Medidas de salvaguarda

Resumo: Estudo panorâmico sobre as medidas de salvaguarda, apresentando seu conceito, classificação e regulamentação. Aponta, ainda, as controvérsias que envolvem o tema, bem como analisa fatos relacionados à sua utilização no âmbito da Organização Mundial do Comércio. Finalmente, traz considerações acerca do aprimoramento da regulamentação em vigor e expõe os desafios a serem enfrentados em face da dinâmica do cenário internacional.

Palavras-chave: Salvaguarda. Prática leal de comércio. Princípio da não-seletividade.

Súmário: INTRODUÇÃO; 1 CONCEITO; 2 REGULAMENTAÇÃO DAS MEDIDAS DE SALVAGUARDA; 2.1 Do GATT 1947 ao Acordo sobre Salvaguardas; 2.2 Medidas de salvaguarda gerais e sua regulamentação; 3 APLICAÇÃO E EFETIVIDADE DAS MEDIDAS; 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS.

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INTRODUÇÃO;

As medidas de salvaguarda são o único instrumento de defesa comercial alicerçado não em práticas desleais de comércio, mas em práticas leais capazes de gerar um súbito desarranjo à dinâmica industrial dos países importadores, de modo que não se pode confundi-las com as medidas antidumping ou com os direitos compensatórios. Outrossim, tem sido o instrumento responsável por frear a utilização dos acordos de restrição voluntária às exportações e outras medidas da área cinzenta cujo uso proliferou durante a década de 80, em razão de mudanças estruturais do sistema capitalista que fizeram predominar no comércio o protecionismo.

Atualmente, a utilização das medidas de salvaguarda está mais atrelada à abertura econômica da China. Os países importadores, preocupados com a alta competitividade chinesa, têm se valido das medidas de salvaguarda para permitir que suas indústrias se ajustem à nova dinâmica de trocas comerciais.

Deste modo, é importante analisar a dinâmica deste instrumento de defesa comercial e perceber se seu uso nos termos propostos pelo Acordo sobre Salvaguarda, longe de favorecer uma atitude protecionista ou visar indisposições políticas, reflete o ideal da Organização do Comércio que é promover a liberalização do comércio internacional, eliminando distorções e restrições entre seus países membros.

Assim, o presente artigo versa sobre os fundamentos, a classificação, a regulamentação e a utilização das medidas de salvaguarda. Ademais, também se preocupa em analisar algumas das controvérsias que envolvem o tema, indicando sugestões de aprimoramento fornecidas pelos países envolvidos com as medidas e apontando os rumos do instituto no cenário do Direito Internacional Econômico. O foco da análise, todavia, está nas denominadas medidas de salvaguardas gerais por serem mais abrangentes e de regulamentação mais aperfeiçoada, mencionando-se as salvaguardas transitórias e as especiais apenas em algumas de suas particularidades e pontos polêmicos.

1 CONCEITO

As medidas de salvaguardas podem ser definidas como o mecanismo utilizado quando o aumento da importação de determinado produto – fruto não de violação das regras de livre comércio, mas apenas de situações emergenciais – cause ou ameace causar prejuízo grave aos produtores domésticos em um mercado específico, sendo aplicadas com o fim de aumentar temporariamente a proteção da indústria doméstica para que ela se ajuste e recupere sua competitividade. (PIRES, 2001, p. 217; FONSECA, 2004, p. 110). Tais medidas têm o caráter urgente, temporário e proporcional ao necessário para prevenir ou remediar prejuízo grave e facilitar o ajustamento da indústria nacional, podendo ser colocadas em prática tanto por meio da suspensão de concessões tarifárias, quanto pela limitação quantitativa da entrada de determinado produto no mercado nacional. (BROGINI, 2002, p. 252).

Como dito, o objetivo das medidas de salvaguardas é conceder prazo às indústrias mais seriamente prejudicadas com a perda de competitividade oriunda do aumento das importações (fruto da liberalização comercial e tarifária) para que se ajustem ao novo contexto, seja pela adoção de inovações tecnológicas ou econômicas, seja por uma mudança no modo de produção. Assim, estas medidas se diferenciam dos direitos antidumping e compensatórios porque, enquanto estes são entendidos como uma reação a uma concorrência injusta, fruto da discriminação de preços ou de subsídio governamental, as medidas de salvaguarda aplicam-se às importações tidas como justas, mas que geram um desajuste no mercado produtor. (BARRAL, 2000, p. 140; BENKE, 2003, p.6).

Neste sentido, Pinheiro e Guedes (1998, p. 330) entendem que as salvaguardas são úteis para: a) países de tradição protecionista que estão na fase de abertura comercial, pois permitem que as indústrias locais se adaptem à concorrência externa; b) setores que perderam competitividade internacional, a exemplo do setor siderúrgico, já que as salvaguardas podem evitar o desemprego em massa e permitir que a mão-de-obra se adapte e consiga ser transferida para um outro setor da economia; c) países com problemas de balanço de pagamentos, cabendo aqui não salvaguardas setoriais, mas generalizadas.

2 REGULAMENTAÇÃO DAS MEDIDAS DE SALVAGUARDA

2.1 Do GATT 1947 ao Acordo sobre Salvaguardas

No que tange ao surgimento das medidas de salvaguardas, o primeiro país a utilizá-las foram os Estados Unidos. Em 1942, foi imposto ao México o Acordo de Concessão Tarifária com o objetivo de testar o recém criado instrumento de defesa comercial e avaliar sua possível utilização com fins protecionistas. (GOYOS JUNIOR, 2003, p. 96). Em 1947, já no âmbito do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), o assunto foi tratado no artigo XIX, mas tal dispositivo apenas reproduziu a legislação americana sobre o tema, vez que coube ao Senado americano redigir o GATT. (PINHEIRO; GUEDES, 1998, p. 332). Ainda assim, a adoção das medidas foi vista com bons olhos porque se acreditou que se os países estivessem aptos a protegerem temporariamente suas indústrias contra o aumento repentino das importações, eles estariam menos dispostos a abandonar o sistema de negociação multilateral que se buscava instaurar por meio do GATT e recorrer menos ao protecionismo ou qualquer outro instrumento discriminatório. (TREBILCOCK; HOWSE, 1999, p. 227).

Todavia, a ausência de regulamentação do artigo XIX gerava dificuldades de interpretação e incertezas em sua aplicação, permitindo que os países recorressem às medidas da área cinzenta (gray area measures), em especial aos acordos de restrição voluntária às exportações (Voluntary Export Restraints – VER) que não passavam de imposições baseadas em ameaças ou retaliações dos países desenvolvidos e com maior poder de barganha sobre os países exportadores. A preocupação com as medidas da área cinzenta fez com que a necessidade de um código sobre salvaguardas fosse incluída na Declaração Ministerial que precedeu à Rodada Tóquio do GATT em 1973. Porém, encerrou-se a rodada sem que o tema fosse devidamente abordado. (BROGINI, 2002, p. 253; GOYOS JUNIOR, 2003, p. 97-8).

Somente a partir da Rodada Uruguai (1986-1994), constatou-se a urgente necessidade de melhor disciplinar a matéria e, conseqüentemente, reduzir a utilização dos acordos de restrição voluntária às exportações, bem como estimular um ajuste estrutural das indústrias nacionais afetadas. Firmou-se, então, o chamado Acordo sobre Salvaguardas[1] que trouxe definições mais claras sobre aumento de importações, prejuízo grave e indústria nacional; passou a exigir uma investigação prévia; estabeleceu um prazo máximo de vigência das medidas; deu tratamento mais favorável aos países em desenvolvimento; proibiu a adoção das restrições voluntárias às exportações e outros acordos de organização de mercado[2]; disciplinou os procedimentos de notificação e consulta entre os Membros e criou o Comitê sobre Salvaguardas, como será visto adiante. Convencionou-se, ainda, que tal acordo trataria das salvaguardas gerais, excepcionando-se as salvaguardas transitórias e as especiais. (BROGINI, 2002, p. 255).

Por esta razão, as salvaguardas transitórias aplicam-se aos produtos têxteis e de vestuário não incorporados ao GATT 1994 e para os quais o país reservou o direito de recorrer a tais medidas, nos termos do Acordo sobre Têxteis e Vestuário da Organização Mundial do Comércio (OMC). Tal acordo estabelece, em seu artigo 9, um regime de exceção para adequação do setor às novas regras do comércio internacional, e seu artigo 2.4 proíbe a aplicação do Acordo sobre Salvaguardas às salvaguardas transitórias. Já as salvaguardas especiais estão previstas no artigo 5 do Acordo sobre Agricultura da OMC e podem ser aplicadas contra as importações de produtos agropecuários abrangidos por este acordo e indicados, na lista do país importador, com o símbolo SSG que revela ser o produto objeto de concessão, existindo sobre ele compromissos de acesso a mercado. (BROGINI, 2002, p. 260-61; GOYOS JUNIOR, 2003, p. 99-100).

2.2 Medidas de salvaguarda gerais e sua regulamentação

Por sua vez, as salvaguardas gerais são aplicáveis a todos os produtos industrializados e também aos produtos têxteis e agropecuários já integrados ao GATT 1994. A aplicação de uma medida de salvaguarda geral é precedida de uma investigação marcada pela transparência e publicidade de atos[3], cabendo à autoridade competente verificar a ocorrência de aumento das importações, a existência de prejuízo grave ou ameaça de prejuízo à indústria do país importador e um nexo de causalidade entre eles.[4] No que tange ao aumento das importações, o Órgão de Apelação da OMC, revertendo as decisões dos painéis referentes aos casos Argentina – calçados[5] e Coréia do Sul – produtos lácteos[6], entendeu que o artigo 2.1 do ASG e o artigo XIX.1 do GATT devem ser aplicados cumulativamente de modo que cabe à autoridade competente avaliar se houve aumento das importações tanto em termos absolutos quanto em relação à produção nacional, bem como verificar se tal aumento foi recente, repentino, agudo e significativo, quantitativa ou qualitativamente, para causar prejuízo ou grave ameaça. (BROGINI, 2000, p.29-30).

Já no que diz respeito à existência de prejuízo grave, este ocorre com a deterioração geral significativa da situação de uma indústria nacional, ao passo que a ameaça de prejuízo se configura quando o prejuízo grave é claramente iminente, devendo sua determinação estar baseada em fatos e não simplesmente em alegações, conjecturas ou possibilidades remotas. [7] Em ambos os casos, indústria nacional deve ser entendida como “o conjunto dos produtores dos bens similares ou diretamente concorrentes que operem dentro do território de um Membro ou aqueles cuja produção conjunta de bens similares ou diretamente concorrentes constitua uma proporção substancial da produção nacional de tais bens”, conforme disposto no artigo 4.1 (c) do ASG.

Ademais, determina o artigo 4.2 (a) do ASG que, no curso das investigações, as autoridades responsáveis em apurar se houve prejuízo grave ou ameaça de prejuízo grave devem avaliar

“[…] todos os fatores relevantes de caráter objetivo e quantificável que tenham relação com a situação daquela indústria, especialmente o ritmo de crescimento das importações do produto considerado, bem como seu crescimento em volume em termos absolutos e relativos; a parcela do mercado interno absorvida pelas importações em acréscimo; as alterações no nível de vendas; a produção; a produtividade; a utilização da capacidade; os lucros e perdas e o emprego.”

Quanto ao nexo de causalidade que deve haver entre os dois fatores acima analisados, quais sejam, o aumento das importações e o prejuízo grave ou a ameaça de prejuízo grave, o Acordo sobre Salvaguardas, em seu artigo 4.2 (b) diz que “quando outros fatores que não o aumento das importações estiverem simultaneamente causando prejuízo à indústria nacional, tal prejuízo não poderá ser atribuído ao aumento das importações”. Este dispositivo, todavia, conforme interpretação dada pelo Órgão de Apelação da OMC no caso Estados Unidos – glúten de trigo[8], deve ser analisado em três etapas: a) existe alguma relação entre o aumento das importações e o prejuízo grave?; b) além do aumento das importações, outros fatores concorrem para o prejuízo? e c) o aumento das importações é a causa desse prejuízo? Somente após a análise destes três itens pelas autoridades competentes é que elas estarão aptas a demonstrarem a não atribuição do prejuízo ao aumento das importações, de sorte que a mera constatação de que outros fatores estão contribuindo para o prejuízo às indústrias nacionais não é, por si só, suficiente para a afastar a aplicação das medidas de salvaguarda. (BROGINI, 2002, p.257-58).

Determinado o aumento das importações, o prejuízo ou ameaça de prejuízo grave e o nexo causal entre eles, as autoridades competentes devem providenciar a publicação de um documento contendo uma análise detalhada do caso investigado, bem como demonstrar a relevância dos fatores examinados[9].

A aplicação das medidas de salvaguarda também deve ocorrer com base no princípio da não-seletividade que estabelece, nos termos do artigo 2.2 do ASG, que “medidas de salvaguarda serão aplicadas ao produto importado independentemente de sua procedência”. Tal princípio é um dos pilares do Acordo sobre Salvaguardas, já estava previsto no artigo XIX do GATT 1947 e decorre do Princípio da Nação Mais Favorecida, pelo qual

“[…] fica estabelecido que toda vantagem, favor, privilégio ou imunidade afetando direitos aduaneiros ou outras taxas que são concedidos a uma parte contratante, devem ser acordados imediatamente e incondicionalmente a produtos similares comercializados com qualquer outra parte contratante. (THORSTENSEN, 2001, p. 33).”

O artigo 9.1 do Acordo sobre Salvaguardas, todavia, visando proporcionar um tratamento mais favorável aos países em desenvolvimento, estabelece uma exceção ao princípio da não-seletividade, pois

“não se aplicarão medidas de salvaguarda contra produto procedente de país em desenvolvimento Membro quando a parcela que lhe corresponda nas importações efetuadas pelo Membro importador do produto considerado não for superior a três por cento, contanto que os países em desenvolvimento Membros com participação nas importações inferior a três por cento não representem em conjunto mais de nove por cento das importações totais do produto em questão.”

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Um outro ponto referente ao princípio da não-seletividade diz respeito à sua aplicação ou não entre membros de acordo comercial regional (união aduaneira ou zona de livre comércio, por exemplo). Ainda não existe consenso a respeito, mas a recomendação da OMC é de que deve haver um certo paralelismo entre as investigações e a aplicação das medidas, nos termos do artigo 2.1 c/c artigo 2.2, ambos do Acordo sobre Salvaguardas. Deste modo, se ao analisar as importações as autoridades competentes incluírem os produtos de todas as fontes, obrigatoriamente as medidas devem ser aplicadas contra todas elas. (BROGINI, 2002, p. 259).

Consiste, ainda, em obrigação do país que pretender aplicar uma medida de salvaguarda ou, quando já a tenha aplicado, prorrogá-la, manter um nível de concessões com os países exportadores afetados pela medida. Para isso, permite-se a realização de acordos que prevejam a forma mais adequada de compensação comercial pelos efeitos indesejados da aplicação de uma medida. Em não havendo acordo, é possível aos países exportadores suspenderem concessões ou outras obrigações substancialmente equivalentes resultantes do GATT 1994 firmadas com o país importador, conforme prazos e regras estipulados no artigo 8.2 e 8.3 do ASG.

Quanto às formas de aplicação das medidas, como dito anteriormente, elas podem ocorrer por meio de restrições tarifárias ou por meio de restrições quantitativas. No primeiro caso, também chamado de restrição qualitativa, o que ocorre é a imposição de um direito adicional sobre a tarifa de importação que incide sobre o produto afetado. O objetivo desta restrição não é atingir o volume das importações, mas a sua competitividade no mercado interno. Já as restrições quantitativas visam diminuir a quantidade de produtos que entram no mercado importador, estabelecendo-se cotas. A adoção deste tipo de restrição, todavia, exige que tais cotas não fiquem abaixo do nível médio apurado nos últimos três anos.[10] (BROGINI, 2000, p. 36-7)

Há ainda a possibilidade de se aplicar medidas de salvaguarda provisórias em circunstâncias críticas, em que qualquer demora acarretaria dano difícil de reparar. Para que este tipo de medida seja aplicada, faz-se necessário a existência preliminar de provas claras de que o aumento das importações tem causado ou ameaça causar prejuízo grave. Elas podem durar, no máximo, duzentos dias, só podem assumir a forma de restrições tarifárias e devem ser reembolsadas imediatamente se, na investigação posterior, não ficar comprovado o nexo causal entre o aumento das importações e o prejuízo ou a ameaça de prejuízo, conforme disposto no artigo 6 do ASG.

Em relação ao período de aplicação das medidas, rege o artigo 7.1 do ASG que “as medidas de salvaguardas só serão aplicadas durante o período que seja necessário para prevenir ou remediar o prejuízo grave e facilitar o ajustamento. Tal período não será superior a quatro anos, a menos que seja prorrogado […]”. Esta prorrogação depende de uma determinação das autoridades competentes, no sentido de que a medida aplicada continua sendo necessária para prevenir ou remedir prejuízo grave; de provas de que a indústria nacional afetada está em processo de ajustamento e só pode ocorrer com a condição de que as concessões, notificações e consultas expressas nos artigos 8 e 12 do Acordo sobre Salvaguardas serão respeitadas. Ainda assim, o prazo máximo de aplicação de uma medida de salvaguarda não pode ultrapassar os oito anos, com exceção dos países em desenvolvimento que, nos termos do artigo 9.2 do ASG, têm o direito de prorrogar o período de aplicação de uma medida de salvaguarda por um prazo de até dois anos além do período máximo de oito anos estabelecido no artigo 7.3.

Visando facilitar o ajustamento da indústria doméstica, se o prazo de duração de uma medida for superior a um ano, deve haver uma liberalização gradativa, em intervalos regulares. Se o período de aplicação for superior a três anos, o país que impôs a medida deve avaliar o caso até metade do período imposto, podendo suspender a medida ou acelerar o processo de liberalização.[11] Já a reaplicação de uma medida à importação de um produto que tenha estado sujeito a uma medida de salvaguarda adotada após a entrada em vigor do acordo que cria a OMC só poderá ocorrer depois de transcorrido período igual àquele correspondente à aplicação da primeira medida, desde que o período sem aplicação seja igual ou superior a dois anos.[12] Aqui, mais uma vez, existe uma exceção aos países em desenvolvimento que podem reaplicar a medida “depois de um período igual à metade daquele durante o qual se tenha aplicado anteriormente tal medida, contanto que o período de não-aplicação seja de dois anos pelo menos”, nos termos no artigo 9.2 do ASG. Por fim, poderá voltar a ser aplicada à importação de um produto uma medida de salvaguarda de duração igual ou inferior a cento e oitenta dias desde que tenha se passado, ao menos, um ano desde a data de introdução de uma medida à importação do mesmo produto e não tenha sido aplicada tal medida ao mesmo produto mais de duas vezes nos cinco anos imediatamente anteriores à sua aplicação.[13]

Outra obrigação que cabe ao país importador interessado em aplicar uma medida de salvaguarda está relacionada às chamadas notificações e consultas, explicitadas no artigo 12 do Acordo sobre Salvaguardas. As notificações são dirigidas ao Comitê de Salvaguardas e devem ocorrer, obrigatoriamente, quando for iniciado um processo de investigação; quando for constatado prejuízo ou ameaça de prejuízo à indústria nacional decorrente do aumento das importações e quando se decidir pela aplicação ou prorrogação de uma medida de salvaguarda. A finalidade destas notificações é permitir que os países interessados no assunto defendam seus interesses e solicitem a realização de consultas, além de assegurar a compatibilidade das medidas e o seu efetivo controle. Ademais, as notificações devem conter todas as informações pertinentes[14] de modo a garantir a transparência dos procedimentos. No que diz respeito às consultas, nos termos do artigo 12.3 do ASG, elas devem ocorrer antes da aplicação da medida. Sua finalidade é examinar as informações fornecidas nas notificações, bem como possibilitar a realização de um entendimento prévio acerca da compensação estipulada no artigo 8.1 do Acordo sobre Salvaguardas. (BROGINI, 2000, p. 37-9).

Quanto ao Comitê sobre Salvaguardas acima mencionado, ele tem previsão legal no artigo 13.1 do Acordo sobre Salvaguardas e suas funções são: a) acompanhar a aplicação do Acordo sobre Salvaguardas, apresentando relatório anual sobre sua utilização e sugerindo modificações para seu aperfeiçoamento; b) averiguar, quando solicitado por um Membro, se foram cumpridas as exigências do Acordo; c) prestar assistência aos Membros durante as consultas; d) receber e analisar as notificações recebidas, entre outras.

3 APLICAÇÃO E EFETIVIDADE DAS MEDIDAS

Uma vez apontados aspectos básicos das medidas de salvaguarda tais como seu conceito, classificação e regulamentação, faz-se necessário, também, avaliar a aplicação e a efetividade das medidas. Inicialmente, vale destacar que ao longo dos anos as medidas de salvaguarda vêm sendo pouco utilizadas, em comparação aos demais instrumentos de defesa comercial. Para alguns, tal fato se deve às exigências feitas aos países importadores no sentido de ter que comprovar o grave prejuízo às suas indústrias e de ter que negociar concessões para compensar as medidas ou, ainda, em razão do princípio da não-seletividade que ao impedir a aplicação de medidas apenas àqueles importadores que estão causando prejuízo, faz com que, em certos casos, se prefira recorrer a mecanismos discriminatórios ou às medidas antidumping. No caso brasileiro, durante o período em que existiram altas barreiras tarifárias, o pouco uso se explica em razão das próprias tarifas exercerem o papel de protetor das indústrias nacionais. (GOYOS JUNIOR, 2003, p. 106; PINHEIRO; GUEDES, 1998, p. 331).

Brogini (2002, p. 109-10) entende que esta pouca utilização, bem como a repercussão positiva que o Acordo sobre Salvaguardas teve no comércio internacional, fez com que ele não fosse alvo de críticas mais severas, havendo grande probabilidade em não ocupar a agenda das próximas negociações multilaterais no âmbito da OMC. Para ele, o acordo só necessitaria de alguns pequenos ajustes no que diz respeito aos países em desenvolvimento, com o fim de aperfeiçoar o mecanismo e reforçar, ainda mais, o tratamento diferenciado garantido a esses países. (BROGINI, 2002, p. 269). Alguns ainda apontam a necessidade de amenizar o princípio da não-seletividade por meio do estabelecimento de uma margem de mininis que efetivamente seja capaz de proteger os países em desenvolvimento, bem como os outros países afetados por uma medida, mas que não tiveram uma contribuição relevante para a configuração do dano. Tal providência teria o condão de impedir que estes países afetados se valessem de outros institutos discriminatórios. (TREBILCOCK; HOWSE, 1999, p. 239).

Em verdade, a grande preocupação dos estudiosos reside nas salvaguardas transitórias e nas especiais, pois têm sido alvo de grandes críticas e de impasses entre exportadores e importadores. O maior problema das salvaguardas transitórias estaria em seu uso protecionista e o pouco esforço que os Membros vinham apresentando para cumprir o cronograma de abertura para o setor. Quanto às salvaguardas especiais, o problema tem se concentrado no acesso aos mercados, defendido pelos exportadores e repreendido pelos importadores que desejam a manutenção das salvaguardas. (BROGINI, 2002, p. 270). Ademais, a discussão referente às salvaguardas especiais vem se arrastando durante as várias conferências ministeriais da Rodada Doha de negociações multilaterais da OMC que, inclusive, foi suspensa recentemente por falta de acordo entre os seis maiores membros da organização, quais sejam, Austrália, Brasil, Estados Unidos, Índia, Japão e União Européia.

Outrossim, a questão das salvaguardas tem ganhado ainda mais relevância com a entrada da China na OMC e a assinatura da Cláusula China que permite, entre outras coisas, sejam aplicadas salvaguardas (Special Transitional Safeguard Mechanism) apenas aos produtos chineses, no caso deles estarem causando prejuízo grave ou ameaçando causar prejuízo grave às indústrias domésticas. O Brasil, em especial, achou por bem efetivar seu direito de tornar eficazes e acionáveis tais mecanismos de salvaguardas, em razão das especificidades econômicas chinesas (alta competitividade) que refletem diretamente no mercado brasileiro e em todos os outros com que a China interage.

O objetivo traçado pelo país por meio do Departamento de Defesa Comerical (DECOM), da Secretaria de Comércio Exterior (SECEX), subordinada ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) é permitir às indústrias afetadas fazerem uma avaliação acerca de sua competitividade, ajustando-se à nova realidade com ajuda da Lei de Inovações e de dispositivos de desoneração tributária de investimentos na produção e em tecnologia, sem esquecer de evitar possíveis “efeitos colaterais” oriundos da aplicação de tais medidas, a exemplo da pirataria, descaminho e subfaturamento. Com este intuito, Brasil e China assinaram um memorando que prevê a criação de um grupo com objetivos de efetivar uma melhor cooperação aduaneira e de harmonizar as estatísticas de comércio exterior, entre outras. Além disso, antes de abrir as investigações, o Brasil optou por tentar um acordo, no que foi bem sucedido. Deste modo, para o diretor do DECOM, Fernando de Magalhães Furlan, as negociações sobre a aplicação de salvaguardas à China longe de ser um ato agressivo ou protecionista, “é um esforço para que as naturais demandas comerciais bilaterais entre parceiros sejam resolvidas por meio de um entendimento mútuo”. (DEPARTAMENTO DE DEFESA COMERCIAL, 2005, p. 18).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por todo o exposto, conclui-se, primeiramente, que não se pode confundir as medidas de salvaguarda com os demais instrumentos de defesa comercial, vez que elas não pressupõem uma prática desleal de comércio, nem compartilham os mesmos propósitos. Deste modo, ainda que para alguns as medidas de salvaguarda sejam o instituto de defesa comercial mais transparente, menos beligerante e mais eficiente ou que para outros as medidas antidumping exijam menos requisitos, a aplicação de uma medida ou outra exige condições bastante específicas e diferentes, não ficando a cargo do país que deseja impor uma medida optar entre aquela que lhe seja mais cômoda.

Em segundo lugar, é notável o avanço experimentado pela regulamentação das medidas de salvaguarda, principalmente após a Rodada Uruguai. Se a finalidade embrionária das medidas estava atrelada a fins protecionistas, sua regulamentação por parte do GATT e, posteriormente da OMC, foi capaz de afastá-las definitivamente desse fim, conferindo-as transparência, publicidade e trâmites que impedem o desvirtuamento de sua utilização. Até mesmo termos que permitiam mais de uma interpretação tiveram seu alcance limitado, conferindo-se à regulamentação menos discricionariedade e mais uniformidade. A adoção de concessões e a proibição das medidas da área cinzenta também foram passos importantes para que muitos estudiosos chegassem a conclusão de que as medidas de salvaguarda, provavelmente, são o único instrumento de defesa comercial de raríssima utilização arbitrária ou injustificada.

Por sua vez, a relativa satisfação que os países membros da OMC têm demonstrado com o atual estágio de regulamentação das medidas de salvaguardas não impede que os países em desenvolvimento continuem buscando aprimorar o sistema de tratamento diferenciado a eles garantido, não só no que tange às medidas de salvaguarda, mas a todos os temas tratados na OMC. Tal atitude é coerente com o ideal de igualdade jurídica preconizada pelo Direito Internacional Econômico e tem permitido, aos países em desenvolvimento, a ampliação de suas oportunidades e uma maior participação na comunidade internacional.

Finalmente, a inserção da China na OMC e o seu reconhecimento enquanto economia de mercado trouxe novos desafios aos países importadores e uma nova possibilidade de aplicação das medidas de salvaguarda. Todavia, a aplicação das medidas contra a China exigirá dos países, em especial daqueles com pouca tradição na aplicação de instrumentos de defesa comercial, o aprimoramento da capacidade diplomática a fim de firmar acordos e evitar desentendimentos políticos, bem como aquisição de capacidade técnica para impedir que outros problemas como a pirataria e o contrabando se agravem. Em assim não sendo, os esforços para proteger a indústria nacional serão inócuos.

 

REFERÊNCIAS
BARRAL, Welber Oliveira. Dumping e comércio internacional: a regulamentação antidumping após a Rodada Uruguai. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
BENKE, Rafael Thiago Juk. Antidumping e antitruste: na busca do antídoto contra a confusão. Revista de Direito Internacional e Econômico. Porto Alegre: Síntese/INCE, v. 1, n. 4, jul./set. 2003, p. 5-17.
BROGINI, Gilvan Damiani. Medidas de salvaguarda e uniões aduaneiras. São Paulo: Aduaneiras, 2000.
____. Medidas de salvaguarda. In: BARRAL, Welber Oliveira (Org.). O Brasil e a OMC. 2. ed. revista e atualizada. Curitiba: Juruá, 2002, p. 251-272.
DEPARTAMENTO DE DEFESA COMERCIAL. Relatório DECOM nº 9 – 2005. Brasília, 2005. Disponível em: <http://www.desenvolvimento.gov.br/arquivo/secex/decom/relatorios/>. Acesso em: 25 jul. 2006.
FONSECA, Pedro Paulo Corino da. Defesas comerciais: um estudo jurídico das medidas legais internacionais de regulamentação do comércio multilateral e seus efeitos reais atuais. Revista de Direito Internacional e Econômico. Porto Alegre: Síntese/INCE, v. 2, n. 6, jan./mar. 2004, p. 104-124.
GOYOS JÚNIOR, Durval de Noronha. et al. Tratado de defesa comercial: antidumping, compensatórias e salvaguardas. São Paulo: Observador Legal, 2003.
PINHEIRO, Silvia; GUEDES, Josefina. Salvaguardas no comércio internacional. In: CASELLA, Paulo Borba; MERCADANTE, Araminta de Azevedo (Coord.). Guerra comercial ou integração mundial pelo comércio? A OMC e o Brasil. São Paulo: LTr, 1998, p. 330-339.
PIRES, Adilson Rodrigues. Práticas abusivas no comércio internacional. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
THORSTENSEN, Vera. OMC – Organização mundial do comércio: as regras do comércio internacional e a nova rodada de negociações multilaterais. 2. ed. São Paulo: Aduaneiras, 2001.
TREBILCOCK, Michael J.; HOWSE, Robert. The regulation of internacional trade. 2nd ed. London / New York: Routledge, 2001.
Notas:
[1] Implementado pela República Federativa do Brasil por meio do Decreto nº 1355, de 30/12/1994 e regulamentado pelo Decreto nº 1488, de 11/05/1995 e pelo Decreto nº 2667, de 10/07/1998.
[2] “[…] nenhum Membro procurará adotar, nem manterá restrições voluntárias às exportações, acordos de organização de mercado ou quaisquer outras medidas similares no que diz respeito tanto às exportações quanto às importações”. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Acordo sobre Salvaguardas, artigo 11.1 (b).
[3] “Um membro só poderá aplicar uma medida de salvaguarda após investigação conduzida por suas autoridades competentes de conformidade com procedimentos previamente estabelecidos e tornados públicos nos termos do Artigo X do GATT 1994 […]”. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Acordo sobre Salvaguardas, artigo 3.1.
[4] Cf. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Acordo sobre Salvaguardas, artigo 2.1.
[5] WT/DS121/AB/R
[6] WT/DS98/AB/R
[7] Cf. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Acordo sobre Salvaguardas, artigo 4.1 (a e b).
[8] WT/DS166/AB/R
[9] Cf. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Acordo sobre Salvaguardas, artigo 4.2(c).
[10] “As medidas de salvaguarda só serão aplicadas na proporção necessária para prevenir ou remediar prejuízo grave e facilitar o ajustamento. Se é utilizada restrição quantitativa, tal medida não reduzirá a quantidade das importações abaixo do nível de um período recente, que corresponderá à média das importações efetuadas nos três últimos anos representativos para os quais se disponha de estatísticas, a menos que se demonstre claramente a necessidade de se estabelecer um nível diferente para prevenir ou remediar o prejuízo grave”. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Acordo sobre Salvaguardas, artigo 5.1.
[11] “A fim de facilitar o ajustamento, se a duração prevista de uma medida de salvaguarda, notificada de conformidade com as disposições do parágrafo primeiro do Artigo 12, for superior a um ano, a medida será liberalizada progressivamente, em intervalos regulares, durante o período de aplicação. Se a duração da medida for superior a três anos, o Membro que a aplicar examinará a situação o mais tardar na metade do período de aplicação da medida e, se for o caso, suspenderá a medida ou acelerará o ritmo da liberalização”. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Acordo sobre Salvaguardas, artigo 7.4.
[12] Cf. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Acordo sobre Salvaguardas, artigo 7.5.
[13] Cf. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Acordo sobre Salvaguardas, artigo 7.6 (a e b).
[14] “Ao fazer as notificações a que se referem os parágrafos 1 (b) e 1 (c), o Membro que se proponha aplicar ou prorrogar uma medida de salvaguarda proporcionará ao Comitê de Salvaguardas todas as informações pertinentes, as quais incluirão provas do prejuízo grave ou da ameaça de prejuízo grave causado pelo aumento das importações, a descrição precisa do produto em pauta e da medida cogitada, a data proposta para a introdução da medida, sua duração prevista e o calendário estabelecido para sua liberalização progressiva. Em caso de prorrogação de uma medida, serão igualmente fornecidas provas de que a indústria afetada está em processo de ajustamento. O Conselho para o Comércio de Bens ou o Comitê de Salvaguardas poderá solicitar ao Membro que cogita de aplicar ou de prorrogar a medida informações adicionais que considere necessárias”. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Acordo sobre Salvaguardas, artigo 12.2.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Eveline de Andrade Oliveira

 

Bacharel em Direito. Mestranda do Programa de Mestrado em Direito do UniCEUB

 


 

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