Notas liberais

Resumo: Este artigo trata de indagações inquietantes como: O que significa ser liberal ou neoliberal? Qual o conceito de liberalismo ou neoliberalismo? Quais suas bandeiras e conquistas? Certamente, a formação de uma opinião abalizada sobre essas colocações demanda especial cautela e o emprego de esforços analíticos mais acentuados que aqueles empreendidos na superfície das opiniões. Nesse cenário, o presente texto se propõe a ofertar ao leitor algumas notas liberais, úteis para a avaliação da propriedade de sentenças condenatórias como: “o (neo)liberalismo é contra o Estado” ou “os (neo)liberais rejeitam qualquer tipo de intervenção do Estado na economia”. Por esse enfoque, não se pretende, naturalmente, realizar a explanação de uma tese acadêmica na área da ciência política ou da filosofia da linguagem, mas apenas apresentar um refinamento do pensamento cotidiano por intermédio da sistematização de um conjunto de argumentos, selecionados ou formulados com apoio na literatura liberal, com vistas a demonstrar que, originariamente, liberalismo e neoliberalismo têm significados bastante distintos das representações que insistentemente alimentam os debates políticos de mitos e falácias. Em suma, considerando que liberalismo e neoliberalismo podem ser examinados por diferentes ângulos, este texto visa submeter à apreciação do leitor uma perspectiva diversa da que se defende em círculos antiliberais.

Sumário: – Introdução – Conceito de Liberalimso – Conceito de Neoliberalimso – Conclusão

Mas voltando ao termo ‘neoliberalismo’, é preciso considerar que ele foi usado como uma bandeira, para distinguir a moderna orientação liberal do velho laissez-faire. O termo, assim ao menos ao meu entender, designa um momento da história do liberalismo, marcado pelo Colóquio Walter Lippmann, não havendo razão, hoje, para que o continuemos a empregar, a não ser para designar, volto a dizê-lo, uma fase ou um momento da história da filosofia liberal.” (Roque Spencer Maciel de Barros)

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Introdução

O que significa ser liberal ou neoliberal? Qual o conceito de liberalismo ou neoliberalismo? Quais suas bandeiras e conquistas? Indagações inquietantes como essas, ao frequentarem debates políticos, comumente encontram respostas recheadas de polemismo que muitas vezes distorcem conceitos a ponto de caracterizá-los pelo avesso.

Isso se explica, provavelmente, mais por má formação que por má intenção. Afinal, os sofismas herdados do maniqueísmo político que se formou no período da guerra fria conseguiram incrustar, no ideário popular, inarredáveis vícios de raciocínio mediante a propagação taxativa de clichês de impacto ideológico. Nessa toada, o eco das apregoações de coerência aparentemente inatacável disfarça, até hoje, a magnitude da dissonância que provocam quando combinadas com abordagens mais consistentes.

É nesse cenário que este texto se propõe a ofertar ao leitor algumas notas liberais, úteis para a avaliação da propriedade de sentenças condenatórias como: “o (neo)liberalismo é contra o Estado” ou “os (neo)liberais rejeitam qualquer tipo de intervenção do Estado na economia”. Quantos já não reproduziram, de modo inercial e incauto, frases ideologicamente carregadas como essas?

Para formar uma opinião mais abalizada sobre essas colocações, a consulta a um dicionário de política já seria bem razoável como ponto de partida. O de Norberto Bobbio, por ilustração, informa que o liberalismo “em nada se opõe à intervenção estatal na economia, quando se dá no respeito aos direitos individuais e para salvaguardar os interesses comunitários”[1], ao contrário do lugar-comum consagrado pela retórica antiliberal, encontrado até mesmo num dos minidicionários da língua portuguesa, segundo o qual o liberalismo é a doutrina política e econômica a favor da livre iniciativa e “contra a intervenção do Estado na economia”.

Duas fontes, duas definições conflitantes; algo normal em se tratando de liberalismo, o qual comporta, conforme reconhecido por Bobbio, “uma definição difícil”[2]. Não sendo questão trivial, a formação de qualquer convicção conceitual a respeito do liberalismo demanda especial cautela e o emprego de esforços analíticos mais acentuados para que se possa transcender a superfície das opiniões e alcançar o plano da ciência política, expressão esta que, nos dizeres do referido autor:

“[…] pode ser usada em sentido amplo e não técnico para indicar qualquer estudo dos fenômenos e das estruturas políticas, conduzido sistematicamente e com rigor, apoiado num amplo e cuidadoso exame dos fatos expostos com argumentos racionais. Nesta acepção, o termo “ciência” é utilizado dentro do significado tradicional como oposto a “opinião”.”[3]

Feita essa consideração, torna-se oportuno ressaltar que não se pretende aqui, naturalmente, desenvolver uma tese acadêmica na área da ciência política ou da filosofia da linguagem, mas apenas apresentar um refinamento do pensamento cotidiano por intermédio da sistematização de um conjunto de argumentos, selecionados ou formulados com apoio na literatura liberal, com vistas a demonstrar que, originariamente, liberalismo e neoliberalismo têm significados bastante distintos das representações que insistentemente alimentam os debates políticos de mitos e falácias. Afinal, se liberalismo e neoliberalismo podem ser examinados por diferentes ângulos[4], então que se submeta à apreciação do leitor uma perspectiva diversa da que se defende em círculos antiliberais.

Liberalismo

De início, destaque-se que a afirmação de que o liberalismo é contra o Estado é equivocada porque confunde, de modo crasso, liberalismo com libertarismo, ou simplesmente anarquismo, este sim oponente do Estado e defensor da liberdade irrestrita, isto é, sem limitação de normas. Além disso, ignora que foram os liberais, sobretudo a partir de John Locke, os principais escultores do Estado de Direito que serviu de alicerce para a edificação das principais democracias contemporâneas.

Rememore-se, portanto, que, no terreno político, o liberalismo surgiu como antítese ao absolutismo, contrapondo-se não ao Estado em si, mas a sua configuração absolutista, tendo sido a Revolução Gloriosa, ocorrida na Inglaterra em 1688, o confronto político que se notabilizou por sedimentar, na região da Grã-Bretanha, o processo de submissão do poder do monarca, antes absoluto, ao controle do parlamento, num giro que substituiu o império do rei pelo império da lei.

No plano teórico, a obra intitulada Dois Tratados sobre o Governo[5], de 1690, escrita pelo inglês John Locke, é até hoje considerada referência bibliográfica do liberalismo político que teria sido inaugurado, de fato, na idade moderna[6], sendo justo reconhecer que, se coube a alguém o encargo de combater as teses absolutistas, o crédito dessa realização deve ser depositado especialmente em favor do citado autor. Mais especificamente no primeiro tratado, Locke refuta cartesianamente os dogmas pontificados por Robert Filmer no livro Patriarcha (1680), em cuja obra fornecia as bases teóricas da escravidão, do direito divino dos reis e do Estado Absolutista. Em sequência, após demonstrar que todo homem é naturalmente livre, no segundo tratado Locke desenvolve suas proposições sobre o governo civil com fundamento na ideia da legitimidade do poder.

“[…] E tudo isso não deve estar dirigido a outro fim a não ser a paz, a segurança e o bem público do povo.[7] […]

Assim como a usurpação é o exercício de um poder a que outro tem direito, a tirania é o exercício do poder além do direito, a que ninguém pode ter direito.”[8]

Nessa composição, o binômio Revolução Gloriosa e Dois Tratados apresentou ao mundo, um século antes da Revolução Francesa de 1789, importantes arquétipos do que mais tarde viria a ser rotulado como liberalismo, cabendo observar que até então o referido termo não era utilizado para designar esse movimento político de oposição diametral ao absolutismo. No âmbito da tradição inglesa, conforme assinala Antônio Paim, o termo liberalismo “começou a ser empregado no século XIX. Os conservadores ingleses eram chamados de tories e os liberais de wighs até a época das reformas de 1832. Em seguida a estas, os primeiros adotaram o nome de Conservative Party e, logo a seguir, os segundos a denominação de Liberal Party”[9].

Considerando que a essa época, ou seja, na primeira metade do século XIX, muitos outros intelectuais já haviam dado a sua parcela de contribuição para a constituição de um corpo teórico liberal, torna-se pertinente anotar que o liberalismo não se restringe a um único pensador; ao contrário, dada a sua abrangência, nada mais verossímil que associar o liberalismo a um conjunto de autores distribuídos no tempo e no espaço. Assim sendo, não faria sentido, por exemplo, falar-se em lockismo da mesma forma que se fala em marxismo. Conforme advertia Ubiratan Borges de Macedo, não há “definições perfeitas do liberalismo, pois ele é antes uma práxis histórica continuada ao longo dos anos do que uma doutrina individual”[10], visão esta compartilhada por José Guilherme Merquior, o qual realçou, ao final de sua obra dedicada a representar os delineamentos das principais linguagens e posições históricas liberais, a “impressionante variedade dos liberalismos”[11].

A construção do liberalismo como corpo de conhecimento multidimensional é bem descrita pelo filósofo e educador brasileiro Roque Spencer Maciel de Barros, em Introdução à Filosofia Liberal, publicada em 1971. Na esteira desse eminente intelectual, seria possível ilustrar a evolução do liberalismo, com extrema simplificação, citando obras que se avolumaram sobre os pilares construídos por John Locke, tais como: Riqueza das Nações[12] (1776), de autoria do escocês Adam Smith, que incorporou a dimensão econômica ao liberalismo ao mesmo tempo em que sistematizou a ciência econômica, descrevendo as leis de funcionamento da economia de mercado; O Espírito das Leis (1748), escrito pelo francês Charles de Montesquieu, que popularizou a teoria da tripartição funcional do poder; e On Liberty (1859), da lavra de John Stuart Mill, prodígio britânico obstinado com a defesa da liberdade de expressão, que se ocupou de questões sensíveis relacionadas à liberdade do indivíduo não somente em relação ao Estado, mas também em face da sociedade.

Com base em todo esse retrato, o liberalismo pode ser caracterizado, em linhas gerais, por um sistema de ideias e instituições[13] que defendem e promovem a liberdade individual como valor social supremo e se opõem às mais variadas formas de tirania.

Neoliberalismo

No período que sucede a Revolução Industrial, o liberalismo passa a perder seu prestígio de força progressista à medida que o socialismo avança como vetor antagônico ao velho laissez faire liberal e convence a classe operária de que à “mão invisível” do mercado deveria ser atribuída a culpa pelas mazelas associadas ao capitalismo, o qual deveria ser abolido pela via revolucionária. Nessa onda, o alemão Karl Marx, antes coautor do panfleto revolucionário O Manifesto do Partido Comunista, de 1848, projeta-se como mentor do autodenominado “socialismo científico” com a publicação, em 1867, de O Capital.

Para trinfar, a “ciência” exaltada por Marx teria que atravessar, no entanto, o impiedoso corredor dos testes de refutabilidade. Fundamentados em análises desapaixonadas, cotejando fatos e teses, notórios estudiosos do marxismo passaram a asseverar que os argumentos que alicerçam as teorias de Marx distanciam-nas de qualquer qualificação que pudesse erigir o seu socialismo à categoria de científico, a tal ponto de caracterizá-lo como produto derivado da percepção viciada de um filósofo-profeta. Na ótica do historiador britânico Paul Johnson, a validade da alegação marxista de que, por ser irreformável, o capitalismo seria fatalmente autodestrutivo é comprometida pelo fato de que Marx se amparou em uma leitura defasada de fatos históricos para vociferar, em tom messiânico, o seu prenúncio do colapso capitalista.

O problema, do modo como aparecia para Marx, era encontrar o tipo certo de informação: as informações adequadas. […]

Nesse sentido, então, os “dados” não eram centrais ao trabalho de Marx; eles estavam subordinados, reforçando conclusões que já tinham sido alcançadas independentemente deles. O Capital, o monumento em torno do qual girava a sua vida de erudito, deveria ser visto, portanto, não como uma investigação científica sobre a natureza do sistema econômico que pretendeu descrever, mas como um exercício de filosofia moralista, um tratado comparável aos de Carlyle ou Ruskin. […]

Em suma, toda a primeira parte da análise científica de Marx acerca das condições de trabalho no capitalismo em meados da década de 1860 se baseia numa única obra, o livro de Engels A situação da classe operária na Inglaterra, publicado 20 anos antes. E que valor científico, por sua vez, pode ser atribuído a essa única fonte? […]

As fontes primárias impressas utilizadas por Engels estavam cinco, dez, vinte, vinte e cinco ou até quarenta anos defasadas, embora geralmente as apresentasse como sendo atuais.

[…] A sistemática utilização errônea de fontes por parte de Marx chamou a atenção, na década de 1880, de dois estudiosos de Cambridge. […] Concluem que seus dados podem não ser “suficientes para sustentar uma acusação de falsificação intencional”, mas com certeza demonstram “um descaso quase criminoso no uso de fontes autorizadas” que nos levam a encarar todas as “outras partes da obra de Marx com desconfiança”.

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[…] Seus crimes contra a verdade são de quatro tipos. Em primeiro lugar, se utilizou de informações obsoletas porque as ainda válidas não confirmavam suas alegações. Em segundo lugar, escolheu determinadas indústrias onde as condições de trabalho eram particularmente ruins, como sendo típicas do capitalismo […]

Em terceiro lugar, ao se utilizar de relatórios da inspetoria das fábricas, Marx mencionou exemplos de más condições e maus-tratos sofridos por trabalhadores como se essas fossem regras inerentes ao sistema; na verdade, os responsáveis por essas condições eram o que os próprios inspetores chamavam de “os donos de fábrica fraudulentos”, os quais cabia a eles desmascarar e processar e que, desse modo, estavam em via de ser afastados. Em quarto lugar, o fato de as principais informações de Marx provirem dessa fonte, a inspetoria, releva o maior de seus logros. Trata-se da tese de que o capitalismo era, por natureza, incorrigível e, pior, de que nos sofrimentos infligidos pelo sistema aos trabalhadores, o Estado burguês era seu aliado, já que o Estado, escreveu ele, “é uma comissão executiva para administrar os negócios da classe dominante como um todo”. Porém, se isso fosse verdade, o Parlamento nunca teria aprovado as Leis Fabris, nem o Estado as teria posto em prática.

[…] O que se percebe depois de uma leitura de O Capital é a incapacidade inata em Marx de entender o capitalismo. Ele fracassou exatamente por não ser científico: não pesquisou, ele próprio, as informações nem se utilizou com objetividade das que foram pesquisadas por outras pessoas.”[14]

No mesmo diapasão, o austríaco Karl Popper, filósofo da ciência e artífice do critério da falseabilidade, também aponta a limitação de Marx decorrente da sua incapacidade de romper as fronteiras de um capitalismo irrestrito e contemplar a possibilidade – hoje uma prática comum – de interferência estatal na economia com o objetivo de corrigir as falhas de mercado.

No tempo de Marx, ninguém jamais pensou naquela técnica de intervenção do estado que agora é chamada de “política anti-cíclica”.

[…] Marx investigou um capitalismo irrestrito e nunca sonhou em intervencionismo. Portanto, nunca investigou a possibilidade de uma interferência sistemática no ciclo dos negócios e muito menos apresentou uma prova de sua impossibilidade. […]

A partir da época de Marx, em toda a parte se elevou o nível de vida dos operários empregados […]

“Salários baixos, horas prolongadas e trabalho infantil foram uma característica do capitalismo, não, como disse Marx, em sua velhice, mas na sua infância”.

O capitalismo irrestrito passou. Desde o tempo de Marx, o intervencionismo democrático fez imensos avanços […]”[15]

Na realidade, as evidências em desfavor das teses apocalípticas de Marx foram tão dramáticas que até mesmo uma parcela dos fiéis ao “método científico” marxista foi impelida, já ao final do século XIX, a admitir que algumas hipóteses essenciais do marxismo careciam de validade, o que resultou numa releitura da doutrina marxista conhecida por revisionismo, da qual o alemão Eduard Bernstein foi o iniciador e expoente máximo. Com essa mudança de postura, ganhou pulso um processo de substituição do radicalismo pelo gradualismo, este consubstanciado por variantes do reformismo, tal como a social-democracia, locução esta que, em sua acepção clássica, traduz a opção por uma estratégia política de alcance do socialismo pela via democrática, embora Karl Kautsky, teórico do partido social-democrata alemão, advertisse que “a Social-democracia é um partido revolucionário e não um partido que faz revoluções”[16], o que, na metáfora de Bobbio, equivaleria a “acampar dentro dos muros inimigos”[17], ou seja, no interior das instituições liberais.

Ainda assim, o marxismo de Marx, talvez pelo seu misticismo, continuou a exercer grande influência no pensamento do século XX, fato este que estimulou o sociólogo francês Raymond Aron, perplexo diante do prestígio de que gozava o marxismo, às voltas na comunidade intelectual francesa mesmo após o seu flagrante descolamento da realidade, a debruçar-se sobre o enigma do apelo hipnótico da doutrina marxista. Suas teses, bastante vanguardistas para os padrões intelectuais da época, foram sistematizadas na obra O Ópio dos Intelectuais, publicada em 1955.

“Esse livro lida com o presente estado da tão chamada ideologia esquerdista e com a situação da intelligentsia na França e no mundo. Tenta dar uma resposta a algumas das questões que outros além de mim devem ter se perguntado. Por que o Marxismo voltou à moda num país cuja evolução econômica desmentiu as predições marxistas? Por que as ideologias do proletariado e os partidos comunistas fazem mais sucesso onde a classe trabalhadora é menos numerosa? Quais circunstâncias controlam o modo de falar, de pensar e de agir dos intelectuais em diferentes países?”[18]

Toda essa ênfase dedicada à transcrição de críticas a Marx é importante para que se tenha consciência da fragilidade das bases intelectuais do principal oponente do liberalismo no século XX – o socialismo real, cabendo salientar que, mesmo havendo muita controvérsia no tocante à identificação de pontes que tenham ligado as teorias marxistas aos fatos políticos, há argumentos bastante plausíveis que permitem o estabelecimento de uma forte correlação, senão causalidade, entre o socialismo real e as ideias de Marx, tais como os expostos por Roque Spencer Maciel de Barros em O Fenômeno Totalitário, datado de 1990.

Uma velha e interminável discussão, envolvendo marxistas e marxólogos, gira em torno das relações reais entre o pensamento de Marx e a experiência soviética. Nesse campo, já houve afirmações de toda sorte, desde as que eximem totalmente de responsabilidade o marxismo de Marx por tudo o que aconteceu na URSS, até as que fazem do regime soviético o legítimo guardião da chama marxista, passando por várias posições intermediárias.[19] […]

O exame da vertente profética do pensamento de Marx com o seu conseqüente voluntarismo, permite, a nosso ver, que compreendamos melhor o leninismo como uma autêntica continuação do marxismo. Talvez um retificador, não um “desviacionista”. O leninismo – e, com ele, o stalinismo e toda a realidade soviética – se revelou como o “marxismo possível”. Desmentido, no seu caráter profético, pelas nações industrializadas que faticamente inutilizaram suas as suas predições, como já denunciava Bernstein, o marxismo, que trazia no seu bojo a vocação totalitária, inscrita no seu maniqueísmo e nos eu messianismo apocalíptico (muito mais do que o “autoritarismo” que, com razão, lhe imputava Bakunin), se realizou como marxismo-leninismo, com o discípulo moldando a profecia à realidade, a fim de poder moldar a realidade pela profecia.”[20]

Em sentido semelhante, Paul Johnson escreve que:

“Marx tem tido mais influência nos acontecimentos atuais, e na cabeça de homens e mulheres, do que qualquer outro intelectual de nossos tempos. A razão para isso não é originariamente a atração que se sente diante de seus conceitos e de sua metodologia, embora ambos representem um atrativo para as cabeças pouco rigorosas, mas o fato de que sua filosofia foi institucionalizada em dois dos maiores países do mundo, União Soviética e China, e em seus muitos satélites. […] Mas a influência de Marx tem sido ainda mais direta, pois o tipo de ditadura que ele idealizou para si mesmo (como veremos) foi de fato levada a feito, com incalculáveis consequências para a humanidade, por seus três mais importantes seguidores, Lenin, Stalin e Mao Tse-Tung, que nesse ponto foram, todos eles, marxistas convictos.”[21]

Esses diagnósticos tornam-se ainda mais claros quando se resgata a memória de que, no panfletário O Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels proclamaram abertamente que os objetivos comunistas só poderiam ser alcançados pela “derrubada violenta de toda a ordem social existente”.

Essa relação ora tangenciada, entre as ideias de Marx e o socialismo real, se por um lado ainda é encharcada de polêmica malgrado a substância dos argumentos supramencionados, por outro não prejudica a concordância mais generalizada em relação ao fato de que o socialismo real que entrou em cena como desdobramento da Revolução Russa, irrompida em 1917, desencadeou um regime totalitário na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – dirigida por um partido único, o Partido Comunista da União Soviética – e inspirou a proliferação de regimes similares em diversas outras partes do globo, tais como China, Coréia do Norte e Cuba.

Em marcha, o socialismo real se apresentava ao mundo, na primeira metade do século XX, em colisão frontal com os ideais do liberalismo. Na busca da socialização dos meios de produção, ao mesmo tempo em que se insurgia contra o capitalismo e a propriedade privada, o socialismo real colocava em xeque instituições democráticas basilares, como: tripartição funcional do poder, eleições periódicas, liberdade de imprensa e direitos individuais de primeira geração – civis e políticos.

Alegando uma suposta consciência de “justiça social”, e sob o argumento falacioso de que o atropelamento dos direitos de primeira geração seria um meio justificável pelo fim destinado ao alcance dos direitos de segunda geração, o socialismo real, sem qualquer constrangimento, perpetrou crimes contra a humanidade em escala devastadora, muitos deles infelizmente não tão denunciados ou conhecidos quanto deveriam. Os gulags, redes de campos de trabalhos forçados utilizados para acelerar a industrialização soviética, a despeito de terem vitimado milhões de pessoas, são bem menos populares que os também repugnantes campos de concentração que constituem o símbolo maior da bizarra violência nazista.

A aproximação é pertinente porque, ao lado do socialismo real, também emergia, na década de 1930, os totalitarismos ditos de “direita”, representados pelo nazismo e fascismo, recrudescendo o surto de grave atentado à liberdade engendrado por Estados totalitários de configurações variadas. Foi justamente nesse panorama que a chama liberal foi reacesa; analogamente, assim como o liberalismo se opôs ao Estado absolutista, o neoliberalismo se levantou como reação à efervescência do fenômeno totalitário do século XX, materializado nas formas de socialismo real, nazismo e fascismo, sob o comando de déspotas como Stalin, Hitler e Mussolini, respectivamente. Em suma, o neoliberalismo agregou forças antes dispersas com vistas a evitar o pior pesadelo liberal: a sociedade dominada pelo totalitarismo, tal como na distopia retratada pelo inglês George Orwell[22] no seu romance intitulado 1984.

Sob esse prisma, o rastreamento das características fundamentais do liberalismo e do neoliberalismo, no campo político, permite concluir que os seus traços distintivos não residem em suas essências, pois, embora tenham se localizado em épocas distintas e antagonizado com diferentes oponentes, ambos se confundem na medida em que hastearam a mesma bandeira, qual seja: a defesa da liberdade individual e o combate à tirania. Em resumo, mudaram os tiranos, não o liberalismo.

Esse diagnóstico é bem ilustrado no seguinte trecho do debate realizado em 1985, na sede do jornal O Estado de São Paulo, no qual ilustres liberais brasileiros expunham seu ponto de vista sobre o neoliberalismo:

“Gilberto – Eu gostaria de voltar à questão do neoliberalismo. Acho que realmente essa expressão não é apropriada. É uma redundância, porque está na essência do liberalismo, o pluralismo. Então, para que falar em neoliberalismo, se estão na própria essência do liberalismo as diversas maneiras de exercitar a liberdade? Não há neoliberalismo, mas um liberalismo, com vários matizamentos através da história, através dos lugares.

Roque – Estou de pleno acordo também. Só que o neoliberalismo foi uma expressão tática num momento determinado, em 1938, por ocasião do colóquio Walter Lippmann. Havia fascismo, nazismo, havia comunismo. Todas as ideologias verdadeiramente triunfantes, fazendo o liberalismo fazer coisa do passado.

Paim – E realmente o momento era muito oportuno, por causa do keynesianismo. O keynesianismo era uma novidade em matéria de economia. Quer dizer, o liberalismo permaneceu íntegro, ao meu ver, desde o começo, com a ideia de representação, e, depois, com a concepção democrática. Mas Keynes introduziu uma mudança fundamental ao admitir uma intervenção do Estado como elemento regulador, para se contrapor à crise de 29.

Roque – […] Mas voltando ao termo “neoliberalismo”, é preciso considerar que ele foi usado como uma bandeira, para distinguir a moderna orientação liberal do velho laissez-faire. O termo, assim ao menos ao meu entender, designa um momento da história do liberalismo, marcado pelo Colóquio Walter Lippmann, não havendo razão, hoje, para que o continuemos a empregar, a não ser para designar, volto a dizê-lo, uma fase ou um momento da história da filosofia liberal.”[23]

Sendo o neoliberalismo um momento liberal, não haveria razão, por conseguinte, para que a denominação original – liberalismo – devesse ser substituída por outra mais moderna – neoliberalismo. Dito de outra maneira, o liberalismo corresponderia a um termo não só atual como também hospedeiro do próprio neoliberalismo, o que faria de um neoliberal como Hayek um liberal do século XX.

Em que pese ser bastante plausível, essa interpretação não é enfática o suficiente a ponto de revelar um equívoco bastante presente no senso comum, e até mesmo no juízo de alguns liberais, no que tange a dimensão econômica do liberalismo. Trata-se da ideia desafortunada de que, em matéria de economia, o neoliberalismo consistiria num tipo de liberalismo irresponsável e insensível, e por esse motivo em um xingamento.

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Essa má fama, que possivelmente explica por que alguns liberais se sentem tão desconfortáveis com a rotulação de “neoliberal”, é desmistificada com distinta propriedade por Oliver Marc Hartwich, pesquisador do Centro de Estudos Independentes da Nova Zelândia e autor de Neoliberalismo: a gênese de um palavrão político. Nesse texto, Hartwich demonstra que, relativamente aos liberais de outrora, os neoliberais apresentavam menor resistência à intervenção estatal no plano econômico e maior realismo quanto às deficiências da doutrina do laissez-faire, de tal sorte que a alegação de que “os neoliberais rejeitam qualquer tipo de intervenção do Estado na economia” não se sustenta à luz da concepção neoliberal.

Em perspectiva histórica, o citado autor recorda que, não obstante o clima político na Europa dos anos 30 fosse decididamente antiliberal, um pequeno grupo de intelectuais, com o objetivo de manter vivo o ideal da liberdade, organizou em agosto de 1938, em Paris, o Colóquio Walter Lippmann, designação esta explicada pelo fato de que o filósofo francês Louis Rougier, articulador do evento, teria motivado a discussão das ideias liberais defendidas pelo jornalista americano Walter Lippmann no livro A Boa Sociedade, publicado em 1937. O encontro contou com a presença de teóricos da estatura de Alexander Rüstow, Friedrich Hayek, Karl Popper, Ludwig Von Mises, Raymond Aron, além do próprio Lippmann.

No bojo daquele colóquio, realizado em Paris, as discussões giravam em torno da necessidade de uma renovação liberal. Alguns dos participantes, como Rüstow, Lippmann e Rougier concordavam que o liberalismo do laissez faire havia “falido” e que um novo liberalismo deveria se apresentar, embora outros, como Mises e Hayek, estivessem bem menos convencidos. Mas os pensadores ali presentes estavam todos atentos ao perigo totalitário, movidos pelo mesmo sentimento e, por isso, unidos em torno de um novo projeto liberal, o qual parecia carecer de um nome.

Ao final, após terem sido cogitadas locuções como “liberalismo da esquerda”, “liberalismo positivo” e “social-liberalismo”, o consenso foi pela adoção do étimo “neoliberalismo” ­– recomendação inicial de Alexander Rüstow, o qual teria divulgado o seu programa neoliberal em 1932, na conferência anual da principal associação de economistas da Alemanha, com o discurso intitulado Free Economy, Strong State  reconhecido como o documento fundador do neoliberalismo. No entendimento de Rüstow, o prefixo “neo” seria necessário para diferenciar o novo liberalismo do antigo, ao qual se reportava com expressões pejorativas do tipo “liberalismo vulgar” ou “paleo-liberalismo”.

Esse ímpeto revisionista do Colóquio Walter Lippmann deixa claro que o neoliberalismo representava algo bem diferente do “radicalismo do livre mercado” com o qual é atualmente associado, ainda que o aludido consenso sobre o que vinha a ser o neoliberalismo não tenha perdurado por muito tempo[24].

Para explicar esse distanciamento entre o significado original do substantivo em análise e sua atual conotação vulgar, Hartwich narra[25] que o vocábulo “neoliberalismo” foi gradativamente desaparecendo do discurso político na Alemanha ocidental – primeiro lugar onde as ideias neoliberais haviam sido adotadas – e que, fora do país, a palavra havia sido esquecida ainda antes, pois, embora a Sociedade Mont Pelerin[26] tivesse dado continuidade ao trabalho iniciado no Colóquio Walter Lippmann, o foco havia mudado de uma redefinição radical do liberalismo para a preservação deste termo originário juntamente com sua divulgação em escala global. Como resultado, ninguém mais queria se autodefinir como neoliberal: os liberais alemães encontraram outras nomenclaturas para simbolizar a sua terceira via e os liberais fora da Alemanha voltaram a discutir o liberalismo dispensando o prefixo.

Com essa dinâmica, o neoliberalismo afundou na obscuridade nos anos 70 e 80 até que a oposição política a reformas liberais começou a abusar retoricamente daquela palavra em evidente descompasso com o seu significado inaugural. Mais especificamente, Hartwich registra que, de acordo com alguns autores, o termo “neoliberalismo” teria sido ressuscitado na América Latina como sinônimo de tudo o que a “esquerda” da região desprezava, o que pode esclarecer como a palavra conseguiu se converter em um palavrão político.

De fato, a carga negativa veiculada pelo neoliberalismo decorre, principalmente, do curto alcance da visão míope que se restringe a polêmicas de cunho econômico e fiscalista, especialmente as privatistas, exploradas nas décadas de 80 e 90. Dentre os intelectuais brasileiros, o cientista social Paulo Roberto de Almeida já havia ressaltado, antes de Hartwich, em sua série sobre “falácias acadêmicas”, que o mito do neoliberalismo, plenamente imiscuído no ambiente universitário e não apenas em rodas informais de debates, é em boa medida alimentado pela versão fantasiosa construída pela “esquerda” latino-americana sobre o Consenso de Washington.

Como sabem todos aqueles que convivem com a literatura acadêmica na área de ciências sociais, nenhum conceito tem sido tão equivocadamente mencionado no ambiente universitário, nas últimas duas décadas, quanto o epíteto “neoliberal”, junto com o seu correspondente coletivo e doutrinal, o “neoliberalismo”. A incidência estatística de seu (mau) uso é tão notória, que se poderia falar de uma verdadeira epitetomania anti-neoliberal, dirigida contra todas as políticas econômicas associadas, de perto ou de longe, ao chamado mainstream economics, este representado pelas correntes ortodoxas de pensamento e suas práticas econômicas correspondentes.

Junto com o substantivo usado e abusado de globalização, ou, ainda, o tão mais detestado quanto praticamente desconhecido programa econômico do “consenso de Washington”, o neoliberalismo converteu-se, simultaneamente, em um xingamento e em um slogan de uso praticamente obrigatório por todos aqueles que pretendem desqualificar e condenar as políticas e as práticas da escola econômica convencional.”[27]

Em complemento, ao dissertar mais detidamente sobre o mito do Consenso de Washington – CW, o mesmo autor enfatiza com distinta lucidez que:

O CW deve, portanto, ser entendido exatamente pelo que ele foi, ou é, e não pelo que seus supostos inimigos ideológicos pretendem que ele seja […]

Resumidamente, ele toca nos seguintes pontos: disciplina fiscal, reorientação das despesas públicas, reforma tributária, liberalização financeira e comercial, taxa cambial, abertura aos investimentos estrangeiros, privatização, desregulação e garantia de contratos e direitos de propriedade. Caberia recordar, desde já, que as regras do CW não foram estabelecidas por economistas liberais para orientar governos desejosos de uma política econômica “ortodoxa”. Trata-se de um conjunto de prescrições de política econômica, formalizadas a posteriori – como acontece geralmente com os modelos econômicos, que nada mais são do que a formalização genérica de uma experiência passada, geralmente bem-sucedida, pois raramente se constroem modelos a partir de fracassos –, para tentar sintetizar o que estava acontecendo com países como Chile e México, que desde o início dos anos 1980 tentavam enquadrar-se no chamado mainstream economics, depois de décadas de políticas erráticas e experiências substitutivas.

O autor das propostas foi o economista John Williamson, que, num artigo intitulado “O que Washington entende por reforma da política [econômica]”, fazia o balanço de quase dez anos de ajuste na América Latina, depois da crise da dívida externa, em 1982. Os países mais avançados nesse processo de ajuste eram o Chile e o México. Ao contrário do que muitos pensam, portanto, foram as políticas já adotadas de forma independente por países da região que serviram de “modelo” para que o economista, a partir das medidas concretas de política econômica de seus governos, apresentasse seu esquema de “receitas bem-sucedidas de ajuste”. Essas receitas cobriam dez áreas de reformas econômicas e políticas, nomeadamente as seguintes:

1) disciplina fiscal;

2) prioridades nas despesas públicas;

3) reforma tributária;

4) taxa de juros de mercado;

5) taxa de câmbio competitiva;

6) política comercial de integração aos fluxos mundiais;

7) abertura ao investimento direto estrangeiro;

8) privatização de estatais ineficientes;

9) desregulação de setores controlados ou cartelizados;

10) direitos de propriedade.”[28]

Considerando que há, conforme sublinha Paulo Roberto de Almeida, “um concentração quase obsessiva sobre o caso argentino para ‘demonstrar’ o fracasso das receitas ‘neoliberais’ para promover crescimento e igualdade na América Latina”[29], o mencionado pensador descortinou o mito do neoliberalismo argênteo ao submetê-lo a um teste de aderência às regras estabelecidas no Consenso de Washington, valendo transcrever seu o exame atinente ao item 5 que integra o decálogo supra elencado.

“5) taxa de câmbio competitiva: trata-se, provavelmente, da mais eloqüente negação de uma regra tida como essencial pelo autor do CW. A Argentina, ou melhor, o ministro Domingo Cavallo, fixou formalmente o valor do peso em dólar (1 por 1), no plano que teve início em 1991, preservando a mesma camisa de força durante dez anos seguidos. O regime de conversibilidade, assegurado por um sistema de “currency board”, constituiu, provavelmente, a mais significativa ruptura da Argentina com um elemento central do CW;”[30]

No Brasil, em relação ao componente 1 do Consenso de Washington, sobressalta o fato de que, após ascender ao poder, no início do séc. XXI, a “esquerda” não apenas preservou como chegou a intensificar algumas das políticas tidas como “neoliberais”, orientadas à disciplina fiscal, a exemplo dos superávits primários – antes objeto de críticas às vezes coléricas por parte da mesma esquerda, enquanto oposição.

Como reflexo desse proselitismo fiscal, resultante de uma combinação de primarismo gerencial e pragmatismo eleitoral, houve um significativo abrandamento no tom das críticas ao neoliberalismo, mas a redução do calor nos debates políticos pátrios não trouxe mais luz para o esclarecimento do significado do liberalismo, em que pesem as alegações exageradas de que o cessar-fogo da esquerda teria possibilitado um “expressivo amadurecimento político” nacional.

Após essa breve incursão no neoliberalismo latino-americano, convém dedicar um parêntese a John Maynard Keynes em razão das dúvidas que este economista britânico levantou quanto ao seu grau de aproximação ou afastamento do liberalismo.

Conquanto seja comuníssima a associação entre Keynes e a macroeconomia, bem como a citação de sua obra A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, publicada em 1936, foi uma década antes – portanto em tempo anterior à Grande Depressão, disparada em 1929 – que Keynes, no folheto O Fim do “Laissez-Faire” (1926), se manifestou como um duro crítico do liberalismo econômico clássico, merecendo destacar, entretanto, que, nesse escrito, em vez de pregar a extinção do capitalismo, Keynes vislumbrou, ao contrário, possíveis aperfeiçoamentos na economia de mercado por meio da ação coletiva, a qual resultaria não da agitação política, mas da reflexão.

Com efeito, Keynes pode ser encarado mais como um teórico dedicado à busca do pleno emprego e à administração de crises do capitalismo do que um inimigo do mesmo. Não propôs modelos econômicos extremistas e, ao contrário de Marx, não preconizou a socialização dos meios de produção; nos moldes keynesianos, a intervenção do Estado na economia deveria preservar a liberdade econômica individual e a propriedade privada, influenciando o livre mercado apenas quando necessário, de tal feita que o “keynesianismo” se aproxima do neoliberalismo de Rüstow na medida em que ambos condenam a exacerbação do laissez-faire, defendendo mais e não menos intervenção do Estado na economia, ainda que recorrentemente divirjam quanto à intensidade e os meios que devam ser empregados.

Roque Spencer Maciel de Barros, ao discorrer sobre o momento histórico de identificação da necessidade de renovação do liberalismo em razão da crise do laissez-faire, estabelece a seguinte correlação ao conjugar keynesianismo e neoliberalismo:

Era imprescindível, portanto, uma revisão. Fizeram-na tanto Keynes quanto dos chamados neo-liberais, embora com resultados diversos.

Há, sem dúvida, na posição de Keynes e dos neo-liberais um ponto comum: nenhum admitirá mais que o Estado, em face dos problemas da vida econômica, cruze os braços, reduzido à impotência.”[31]

Esse contraponto do keynesianismo – e também do neoliberalismo – ao liberalismo econômico clássico não deve, contudo, induzir formulações precipitadas no sentido de que este não admitia qualquer tipo de intervenção do Estado na economia, sendo pertinente revisitar o já abordado debate entre liberais brasileiros para reproduzir um importante excerto no qual trazem a lume judiciosas ponderações sobre a questão em foco.

“Ubiratan – Gostaria de intervir um pouco nessa questão do Estado. Acho que temos de nos lembrar que o liberalismo nunca foi contra a intervenção do Estado. O liberalismo clássico, de Adam Smith e outros, era aquele que atuava exatamente para manter o mercado. O mercado livre é entravado por uma série de monopólios, de formações cartelistas. No liberalismo clássico, sempre houve essa ideia de que o Estado deveria intervir para manter a esquadra de Sua Majestade em casos de perigo (hoje chamamos isso de segurança nacional) e em casos de calamidade. E hoje todo mundo está de acordo em que o Estado deva intervir para criar aquilo que Ralph Daherendorf chamava de “uma rede de proteção embaixo do trapézio”. Há um mínimo a ser garantido pelo Estado para evitar a pobreza absoluta, as calamidades etc. Determinados programas sociais também demandam essa intervenção, como falhas de mercado, nos bens públicos. […]

Roque – Adam Smith insistia muito no seguinte: o Estado deve atuar naquelas áreas onde não exista o interesse da iniciativa privada, ou não haja capacidade desta para resolver o problema.”[32]

Por fim, impende frisar que até mesmo liberais não necessariamente alinhados à vertente do neoliberalismo idealizado por Rüstow compreendem e valorizam a intervenção democrática do Estado no domínio econômico. Hayek, economista mais identificado com a escola austríaca do liberalismo de Mises, ao mesmo tempo em que recusa a planificação socialista advoga em favor da função estabilizadora do Estado, destinada a preservar o equilíbrio da economia de mercado, nos seguintes termos:

“Há por fim um problema de suma importância: combater as flutuações gerais da atividade econômica e os surtos de desemprego em grande escala que costumam acompanhá-las. Esta é, por certo, uma das mais graves e prementes questões da nossa época. Mas, embora a sua solução requeira um cuidadoso planejamento, no bom sentido da palavra, não exige – ou pelo menos, não precisa exigir – o tipo de planejamento que, segundo seus defensores, deve substituir o sistema de mercado.”[33]

Conclusão

Consoante já exposto neste texto, o liberalismo equivale, em essência, a um sistema de ideias e instituições que defendem e promovem a liberdade individual como valor social supremo e se opõem às mais variadas formas de tirania. O neoliberalismo, nesse sentido, figura como um episódio histórico simbolizado pelo Colóquio Walter Lipmmann, o qual, apesar de ter cogitado uma redefinição do liberalismo, a este se somou como um momento do continuum liberal.

Lamentavelmente, porém, os termos liberalismo e neoliberalismo são frequentemente vulgarizados em decorrência da ignorância dos seus significados originais, quadro este que exprime a atualidade de iniciativas destinadas a acrescer qualidade à linguagem que permeia os debates políticos. Um salutar avanço terminológico no que toca o liberalismo poderia contribuir sobremaneira para a sua longanimidade e para tornar suficientemente claro, ao encontro da tese de que o preço da liberdade é a eterna vigilância, que é mais sábio cultivar valores liberais, para mantê-los sempre vivos, que apenas trazê-los à tona, emergencialmente, como reação a assaltos totalitários. Afinal, a História[34] registra que, no século XX, milhões de vidas foram sacrificadas ao longo da hibernação liberal provocada pela falta de apreço ao liberalismo, como se fosse questão menor ou fora de época.

 

Bibliografia
ALMEIDA, Paulo Roberto de. Falácias acadêmicas, 1: o mito do neoliberalismo. Revista Espaço Acadêmico nº 87, agosto de 2008.
________. Falácias acadêmicas, 2: o mito do Consenso de Washington. Revista Espaço Acadêmico nº 88, setembro de 2008.
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POPPER, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos; tradução de Milton Amado. 3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Universidade de São Paulo, 1987.
Notas:
[1] BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. Norberto Bobbio, Nicola Matteuci e Gianfranco Pasquino. Editora Universidade de Brasília, 13ª Ed, 2007, 2008, 2009 (reimpressão), Vol. 2, p. 707.
[2] Ibidem. Vol. 2, p. 686.
[3] Ibidem. Vol. 1, p. 164.
[4] Tendo em vista que as palavras são plurissignificativas, ou seja, que comportam vários significados conforme o contexto em que se inserem, há a necessidade de que haja um mínimo de consistência para cada tipo de enfoque empregado. A própria palavra “liberal” é um exemplo claro de polissemia: fala-se no pai liberal, no profissional liberal e no liberal que assim se qualifica pela afinidade com a filosofia do liberalismo. Esta última acepção da palavra, bastante complexa, ainda pode ser analisada sob a ótica geral ou individual de liberais, socialistas, comunistas, anarquistas etc., prismas estes que, para agravar a complexidade semântica em debate, também variam a depender da época ou do lugar em que se localizam.
[5] Tal obra é tão importante e fundamental que torna suspeita qualquer discussão sobre o liberalismo que ignore o seu conteúdo e ao mesmo tempo se queira qualificar como intelectual.
[6] Essa ressalva se faz necessária porque algumas ideias desenvolvidas por Locke, como a divisão funcional do poder, já haviam sido exploradas pelos antigos, como Aristóteles, na sua obra Política.
[7] LOCKE, John. Dois Tratados sobre o Governo. John Locke: tradução Julio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 500.
[8] Ibidem, p. 560.
[9] PAIM, Antônio. Evolução Histórica do Liberalismo. Volume 1. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987, p. 13.
[10] MACEDO, Ubiratan Borges de. Liberalismo e Justiça Social. São Paulo: Ibrasa, 1995, p. 24.
[11] MERQUIOR, José Guilherme. O Liberalismo – Antigo e Moderno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991, p. 221.
[12] Abreviação do título completo: Uma Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações.
[13] É nesse sentido institucional que geralmente se faz referência à ideia de “Estado Liberal”.
[14] JOHNSON, Paul. Os Intelectuais; tradução de André Luiz Barros da Silva. Rio de Janeiro: Imago, 1990, p. 74-82.
[15] POPPER, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos; tradução de Milton Amado. 3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Universidade de São Paulo, 1987, p. 175-194
[16] BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. Norberto Bobbio, Nicola Matteuci e Gianfranco Pasquino. Editora Universidade de Brasília, 13ª Ed, 2007, 2008, 2009 (reimpressão), Vol. 2, p. 1189.
[17] Ibidem, p. 1189.
[18] ARON, Raymond. The Opium of the Intellectuals. New Brunswick (U.S.A) and London (U.K):  Transaction Publishers. 2001, xvii (foreword). Tradução livre.
[19] BARROS, Roque Spencer Maciel de. O Fenômeno Totalitário. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1990, p. 625.
[20] Ibidem, p. 636.
[21] JOHNSON, Paul. Os Intelectuais; tradução de André Luiz Barros da Silva. Rio de Janeiro: Imago, 1990, p. 64.
[22] Pseudônimo de Eric Arthur Blair.
[23] MACEDO, Ubiratan Borges de. Liberalismo e Justiça Social. São Paulo: IBRASA, 1995, p. 200-201.
[24] Hartwich esclarece que Mises e Rüstow logo trocariam farpas que permitem a identificação de um cisma do liberalismo: para Rüstow, os velhos liberais como Mises eram extremistas perigosos, enquanto que, para Mises, os neoliberais não eram muito melhores que os socialistas totalitários.
[25] Neste parágrafo este texto praticamente traduz o texto original de Hartwich.
[26] Após a 2ª Guerra Mundial, um grupo de intelectuais foi convidado, em 1947, por Friedrich Hayek para se encontrar em Mont Pelerin, na Suíça, com o objetivo de discutir o liberalismo na teoria e na prática, dando origem à The Mont Pelerin Society.
[27] ALMEIDA, Paulo Roberto de. Falácias acadêmicas, 1: o mito do neoliberalismo. Revista Espaço Acadêmico nº 87, agosto de 2008, p. 1.
[28] ALMEIDA, Paulo Roberto de. Falácias acadêmicas, 2: o mito do Consenso de Washington. Revista Espaço Acadêmico nº 88, setembro de 2008, p. 3.
[29] Ibidem, p. 8.
[30] Ibidem, p. 9.
[31] BARROS, Roque Spencer Maciel. Introdução à Filosofia Liberal. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1971, p. 249-250.
[32] MACEDO, Ubiratan Borges de. Liberalismo e Justiça Social. São Paulo: Ibrasa, 1995, p. 202-204.
[33] HAYEK, Friedrich A. von. O Caminho da Servidão. 5. ed. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1990, p. 124.
[34]  Segundo a contabilidade registrada em O Livro Negro do Comunismo (Le livre noir du communisme), de 1997, computadas as mortes provocadas por causas variadas, como fome, o comunismo produziu aproximadamente 100 milhões de vítimas. Roberto Campos, em artigo publicado em 19/04/98 nos jornais Folha de S. Paulo e O Globo, escrevera que:
“A aritmética macabra do comunismo assim se classifica por ordem de grandeza: China (65 milhões de mortos); União Soviética (20 milhões); Coréia do Norte (2 milhões); Camboja (2 milhões); África (1,7 milhão, distribuído entre Etiópia, Angola e Moçambique); Afeganistão (1,5 milhão); Vietnã (1 milhão); Leste Europeu (1 milhão); América Latina (150 mil entre Cuba, Nicarágua e Peru); movimento comunista internacional e partidos comunistas no poder (10 mil).
O comunismo fabricou três dos maiores carniceiros da espécie humana – Lênin, Stálin e Mao Tse-tung. Lênin foi o iniciador do terror soviético. Enquanto os czares russos em quase um século (1825 a 1917) executaram 3.747 pessoas, Lênin superou esse recorde em apenas quatro meses após a revolução de outubro de 1917.”

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Paulo Roberto Simão Bijos

 

Consultor de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados. Bacharel em Ciências Contábeis pela PUC-SP graduado com diploma de mérito e pós-graduado em MBA Mercado de Capitais pela USP/FIPECAFI

 


 

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