Resumo: O presente trabalho objetiva tecer considerações acerca da imperiosa necessidade de fundamentação concreta da decisão que decreta a prisão cautelar de indivíduo acusado da prática de determinado crime.
Palavras-chave: Prisão Cautelar. Presunção de Inocência. Decisão Judicial. Fundamentação Concreta
Sumário: Introdução. 1. Exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais. 2. Necessidade específica de motivação concreta das decisões que decretam a prisão cautelar. Conclusão. Referências.
Introdução
O presente trabalho tem como foco de análise a exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais, dando-se especial relevo à necessidade de motivação concreta dos títulos prisionais, mormente diante do elevado percentual de presos provisórios no sistema carcerário brasileiro e das recentes reformas processuais penais.
1. Exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais
A Constituição da República de 1988, no seu artigo 93, inciso IX, primeira parte, é inequívoca ao determinar que todas as decisões proferidas por órgãos do Poder Judiciário serão fundamentadas, sob pena de nulidade.
Quanto à prisão, impende consignar que o artigo 5º, inciso LXI, da Magna Carta brasileira – dispositivo legal de grande importância, inserido no título dos direitos e garantias fundamentais –, determina que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente", salvo nas exceções ali previstas.
Numa visão moderna do direito processual, o dever de motivar as decisões judiciais deve ser entendido não só como garantia das partes, mas garantia inerente ao próprio Estado de Direito, ressaltando-se a função política da motivação do decisum, sendo possível, assim, a aferição concreta da imparcialidade do juiz e da justiça das decisões.
Acerca do tema, transcreve-se a lição de Pedro Lenza:
“Pelo exposto, o dever de motivar as decisões judiciais (o livre convencimento motivado – CPC, arts. 131, 165, 458; CPP, art. 381, III etc.) deve ser entendido, numa visão moderna do direito processual, não somente como garantia das partes. Isso porque, em razão da função política da motivação das decisões, pode-se afirmar que os seus destinatários “não são apenas as partes e o juiz competente para julgar eventual recurso, mas quisquis de populo, com a finalidade de aferir-se em concreto a imparcialidade do juiz e a legalidade de justiça das decisões”. (2010, p. 795)
No mesmo sentido, afirma Eugênio Pacelli:
“desde a Constituição da República, em 1988, e, mais particularmente, desde a Lei nº 11.719, de 2008, que promoveu profundas alterações na matéria, ninguém pode negar a atual realidade do Direito Processual Penal brasileiro: toda e qualquer prisão antes do trânsito em julgado da condenação deverá se fundar em ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, nos exatos termos em que se acha disposto no art. 5º, LXI, ressalvados apenas os casos de transgressão militar ou de crime militar definido em lei”. (2013, p. 497)
Como se infere de tais apontamentos, a necessidade de fundamentação das decisões judiciais decorre de postulado constitucional, circunstância que exige do magistrado a sua irrestrita observância.
2. Necessidade específica de motivação concreta das decisões que decretam a prisão cautelar
Ultrapassada a análise da determinação constitucional de fundamentação de toda e qualquer decisão judicial, cumpre ressaltar que a referida exigência revela-se ainda mais importante no decisum que decreta a prisão cautelar de indivíduo acusado da prática de determinada infração penal.
Com efeito. Considerando que, antes do trânsito em julgado de eventual sentença condenatória, o suposto autor de fatos delituosos é presumidamente inocente, a determinação de sua prisão provisória exige motivação cuidadosa e concreta, ao contrário do que se verifica, constantemente, no dia-a-dia forense.
A Lei n.º 11.719/08 e a Lei n.º 12.403/11 promoveram significativas alterações no Código de Processo Penal, sinalizando, de forma inequívoca,
a necessidade de aplicação de medidas cautelares diversas da prisão, a qual deve ser reservada somente a casos excepcionais, em que resta demonstrada, concretamente, a imprescindibilidade da custódia sem pena.
É muito comum, na prática, nos depararmos com decisões genéricas, abstratas, que ignoram as peculiaridades do caso concreto analisado e, nesse contexto, determinam a segregação processual de indivíduos que, não raro, deveriam responder aos inquéritos/processos em liberdade.
A necessidade de fundamentação concreta do título prisional é tão evidente que já não mais se admite a validade de dispositivos legais que, outrora, proibiam indistintamente a liberdade provisória pela simples prática de determinados delitos, tais como os hediondos (revogação parcial do artigo 2º, inciso II, da Lei n.º 8.072/90, pela Lei n.º 11.464/07) e o tráfico de drogas (declaração de inconstitucionalidade parcial do artigo 44 da Lei n.º 11.343/06).
No entanto, contrariando determinação clara do legislador penal e dos tribunais superiores pátrios, é usual que magistrados de primeira instância, e até mesmo Juízos de segundo grau, decretem prisões cautelares (temporária ou preventiva) sem a indispensável motivação concreta, limitando-se a manter a medida extrema pela gravidade abstrata do delito, pelo risco hipotético de fuga, pela possibilidade eventual de ameaça a testemunha, entre outros supostos motivos, que não resistem a uma pormenorizada análise dos autos.
A propósito, leciona Nestor Távora:
“O magistrado está obrigado a indicar no mandado os fatos que se subsumem à hipótese autorizadora da decretação da medida. Decisões vazias, com a simples reprodução do texto da lei, ou que impliquem meras conjecturas, sem destacar a real necessidade da medida pelo perigo da liberdade, não atendem à exigência constitucional, levando ao reconhecimento da ilegalidade da prisão”. (2012, p. 589)
Vejamos julgados do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça nesse sentido:
“EMENTA Habeas corpus. Processual penal. Crimes de homicídio qualificado (CP, art. 121, § 2º, II e IV). Impetração dirigida contra decisão monocrática do relator da causa no Superior Tribunal de Justiça. Decisão não submetida ao crivo do colegiado. Ausência de interposição de agravo interno. Não exaurimento da instância antecedente. Precedentes. Questão igualmente não decidida de forma definitiva pelas instâncias antecedentes. Supressão de instância. Não conhecimento do writ. Prisão preventiva. Ausência de elementos concretos justificadores da custódia cautelar. Gravidade abstrata do delito. Insuficiência. Ordem concedida de ofício. 1. Segundo a jurisprudência contemporânea do Supremo Tribunal, é inadmissível o habeas corpus que se volte contra decisão monocrática do relator da causa no Superior Tribunal de Justiça que não tenha sido submetida ao crivo do colegiado por intermédio do agravo interno, por falta de exaurimento da instância antecedente (HC nº 118.189/MG, Segunda Turma, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski). 2. A questão trazida no presente writ não teria sido objeto de análise de forma definitiva por aquele Tribunal de Justiça estadual. Na linha de precedentes, sua apreciação pelo Supremo Tribunal, de forma originária, configuraria inadmissível dupla supressão de instância. 3. Segundo a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal, para que o decreto de prisão preventiva seja idôneo, é necessário que o ato judicial constritivo da liberdade traga, fundamentadamente, elementos concretos aptos a justificar tal medida. 4. Inexiste, na espécie, justificativa concreta a respaldar a segregação cautelar do paciente, uma vez que não há base empírica que a legitime. Com efeito, “o fato de o réu não possuir domicílio no distrito da culpa não legitima nem justifica, só por si, a decretação de sua prisão cautelar” (HC nº 95.839/PE, Segunda Turma, Relator o Ministro Celso de Mello, DJe de 25/10/10). 5. Considerações a respeito da gravidade em abstrato do delito não dão azo à manutenção da segregação nem lhe servem de justificativa. Precedentes. 6. Não conhecimento do habeas corpus. Ordem concedida de ofício.” (STF, HC 118039, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 17/12/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-055 DIVULG 19-03-2014 PUBLIC 20-03-2014)
“HABEAS CORPUS. ROUBO MAJORADO. PRISÃO PREVENTIVA DECRETADA. REQUISITOS ART. 312 CPP. FUNDAMENTAÇÃO INSUFICIENTE. ADITAMENTO DO TRIBUNAL AO DECRETO CONSTRITIVO. VEDAÇÃO. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.
1. O Superior Tribunal de Justiça, alinhando-se à nova jurisprudência da Corte Suprema, também passou a restringir as hipóteses de cabimento do habeas corpus, não admitindo que o remédio constitucional seja utilizado em substituição ao recurso ou ação cabível, ressalvadas as situações em que, à vista da flagrante ilegalidade do ato apontado como coator, em prejuízo da liberdade do(a) paciente, seja cogente a concessão, de ofício, da ordem de habeas corpus.
2. A jurisprudência desta Corte Superior é remansosa no sentido de que a determinação de encarceramento do réu antes de transitado em julgado o édito condenatório deve ser efetivada apenas se presentes e demonstrados os requisitos trazidos pelo art. 312 do Código de Processo Penal.
3. É cogente a fundamentação concreta da decisão que suprime a liberdade humana, sob as balizas contidas no referido dispositivo, o que afasta a invocação da mera gravidade abstrata do delito, ou o recurso a afirmações vagas e descontextualizadas de que a prisão é necessária para garantir a ordem pública ou econômica, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal.
4. Os argumentos trazidos no julgamento do habeas corpus original pelo Tribunal a quo, tendentes a justificar a prisão provisória, não se prestam a suprir a deficiente fundamentação adotada em primeiro grau, sob pena de, em ação concebida para a tutela da liberdade humana, legitimar-se o vício do ato constritivo ao direito de locomoção do paciente.
5. No caso dos autos, é insuficiente a fundamentação contida na decisão que decretou a prisão preventiva, bem como no Tribunal de origem, para lastrear a ordem de prisão do ora paciente, porquanto deixaram de contextualizar, em dados concretos, individuais e identificáveis nos autos, a necessidade de segregação do réu.
6. Habeas corpus não conhecido, mas concedido de ofício, para que o paciente possa responder ao processo em liberdade, se por outro motivo não estiver preso, sem prejuízo de sobrevir novo ato judicial satisfatoriamente apoiado em dados concretos que indiquem a necessidade de providência(s) de natureza cautelar.” (STJ, HC 288.228/PR, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 20/03/2014, DJe 10/04/2014, grifo nosso)
Constata-se que, embora os tribunais superiores já apresentem jurisprudência sedimentada no sentido da necessidade de fundamentação concreta do título prisional, os juízes de primeiro grau e tribunais de segunda instância ainda são, em muitos casos, conservadores, o que eleva desnecessariamente o número de prisões cautelares e contribui para o colapso do sistema prisional.
Conclusão
Conclui-se, portanto, que o excessivo número de presos provisórios nos estabelecimentos prisionais brasileiros mantém relação direta com as decisões padronizadas e genéricas de muitos magistrados, que, frequentemente, deixam de analisar a real necessidade da custódia processual, a qual poderia ser substituída, em inúmeras hipóteses, por medidas cautelares diversas da segregação, necessárias e adequadas aos fins buscados.
Informações Sobre o Autor
Luís Eduardo Pimentel Vieira Araújo
Analista em Direito no Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Graduado em Direito pela Universidade FUMEC. Especialista em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes e Especialista em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera-Uniderp