Resumo: O presente trabalho trata do crime de lavagem de dinheiro. Através de breve análise da sua evolução histórica ocorrida nos Estados Unidos e na Itália, chega-se ao conceito do delito segundo a doutrina especializada. Após, são analisadas as fases do crime de lavagem de dinheiro conforme o modelo elaborado pelo GAFI, apesar de estas fases não precisarem ocorrer efetivamente para se configure o delito, sua análise é importante especialmente para o entendimento do tema. O exame dos elementos citados é de suma importância no estudo do crime em tela, que tem tomado grandes dimensões em razão de técnicas criminosas cada vez mais elaboradas, que ultrapassam fronteiras e burlam diversos sistemas jurídicos, motivo pelo qual se tornou uma preocupação mundial.[1]
Palavras-chave: Lavagem de dinheiro. Origem histórica. Conceito. Fases.
Sumário: Introdução. 1. Origem histórica. 2. Conceito. 3. Fases da lavagem de dinheiro. 3.1. Colocação ou placement. 3.2. Ocultação, dissimulação, transformação ou layering. 3.3 Integração ou integration. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O presente artigo aborda o crime de lavagem de dinheiro. Primeiramente, será analisada a sua origem histórica, que se deu nos Estados Unidos e na Itália. A partir desta análise, chega-se ao conceito do delito, que apesar de não ser unívoco na doutrina, converge sempre para um mesmo sentido. E, finalmente, serão analisado o modelos de fases do delito elaborado pelo GAFI, composto por três fases: colocação, ocultação e integração.
Tais fatores são de suma importância para o estudo e o entendimento da criminalização e do combate da lavagem de dinheiro.
1 ORIGEM HISTÓRICA
Os primeiros países a criminalizarem a lavagem de dinheiro foram a Itália e os Estados Unidos. Sendo que foi nos Estados Unidos que a prática da lavagem foi aprimorada e passou a ganhar grandes dimensões.
De acordo com Raúl Cervini[2], a primeira tipificação legal do crime de lavagem de dinheiro aparece na Itália, a partir de 1978, nos “anos de chumbo”. Na época, as Brigadas Vermelhas (Brigate Rosse), o maior e mais importante grupo armado italiano com ideologia ligada ao marxismo-leninismo, praticaram uma série de ações para desarticular o poder político estatal.
Em 16 de março de 1978, após uma onda de sequestros realizados por grupos mafiosos com finalidade econômica, as Brigadas Vermelhas sequestraram o democrata cristão Aldo Moro, político influente na época – considerado o próximo presidente da Itália. Este fato tomou repercussão internacional. Em maio do mesmo ano, Moro foi assassinado e, em resposta à comoção social gerada no país em razão deste e outros sequestros, o governo italiano, que havia editado o Decreto-lei nº 59 em 21 de março de 1978, introduzindo o art. 648 bis no Código Penal Italiano, converteu o referido decreto na Lei nº 191 de 18 de maio de 1978, incriminando a substituição de dinheiro ou de valores provenientes de roubo qualificado, extorsão qualificada ou extorsão mediante sequestro por outros valores ou dinheiro.
Como bem aponta Fábian Caparrós:
“O art. 648-bis de 1978 não só foi o ponto de partida para a política criminal a qual respondem a maioria das reformas penais que, em matéria de lavagem de dinheiro, se tem produzido em diferentes sistemas jurídicos nacionais, como foi também o antecedente jurídico sobre o qual, consciente ou inconscientemente, têm sido construídas muitas das normas repressivas da lei de lavagem de dinheiro em direito comparado.”[3]
Nos Estados Unidos, os motivos que levaram à criminalização da lavagem remontam ao início do século XX, quando as primeiras formas de organizações criminosas começaram a despontar no mundo, especialmente as máfias. Isso se deu principalmente durante o período de proibição[4] em que vigorava no país a chamada “Lei Seca”. Tal lei, ao passo que proibia a fabricação e comercialização de bebidas alcoólicas, gerava um mercado ilegal de fornecimento destas que movimentava milhões de dólares através da exploração de diversas organizações criminosas.
Nesta época, mais especificamente no final da década de 1920, o famoso Al Capone assumiu o controle do crime organizado na cidade de Chicago e acumulou considerável fortuna com a comercialização de bebidas ilegais. Contudo, exatamente por não isolar os lucros do crime, em 1931, Alphonse Capone foi preso por sonegação de tributos após grande mobilização das autoridades americanas.
Entretanto, as organizações criminosas já se haviam enraizado no país e tomado um caráter multiétnico, seguindo uma tendência generalizada das empresas americanas durante a Grande Depressão[5]. O “Sindicato Nacional do Crime” (U.S. National Crime Sindicate – NCS) – criado por Al Capone – grande e poderoso, protegia seus líderes contra a competição de conseguir fundos, a fim de obter a proteção política e “tributar” os chefes regionais do crime, de acordo com suas possibilidades de pagamento. [6]
Em 1933, com a revogação da Proibição, o crime organizado se concentrou na exploração do jogo e do tráfico de substâncias entorpecentes a fim de buscar novas alternativas de negócio. Com o franco crescimento da exploração dos jogos e do tráfico de drogas, o uso de lavanderias ou lavagem de automóveis[7] – negócios baseados no uso de dinheiro vivo (cash) – já não era suficiente para circular o dinheiro ilícito ganho.
Então, Meyer Lansky, em parceria com Salvatore Lucky Luciano – outros famosos mafiosos americanos – descobriu que a melhor maneira de ocultar ativos ilegais seria colocar o dinheiro fora do alcance das autoridades do país, buscando uma jurisdição que não cooperasse com os Estados Unidos para o confisco e restituição, e a Suíça foi um dos primeiros destinos escolhidos[8], o que deu origem à invenção dos offshore[9].
Como visto, a Itália e os Estados Unidos foram os primeiros países a criminalizar a prática da lavagem de dinheiro, sendo configurada internacionalmente apenas no final dos anos 1980, pela ONU, através da Convenção de Viena de 1988 e, mais tarde, em 1989, pelo Grupo de Ação Financeira – GAFI (ou Financial Action Task Force – FATF), como coordenador que é da política internacional nessa área específica, relacionando a atividade com a macrodelinquência econômica.
Victor Manuel Nando Lefort indica cinco fatores como justificativas para o aparecimento e o incremento da lavagem de dinheiro: o narcotráfico, o surgimento dos bancos internacionais, o crime organizado, a globalização do mercado financeiro internacional e o desenvolvimento tecnológico que possibilitou a ampliação dos meios de comunicação. Sendo que, Edson Pinto ainda acrescenta um sexto elemento: os paraísos fiscais. [10]
2 CONCEITO
A partir da análise da origem e evolução história do delito de lavagem de dinheiro, retira-se o conceito do mesmo.
Saliente-se que não há na doutrina um conceito unívoco do crime de lavagem, contudo não existem acepções distintas, as mesmas convergem no sentido de que a lavagem é um procedimento de caracterização lícita ao capital de origem ilícita.
Tradicionalmente, define-se a lavagem de dinheiro como um conjunto de operações por meio das quais os bens, direitos e valores obtidos com a prática de crimes são integrados ao sistema econômico financeiro, com a aparência de terem sido obtidos de maneira lícita. É uma forma de mascaramento da obtenção ilícita de capitais.
Segundo o GAFI, lavagem de dinheiro é o processo que tem por objetivo disfarçar a origem criminosa dos proveitos do crime. Como bem aponta Carla Veríssimo de Carli, a importância da lavagem é capital, porque permite ao delinquente usufruir desses lucros sem pôr em perigo a sua fonte (o delito antecedente), além de protegê-lo contra o bloqueio e o confisco.
Ademais, é certo que o dinheiro em espécie é difícil de ser guardado e manuseado, pois apresenta grande risco de furto e roubo, além de chamar a atenção em negócios de alto valor, de forma que o criminoso, por tais motivos, tenta desvincular o proveito obtido com o crime de sua origem criminosa e dar-lhe aparência de ganho lícito, ou seja, “lavando” o dinheiro[11].
Conforme prelecionam Marcia Monassi Mougenot Bonfim e Edilson Mougenot Bonfim[12]:
“Independentemente da definição adotada, a doutrina aponta as seguintes características comuns no processo de lavagem de dinheiro:
1) a lavagem é um processo em que somente a partida é perfeitamente identificável, não o ponto final;
2) a finalidade desse processo não é somente ocultar ou dissimular a origem delitiva dos bens, direitos e valores, mas igualmente conseguir que eles, já lavados, possam ser utilizados na economia legal.”
Importante destacar, finalmente, as características da lavagem de dinheiro na atualidade, apontadas por Blanco Cordero[13], quais sejam:
1) A complexidade, como decorrência dos altos lucros da criminalidade organizada e da implantação de medidas de controle, os quais levam à superação das formas mais rudimentares de lavagem por outras mais sofisticadas;
2) A profissionalização da atividade de lavagem, seja pela separação entre as atividades criminosas em sentido estrito e aquelas de lavagem dentro da organização criminosa, seja pela oferta de profissionais especializados em lavagem de dinheiro, que prestam serviço a mais de uma organização;
3) O caráter internacional, de modo a aproveitar-se das notórias dificuldades da cooperação judiciária internacional e dirigir a lavagem a países com sistemas menos rígidos de controle.
3 Fases da lavagem de dinheiro
O dinheiro obtido de maneira ilícita – “dinheiro sujo” – passa por um processo composto por diversas fases tencionadas a disfarçar sua origem ilícita sem comprometer os envolvidos, de forma que seja considerado “limpo”.
Dos vários modelos de fases existentes[14], o de aceitação mais ampla e adotado pela maioria da doutrina especializada é o elaborado pelo GAFI [15], composto por três fases: colocação, ocultação e integração.
3.1. Colocação ou Placement
Esta fase consiste na introdução do dinheiro ilícito no sistema financeiro, dificultando a identificação da procedência dos valores. É a fase mais arriscada para o “lavador” em razão da sua proximidade com a origem ilícita. Walter Fanganiello Maiorovitch diz que é o momento “de apagar a mancha caracterizadora da origem ilícita”[16].
Normalmente esses valores são introduzidos no sistema financeiro em pequenas quantias, que, individualmente, acabam não gerando maiores suspeitas[17]. A essa técnica é dado o nome de smurfing. Daí por que existe uma preocupação muito grande com os registros das instituições financeiras. O Federal Reserve – FED, Banco Central americano, se preocupa, há algum tempo, em identificar o cliente de forma tal que ele não perceba que está sendo investigado.
Outra técnica de lavagem utilizada nesta fase é a utilização de estabelecimentos comerciais que trabalham com dinheiro em espécie, a princípio insuspeitos, como cinemas, restaurantes, hotéis, casas de bingo[18], entre outros.
Ainda podem ser referidas as práticas de “cabodólar” e a utilização de “laranjas” ou testas-de-ferro” nesta fase da lavagem de dinheiro. O “cabodólar” consiste em uma rede de transferência de valores à margem do sistema financeiro oficial, isto é, doleiros e casas de câmbio, que atuam como intermediários, realizam a transferência de valores de um país para outro sem tributação, declaração ou autorização legal, o que, como destaca o juiz federal José Paulo Baltazar Júnior[19], presta-se também para a evasão de divisas e para a sonegação fiscal. Já os “laranjas” são pessoas, reais ou fictas, cujos nomes são utilizados, com seu conhecimento ou não, para titularizarem dinheiro ou bens do lavador.
Nota-se, assim, que a lavagem de dinheiro tanto pode se dar mediante a utilização do sistema financeiro, quanto mediante a utilização de outros meios, como mercado imobiliário, estabelecimentos comerciais, jogos legais e ilegais e etc. Daí, destaca-se a classificação doutrinária de lavagem financeira e lavagem não financeira.
No Brasil, o “vídeobingo” era a técnica predileta do narcotráfico. Em depoimento mencionado por Juarez Cirino dos Santos, Lillo Lauricela, preso pela Divisão Antimáfia da Itália, afirmou que a abertura de bingos eletrônicos no Brasil, despertou o interesse de empresários europeus e da máfia italiana para a venda de máquinas e para a lavagem do dinheiro advindo da comercialização da cocaína.[20]
Rogério Pacheco Jordão, ao comentar a gama de opções de que o “lavador” pode se utilizar para a colocação do capital ilícito, destaca:
“Dificilmente alguém poderá andar em linha reta por mais de dois quilômetros dentro de importantes cidades brasileiras como São Paulo ou Rio de Janeiro sem se deparar, no caminho, com estabelecimentos que estejam, direta ou indiretamente, na rede de lavagem. São hotéis, bares, restaurantes, bingos, casas de câmbio, videolocadoras. Mas também imobiliárias, construtoras, bancos. “[21]
Fausto Martin de Sanctis[22] conclui que é nessa oportunidade, no momento da colocação, que se exige maior intervenção do Estado, porque o limite temporal entre a prática do crime original e o início da lavagem é muito estreito.
3.2 Ocultação, Dissimulação, Transformação ou Layering
Nessa fase ocorre a camuflagem das evidências, com a utilização de uma série de negócios ou movimentações financeiras, a fim de que seja dificultado o rastreamento contábil dos lucros ilícitos. É a fase da lavagem propriamente dita, pois se dissimula a origem dos valores para que sua procedência não seja identificada.
Cria-se um emaranhado de complexas transações financeiras, em sua maioria internacionais, sendo que é nesta fase que os países e as jurisdições que não cooperam com as investigações referentes à lavagem de dinheiro têm papel fundamental[23]. É a fase mais complexa do processo e a que envolve maiores riscos de vulnerabilidade aos sistemas financeiros nacionais.
As transações realizadas anteriormente são multiplicadas, muitas vezes com várias transferências por cabo (wire transfer) através de muitas empresas e contas, de modo a que se perca a trilha do dinheiro (paper trail). Há o saque do dinheiro em espécie e o depósito do mesmo em uma nova instituição ou mesmo destruição dos registros de uma determinada operação em conluio com a instituição financeira[24]. Aliás, Fausto Martin de Sanctis[25] destaca que a realidade de hoje é ainda mais complexa tendo em vista que a criminalidade já está adquirindo bancos internacionais, porque todos os registros dessas instituições são manipulados, viabilizando ainda mais o que já era facilitado pelos paraísos fiscais.
Segundo Marcia Monassi Mougenot Bonfim e Edilson Mougenot Bonfim[26], um dos métodos de ocultação mais avançados é a venda fictícia de ações na bolsa de valores (o vendedor e o comprador, previamente ajustados, fixam um preço artificial para as ações de compra). É comum nesta fase também a transformação das quantias em bens imóveis ou móveis; quanto a estes, costuma-se adquirir bens que possam ser postos em circulação rápida em diferentes países como ouro, joias e pedras preciosas (commodities).
3.3 Integração ou Integration
É a fase final do processo, muitas vezes interligada ou até mesmo sobreposta à etapa anterior. Nessa fase, já com a aparência lícita, o capital é formalmente incorporado ao sistema econômico, geralmente por meio de investimentos no mercado mobiliário e imobiliário[27], e é assimilado com todos os outros ativos existentes no sistema. A integração do “dinheiro limpo” através das outras etapas faz com que este dinheiro pareça ter sido ganho de maneira lícita.
Entre as práticas realizadas nesta fase, estão o empréstimo de regresso, a falsa especulação imobiliária, a falsa especulação com obras de arte ou pedras preciosas e a especulação financeira cruzada, por exemplo.
O empréstimo de regresso nada mais é que a simulação de empréstimos com dinheiro já pertencente ao lavador de empresas, localizadas no território nacional, para empresas de fachada, localizadas em paraísos fiscais, com os mesmos proprietários daquelas. A falsa especulação, tanto de imóveis quanto de obras de arte ou pedras preciosas, se dá através da simulação de valores superiores aos reais. E, por fim, a especulação financeira cruzada é a simulação de lucros e prejuízos em operações casadas e de sinal contrário em bolsas de valores ou mercado de futuros, com os mesmos titulares ou com a utilização de laranjas. Esses compram e vendem os mesmos títulos, no mesmo dia, gerando prejuízos para um, que pode diminuir o imposto de renda devido, e lucros falsos para outro, possibilitando a lavagem de dinheiro.
Alguns autores, como Carlos Márcio Rissi Macedo, inclusive, destacam que não se pode dizer que tecnicamente há “lavagem de dinheiro” nesta fase, já que o dinheiro já possui uma máscara de licitude.
Contudo, cabe esclarecer que a lavagem de dinheiro nem sempre ocorre de acordo com as fases supracitadas, bem como, não é necessária a ocorrência dessas três fases para que o delito esteja consumado, bastando a fase da colocação, conforme posicionamento firmado pelo Supremo Tribunal Federal[28]. Entretanto, o estudo das fases da lavagem de dinheiro é importante, pois ajuda a compreender como a mesma procede.
Além disso, salienta-se que todos os dias surgem novas técnicas de lavagem de dinheiro, diferenciando-se das já expostas, a par de que são muito mais complexas, tornando-se inabarcável a listagem de todas as formas de referida prática delitiva. Aliás, nesse sentido, como lembrou o Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Gilson Dipp, as técnicas de lavagem de dinheiro mais eficazes são aquelas ainda não conhecidas[29].
CONCLUSÃO:
No presente trabalho, mostrou-se o crime de lavagem de dinheiro, delito multifacetado, por meio do qual é dada aparência lícita a bens, direitos e valores obtidos ilicitamente, através de um processo com diversas fases complexas, que nem sempre ocorrem necessariamente.
Desde que surgiu, a lavagem de dinheiro vem crescendo e tomando dimensões cada vez maiores, especialmente em razão de novas técnicas criminosas criadas para burlar o controle e a punição deste crime.
Dessa forma, restou demonstrada a necessidade tanto da cooperação internacional entre as nações quanto do combate efetivo de cada país no âmbito do seu território para a contenção da lavagem de dinheiro.
Informações Sobre o Autor
Juliana Toralles dos Santos Braga
Acadêmica de Direito na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pelotas.