1.Conciliando as regras
Falava-se, antes da Lei n. 12.403/2011, em liberdade provisória vinculada, sem fiança, estando a ideia de vinculação atrelada à necessidade de cumprimento de certas obrigações ou condições a que ficava vinculado o liberado, sendo o descumprimento causa eficiente de revogação do benefício e determinante do retorno ao cárcere, na visão da maioria.
Nas situações em que praticada, o fundamento jurídico da vinculação era extraído do art. 310, caput, do CPP, onde constava que nas hipóteses de estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito, o juiz, depois de ouvir o Ministério Público, deveria conceder liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos do processo, sob pena de revogação.
De contornos mais amplos, o parágrafo único do art. 310 do CPP determinava que o juiz deveria adotar igual procedimento àquele do caput, quando verificasse, pelo auto de prisão em flagrante, a inocorrência de qualquer das hipóteses autorizadoras da prisão preventiva.
Portanto, por força das circunstâncias do caput, ou do parágrafo único, ambos do art. 310 do CPP (na redação antiga), a liberdade provisória sempre seria concedida mediante a obrigação de atender a certas condições – pena de revogação do benefício. Era, portanto, vinculada.
Também o art. 350 do CPP dispunha, e continua dispondo, mesmo após sofrer mudança em sua redação, a respeito de condições que vinculam a liberdade provisória, sem fiança, nas situações tratadas.
Mas a sistemática exposta no CPP após a Lei n. 12.403/2011 é diversa, embora capenga a regulamentação, que carece de coerência entre os dispositivos; coerência sistêmica.
Vejamos se não.
O art. 310, III, indica que se não for caso de relaxamento da prisão, ou de decretação da prisão preventiva, deverá o magistrado conceder liberdade provisória, com ou sem fiança, podendo ser cumulada ou não com medida cautelar diversa da prisão (CPP, art. 321), se for caso.
Esse dispositivo não faz qualquer referência à imposição de obrigações a que deva estar sujeito o agente enquanto em liberdade. Não vincula, portanto, a subsistência da liberdade provisória sem fiança a qualquer causa superveniente.
Já o parágrafo único do art. 310 trata da liberdade provisória aos que praticarem a conduta, em tese e a priori, acobertados por causa de exclusão da ilicitude, quando então a liberdade provisória deverá ser concedida mediante “termo de comparecimento a todos os atos do processo”, sob pena de revogação. Vinculada, portanto.
Dir-se-á que o art. 310, III, apenas anuncia ou indica a necessidade de assim proceder o magistrado, diante da situação de fato identificada, devendo a questão da vinculação ou não da liberdade provisória ser retirada de dispositivo diverso, onde se encontre especificamente regulada a matéria.
Pois bem.
De forma central, a liberdade provisória está regulada no art. 321 do CPP, que tem a seguinte redação: “Ausentes os requisitos que autorizam a decretação da prisão preventiva, o juiz deverá conceder liberdade provisória, impondo, se for o caso, as medidas cautelares previstas no art. 319 deste Código e observados os critérios constantes do art. 282 deste Código”.
Alguma vinculação por força exclusiva da liberdade provisória?
Claro que não.
Conforme concebida, em sua forma básica e original, a liberdade provisória sem fiança não está condicionada ou vinculada à satisfação de qualquer obrigação (nem mesmo ao comparecimento aos atos do processo), mas eventualmente poderá o juiz, se entender cabível, no ato de concessão impor uma ou mais dentre as medidas cautelares listadas nos arts. 319 e 320, observados os critérios do art. 282, todos do CPP.
Contudo, disso não se retira autorização para concluir continue a liberdade provisória sem fiança a ser vinculada após a vigência da Lei n. 12.403/2011.
Na sua forma mais pura, ela é e sempre será incondicionada.
Mas o que pensar a respeito do parágrafo único do art. 310, que condiciona a liberdade provisória ao cumprimento de obrigações nos casos que elenca, sob pena de revogação do benefício (que de benefício nada tem, pois se trata de um direito Constitucionalmente assegurado), ou, ainda, do art. 350 do CPP, que também sujeita a pessoa pobre às condições dos arts. 327 e 328 do CPP, sob pena de revogação da liberdade provisória?
Admitir a sensatez e a valia jurídica dessas regras seria o mesmo que admitir que para a generalidade dos casos em que se conceder liberdade provisória não haverá qualquer vinculação, mas na hipótese de ser o indivíduo pobre ou ter praticado conduta que aparentemente não configura ilícito penal se imporá legitimamente condição. Na generalidade não será vinculada, mas para os casos particularizados, sim.
Vejamos as seguintes fórmulas propostas no CPP, em pleno Estado de Direito:
1ª) preso em flagrante + situação de pobreza = liberdade provisória, sem fiança, vinculada ao cumprimento de condições, sob pena de revogação;
2ª) preso em flagrante + evidente causa de exclusão da ilicitude = liberdade provisória, sem fiança, vinculada ao cumprimento de condições, sob pena de revogação;
3ª) preso em flagrante abastado + generalidade dos casos = liberdade provisória, sem fiança, sem qualquer obrigação adicional e, portanto, sem possibilidade de revogação por descumprimento.
É claro que a aplicação cega das regras do CPP, conforme expostas, acarretaria odioso e injustificável tratamento desigual.
É inconcebível que apenas o pobre e aquele que aparentemente não praticou delito algum – e que deveria, a rigor e exatamente por isso, ter a prisão em flagrante relaxada – tenham suas situações agravadas em relação aos demais flagranteados.
A regulamentação geral da liberdade provisória sem fiança está tratada no art. 321 do CPP, de onde se extrai que, por ocasião de sua concessão, na generalidade dos casos, não será lícito ao magistrado impor qualquer vinculação, obrigação ou condição de permanência. Poderá o juiz, todavia, na mesma decisão determinar a submissão do liberado a uma ou mais dentre as medidas cautelares dos arts. 319 e 320, observadas as regras do art. 282, todos do CPP. Mas isso é coisa bem diversa de vinculação ex lege.
Em síntese, seja qual for o fundamento da liberdade provisória sem fiança, não se imporá vinculação, mesmo nas hipóteses do art. 310, parágrafo único, ou do art. 350, ambos do CPP.
2. Superveniente imposição de cautelares restritivas e/ou revogação da liberdade provisória sem fiança
Embora não seja possível vincular ou condicionar a liberdade provisória sem fiança ao cumprimento de certas obrigações, é cabível pensar na sua revogação, contudo, apenas no caso de decretação de prisão preventiva, absolvição ou condenação definitiva, com trânsito em julgado, e isso não autoriza afirmar que houve enfraquecimento do sistema de proteção social contra condutas desviantes.
Praticado pelo agente qualquer daqueles comportamentos que para muitos autorizavam no passado a revogação da liberdade provisória e o retorno ao cárcere, caberá ao juiz verificar se é caso, ou não, de aplicar uma ou mais dentre as medidas cautelares anotadas nos arts. 319 e 320 do CPP.
Dependendo da gravidade do que se fizer ou deixar de fazer, poderá ser aplicada apenas uma inicialmente, mas, se acaso se revelar insuficiente ou ocorrer novo comportamento que justifique, outra ou outras poderão ser aplicadas, em substituição ou cumulativamente.
Igual procedimento se verificará quando no gozo da liberdade provisória já estiver o agente submetido a outra medida restritiva, hipótese em que outras poderão ser fixadas, se demonstrada a necessidade, utilidade, razoabilidade e proporcionalidade da providência, sendo certo que o descumprimento injustificado de tais medidas poderá levar à decretação de prisão preventiva, conforme autoriza o parágrafo único do art. 312 do CPP.
Nada impede, entretanto, que, estando presentes os requisitos legais, seja a prisão preventiva a qualquer tempo decretada, independentemente da prévia imposição de cautelares restritivas, mas é preciso reforçar que essa providência extrema somente poderá ser determinada quando não for cabível outra medida cautelar (CPP, § 6º do art. 282).
3.Conclusão
Esse sistema gradativo de resposta estatal é eficiente e condiz com a Constituição Federal, onde a liberdade exala como valor supremo a se preservar, e a prisão, providência de ultima ratio.
Informações Sobre o Autor
Renato Flávio Marcão
Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito. Professor convidado no curso de pós-graduação em Ciências Criminais da Rede Luiz Flávio Gomes e em cursos de pós-graduação em diversas Escolas Superiores do Ministério Público e da Magistratura. Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP). Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), do Instituto de Ciências Penais (ICP) e do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP).