Resumo:A família enquanto fenômeno social teve seu sentido radicalmente transformado obrigando os operadores do Direito a revisá-la enquanto fenômeno jurídico. As finalidades da família não mudaram mesmo em suas novas configurações, mas o sentido alterou-se profundamente.
Sumário:1. Entendimento jurídico das transformações sociais.2. O ser humano é gregário.3. O Código Civil de 1916. 4. A Constituição Federal de 1988. 5. Novas configurações familiares.6. Conclusão. Referências.
Entendimento jurídico das transformações sociais.
Entender a família juridicamente transcende o entendimento das normas que regulam a família. O Direito, no seu escopo mais amplo, requer a constante revisão e atualização social, uma vez que é ferramenta transformadora, mas também uma ferramenta sujeita às transformações.
As transformações da moral dentro de um sistema de direito positivo desafia o próprio sistema a abarcá-la de forma compatível com o passado e com um projeto de futuro. O Direito é um sistema tão diacrônico quanto sincrônico, sendo este último aspecto, fundamental para trabalhar com os movimentos histórico-jurídicos em correlação com os movimentos histórico-sociais. Estudar a família, a instituição mais primordial da vida civil, requer um entendimento amplo do próprio estudo do Direito.
O Direito, sob a ótica das transformações familiares, não pode ater-se à norma somente. A norma só tem sentido de existir quando pensada conjuntamente com sua finalidade; regular o comportamento humano. Contudo, uma característica da norma tão importante quanto à finalidade, é o sentido. Esse, por sua vez, faz a conexão entre a norma e a moral vigente. Como ensina a boa doutrina de Tercio Sampaio Ferraz Jr.:
“Contudo, como nota H. Arendt (1981:167), o sentido das coisas não se reduz àquilo para que elas servem ou, por exemplo, o sentido do trabalho de um carpinteiro não se reduz aos utensílios, nem mesmo à finalidade dos utensílios que ele produz. Por isso, é possível que, muito embora a carpintaria continue a ter uma finalidade, o trabalho do carpinteiro venha a perder o sentido. Sentido, assim, tem relação com a valia das coisas, com sua dignidade intrínseca. (..) A perda do sentido afeta, porém, a orientação do homem”.[1]
A família enquanto fenômeno social, teve seu sentido radicalmente transformado, obrigando os operadores do Direito a revisá-la enquanto fenômeno jurídico. As finalidades da família não mudaram, mesmo em suas novas configurações, mas o sentido alterou-se profundamente.
O ser humano é gregário.
Dizer que o ser humano é um ser gregário ou um ser social, é o ponto de partida para qualquer abordagem do estudo do Direito Civil. Maria Helena Diniz define: “O ser humano é um ser gregário por natureza, é um ser eminentemente social, não só pelo instinto sociável, mas também por força de sua inteligência”.[2]
O homem nasce gregário e, no mundo atual, nasce em uma família. O contato inicial de qualquer ser humano no mundo moderno é com a família, ainda que não seja a biológica. Não é concebível biologicamente que um ser humano nasça e desenvolva-se sem cuidados de um outro ser humano, sem um vínculo afetivo que configura um primeiro lugar no qual denomina-se família.
Utilizando-se ainda da doutrina de Maria Helena Diniz, a definição de fato jurídico “stricto sensu” é: “o acontecimento independente da vontade humana que produz efeitos jurídicos, criando, modificando ou extinguindo direitos”.[3]
Portanto, nascer numa família, qualquer que seja sua configuração, é um fato jurídico. O sentido desse fato, como exposto acima, tem relação com a valia das coisas e também com a sua dignidade intrínseca.
O Código Civil de 1916
Essa dignidade, contudo, nem sempre foi reconhecida, uma vez que o sentido de família era outro, justamente porque a moral vigente, há exatos um século atrás, também diferia da atual.
No Código Civil Brasileiro de 1916, a família patriarcal era o modelo hegemônico e o casamento civil era o ato cívico que a instituía e a legitimava. Dentro do modelo patriarcal, existia uma hierarquia rígida, na qual o homem encontrava-se na posição de chefe da sociedade conjugal e representante legal da família, e a mulher, em contraste com seu companheiro, era tida como relativamente incapaz e portanto, reconhecia em seu cônjuge a potencialidade que lhe faltava para exercer os atos da vida civil. Os filhos eram legitimados pelo vínculo matrimonial, portanto os ilegítimos ficavam a margem da égide legal, ainda que não houvesse obstáculo para o matrimônio dos pais.[4]
Essa concepção moral e jurídica foi formulada pelo autor do Código, Clóvis Beviláqua, que associava a moralidade da época com a conceituação de família e entendia que:
“o complexo de normas que regulam a celebração do casamento, sua validade e efeitos dela resultantes, as relações sociais e econômicas da sociedade conjugal, a dissolução desta, a relação entre pais e filhos, o vínculo de parentesco e os institutos complementares da tutela e da curatela, sendo imprescindíveis para a existência do ato: a dualidade de sexos, a celebração na forma da lei e o consentimento válido.”[5]
Todas essas preconcepções do autor estão presentes no Código Civil de 1916. Aspectos intensamente discutidos na sociedade atual, como por exemplo, o entendimento da família enquanto um laço sedimentado exclusivamente pelo matrimônio, ou a necessidade do reconhecimento da dualidade dos sexos, estão previstas no Código como verdades, algo que para a sociedade contemporânea não pode ser tido como algo além de um conjunto de pressuposições morais e, de certa maneira, identificado como retrógrado aos olhos das novas transformações sociais.
As transformações sociais levantaram questionamentos acerca do papel da mulher, da heteronormatividade e própria instituição do casamento. Essas discussões sociais advindas de movimentos progressistas e de um longo esforço político para que tais pautas fossem amplamente discutidas, repercutiram no Direito positivo brasileiro inicialmente com a Lei nº 4.121 de 1962, conhecida como Estatuto da Mulher Casada.
Essa lei possibilitou a emancipação da mulher de sua condição anterior, pois possibilitava-a tornar-se economicamente ativa independentemente de seu cônjuge. Também na mesma lei estava, a mulher obtinha o direito subjetivo sobre os filhos e podendo, eventualmente, exigir a guarda deles em caso de separação.
A Lei nº 6.515, aprovada em 26 de dezembro de 1977, conhecida como Lei do Divórcio, decretou o fim do casamento como uma instituição juridicamente indissolúvel. As pessoas tornaram-se capazes de reorganizarem-se em novas relações e superar, não apenas judicialmente, seu casamento quando esse não correspondia mais ao que se propôs inicialmente. Vale a ressalva que o decreto nº 6.515 não alterou os direitos e deveres dos pais para com seus filhos.
A Constituição Federal de 1988
A Constituição Federal de 1988 é um marco histórico e jurídico, pois ainda que ratifique com atraso certas práticas sociais, não deixa de servir como orientação e diretrizes para todo o campo jurídico tratar de assuntos sociais, especialmente estes assuntos que atravessam períodos de grande transformação social. A Constituição avançou não apenas na garantia de direitos individuais e liberdades públicas, mas estabeleceu diretrizes para a família contemporânea, destituindo a antiga estrutura de sua posição juridicamente hegemônica e privilegiada.
A Carta Magna tem como fundamento e princípio, a dignidade da pessoa humana. Essa aparece explicitada e resguardada pelo art. 1, inciso III. Nas palavras de Paulo Lôbo, também o princípio da solidariedade é fundamental, enquanto direitos como igualdade, afetividade e liberdade, são princípios gerais. Paulo Lôbo afirma: “Viola o princípio da dignidade da pessoa humana todo ato,conduta ou atitude que coisifique a pessoa, ou seja, que a equipare a uma coisa disponível ou a um objeto”.[6]
Portanto, a noção de posse e de hierarquia rígida da família, tendo o patriarca como chefe da estrutura familiar, está dissolvida em novos princípios que devem ser respeitados e que flexibilizam, juridicamente, a família contemporânea.
A Carta Magna abarcou formas novas de família, estabelecendo que união estável ou laço composto por algum dos pais e seus descendentes (monoparental) constitue uma família. A importância jurídica desse reconhecimento jurídico está resguardada pelo art. 226, pois esse afirma que: “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”
O art. 227 da CF/88 trata de outro ponto fundamental da vivência familiar, pois abrange os direitos das crianças e adolescentes, instituindo, no parágrafo 6º por exemplo, a igualdade dos filhos, incluindo os casos de adoção, e impedindo assim a discriminação relativa à origem da criança ou adolescente. O surgimento das leis especiais também impactou o Direito de Família, pois com a CF/88 elabora-se dois anos depois o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei nº 8.069/90), que fez o Direito de Família e a área infanto-juvenil avançarem ao alterar a antiga doutrina, denominada Doutrina da Situação Irregular, contida no Código de Menores de 1979, para a nova e paradigmática Doutrina da Proteção Integral, reconhecendo o estado desenvolvimental do menor e atribuindo-lhe direitos antes não reconhecidos.[7]
A partir de então, surge um novo enquadre para o Direito de Família e para o Direito Civil como um todo. Para Maria Berenice Dias: “Surgiu um novo nome para essa nova tendência de identificar a família pelo seu envolvimento afetivo: família eudemonista, que busca a felicidade individual vivendo processo de emancipação de seus membros”[8]. Portanto, a partir de 1988 e depois, em 2002, com o novo Código Civil, a ciência do Direito recebe o desafio e a tarefa de debruçar-se sobre as novas configurações familiares, nas quais seus membros são sujeitos de direitos e suas estruturas, flexíveis e heterogênicas, requerem do Estado e do Direito uma abordagem diferenciada.
Novas configurações familiares.
Maria Helena Diniz oferece-nos uma ampla conceituação de família, balizada em três relações diferentes: o matrimônio, o companheirismo e a adoção. As famílias apresentam, ainda em sua visão, alguns pontos essenciais que as configuram, tendo elas como vínculos fundamentais; o biológico, que define o agrupamento mais antigo a ser legitimado pelo Direito e continua a ser base jurídica das famílias; o psicológico, sendo este elemento impalpável, contudo indispensável; o econômico, que estabelece o vínculo da subsistência material cotidiana; o religioso, pois em cada família constitui-se uma moral que, em nossa sociedade, não está desvinculada da religião qualquer que seja e, ainda que o Direito seja laico, não é possível desassociar completamente esses elementos; o político, uma vez que é a instituição primordial de sustentação da sociedade e que dá origem ao Estado, na visão de Ihering; e o jurídico, já que as organizações normativas de cada núcleo familiar origina o direito de família.[9]
Contudo, existe uma dimensão que perpassa todas as concepções de família na contemporaneidade e que já está legitimada pela Constituição Federal de 1988: o afeto. Compreendemos a família atualmente, enquanto uma instituição jurídica, pela composição de sujeitos que relacionam-se através do afeto. Esse pode estar representado por laços parentais ou conjugais e propicia ao indivíduo um lugar para cultivar sua personalidade e explorar seu potencial.
Nesse sentido, Oliveira afirma:
“Afamíliatransforma-senosentidodequeseacentuamasrelaçõesdesentimentos entre os membros do grupo: valorizam-se as funções afetivas da família, que se torna o refúgio privilegiado das pessoas contra a agitação da vida nas grandes cidades e das pressões econômicas e sociais. É o fenômeno social da família conjugal, ou nuclear ou deprocriação,onde o que maisconta,portanto, é a intensidade das relações pessoais de seus membros”[10]
O afeto permitiu o surgimento da pluralidade de estruturas familiares ao enfraquecer, com auxílio do princípio constitucional da dignidade humana, a hierarquia tradicional. Dessa maneira, revelaram-se novas organizações familiares:
Família monoparental: essa estrutura é abarcada pela Constituição de 1988 e reconhecida juridicamente. Na prática, essa família tem sua origem em diversas causas hipotéticas e é definida de forma clara pela sua denominação, pois é uma família na qual apenas um pessoa exerce a função parental. Uma questão importante a ser ressaltada na estrutura monoparental está na tendência desta família tornar-se uma família reconstituída.
Família reconstituída: no caso, uma família reconstituída é uma família que, após um rompimento por quaisquer motivos, reconstitui-se ao ter o lugar anteriormente vago, portanto configurando uma família monoparental, preenchido por alguém ou pela mesma pessoa. Portanto, a família reconstituída é justamente a tendência natural da monoparentalidade, uma vez que as pessoas estão inclinadas, após um tempo, a voltar a se relacionar e buscar um novo laço que preencha o espaço aberto pelo último.
Família homoafetiva: a família composta por duas pessoas do mesmo sexo é uma realidade, sendo contemplada juridicamente com a união estável. Contudo, é notável a lacuna jurídica constitucional acerca do tema. Pelos princípios elencados na Constituição Federal de 1988, é possível enquadrar e validar a família homoafetiva juridicamente, pois com decisões do STF sobre a união estável, o status de família tornou-se legítimo.
Família matrimonial: entendida como a família tradicional, prevista no antigo Código Civil. Ainda que não seja nova, a família matrimonial não necessariamente corresponde ao modelo clássico, antigamente considerado hegemônico e correto, mas sim ao modelo de família nuclear. As funções estão reorganizadas em torno do afeto e existe uma autonomia e dignidade garantidas pela constituição, o que a assemelha com a família reconstituída, mas precede a ruptura e a estrutura monoparental.
Conclusão
As transformações sociais não são produto direito do Direito, mas esse também não o é dessas. O processo histórico que conduz a nossa sociedade ao ponto em que estamos e que continua a conduzir-nos para um futuro específico, é uma construção da qual a Família e o Direito fazem parte enquanto instituições ativas no processo. O fenômeno transformado não é exclusivamente jurídico e nem exclusivamente social, pois é somente um fenômeno, sendo adjetivado na medida em que determinadas ciências debruçam-se sobre ele. A família tem, como foi apresentado acima, diversas dimensões e possibilidades de se concretizar na sociedade atual.
Contudo, essa concretização não era possível juridicamente, uma vez que o entendimento limitado sobre a família, alicerçado numa moral não mais homogênea e dominante, tinha respaldo na antiga legislação. O Código Civil de 1916 propunha um modelo único, correto, juridicamente legítimo e, principalmente, assimétrico de família. O caminhar social do século XX foi colocando à prova essa legislação e gradativamente conquistou concessões e atualizações por parte dos operadores do direito frente às novas necessidades sociais: o Estatuto da Mulher Casada e a subsequente Lei do Divórcio apontaram as tendências flexibilizadoras que estavam por vir.
Somente na Constituição Federal de 1988, com princípios claros e a real equidade dos direitos subjetivos, garantindo também um novo status jurídico para crianças e adolescentes com a instituição do Estatuto da Criança e do Adolescente, as novas configurações familiares passaram a ser aceitas juridicamente. O Código Civil de 2002 consolida, em conformidade com a CF/88, esse princípios e substitui o modelo familiar previsto no seu antecessor. As novas famílias, que não passam a existir factualmente, mas sim juridicamente, em 1988, são primordialmente compostas pelo vínculo afetivo que, consequentemente, implica na vivência de todas as dimensões relacionaisque uma família tem, seja qual for sua estrutura.
O trabalho do Direito, por sua vez, não será jamais terminado, pois a família e suas possíveis configurações, continuarão em seu processo transformativo em sintonia com as transformações sociais e, portanto, o Direito continuará a se transformar para abarcar essas mudanças sociais para melhor cumprir seu papel social.
Informações Sobre o Autor
Flavio Henrique Elwing Goldberg
Advogado e escritor organizador do livro O Direito no Divã Ética da Emoção Ed. Saraiva obra que foi classificada em quarto lugar no Prêmio Jabuti na categoria Direito no ano de 2012