1 – Introdução
A idéia de escrever sobre o assunto nos recorreu após a passagem do Mutirão Carcerário, composto por membros do Judiciário do Estado de Mato Grosso do Sul, por nossa Comarca, sobretudo pelo fato de que nos deparamos com vários agravos em execução interpostos contras as decisões proferidas pelo Mutirão em questão, em sua maioria pelo Ministério Público local, porém alguns também pela Defensoria Pública do Estado.
Ao nos depararmos com tais recursos, no momento do juízo de retratação, chegamos à conclusão de que não cabe ao juiz titular da comarca, afastado dos processos direcionados ao Mutirão, realizá-lo, isso em razão dos argumentos que a seguir serão expostos.
A iniciativa de tecer esses breves comentários também tem a singela pretensão de colaborar para a discussão do tema e, quiçá, auxiliar operadores do Direito que se virem envoltos em questionamentos afetos ao tema.
2 – Os Mutirões Carcerários
Os denominados Mutirões Carcerários buscam sustentação atualmente na Resolução Conjunta n.º 01/2009, do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público.
Segundo extraímos do ato normativo, as atividades dos grupos de trabalho de cada Estado devem focar a revisão de penas provisórias e definitivas, medidas de segurança, condições em que tais penas são cumpridas, bem como desenvolver atividades e atos relativos ao retorno do interno à sociedade[1].
Ainda da leitura da resolução citada concluímos que os Mutirões Carcerários serão compostos por grupo de magistrados e membros do Ministério Público, acompanhados de servidores necessários para a execução dos trabalhos, todos com atribuições extensivas a todo o território do ente federativo.
A resolução também permite a integração do grupo de trabalho por membros da Defensoria Pública, Ordem dos Advogados, administração penitenciária e segurança pública, entidades educacionais e outras correlatas.
No Estado de Mato Grosso do Sul, até onde temos conhecimento e em virtude da própria experiência em nossa Comarca, os mutirões, compostos e coordenados pelo Grupo de Monitoramento, Acompanhamento e Aperfeiçoamento do Sistema Carcerário, denominação contida nos atos normativos do nosso Estado, são compostos unicamente por magistrados e servidores do Tribunal de Justiça, sendo os trabalhos coordenados por um dos magistrados, com supervisão e orientação da Corregedoria Geral de Justiça.
Neste Estado foi por meio do Provimento n.º 179 do Conselho Superior da Magistratura, posteriormente substituído pelo n.º 190, do mesmo órgão, que se implementou o Grupo de Monitoramento do Sistema Carcerário. As atribuições do grupo estão previstas no art. 2.º do Provimento 190 CSM/MS, ao qual remetemos o leitor[2].
Como se denota, a medidas necessárias foram tomadas neste Estado para a execução e implementação das metas previstas pelo Conselho Nacional de Justiça, as quais têm surtido ótimos resultados, conforme estatísticas que podem ser extraídas do próprio sítio eletrônico do Tribunal de Justiça local.
Lá consta, entre outras informações, que o Mutirão Carcerário realizado no Estado entre os meses de agosto e novembro de 2009 resultou na concessão de 1.302 benefícios de liberdade e 1.794 progressões de regime. [3]
Acreditamos que são louváveis as iniciativas do CNJ, assim como do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, porém não podemos nos descurar de que o problema carcerário no Brasil é crônico e sistêmico, sendo a deficiência oriunda de diversos anos de esquecimento e má gestão por parte do Poder Executivo e, quiçá, ineficiência e improvidência do Poder Legislativo, o qual, por vezes, tem o péssimo hábito de vislumbrar a alteração da realidade por meio da simples edição de Leis. Esquecem-se, nossos nobres legisladores, de que a implementação do que consta na Lei demanda aparato humano e logístico. Não basta aprovar uma norma para alterar a realidade social de um país. São também imprescindíveis recursos, de toda ordem, para que ela seja executada. Um bom exemplo do que aqui se fala é a própria Lei de Execução Penal, Lei 7.210/84, em boa parte hoje relegada ao esquecimento, principalmente em virtude da impossibilidade prática de implementação do que lá consta.
Como se vê, o Poder Judiciário tem se empenhado e contribuído para a melhoria do sistema, porém tais medidas, por si só, não serão suficientes, uma vez que, como dito acima, lançando mão de metáfora simplória, mas que bem explica a situação, de nada adianta enxugarmos a água do chão se não cuidarmos de dar fim à goteira. Os mutirões continuarão sendo realizados, o choque de gestão dentro do Poder Judiciário surtiu e continuará surtindo efeitos, porém somente veremos melhorias permanentes, nesse campo em específico, quando a causa, e não apenas seus efeitos, for controlada e isso, como bem sabemos, percorre caminhos como a educação de base, distribuição de renda, segurança pública, melhorias quantitativa e qualitativa dos estabelecimentos penais, ressocialização de presos, entre tantas outras questões que aqui poderiam ser abordadas, mas que deixamos de lado sob pena de perdermos nosso foco.
E o problema não é novo, vem de longa data, tanto que há aproximadamente 10 anos o brilhante Desembargador do Estado de São Paulo, Celso Luiz Limongi, já dizia:
“Os textos até agora citados e a triste discrepância entre a determinação legal e a realidade assustam: todos nós temos conhecimento das aguras pelas quais passam os presidiários em todo o país, a começar pela superpopulação carcerária, o que implica falta de espaço até para dormir. É pública e notória essa condição, revezando-se os presos: uns dormem, enquanto outros aguardam sua vez, pois não há espaço para que todos possam dormir. Surgiu disso um personagem: o homem-morcego, que dorme em pé, pendurado em coradas!”[4]
Mais atual, porém não menos trágico, é o relato feito pelo magistrado bandeirante Octavio Augusto Machado de Barros Filho, corregedor de presídios no Estado de São Paulo, sobre o sistema carcerário brasileiro, conforme podemos conferir abaixo:
“Lamentavelmente, a prisão foi entronizada como a rainha das penas e sem seu nome se decreta o expurgo social. Mas o cárcere já não responde à necessidade prioritária do estado de direito, social e democrático; ou seja, pacificar a convivência e resolver os conflitos de especial gravidade. Das 223.220 (duzentas e vinte e três mil, duzentas e vinte) pessoas encarceradas no País, a maioria não encontra perspectiva de retorno social; pois, ao ingressar na prisão, o indivíduo se despersonaliza e sofre o impacto da degradação humana provocada pelo ambiente promíscuo e pelo convívio com delinqüentes de vários matizes; sem que, em contrapartida, as atividades internas lhe proporcionem melhora qualitativa de vida quando alcançar a liberdade. O preso sabe porque está entrando na cadeia, mas dificilmente sabe porque está saindo dela. Os altos índices de reincidência estão a demonstrar que o sistema prisional quase não oferece oportunidade de recuperação. Pelo contrário, amplia e diversifica ainda mais a ação criminosa. Nesse contexto, particularmente sombrio, a atividade correicional busca aproximar o hiato abissal que separa o cárcere real do cárcere legal, apartados por nefasto processo histórico-cultural de prisionização, em que o magistrado deve se empenhar para coibir injustiças, não admitindo que presos permaneçam indefesos, relegados à condição subumana e abandonados em seus direitos fundamentais, de maneira que a sociedade não tenha de suportar os altos custos sociais e econômicos dessa iniqüidade[5]”
O panorama apresentado fornece uma vaga idéia do caos em que se encontra nosso sistema carcerário, sendo que tais deficiências, como já dito, são oriundas de diversos fatores, mas certamente o menor deles é a suposta ineficiência do Poder Judiciário. Em nossa breve carreira como magistrado tivemos oportunidade de comprovar que a Lei de Execução Penal não é cumprida principalmente em razão da ineficiência Estatal, no caso do Poder Executivo.
Como se nota, devemos sim aplaudir e elogiar todas as iniciativas do Conselho Nacional de Justiça e do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, porém rogamos, a fim de alterar a realidade descrita pelo Dr. Octavio Augusto, que os Poderes Executivo e Legislativo também se empenhem, com a mesma dedicação, na melhoria do sistema carcerário brasileiro.
3 – Recurso Cabível contra Decisões proferidas em processos de execução criminal
Após os breves comentários sobre os Mutirões Carcerários, retomemos a linha central do articulado.
O art. 197 da Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84) dispõe sobre a possibilidade de interposição de recurso, simplesmente denominado agravo, contra decisões proferidas em sede de execução penal, dizendo que tal recurso não tem efeito suspensivo.
Ocorre que a LEP não previu o regime de tal recurso, ficando a tarefa a cargo da doutrina e jurisprudência. O tema não é pacífico, sinalizando nossos doutrinadores para dois entendimentos distintos. O primeiro prega que em virtude do Código de Processo Penal não ter previsto recurso sob a denominação de agravo, devem ser aplicadas as regras do Código de Processo Civil, as quais regem o agravo de instrumento previsto naquele diploma.
O outro entendimento cunhado pela doutrina prega que a matéria deve ser resolvida pelas disposições do Código de Processo Penal, isso em razão do que dispõe o art. 2°, da LEP, o qual diz que o Código de Processo Penal aplica-se ao Processo de Execução da Pena, de modo que a conclusão do grupo que defende tal tese é de que devem ser observadas as regras do Recurso em Sentido Estrito quando à interposição e processamento do agravo em execução.
O primeiro entendimento é defendido, entre outros, pelos mestres Ada Pellegrini Grinover, Júlio Mirabete, Antônio Scaiance Fernandes e Carlos Frederico Coelho. Já no grupo que prega o segundo entendimentos encontramos também juristas de peso, tais como Fernando da Costa Tourinho Filho, Magalhães Noronha e Adalberto Camargo Aranha.
Acreditamos, com a vênia necessária aos que pensam em sentido contrário, que a melhor interpretação é a fornecida por aqueles que defendem a solução da lacuna por meio de regras do Direito Processual Penal, isso em razão do que dispõe o já citado art. 2.º da LEP, Lei 7.210/84, redigido nos seguintes termos:
” A jurisdição penal dos juízes ou tribunais da justiça ordinária, em todo o território nacional, será exercida, no processo de execução, na conformidade desta Lei e do Código de Processo Penal“.
Notamos que o comando transcrito remete o magistrado e o intérprete da Lei, quando da solução de dúvidas e lacunas da Lei de Execução Penal, ao Código de Processo Penal, constituindo-se este em legislação subsidiária de primeiro plano no que toca à LEP.
Assim sendo, em virtude do Código de Processo Penal não prever recurso sob a denominação de agravo, bem como pelo fato do recurso em sentido estrito conter toda a estrutura de um agravo e atacar, em regra, decisões interlocutórias, formando normalmente um instrumento, é que a melhor conclusão aponta no sentido de se aplicar o regramento do recurso em sentido estrito nos agravos em execução.
A propósito, merece registro o magistério do renomado Magalhães Noronha o qual, após assinalar as duas correntes, acentuou o seguinte:
“Temos, para nós, que a solução para o procedimento há de ser encontrada no recurso em sentido estrito, já que o mesmo, como ficou demonstrado, é irmão gêmeo do agravo. Os arts. 583 e 587 do Código de Processo Penal, falando do recurso em sentido estrito, sabiamente estabeleceram que o recurso será processado nos próprios autos quando a decisão atacada não exigir andamento normal do processo; em forma de instrumento quando o processo seguir a sua caminhada normal, já que sem efeito suspensivo. O mesmo raciocínio deve ser usado para o agravo. Em certos casos, como a realidade fática tem sobejamente demonstrado, não há necessidade da formação do instrumento, podendo o recurso ser processado nos próprios autos, com grande economia de tempo, trabalho e material. Em outros, porque sem efeito suspensivo e com o processo em normal andamento, torna-se necessária a formação do instrumento”[6]
O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou também neste sentido, no julgamento do HC n° 6.642-SP e REsp n° 171.755/DF, onde respectivamente consignou o seguinte:
“O agravo em execução, recurso previsto no art. 197 da Lei de Execução Penal, não tem efeito suspensivo, salvo no caso de decisão que determina a desinternação ou liberação de quem cumpre medida de segurança, e tem o seu processamento segundo as normas que regem o recurso em sentido estrito.
De fato, esse é o melhor entendimento pois ao se impor ao recurso de agravo o rito previsto para o agravo de instrumento, ou seja, as regras do Código de Processo Civil, flagrante a violação ao artigo 2° da própria Lei n° 7.210 (Lei das Execuções), que dispõe “A jurisdição penal dos juízes ou tribunais de justiça ordinária, em todo o território nacional, será exercida, no processo de execução, na conformidade desta Lei e do Código de Processo Penal.” Ademais, o Código de Processo Penal contém normas disciplinadoras do recurso em sentido estrito, o qual anteriormente à edição da LEP – Lei de Execuções Peanis, que introduziu o recurso de agravo para decisões proferidas em sede de execução da pena, era o recurso cabível contra determinadas decisões proferidas pelo juízo de execução. Desta forma, face ao princípio da razoabilidade, convém conhecer o agravos interpostos segundo o rito previsto para o recurso em sentido estrito, em razão do silêncio da Lei de Execução”.
Ainda sobre o tema, também a indicar a não aplicação das regras do Agravo de Instrumento do Código de Processo Civil, temos o enunciado n.º 700 da Súmula do STF, estabelecendo que o prazo para a interposição do agravo em execução é idêntico ao do recurso em sentido estrito. O enunciado está assim redigido:
“É de 05 dias o prazo para interposição de recurso contra decisão do juiz proferida em execução criminal”
Fixado que o recurso de agravo em execução deve seguir as regras do recurso em sentido estrito, cumpre observar que tal procedimento prevê, conforme art. 589 do Código de Processo Penal, o juízo de retratação pelo magistrado prolator da decisão, sendo que segundo de lá se extrai o momento apropriado para a realização da mencionada retratação é logo após o oferecimento das contrarrazões. A seguir discorremos sobre algumas peculiaridades do juízo de retratação quando se trata de decisões dos denominados mutirões carcerários.
4 – Juízo de Retratação e os Mutirões Carcerários
Segundo anunciamos no início, sustentamos que o juízo de retratação em agravos em execução interpostos contra decisões dos Mutirões Carcerários devem ser feitos pelos magistrados que compõem o grupo de trabalho, isso em razão do magistrado titular da vara sob regime de mutirão ser “afastado” (grifo nosso) momentaneamente dos processos que serão revisados, decorrendo daí diversos desdobramentos a seguir relatados e que justificariam a tese defendida neste arrazoado.
Embora não conste na resolução conjunta n.º 01/2009 do CNJ e CNMP, bem como não haja tratamento específico da questão no provimento 190 do Conselho Superior da Magistratura deste Estado, por meio da leitura de ordens de serviço baixadas pela Corregedoria Geral da Justiça do nosso Estado é possível concluir que os trabalhos do mutirão são feitos sem a participação do magistrado titular da vara sob regime de exceção[7].
Além do conteúdo das ordens de serviço citadas, podemos concluir pela experiência vivida em nossa Comarca e relatos de outros magistrados visitados pelos mutirões, que de fato os trabalhos são desempenhados única e exclusivamente pelos magistrados que compõem o grupo, sem participação do titular da vara que está sendo inspecionada, embora continue ele exercendo normalmente suas funções nos processos que não foram direcionados ao mutirão. Trata-se de uma espécie de “avocação” (grifo nosso) de processos, já que dias antes do grupo comparecer na Comarca é solicitado que os feitos sejam deixados a sua disposição, para fins de cálculos, apreciação e decisão.
Há quem sustente que os mutirões ofenderiam inclusive o princípio do Juiz Natural, porém, preferimos a tese dos que afirmam não haver princípio constitucional absoluto e que nestas questões de que ora tratamos deve prevalecer o princípio da dignidade da pessoa humana, tendo em vista sua preponderância, sobretudo em razão de tal princípio figurar como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (inciso III do art. 1.º da CF).[8]
Embora não tenha eficácia jurisdicional, entendo relevante salientar o que ficou decidido no Procedimento de Controle Administrativo n.º 043/2005 do Conselho Nacional de Justiça. Na ocasião ficou consignado o seguinte na ementa do julgamento:
“PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO – MUTIRÃO DESTINADO A AGILIZAR O JULGAMENTO DE PROCESSOS JUDICIAIS – ALEGADA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL, COM INSTITUIÇÃO DE TRIBUNAL DE EXCEÇÃO – INEXISTÊNCIA – ORIENTAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – IMPROCEDÊNCIA DA PRETENSÃO. I – Em todo o Judiciário brasileiro, os chamados mutirões têm servido como importante instrumento adotado pela administração da justiça para agilizar a tramitação de processos. Na sistemática desses mutirões, a administração dos Tribunais, com a autonomia que lhe é própria, se vale da prerrogativa legal e regimental de designar, por ato da presidência, juízes substitutos ou mesmo titulares voluntários, para auxiliarem determinado juízo. II – Nos mutirões, não se cogita afastamento dos juízes titulares das varas beneficiadas. Ao contrário, esses titulares somam seus esforços aos do grupo de magistrados designados para o auxílio e não raro os coordena. Da mesma forma, o ato de designação não vincula quaisquer dos juízes a determinado processo. O juiz não é designado para proferir sentença em dado feito. De modo absolutamente desvinculado, há um grupo de juízes de um lado e um acervo de processos do outro. O objetivo é liquidar o acervo, pouco importando quem profira a decisão, podendo ser o próprio titular da vara. III – Os mutirões, portanto, não ofendem a garantia do juiz natural e muito menos cria tribunal de exceção. No caso dos mutirões, o juiz natural é aquele que, de modo aleatório, conforme a sistemática de trabalho adotada, recebe o feito para apreciação e o julga com a devida imparcialidade. IV – Orientação da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. V – Procedimento de Controle Administrativo rejeitado.” (grifos nossos)
Como se nota, o próprio Conselho Nacional de Justiça já se pronunciou no sentido de que os mutirões não violam o princípio do juiz natural, ficando assentado que eles não afastam os magistrados titulares dos processos, embora, com relação a este último aspecto, temos a observar que no caso do mutirão realizado em nossa Comarca, assim como em outras do Estado, o que presenciamos é que os titulares das varas não participam das atividades desenvolvidas pelo mutirão.
Longe de constituir crítica aos métodos adotados pelos mutirões, ao que parece a realidade por nós vivenciada ocorre em outras unidades da federação. Tanto isso é verdade que a Associação dos Magistrados Maranhenses apresentou consulta, datada de 13 de abril de 2010, perante o Conselho Nacional de Justiça, justamente questionando o ponto mencionado.
Dentre os questionamentos da Associação, encontramos:
“a) Que esse E. Conselho Nacional de Justiça se manifeste sobre a legalidade da atuação do Segundo Mutirão Carcerário realizado no Estado do Maranhão, deliberando se o afastamento dos juizes titulares dos processos beneficiados, a exemplo da concessão de benefícios, ofende os princípios constitucionais do juiz natural e da não criação de tribunal de exceção, assim como contraria a decisão proferida por esse órgão nos autos do Procedimento de Controle Administrativo n° 043/2005;”
Como já dito, não discordamos dos métodos e procedimentos adotados pelos Tribunais de Justiça quanto à execução dos mutirões. Em nosso singelo pensar, acreditamos que com relação a este aspecto devemos ser pragmáticos, cabendo ao Tribunal, autoridade maior, decidir a forma por meio da qual os trabalhos terão maior efetividade.
Mencionamos os questionamentos acima apenas com a intenção de fundamentarmos nossa tese, segundo a qual, ao ser “afastado” (grifo nosso) dos processos encaminhados ao mutirão, não pode o magistrado titular da vara ser compelido a exercer o juízo de retratação em agravos em execução ou mesmo recurso em sentido estrito tirados contra decisões dos mutirões carcerários.
Também a justificar que não cabe aos titulares das varas o juízo de retratação dos recursos citados, é importante ressaltar que, invariavelmente, os grupos de trabalho ostentam posições jurídicas distintas dos titulares das Varas por onde passam, o que, de certo modo, justifica alguns benefícios concedidos, pois o foram não por ineficiência do magistrado titular, mas simplesmente por aquele entender que aquele benefício, naquele caso específico, não seria apropriado.
Como exemplo de situação dessas, inclusive por nós experimentada, foi o reconhecimento pelo mutirão de que o crime do art. 33, c/c parágrafo 4.º, da Lei 11.343/06 não é equiparado a hediondo, daí decorrendo tratamento diferenciado sobre a contagem do tempo de progressão, já que adotada a contagem de 1/6.
Em alguns processos que havíamos nos manifestado, entendemos que não seria caso de concessão do benefício, isso em razão da causa de diminuição do parágrafo 4.º do art. 33 da Lei 11.343/06, segundo acreditamos, não excluir, por si só, a natureza do crime hediondo, mantendo-se a incidência das regras especiais de contagem de pena previstas na Lei 8.072/90, alterada pela Lei 11.464/07.
Para se ter idéia do problema, acrescentamos a seguir aresto do Superior Tribunal de Justiça, no sentido da manutenção da hediondez quando se trata da aplicação do parágrafo 4.º do art. 33 da Lei 11.343/06. Está assim redigida a ementa:
“TRÁFICO. DROGAS. REGIME INICIAL FECHADO. Trata-se de HC no qual o paciente busca a fixação de regime prisional mais brando para o início do cumprimento de pena, uma vez que foi condenado pela prática do crime de tráfico de drogas cometido em 28/4/2008, portanto após o advento da Lei n. 11.464/2007. A Turma denegou a ordem e reiterou seu entendimento de que, embora o legislador tenha previsto a possibilidade de reduzir as sanções do agente primário, de bons antecedentes que não se dedica à atividade criminosa nem integra organização criminosa (art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006), subsistem as razões que o levaram a qualificar o tráfico ilícito de entorpecentes como equiparado a hediondo, pois os critérios que permitem a redução da pena não têm a finalidade de mitigar o juízo de reprovação incidente sobre a conduta delituosa em si mesma, que continua sendo a de tráfico ilícito de drogas. Demonstrada a hediondez da figura descrita no art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006, não há que se falar em não incidência da Lei n. 11.464/2007 nesses casos. Assim, consumado o crime de tráfico de entorpecentes após o advento da Lei n. 11.464/2007, a qual atribuiu nova redação ao art. 2º, § 1º, da lei dos crimes hediondos (Lei n. 8.072/1990), que estabeleceu o regime inicial fechado no caso dos condenados pela prática do mencionado delito, não há falar em regime inicial diverso do fechado. Precedentes citados do STF: HC 91.360-SP, DJe 20/6/2008; do STJ: HC 119.506-GO, DJe 9/2/2009, e HC 106.461-GO, DJe 3/11/2008” (STJ – HC 143.361-SP, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 23/2/2010).
Independentemente das posições adotadas pelos mutirões carcerários, o que se pretende é mostrar que nem sempre elas irão coincidir com as do titular da vara, de modo que por questões óbvias, até mesmo no sentido de se preservar a independência jurisdicional, tanto do magistrado como do mutirão, é que se defende a tese segundo a qual não cabe àquele realizar juízo de retratação em recursos interpostos contra decisão que não proferiu e, por vezes, com a qual sequer está de acordo.
Veja-se que sustentar posição diversa criaria o seguinte problema: ou o magistrado titular da vara estaria “compelido” (grifo nosso) a manter a decisão com a qual não concorda ou, em caso contrário, alterando a decisão anteriormente proferida pelo Mutirão, colocaria em risco todo o empenho do Conselho Nacional de Justiça, Tribunais de Justiça, magistrados designados para os trabalhos, bem como quaisquer outras pessoas ou entidades que aderirem ao movimento. Certamente nenhuma das duas situações descritas seria desejada pelos idealizadores do projeto, pessoas incumbidas de colocá-lo em prática, muito menos magistrados titulares da varas que forem objeto dos mutirões.
Outro fundamento que, a nosso ver, justifica a posição adotada é que a Lei Processual Penal foi alterada, introduzindo-se no CPP o princípio da identidade física do juiz. A Lei nº 11.719, de 2008, alterou alguns pontos do Código de Processo Penal e entre as alterações deu nova redação ao artigo 399, parágrafo 2º, estabelecendo que:
“o juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença”
Embora tal princípio seja aplicado para vincular o juiz que instruiu o feito à prolação da sentença, acreditamos que se aplicarmos a regra, ainda que indiretamente, ao juízo de retratação dos recursos, seria defensável que o magistrado titular da vara somente estaria obrigado a exercer a retratação caso estivesse convocado, licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido ou aposentado.
O raciocínio parte da premissa de que o artigo 3º do Código de Processo Penal admite a “interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito”. Neste sentido, isso significa que deve ser aplicado, em complemento ao parágrafo 2.º do art. 399 do CPP, a regra do artigo 132 do Código de Processo Civil, a qual estabelece justamente que “o juiz, titular ou substituto, que concluir a audiência julgará a lide, salvo se estiver convocado, licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido ou aposentado, casos em que passará os autos ao seu sucessor” (grifo nosso).
Assim sendo, acreditamos que, “a contrario sensu”, por ter o mutirão proferido a decisão atacada quando o magistrado titular da vara não estava convocado, licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido ou aposentado, acabou por fixar sua competência para eventual juízo de retratação a ser efetuado em recurso interposto contra decisão proferida naquelas circunstâncias.
A nosso ver, tais circunstâncias, somadas, justificam que não cabe ao magistrado titular da vara exercer juízo de retratação de recursos interpostos contra decisões dos mutirões, pois, por óbvio, a efetividade dos trabalhos desempenhados por eles poderia restar inútil. A tese busca conciliar a realidade e efetividade dos mutirões com a independência e livre convicção dos magistrados titulares das varas em que se realizem tais movimentos.
5 – Conclusões
Assim sendo, em vista de tudo o que foi exposto, sintetizamos nossa posição nos seguintes enunciados:
01 – As medidas do Conselho Nacional de Justiça e Tribunais de Justiça são louváveis, merecem aplausos, porém não são suficientes, uma vez que se mostra necessária a conjugação de esforços dos três Poderes da República para que de fato sejam realizadas mudanças substanciais e duradouras no sistema carcerário brasileiro;
02 – O colapso do sistema carcerário brasileiro não é derivado única e exclusivamente de eventual ineficiência do Poder Judiciário e, por conseqüência, não será resolvido somente por atos deste;
03 – O recurso cabível contra decisões proferidas em sede de Execução de Pena é o agravo em execução, o qual seguirá o procedimento do Recurso em Sentido Estrito, previsto no art. 581 e seguintes do Código de Processo Penal;
04 – Os magistrados titulares das varas atingidas pelos trabalhos dos mutirões carcerários não atuam em conjunto com estes, permanecendo afastados temporariamente dos processos encaminhados ao grupo de trabalho;
05 – Os mutirões carcerários não violam o principio do juiz natural ou a identidade física do juiz, uma vez que o princípio da dignidade da pessoa humana se sobrepõe a eles e autoriza a implementação das medidas tomadas pelo Conselho Nacional de Justiça e Tribunais Estaduais;
06 – Em razão das premissas acima dispostas, o juízo de retratação em agravos em execução e outros recursos interpostos contra decisões proferidas pelos mutirões carcerários deve ser realizado pelos próprios magistrados que compõe o grupo de trabalho, não pelo titular da vara em que foram executadas as atividades extraordinárias;
[3] Disponível para acesso em: http://www.tjms.jus.br/noticias/materia.php?cod=17632
Informações Sobre o Autor
Cássio Roberto dos Santos
Magistrado Estadual