Resumo: Em ressonância com o preceito de necessidades humanas básicas, na perspectiva das presentes e futuras gerações, é colocada, como ponto robusto, para reflexão a exigência de um patamar mínimo de qualidade e segurança ambiental, sem o qual o preceito de dignidade humana restaria violentado em seu núcleo essencial. A seara de proteção do direito à vida, quando confrontado com o quadro de riscos ambientais contemporâneos, para atender o padrão de dignidade alçado constitucionalmente, reclama ampliação a fim de abarcar a dimensão no seu quadrante normativo. Insta salientar, ainda, que a vida se apresenta como condição elementar para o pleno e irrestrito exercício da dignidade humana, conquanto esta não se limite àquela, porquanto a dignidade não se resume a questões existenciais de natureza essencialmente biológica ou física, todavia carece a proteção da existência humana de forma mais ampla. Desta maneira, é imprescindível que subsista a conjugação dos direitos sociais e dos direitos ambientais para identificação dos patamares necessários de tutela da dignidade humana, a fim de promover o reconhecimento de um direito-garantia do mínimo existencial socioambiental. A exemplo do que ocorre com o conteúdo do superprincípio da dignidade humana, o qual não encontra pontos limítrofes ao direito à vida, em uma acepção restritiva, o conceito de mínimo existencial não pode ser limitado ao direito à simples sobrevivência na sua dimensão estritamente natural ou biológica, ao reverso, exige concepção mais ampla, eis que almeja justamente a realização da vida em patamares dignos, considerando, nesse viés, a incorporação da qualidade ambiental como novo conteúdo alcançado por seu âmbito de proteção.
Palavras-chaves: Meio Ambiente. Mínimo Existencial Socioambiental. Dano Moral. Valores Constitucionais.
Sumário: 1 Ponderações Introdutórias: A construção teórica do Direito Ambiental; 2 Anotações ao processo de migração do Estado Liberal para o Estado Socioambiental de Direito; 3 Fundamentos Constitucionais do Direito ao Mínimo Existencial Socioambiental; 4 Mínimo Existencial Socioambiental e a Fixação de Verbas em sede de Dano Moral: Uma análise à luz do Superior Tribunal de Justiça.
1 Ponderações Introdutórias: A Construção Teórica do Direito Ambiental
Inicialmente, ao se dispensar um exame acerca do tema colocado em tela, patente se faz arrazoar que a Ciência Jurídica, enquanto um conjunto multifacetado de arcabouço doutrinário e técnico, assim como as robustas ramificações que a integram, reclama uma interpretação alicerçada nos plurais aspectos modificadores que passaram a influir em sua estruturação. Neste alamiré, lançando à tona os aspectos característicos de mutabilidade que passaram a orientar o Direito, tornou-se imperioso salientar, com ênfase, que não mais subsiste uma visão arrimada em preceitos estagnados e estanques, alheios às necessidades e às diversidades sociais que passaram a contornar os Ordenamentos Jurídicos. Ora, em razão do burilado, infere-se que não mais prospera o arcabouço imutável que outrora sedimentava a aplicação das leis, sendo, em decorrência dos anseios da população, suplantados em uma nova sistemática.
Com espeque em tais premissas, cuida hastear, com bastante pertinência, como flâmula de interpretação o “prisma de avaliação o brocardo jurídico 'Ubi societas, ibi jus', ou seja, 'Onde está a sociedade, está o Direito', tornando explícita e cristalina a relação de interdependência que esse binômio mantém”[1]. Destarte, com clareza solar, denota-se que há uma interação consolidada na mútua dependência, já que o primeiro tem suas balizas fincadas no constante processo de evolução da sociedade, com o fito de que seus Diplomas Legislativos e institutos não fiquem inquinados de inaptidão e arcaísmo, em total descompasso com a realidade vigente. A segunda, por sua vez, apresenta estrutural dependência das regras consolidadas pelo Ordenamento Pátrio, cujo escopo primevo é assegurar que não haja uma vingança privada, afastando, por extensão, qualquer ranço que rememore priscas eras em que o homem valorizava a Lei de Talião (“Olho por olho, dente por dente”), bem como para evitar que se robusteça um cenário caótico no seio da coletividade.
Ademais, com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, imprescindível se fez adotá-la como maciço axioma de sustentação do Ordenamento Brasileiro, precipuamente quando se objetiva a amoldagem do texto legal, genérico e abstrato, aos complexos anseios e múltiplas necessidades que influenciam a realidade contemporânea. Ao lado disso, há que se citar o voto magistral voto proferido pelo Ministro Eros Grau, ao apreciar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº. 46/DF, “o direito é um organismo vivo, peculiar porém porque não envelhece, nem permanece jovem, pois é contemporâneo à realidade. O direito é um dinamismo. Essa, a sua força, o seu fascínio, a sua beleza”[2]. Como bem pontuado, o fascínio da Ciência Jurídica jaz, justamente, na constante e imprescindível mutabilidade que apresenta, decorrente do dinamismo que reverbera na sociedade e orienta a aplicação dos Diplomas Legais e os institutos jurídicos neles consagrados.
Ainda neste substrato de exposição, pode-se evidenciar que a concepção pós-positivista que passou a permear o Direito, ofertou, por via de consequência, uma rotunda independência dos estudiosos e profissionais da Ciência Jurídica. Aliás, há que se citar o entendimento de Verdan, “esta doutrina é o ponto culminante de uma progressiva evolução acerca do valor atribuído aos princípios em face da legislação”[3]. Destarte, a partir de uma análise profunda dos mencionados sustentáculos, infere-se que o ponto central da corrente pós-positivista cinge-se à valoração da robusta tábua principiológica que Direito e, por conseguinte, o arcabouço normativo passando a figurar, nesta tela, como normas de cunho vinculante, flâmulas hasteadas a serem adotadas na aplicação e interpretação do conteúdo das leis.
Nas últimas décadas, o aspecto de mutabilidade tornou-se ainda mais evidente, em especial, quando se analisa a construção de novos que derivam da Ciência Jurídica. Entre estes, cuida destacar a ramificação ambiental, considerando como um ponto de congruência da formação de novos ideários e cânones, motivados, sobretudo, pela premissa de um manancial de novos valores adotados. Nesta trilha de argumentação, de boa técnica se apresenta os ensinamentos de Fernando de Azevedo Alves Brito que, em seu artigo, aduz: “Com a intensificação, entretanto, do interesse dos estudiosos do Direito pelo assunto, passou-se a desvendar as peculiaridades ambientais, que, por estarem muito mais ligadas às ciências biológicas, até então era marginalizadas”[4]. Assim, em decorrência da proeminência que os temas ambientais vêm, de maneira paulatina, alcançando, notadamente a partir das últimas discussões internacionais envolvendo a necessidade de um desenvolvimento econômico pautado em sustentabilidade, não é raro que prospere, mormente em razão de novos fatores, um verdadeiro remodelamento ou mesmo uma releitura dos conceitos que abalizam a ramificação ambiental do Direito, com o fito de permitir que ocorra a conservação e recuperação das áreas degradadas.
Ademais, há de ressaltar ainda que o direito ambiental passou a figurar, especialmente, depois das décadas de 1950 e 1960, como um elemento integrante da farta e sólida tábua de direitos fundamentais. Calha realçar, com cores quentes, que mais contemporâneos, os direitos que constituem a terceira dimensão recebem a alcunha de direitos de fraternidade ou, ainda, de solidariedade, contemplando, em sua estrutura, uma patente preocupação com o destino da humanidade[5]·. Ora, daí se verifica a inclusão de meio ambiente como um direito fundamental, logo, está umbilicalmente atrelado com humanismo e, por extensão, a um ideal de sociedade mais justa e solidária. Nesse sentido, ainda, é plausível citar o artigo 3°., inciso I, da Constituição da República de 1988 que abriga em sua redação tais pressupostos como os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direitos: “Art. 3º – Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária” [6].
Ainda nesta esteira, é possível verificar que a construção dos direitos encampados sob a rubrica de terceira dimensão tende a identificar a existência de valores concernentes a uma determinada categoria de pessoas, consideradas enquanto unidade, não mais prosperando a típica fragmentação individual de seus componentes de maneira isolada, tal como ocorria em momento pretérito. Com o escopo de ilustrar, de maneira pertinente as ponderações vertidas, insta trazer à colação o entendimento firmado pelo Ministro Celso de Mello, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade N°. 1.856/RJ, em especial quando destaca:
“Cabe assinalar, Senhor Presidente, que os direitos de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos, genericamente, e de modo difuso, a todos os integrantes dos agrupamentos sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem, por isso mesmo, ao lado dos denominados direitos de quarta geração (como o direito ao desenvolvimento e o direito à paz), um momento importante no processo de expansão e reconhecimento dos direitos humanos, qualificados estes, enquanto valores fundamentais indisponíveis, como prerrogativas impregnadas de uma natureza essencialmente inexaurível”[7].
“Têm primeiro por destinatários o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta”[8]. Com efeito, os direitos de terceira dimensão, dentre os quais se inclui ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, positivado na Constituição Federal de 1988, emerge com um claro e tangível aspecto de familiaridade, como ápice da evolução e concretização dos direitos fundamentais.
2 Anotações ao processo de migração do Estado Liberal para o Estado Socioambiental de Direito
Inicialmente, a miséria e a pobreza, como claras manifestações da falta de acesso aos direitos sociais básicos, tais como: saúde, saneamento básico, educação, moradia, alimentação e renda mínima, caminham juntas com a degradação e a poluição do meio ambiente, atentando contra a dignidade das populações de baixa venda. Em razão de tais aspectos, imperioso se faz a adoção de uma tutela que alcance, concomitantemente, os direitos sociais e os direitos ecológicos, com o fito exclusivo de assegurar as condições mínimas para a preservação e manutenção da qualidade de vida, promovendo, deste modo, o superprincípio norteador da Constituição da República Federativa do Brasil, qual seja: o da dignidade da pessoa humana. Ora, visando ampliar o núcleo de direitos sociais, impende salientar que aqueles compreendem tanto os direitos relacionados à educação, formação profissional e trabalho, como os direitos à alimentação, moradia, assistência médica e os demais que, no transcurso do tempo, podem ser encarados como integrante da concepção de vida digna. Desta feita, a partir da novel interpretação concedida ao direito a um meio ambiente saudável, é possível colocar em evidência a proeminência de tal tema, constituindo, inclusive, a extensa rubrica dos direitos sociais.
Ainda neste passo, como bem evidencia Sarlet e Fensterseifer[9], imperioso se faz colocar em evidência, notadamente em razão da consolidação do entendimento do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, a existência de uma dimensão social quanto de uma dimensão ecológica constituintes da dignidade da pessoa humana. Desta feita, a configuração do Estado Socioambiental de Direito apresenta como questão dotada de relevância a segurança ambiental, que passa a assumir posição central, incumbindo ao Ente Estatal a função de salvaguardar os cidadãos contras novas formas de violação de sua dignidade e dos seus direitos fundamentais, em razão dos efeitos devastadores dos impactos socioambientais produzido pela sociedade de risco contemporânea. Com efeito, com o escopo de ilustrar tais ponderações, curial se faz citar a manifestação do Ministro Celso de Mello, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade N° 3.540/DF, em especial quando destaca que:
“Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Trata-se de um típico direito de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que assiste a todo o gênero humano (RTJ 158/205-206). Incumbe, ao Estado e à própria coletividade, a especial obrigação de defender e preservar, em benefício das presentes e futuras gerações, esse direito de titularidade coletiva e de caráter transindividual (RTJ 164/158-161). O adimplemento desse encargo, que é irrenunciável, representa a garantia de que não se instaurarão, no seio da coletividade, os graves conflitos intergeneracionais marcados pelo desrespeito ao dever de solidariedade, que a todos se impõe, na proteção desse bem essencial de uso comum das pessoas em geral. Doutrina. A atividade econômica não pode ser exercida em desarmonia com os princípios destinados a tornar efetiva a proteção ao meio ambiente. – A incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de índole meramente econômica, ainda mais se se tiver presente que a atividade econômica, considerada a disciplina constitucional que a rege, está subordinada, dentre outros princípios gerais, àquele que privilegia a "defesa do meio ambiente" (CF, art. 170, VI), que traduz conceito amplo e abrangente das noções de meio ambiente natural, de meio ambiente cultural, de meio ambiente artificial (espaço urbano) e de meio ambiente laboral. Doutrina. Os instrumentos jurídicos de caráter legal e de natureza constitucional objetivam viabilizar a tutela efetiva do meio ambiente, para que não se alterem as propriedades e os atributos que lhe são inerentes, o que provocaria inaceitável comprometimento da saúde, segurança, cultura, trabalho e bem-estar da população, além de causar graves danos ecológicos ao patrimônio ambiental, considerado este em seu aspecto físico ou natural”[10].
Desta feita, o Estado de Direito, com o fito de promover a tutela da dignidade humana em face dos reiterados riscos ambientais e da insegurança propiciados pela sociedade tecnológica, deve ser capaz de conjugar os valores fundamentais que são ejetados das relações sociais e, por meio de suas instituições democráticas, garantir aos cidadãos a segurança carecida à manutenção e proteção de vida com qualidade ambiental, observando, inclusive, as consequências futuras resultantes da adoção de determinadas tecnologias. “É precisamente nesse contexto que assume importância o reconhecimento dos deveres de proteção do Estado, em especial a partir da assim camada dimensão objetiva dos direitos fundamentais”[11]. Subsiste, in casu, um dever estatal de garantia da segurança ou de prevenção de riscos, o que é verificável em todas as dimensões da socioambientalidade, tais como a segurança alimentar ou mesmo na produção e comercialização de medicamentos, e da própria segurança pública e pessoal.
Assentado em tais ideários, é possível salientar que, por meio da concretização dos deveres de proteção em relação aos direitos fundamentais e a dignidade humana, o Estado contemporâneo deve se ajustar, e em sendo necessário se remodelar, às novas ameaças e riscos ecológicos, os quais têm o condão de fragilizar a própria existência humana. Assim, em consonância com a proteção do meio ambiente, enquanto um reforço da proteção da dignidade da pessoa humana, a ordem constitucional brasileira, conforme se extrai dos dispositivos 170[12], 186[13] e 225[14], todos da Constituição Federal, inauguram um modelo jurídico-político-econômico em harmonia com o princípio do desenvolvimento sustentável. Com efeito, com o escopo de ilustrar tais ponderações, curial se faz citar a manifestação do Ministro Celso de Mello, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade N° 3.540/DF, em especial quando destaca que:
“O princípio do desenvolvimento sustentável, além de impregnado de caráter eminentemente constitucional, encontra suporte legitimador em compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro e representa fator de obtenção do justo equilíbrio entre as exigências da economia e as da ecologia, subordinada, no entanto, a invocação desse postulado, quando ocorrente situação de conflito entre valores constitucionais relevantes, a uma condição inafastável, cuja observância não comprometa nem esvazie o conteúdo essencial de um dos mais significativos direitos fundamentais: o direito à preservação do meio ambiente, que traduz bem de uso comum da generalidade das pessoas, a ser resguardado em favor das presentes e futuras gerações”[15].
Denota-se, dessa forma, que “o novo modelo de Estado de Direito objetiva uma salvaguarda cada vez maior da dignidade humana e de todos os direitos fundamentais (de todas as dimensões), em vista de uma (re)construção histórica permanente dos seus conteúdos normativos”[16]. Ao lado do esposado, o modelo de Estado de Direito Socioambiental revela tão somente a incorporação de uma nova dimensão, com o intuito de contemplar o elenco dos objetivos fundamentais do Estado de Direito contemporâneo, a saber: a proteção do ambiente, que se articula, de modo dialético, com as demais dimensões já consagradas, de maneira plena, no decorrer do percurso histórico de formação do Estado de Direito, notadamente no que concerne à proteção dos direitos fundamentais, consistente na realização de uma democracia política participativa, a disciplina e regulação da atividade econômica pelo poder político democrático e a materialização dos objetivos de justiça social.
Com efeito, o corolário constitucional da solidariedade se apresenta como um axioma do Estado Socioambiental de Direito, conjugado com a liberdade e a igualdade, com o escopo de concretizar a dignidade em todos os seres humanos. Ademais, no contexto das relações jurídicas que se trava no âmbito ambiental, é possível, dada a proeminência do tema, reconhecer e tutelar a dignidade das gerações futuras, valorando a denominada solidariedade transgeracional. Da mesma forma, não se pode olvidar que é imperioso a garantia de um mínimo, em temos de qualidade ambiental, na perspectiva das gerações humanas futuras, materializando a tutela insculpida no artigo 225 da Constituição Federal[17]. “A responsabilidade pela preservação de um patamar ecológico mínimo deve se atribuída, tanto na forma dos deveres de proteção do Estado como na forma de deveres fundamentais dos particulares, às gerações humanas presentes”[18], materializando para estas o dever de preservar as bases naturais mínimas para o desenvolvimento da vida das gerações futuras.
3 Fundamentos Constitucionais do Direito ao Mínimo Existencial Socioambiental
Em ressonância com o preceito de necessidades humanas básicas, na perspectiva das presentes e futuras gerações, é colocada, como ponto robusto, para reflexão a exigência de um patamar mínimo de qualidade e segurança ambiental, sem o qual o preceito de dignidade humana restaria violentado em seu núcleo essencial. A seara de proteção do direito à vida, quando confrontado com o quadro de riscos ambientais contemporâneos, para atender o padrão de dignidade alçado constitucionalmente, reclama ampliação a fim de abarcar a dimensão no seu quadrante normativo. Insta salientar, ainda, que a vida se apresenta como condição elementar para o pleno e irrestrito exercício da dignidade humana, conquanto esta não se limite àquela, porquanto a dignidade não se resume a questões existenciais de natureza essencialmente biológica ou física, todavia carece a proteção da existência humana de forma mais ampla. Desta maneira, é imprescindível que subsista a conjugação dos direitos sociais e dos direitos ambientais para identificação dos patamares necessários de tutela da dignidade humana, a fim de promover o reconhecimento de um direito-garantia do mínimo existencial socioambiental, “precisamente pelo fato de tal direito abarcar o desenvolvimento de todo o potencial da vida humana até a sua própria sobrevivência como espécie, no sentido de uma proteção do homem contra a sua própria ação predatória”[19].
A exemplo do que ocorre com o conteúdo do superprincípio da dignidade humana, o qual não encontra pontos limítrofes ao direito à vida, em uma acepção restritiva, o conceito de mínimo existencial não pode ser limitado ao direito à simples sobrevivência na sua dimensão estritamente natural ou biológica, ao reverso, exige concepção mais ampla, eis que almeja justamente a realização da vida em patamares dignos, considerando, nesse viés, a incorporação da qualidade ambiental como novo conteúdo alcançado por seu âmbito de proteção. Arrimado em tais corolários, o conteúdo do mínimo existencial não pode ser confundido com o denominado “mínimo vital” ou mesmo com o “mínimo de sobrevivência”, na proporção em que este último tem seu sentido atrelado à garantia da vida humana, sem necessariamente compreender as condições para uma sobrevivência física em condições dignas, portanto, de uma vida dotada de certa qualidade.
O conteúdo normativo ventilado pelo direito ao mínimo existencial deve receber modulação à luz das circunstâncias históricas e culturais concretas da comunidade estatal, inclusive numa perspectiva evolutiva e cumulativa. Destarte, é natural que novos elementos, decorrentes das relações sociais contemporâneas e das novas necessidades existenciais apresentadas, sejam, de maneira paulatina, incorporados ao seu conteúdo, eis que o escopo primordial está assentado em salvaguardar a dignidade da pessoa humana, sendo indispensável o equilíbrio e a segurança ambiental. Nesta esteira, com o escopo de promover a conformação do conteúdo do superprincípio da dignidade da pessoa humana, é imperioso o alargamento do rol dos direitos fundamentais, os quais guardam ressonância com a concepção histórica dos direitos humanos, porquanto a tendência é sempre a ampliação do universo dos direitos fundamentais, de maneira a garantir um nível cada vez maior de tutela e promoção da pessoa, tanto em uma órbita individual como em aspectos coletivos.
Ademais, o processo histórico-constitucional de afirmação de direitos fundamentais e da proteção da pessoa viabilizou a inserção da proteção ambiental no rol dos direitos fundamentais, de maneira que o conteúdo do mínimo existencial, até então restrito à dimensão social, deve necessariamente compreender também um mínimo de qualidade ambiental, no sentido de encampar o mínimo existencial ecológico, que assume verdadeira feição socioambiental. Ao se adotar os paradigmas ventilados pelo artigo 225 da Constituição Federal[20], é verificável que a promoção da sadia qualidade de vida só é possível, enquanto desdobramento da vida e saúde humanas, dentro dos padrões mínimos estabelecidos constitucionalmente para o desenvolvimento pleno da personalidade humana, num ambiente natural com qualidade ambiental.
O ambiente está presente nas questões mais vitais e elementares para o desenvolvimento das potencialidades humanas, além de ser imprescindível à sobrevivência do ser humano como espécie natural. Desta feita, com o intento que se contribuir para a construção de uma fundamentação do mínimo existencial ecológico e, em uma perspectiva mais ampla, socioambiental, é adotado, portanto, uma compreensão alargada do conceito de mínimo existencial, com o escopo de alcançar a ideia de uma vida com qualidade ambiental. “A dignidade da pessoa humana, por sua vez, somente estará assegurada – em termos de condições básicas a serem garantidas pelo Estado e pela sociedade – onde a todos e a qualquer um estiver assegurada nem mais nem menos do que uma vida saudável”[21], o que, com efeito, passa, por imperioso, pela qualidade, equilíbrio e segurança do ambiente em que a vida humana se encontra sediada.
4 Mínimo Existencial Socioambiental e a Fixação de Verbas em sede de Dano Moral: Uma análise à luz do Superior Tribunal de Justiça
Adotando as ponderações estruturadas nos tópicos anteriores, é possível salientar que com a adoção do mínimo existencial socioambiental, configura verdadeira ampliação do rol dos direitos fundamentais, notadamente no que concerne à sua dimensão sociocultural, abarcando novas demandas e desafios existenciais provenientes da matriz ecológica. Nesta senda, incumbe ao legislador promover a ampliação do rol dos direitos fundamentais, garantindo, via de consequência, o alargamento do conjunto de prestações socioculturais indispensáveis para assegurar a cada indivíduo uma vida condigna e a efetiva possibilidade da inserção na vida econômica, social, cultural e política, refletindo um processo dinâmico e fortemente receptivo ao contexto.
Nesta esteira, a edificação e fortalecimento dos valores atrelados ao mínimo existencial socioambiental inauguram um novo patamar, no qual aspectos essenciais da tutela ambiental e de outros direitos. Desta feita, com o intento que se contribuir para a construção de uma fundamentação do mínimo existencial ecológico e, em uma perspectiva mais ampla, socioambiental, é adotado, portanto, uma compreensão alargada do conceito de mínimo existencial, com o escopo de alcançar a ideia de uma vida com qualidade ambiental. O piso mínimo vital de direitos que deve ser assegurado pelo Estado a todos os indivíduos, dentre os quais insta salientar o direito à saúde, para cujo exercício é imprescindível um ambiente equilibrado e dotado de higidez, como afirmação dos valores irradiados pela democracia e justiça social.
Desta feita, em decorrência da densidade jurídica usufruída pelo mínimo existencial socioambiental e, por via de extensão, os primados axiológicos do meio ambiente ecologicamente equilibrado, da solidariedade intergeracional e da difusidade do meio ambiente, há que se reconhecer que o instituto do dano moral se apresenta como plenamente incidente em sede de danos ambientais. Ora, o instituto em comento ultrapassa o aspecto eminentemente financeiro e substancializa pilares imprescindíveis para o mínimo existencial socioambiental, a saber: o dever de reparar por parte do agente causador do dano e o aspecto pedagógico tanto para esse como para a sociedade em geral. Insta frisar que o dano ambiental contempla, em sua essência, aspecto difuso, porquanto lesiona ou ameaça, diretamente, bem cuja titularidade compreende toda a espécie humana. Sobre a temática, o Superior Tribunal de Justiça plasmou jurisprudência no sentido que:
“Ementa: Administrativo. Ambiental. Processual Civil. Agravo Regimental no Recurso Especial. Ação Civil Pública de Indenização pelo uso de bem ambiental comum do povo sem autorização federal. Causação de dano ambiental. Provas dos autos. Documentação fotográfica. Condenação à reparação de danos morais coletivos. Divergência jurisprudencial e violação a normativo federal. Fundamentação legal inatacada. Súmula 283/STF. Impossibilidade de revisão do acervo probatório. Súmula 07/STJ. Carência de prequestionamento. Súmulas 282 e 356 do STF. […] 2. No caso concreto, o Tribunal da origem reconheceu a ocorrência efetiva de dano ambiental e a necessidade de sua reparação tendo em conta o regulamento da Lei 7.661/1988 (Lei de Gerenciamento Costeiro), mais precisamente os arts. 2.º, 3.º, inciso I, 6.º, § 1.º, e 10, §§ 1.º a 3.º, nenhum deles tendo sido objeto de impugnação pelo recurso especial. 3. Demais disso, o recurso especial não é, em razão da Súmula 07/STJ, via processual adequada para questionar julgado que se afirmou explicitamente em contexto fático-probatório próprio da causa, tampouco se autorizando o seu processamento, sob a alegação de ofensa a preceito de direito federal, se as normas ínsitas aos textos legais destacados sequer foram tratadas pelo Tribunal a quo, hipótese esta de incidência das Súmulas 282 e 356 do Supremo Tribunal Federal. 4. Quanto a isso, o acórdão é arraigado em prova documental, sobretudo fotográfica, do uso de bem comum do povo sem autorização do órgão federal competente e de, a partir disso, ter havido a ocorrência de dano ambiental, assim por que se fazia necessária a sua reparação correspondente […] (Superior Tribunal de Justiça – Segunda Turma/ AgRg no REsp 1.323.399/RJ/ Relator: Ministro Mauro Campbell Marques/ Julgado em 15 dez. 2015/ Publicado no DJe em 18 dez. 2015).
Ementa: Civil e Processual Civil. Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial. Reexame de provas. Desnecessidade. Agravo Regimental provido. Responsabilidade civil por ato lícito. Dano ambiental. Construção de usina hidrelétrica. Alteração da ictiofauna. Prejuízo decorrente da modificação qualitativa e quantitativa do estoque pesqueiro. Danos morais. Inexistência. Recurso Especial parcialmente provido. 1. Se os fatos da causa foram adequada e suficientemente descritos no acórdão recorrido, não é necessária a incursão nos elementos probatórios para o julgamento da tese jurídica desenvolvida no recurso especial, o que afasta a incidência da Súmula n. 7/STJ. 2. Fundada na Teoria do Risco e no Princípio do Poluidor Pagador, é objetiva a responsabilidade civil por danos ambientais, entre os quais se inclui a degradação proveniente de atos lícitos que criem condições adversas às atividades sociais e econômicas ou afetem desfavoravelmente a biota. 3. "Embora notória a finalidade pública do represamento de rio para a construção de usina hidrelétrica e, no caso em exame, sendo certo que o empreendimento respeitou o contrato de concessão e as normas ambientais pertinentes, a alteração da fauna aquática e a diminuição do valor comercial do pescado enseja dano a legítimo interesse dos pescadores artesanais, passível de indenização" (REsp n. 1.370.125/PR, rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI). […]”. (Superior Tribunal de Justiça – Quarta Turma/ AgRg no AREsp 117.202/PR/ Relator: Ministro Antonio Carlos Ferreira/ Julgado em 05 nov. 2015/ Publicado no DJe em 30 nov. 2015).
“Ementa: Processo Civil e Ambiental. Ação Civil Pública. Ordem Urbanística. Loteamento rural clandestino. Ilegalidades e irregularidades demonstradas. Omissão do Poder Público Municipal. Dano ao meio ambiente configurado. Dano moral coletivo. 1. Recurso especial em que se discute a ocorrência de dano moral coletivo em razão de dano ambiental decorrente de parcelamento irregular do solo urbanístico, que, além de invadir Área de Preservação Ambiental Permanente, submeteu os moradores da região a condições precárias de sobrevivência. 2. Hipótese em que o Tribunal de origem determinou as medidas específicas para reparar e prevenir os danos ambientais, mediante a regularização do loteamento, mas negou provimento ao pedido de ressarcimento de dano moral coletivo. 3. A reparação ambiental deve ser plena. A condenação a recuperar a área danificada não afasta o dever de indenizar, alcançando o dano moral coletivo e o dano residual. Nesse sentido: REsp 1.180.078/MG, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 28/02/2012. 4. "O dano moral coletivo, assim entendido o que é transindividual e atinge uma classe específica ou não de pessoas, é passível de comprovação pela presença de prejuízo à imagem e à moral coletiva dos indivíduos enquanto síntese das individualidades percebidas como segmento, derivado de uma mesma relação jurídica-base. (…) O dano extrapatrimonial coletivo prescinde da comprovação de dor, de sofrimento e de abalo psicológico, suscetíveis de apreciação na esfera do indivíduo, mas inaplicável aos interesses difusos e coletivos" (REsp 1.057.274/RS, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 01/12/2009, DJe 26/02/2010.). 5. No caso, o dano moral coletivo surge diretamente da ofensa ao direito ao meio ambiente equilibrado. Em determinadas hipóteses, reconhece-se que o dano moral decorre da simples violação do bem jurídico tutelado, sendo configurado pela ofensa aos valores da pessoa humana. Prescinde-se, no caso, da dor ou padecimento (que são consequência ou resultado da violação). Nesse sentido: REsp 1.245.550/MG, Rel. Ministro Luís Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe 16/04/2015. Recurso especial provido.” (Superior Tribunal de Justiça – Segunda Turma/ REsp 1.410.698/MG/ Relator: Ministro Humberto Martins/ Julgado em 23 jun. 2015/ Publicado no DJe em 30 jun. 2015).
Denota-se, portanto, que o dano ambiental pode ser descrito como toda lesão intolerável, advinda da ação humana, seja culposa ou não culposa, diretamente ao meio ambiente, classificado como macrobem de interesse da coletividade, em uma concepção totalizante e, indiretamente, a terceiros, em razão de interesses próprios e individualizáveis e que refletem o microbem. Desta feita, o legislador, de modo indissociável, estabeleceu vinculação entre poluição e degradação ambiental, porquanto, conforme explicitado até o momento, resta expressado que a poluição advém da degradação. Isto é, toda a poluição constitui uma degradação, mas nem toda degradação reconduz-se à poluição. De maneira substancial, o legislador amplia o significado do vocábulo poluição que poderia estar restrito à alteração do meio natural ou a todas as alterações das propriedades naturais do meio ambiente. Além disso, não condiciona o ato de poluir ao agente industrial ou a uma atividade considerada perigosa; mas, ao reverso, diz que a degradação ambiental é resultado de qualquer atividade que, direta ou indiretamente, afete o meio ambiente. Ilustrativamente, quadra transcrever o entendimento explicitado pelo Ministro Humberto Martins, em sede de Recurso Especial nº 1.298.094-SC, em especial quando destaca:
“Ementa: Ambiental. Ação Civil Pública. Edificação irregular em área de preservação permanente. Dunas e vegetação de restinga. Acórdão regional que, embora reconheça a irregularidade, mantém a edificação. Violação dos arts. 2º, “f”, e parágrafo único, e 3º, “b”, e §1º, da Lei 4.771/1965. Configurada. Demolição da construção e recuperação da área degradada. Necessidade. 1. Na origem, o Ministério Público do Estado de Santa Catarina propôs ação civil pública contra proprietário de imóvel, pois este teria edificado em área de preservação permanente de dunas e de vegetação de restinga fixadora das dunas ("Praia do Santinho – Bairro do Ingleses"), pleiteando a demolição da edificação, sem prejuízo da recuperação ambiental e da indenização por danos morais coletivos. 2. Ao negar provimento ao recurso de apelação do Parquet, o Tribunal de origem entendeu por bem, mesmo verificando a possibilidade de real impacto ambiental e considerando que a área em análise deveria de fato ser preservada, manter as edificações irregulares na área de preservação permanente de dunas e restingas. 3. Todavia, estando a construção edificada em área prevista como de preservação permanente, limitação administrativa que, só excepcionalmente, pode ser afastada (numerus clausus), cabível sua demolição com a recuperação da área degradada, haja vista contrariedade direta aos arts. 2º, "f", parágrafo único, e 3º, "b", § 1º, da Lei 4.771/1965, interpretados restritivamente. 4. Ademais, as "restingas" são ecossistemas associados ao bioma "Mata Atlântica", encontrando proteção também no art. 2º da Lei 11.428/2006 (Lei da Mata Atlântica). Recurso especial provido.” (Superior Tribunal de Justiça – Segunda Turma/ REsp 1.298.094/SC/ Relator: Ministro Humberto Martins/ Julgado em 15 dez. 2015/ Publicado no DJe em 02 fev. 2016).
Salta aos olhos, portanto, que o prejuízo, nesse contexto, é resultado tanto menos querido como inevitável de atividades e condutas que, como regra, almejam realizar objetivos não só legítimos, mas até muito úteis à sociedade. Se o dano é caracterizado pela inevitabilidade – sob a premissa de que o risco zero, em vários domínios, simplesmente não existe – então a culpa não pode ser mesmo o parâmetro de avaliação da responsabilidade civil do agente. Trata-se, portanto, de responsabilidade objetiva advinda do postulado poluidor-pagador, corolário típico do Direito Ambiental. De igual forma, dá-se com todos os mecanismos de facilitação da prova do nexo causal e do dano, tudo com o intuito de possibilitar, por essa via jurídica, a incorporação das externalidades ambientais. Assim, o preceito em comento veda que o degradador, beneficiado por formalismos do sistema de responsabilidade civil, saia ileso, deixando para trás de si uma legião de vítimas-ambientais. O Direito Ambiental brasileiro abriga a responsabilidade civil do degradador na sua forma objetiva, baseada na teoria do risco integral, doutrina essa que encontra seu fundamento na premissa de que a pessoa, natural ou jurídica, que cria o risco deve reparar os danos advindos de seu empreendimento.
Informações Sobre o Autor
Tauã Lima Verdan Rangel
Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), linha de Pesquisa Conflitos Urbanos, Rurais e Socioambientais. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especializando em Práticas Processuais – Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo-ES