em
relação aos desamparados.
Nietzsche
diz que não se pode medir a culpa do injusto pelo sofrimento do injustiçado, porque
muitas vezes aquele que comete a injustiça está tão distanciado daquele que a
sofre, que seu sofrimento passa desapercebido àquele que o causou. E
exemplifica: “até todos nós, se a distância entre nós e um outro ente for
muito grande, já não sentimos absolutamente nada de injusto e matamos um
mosquito, por exemplo, sem qualquer remorso.” Então, se o judiciário
brasileiro está tão distanciado do povo que sequer percebe suas próprias falhas
nem o mal que muitas vezes causa, cabe a nós, como ensina Von Ihering, não
permitir que o direito seja “desalojado do lugar em que deveria
estar”, nem que se ouça “o clamor de Justiça, arrastada por onde a
levam os homens comedores-de-presentes e [que] por tortas sentenças a
vêem”, como denuncia Hesíodo seis séculos antes de Cristo.
Esta página nasceu do percebimento desse distanciamento insensibilizado da
Justiça, ao longo de treze anos de sofrimento em um caso dos mais simples. Ao
longo de todos esses anos, aqueles que sofreram a injustiça vêm lutando
bravamente para fazer valer o seu direito, mas ao longo do caminho perderam
sonhos, carreira e bens. Em contrapartida, ganharam a consciência de que cada
um tem uma responsabilidade neste mundo. Como diz Deepak Chopra, “você
não precisa sofrer um karma. Pode transformá-lo em um dharma“.
Para
os orientais, o karma é algo assim como a moira dos gregos: algo para o que se
nasce predestinado pelos deuses, e do que não se pode fugir. E o dharma é a
sabedoria de encarar o sofrimento como uma missão e transformá-lo em algo útil
à humanidade. Não somos místicos, mas acreditamos que cada um faz seu próprio
destino, à partir das suas escolhas. Escolhemos construir um hotel, num
determinado lugar, e por azar parece que contrariamos determinados interesses.
Sofremos as conseqüências disso, porque na relação somos a parte mais fraca
Nietzsche
contrapõe à mal compreendida moral da compaixão, de Schopenhauer, a sua moral
da responsabilidade, pela qual o indivíduo , no estágio mais alto da
moralidade, “vive e atua como indivíduo coletivo”. Assim, mesmo sem
mística mas por uma questão do despertar da consciência da responsabilidade;
tendo percebido através do nosso caso como o direito está distanciado da
justiça e esta dos cidadãos, decidimos transformar este nosso sofrimento na missão
coletiva de lutar pelo resgate do papel do judiciário, e pela aproximação entre
os cidadãos e a justiça. Para assim atingirmos a plena realização da cidadania,
que possibilita o exercício em plenitude dos direitos humanos
O
professor Alexandre de MORAES destaca três gerações nos direitos humanos :
1. Seriam
da primeira geração os direitos e garantias individuais e políticos clássicos ,
que realçam o princípio da liberdade: direito à vida, à segurança, à
igualdade, etc.
2. De
segunda geração seriam os direitos da igualdade: ou seja, os direitos
econômicos, sociais e culturais como o direito ao trabalho, à saúde, à
educação, ao lazer, etc.
3. Por
fim, modernamente, alguns países já protegem constitucionalmente os direitos de
terceira geração, também chamados de direitos de solidariedade ou
fraternidade, que englobam o direito a um meio ambiente equilibrado, a uma
saudável qualidade de vida, ao progresso, à paz, à autodeterminação dos povos e
a outros direitos difusos.
Até
pela mais superficial observação, constatamos que no Brasil sequer podemos
fazer valer em plenitude os direitos de primeira geração, os da liberdade:
nossas vidas e nossa segurança estão constantemente ameaçadas, e a igualdade de
todos perante a lei é só palavra escrita na constituição, negada pela prática.
Nosso trabalho é duro, e a nossa meta é conseguirmos realizar inclusive os
direitos de terceira geração, aqueles da fraternidade. Ainda que só consigamos
dar início ao processo, pelo menos ele está iniciado.
No
Brasil, perdeu-se o rumo da ética e da dignidade. Os procuradores de justiça da
Prefeitura Municipal do Natal falam da necessidade de contratar advogado
“com trânsito fácil no STJ” para modificar resultado judicial já
transitado em julgado. “Age sempre de tal maneira que a norma da tua ação
possa ser erigida em regra universal”, diz um dos imperativos categóricos
kantianos. Que seria do país se todos passassem a agir daquela maneira?
Ainda que eles possam alegar que o fim justifica os meios, essa moral sempre
serviu para justificar os mais bárbaros meios para a consecução dos mais
discutíveis fins. Lembremos que Hitler também defendia semelhante moral!
Chegamos
ao ano 2.000 na incômoda posição de sermos um dos países do mundo onde as
desigualdades sociais são as mais gritantes. No Indice de Desenvolvimento
Humano das Nações Unidas, há quase 70 nações à nossa frente. Inclusive nações
que não dispõem da metade das riquezas naturais que o Brasil dispõe. A
diferença se dá portanto nos indicadores de qualidade de vida, tais como as
políticas públicas de saúde, educação, trabalho e moradia, por exemplo. Esses
são também indicadores de cidadania.
Volnei
Garrafa diz que o governo transformou os brasileiros em consumidores (pela
legislação dos direitos do consumidor) para lhes dar a ilusão de que exercem a
cidadania. Na realidade, para que um indivíduo se perceba enquanto cidadão, ele
precisa primeiro perceber-se como um sujeito com direitos e
obrigações. E a garantia de que ele possa exercer com plenitude os seus
direitos, bem como a coercibilidade necessária ao cumprimento das obrigações
ali onde a ética resta esquecida, não se dá sem o funcionamento adequado do
Judiciário.Só um judiciário isento pode se postar como guardião na entrada
do templo sagrado da Dignidade Humana.
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Volnei Batista